Identificação Meu nome é Diocina Lopes dos Reis, eu nasci no dia 16 de outubro de 1952 e moro na comunidade Ludovico, município de Lago do Junco, no Maranhão. Avó destemida Meu pai se chama José Lopes da Silva e minha mãe é Maria das Dores dos Reis. Os dois eram trabalhadores, meu pai trabalhava na roça e minha mãe quebrava coco babaçu. Os meus avós paternos eram Higino Lopes da Silva e Maria Lopes da Silva e eles também trabalhavam na roça. Quando eu era pequena, minha a avó me contava que quando eles chegaram em Ludovico, vindos do Ceará, era muita mata e tinha muita onça. Eu perguntava se ela não tinha medo, ela me dizia que não, porque quando ia para roça levar a comida do meu avô, passava pelas onças e as tangia no meio das veredas. E as onças nunca fizeram nada Mas aconteceram muitos acidentes, muitas pessoas foram atacadas por onça. Agora os meus avós maternos eram de Codó mesmo, no Maranhão. Eles plantavam arroz, milho e mandioca para fazer farinha. Babaçu para temperar a caça Minha avó também contava que na época em que chegaram em Ludovico, tinha pouco babaçu e não dava para comercializar. Eles só quebravam para fazer óleo para temperar a comida, fritar peixe, e temperar caça. Eles caçavam muito veado, tatu, peba... Pegavam no terreiro de casa, porque tinha muito. Para conservar a carne, eles retalhavam, passavam sal e colocavam no sol para secar. A minha avó materna dizia que também comiam muito gado nessa época, porque criavam no campo. E não tinha esse negócio de dizer: "Aqui tem dono", era uma coisa livre. Eles matavam o gado, escalavam a carne, passavam sal, botavam no sol para secar e, quando estava bem sequinha, pisavam no pilão, que virava uma massa, cozinhavam a ossada do gado e faziam o pirão da carne. Nessa época ainda não lavravam muito o arroz, então eles foram criados com o mingau de carne. E eles faziam a mesma coisa com a caça. Lembranças da infância Lembro de algumas coisas da...
Continuar leituraIdentificação Meu nome é Diocina Lopes dos Reis, eu nasci no dia 16 de outubro de 1952 e moro na comunidade Ludovico, município de Lago do Junco, no Maranhão. Avó destemida Meu pai se chama José Lopes da Silva e minha mãe é Maria das Dores dos Reis. Os dois eram trabalhadores, meu pai trabalhava na roça e minha mãe quebrava coco babaçu. Os meus avós paternos eram Higino Lopes da Silva e Maria Lopes da Silva e eles também trabalhavam na roça. Quando eu era pequena, minha a avó me contava que quando eles chegaram em Ludovico, vindos do Ceará, era muita mata e tinha muita onça. Eu perguntava se ela não tinha medo, ela me dizia que não, porque quando ia para roça levar a comida do meu avô, passava pelas onças e as tangia no meio das veredas. E as onças nunca fizeram nada Mas aconteceram muitos acidentes, muitas pessoas foram atacadas por onça. Agora os meus avós maternos eram de Codó mesmo, no Maranhão. Eles plantavam arroz, milho e mandioca para fazer farinha. Babaçu para temperar a caça Minha avó também contava que na época em que chegaram em Ludovico, tinha pouco babaçu e não dava para comercializar. Eles só quebravam para fazer óleo para temperar a comida, fritar peixe, e temperar caça. Eles caçavam muito veado, tatu, peba... Pegavam no terreiro de casa, porque tinha muito. Para conservar a carne, eles retalhavam, passavam sal e colocavam no sol para secar. A minha avó materna dizia que também comiam muito gado nessa época, porque criavam no campo. E não tinha esse negócio de dizer: "Aqui tem dono", era uma coisa livre. Eles matavam o gado, escalavam a carne, passavam sal, botavam no sol para secar e, quando estava bem sequinha, pisavam no pilão, que virava uma massa, cozinhavam a ossada do gado e faziam o pirão da carne. Nessa época ainda não lavravam muito o arroz, então eles foram criados com o mingau de carne. E eles faziam a mesma coisa com a caça. Lembranças da infância Lembro de algumas coisas da minha infância. Quando somos pequenos, às vezes não lembramos, mas vamos crescendo e despertando. É como se estivéssemos dormindo e fossemos acordando. Quando despertei, eu lembro da casa onde morávamos, que ainda hoje eu moro lá. Era uma casa pequena de pau-a-pique, coberta de palha de babaçu. A minha infância foi boa, porque eu adorava muito viver dentro das matas. Mas eu não estudava. Fui para um colégio quando já era uma moçona, de uns 15 anos. Eu não ia ao colégio quando pequena porque minha mãe não podia pagar, ela era muito pobre, não podia colocar todo mundo. E quebrava coco, trabalhava na roça e não tinha uma renda assim que pudesse dizer: "Tenho esse dinheiro para fazer isso". Eu vivia no mato com a minha mãe. Ela tinha que ir todos os dias para o mato quebrar coco e eu ia com ela. Eu não fazia muita coisa porque era pequena, mas ficava subindo nas árvores, dando mais trabalho para ela. E quando chegava em casa ficava na barra da saia da minha mãe direto. Para onde ela ia, eu e meus irmãos estávamos atrás. Fui muito apegada à minha mãe. Às vezes ela até brigava, porque éramos muito apegados e ela precisava sair, trabalhar. Quando eu ficava doente, com febre, com alguma coisa, eu tinha que ir com ela, não queria ficar em casa. Mesmo doente ia para o mato. Nós não tínhamos meios de lazer, nem brinquedo, meus brinquedos eram pedaço de pau, coisas do mato. As delícias da mata Aprendi a gostar de fruta no mato, porque não comia muita comida caseira. Acho que era por isso mesmo que andava muito nos matos, eu me alimentava demais. Eu comia muita goiaba e gopel, que é uma fruta muito gostosa, parece uma maçã. Hoje nós quase não a encontramos, mas no nosso assentamento nós temos achado algumas. Mas quando eu era pequena tinha muita, ela dava mais na época do inverno. Ela tem um cheiro muito gostoso, é diferente. Eu achava o gopel nas moitas pelo cheiro. E também tinha muito ingá, uma fruta comprida que tem dentro umas amendoazinhas, umas frutinhas bem doces. E sempre que se anda no mato vemos muita coisa bonitinha. Via aquelas favinhas do mato, que soltavam da madeira, e eu pegava muitas. Minha mãe fazia muito paneiros, que eram cestos de palha de coco e nós os enchíamos de favinhas. Enquanto minha mãe estava trabalhando, ela não me deixava quebrar coco, porque achava que era perigoso, eu podia cortar os meus dedos, eu ficava brincando ao redor dela com essas favinhas. Eu nunca ajudei a minha mãe a fazer os seus trabalhos e hoje estou sentindo necessidade, porque deveria ter aprendido. Eu não sei fazer os cestozinhos nem as esteiras de palha. Os meus irmãos sabem fazer, mas eu não aprendi. Traquinagens Lembro que quando tinha uns 10 anos eu andava só com uma calcinha, não tinha blusa, não gostava de roupa. Para começar a usar roupa eu apanhei muito, era lapada de cipó que pulava para eu me vestir. Demorei muito a acostumar com roupa. Minha avó materna me chamava Tapuia, eu tinha os cabelos muito grandes, nessa época não aceitavam filha cortar cabelo. Eu via muita cobra na mata. Um dia eu aperreei uma cobra que tinha no pedaço de chão que o meu pai comprou. Antes era tudo livre, nós podíamos entrar onde quisesse, mas depois passou umas pessoas vendendo terra, dizendo que eram donos, então, meu pai comprou um pedaço de chão lá, que depois tomaram dele. E eles acostumavam as cobras mais mansas pra expulsar as que mais bravas. Mas eu atentei muito essa cobra, e ela quase me pegou. Fazia isso escondido do meu pai, senão ele me batia. A cobra era mansa, você passava e ela não ligava, mas se nós jogássemos pedra, pauzinho nela, ela começava a zangar. E a cobra correu muito atrás de mim e quase me pegou. Eu tive que rodear um capoteiro, que é uma palmeira muito grossa e eu conseguir enganar ela. Cheguei em casa e meus pais estavam preocupados, porque já estava anoitecendo, meu pai dizia: "Eu tenho medo de perder essa menina, porque se ela ganhar o mato, ninguém a encontra mais". Todo dia, quando eram seis horas, eles costumavam mandar meus irmãos atrás de mim. Meus pais diziam que eu uma criança muito traquina, que eu achava melhor ficar no mato. Foi difícil eles me tirarem do mato e me colocarem no colégio. Irmãos Eu era uma das irmãs mais novas. Hoje só tenho duas irmãs, que eram mais novas que eu. Os meus irmãos não gostavam muito do mato, eles estudaram mais, tiveram mais acesso aos estudos. Naquela época os pais tinham uma mania de achar que a filha mulher não podia estudar, porque isso só prestava para fazer carta para namorado. Lá em casa os homens é que estudaram mais, hoje eles até conseguem ter um trabalho. Dificuldades da família A minha avó só usava o babaçu como óleo porque não tinha comércio dele. Mas a partir da minha mãe já começou a surgir fábrica de óleo de babaçu para fazer sabão. Foi quando o babaçu virou um meio de sobrevivência. Era uma vida muito sofrida, ainda mais depois que as terras passaram a ter donos. Na época do Sarney, ele vendeu tudo quanto foi terra do Maranhão. Surgiram umas pessoas que diziam: "Olha, a partir de agora vocês não podem mais trabalhar nessas terras, colocar roça sem falar comigo, porque eu sou o dono da terra, eu comprei essa região toda", muito embora não fosse verdade. Eles chegavam, cercavam e dizia que eram donos. E o pobre do lavrador ficou deserdado, trabalhando pela meia. Foi quando meus pais entraram nesse sofrimento. Porque o fruto do trabalho deles ficava metade para o dono e nós ficávamos com um pouquinho que não dava para nada. Minha mãe se preocupava muito, porque quebrava coco e precisava da ajuda da família, mas ela queria que os filhos tivessem saúde, estudassem. Quando já era grande, com uns 15 anos, fui para uma escola que ela pagava. Mas ficava difícil para aprender, porque eu ia para escola um dia e passava quase oito sem ir. Tinha que trabalhar, ir para roça com a minha mãe, porque depois que apareceram os donos da terra ficou mais difícil. Era quase uma escravidão. Meu pai conseguiu comprar um pouco de terra, mas depois ele não deu conta, não soube lidar. Ele era uma pessoa acostumada a trabalhar como voluntário. E logo apareceu alguém que ofereceu um dinheiro pelas terras para ele e nós ficamos sem nada. E nós ficamos morando lá, mesmo sem ter direito, mas tínhamos que dar metade para o dono. O preço do coco era baixo, se a minha mãe quebrasse 10 quilos de coco, era pouco. Eu não entendia muito de dinheiro, mas lembro de ouvir tostão, centavos. Eu comecei a quebrar coco com sete anos. Minha mãe partia coco no machado, ela tinha medo de eu abrir coco porque eu podia cortar meus dedos. E aí eu ficava lutando, conseguia tirar um pouquinho, uma mão cheinha de amendoa, mas já era uma ajuda... Depois fui treinando e, com 13 anos já conseguia ajudar mais. Babaçu A planta de babaçu é nativa, nunca vi ninguém plantando ela. E quanto eles derrubam uma palmeira, ela não brota, morre, como se fosse uma pessoa que morreu, vira adubo e pronto. Durante seis meses o babaçu brota bem. Agora, até janeiro, ele está numa safra muito boa. Todo lugar que chegamos nós encontramos muito coco. A partir de fevereiro a sagra começa a ficar ruim. Entanto está na entressafra, a palmeira vai criando outros cachos. Mas assim nós aproveitamos o ano inteiro, porque continuamos indo no mato procurar o coco. Minha mãe quebrava o coco com o machado e vendia uma parte para comprar algumas coisas. A outra parte ela torrava na panela, pisava no pilão e apurava para tirar o azeite. E coco a nós quebrávamos, pisávamos no pilão e tirávamos o leite para temperar peixe, caça e fazer sabão para lavar roupa. Mudanças Entrei na escola com uns 15 anos, mas não consegui continuar porque precisava trabalhar. As coisas foram mudando. Quando estava com 16 anos o meu pai abandonou minha mãe, cada um seguiu um rumo e os filhos ficaram com a mãe. Depois ela ficou muito doente. Então quem sustentava a casa era eu e uma irmã. Os meus outros irmãos já estavam casados, tinham suas famílias. Eu trabalhei muito na roça durante minha juventude. Tratava de três linhas de roça para ter arroz, feijão e mandioca. Depois minha irmã casou e eu, com 17 anos, fiquei só com minha mãe doente. Trabalhei muito para sustentá-la. Então eu não podia mais estudar, porque só chegava do trabalho de noite e, além de não agüentar, não tinha colégio à noite. Casamento E eu fiquei cuidando da minha mãe sozinha. Então ela pediu para eu procurar uma pessoa que se responsabilizasse por mim, porque se preocupava de morrer e me deixar só. Eu não tinha intenção de casar, mas ela ficou insistindo. Aí eu encontrei um rapaz, que se chamava Brígido Francisco de Souza e me casei com ele. Ele também era trabalhador rural, como os seus pais. Muito tempo depois a minha mãe morreu. A nossa vida era muito difícil. Não tínhamos mais onde colocar a roça, os donos não deixavam mais. Então eu fui trabalhar no mato, grávida da minha primeira menina. Lá eu fui muito agredida pelo capataz, do dono da terra, e fiquei adoentada e a menina nasceu doente e não sobreviveu, depois de três dias ela morreu. Fui mal tratada pelo capataz, porque os donos das terras criavam gado nelas e não queriam que nós quebrássemos o coco por lá. Eles diziam que o babaçu era deles e estávamos roubando. Mas nós não tínhamos outra opção. E lá tinha muito gado valente, as vacas até corriam atrás de nós. O capataz disse que não era para eu quebrar coco e eu disse: "Eu vou, é o jeito, eu tenho que sobreviver. E eu vou entrar aí mesmo". E ele colocou uma vaca para me pegar. Ela correu muito atrás de mim, mas não conseguiu me pegar. Então o capataz pegou uma pinhola, que ele usava para bater no gado, e queria me surrar. Tive que correr muito. Uma mulher grávida correr tanto dentro do mato é muito ruim, fiquei doente. Terminei o resguardo e logo fiquei grávida de novo de outra menina. Ela também nasceu doente, não resistiu e morreu. Algum tempo depois engravidei mais uma vez, da terceira filha, que vingou e hoje está com 25 anos. Ela que toma conta de tudo dentro de casa. Quando essa minha filha tinha quase um ano, tive meu outro filho, que hoje ele é um rapaz já formado. Mais tarde tivemos outro filho, que é deficiente. Meu marido não resistiu à opressão tão grande de trabalhar por meia e foi trabalhar nos garimpos. Nessa época, na nossa região, quase todos os homens foram para os garimpos, porque não tinham mais onde trabalhar. E eu fiquei só com as crianças e tinha que trabalhar para dar comida a elas. União das mulheres Meu marido foi para o Pará, para Itaituba. Só que ele não arrumou nada por lá, só doença, uma cirrose no fígado que não tinha cura. Ele voltou, eu fiquei trabalhando. Eu e as mulheres de outros garimpeiros passamos por muita agressão e humilhação. Enquanto andávamos sozinhas pelo mato, apanhávamos muito. Então, começamos a conversar sobre isso, aqui quase todo mundo da comunidade é comadre e compadre: "Comadre ontem fui para o mato e o cara tomou meus cocos, até o machado ele pegou e jogou fora”. As histórias eram sempre as mesmas. Estávamos amedrontadas de andar sozinhas, então resolvemos: "Vamos se juntar e ir em grupos? Vamos fazer um mutirão de mulheres. Porque aí se uma tem medo a outra dá coragem". Começamos assim. Quando íamos em grupos eles não nos colocavam mais para correr, quando ele vinha, uma dizia uma coisa, a outra dizia também e ficávamos com mais coragem. Enquanto estávamos no mato quebrando coco, começamos a lançar idéias de como íamos viver, o que os homens ganhavam nos garimpos não importava mais. Mesmo porque muitos deles só adquiriam doença e voltavam, os que não morriam por lá mesmo. E nós precisávamos de mais trabalho para dar sustento à família e cuidar do marido doente. A doença do meu marido não tinha cura e ele terminou morrendo. E eu fiquei sozinha com meus filhos. Os homens não pensavam em procurar um meio diferente de vida, só pensavam que trabalhar em garimpo daria dinheiro. Mas nós, as mulheres da comunidade, vimos que a única maneira de manter nossas terras era se juntar. Porque a pior coisa que eu já vi na minha vida foi os meus filhos pedindo de comer e não ter nada para dar. E juntou um monte de mulheres sem marido e fomos lutar, enfrentar os fazendeiros, capatazes, e até polícia. Eu não gosto muito de contar essas coisas que passamos, porque fomos muito humilhadas. (choro) Parar de pagar a meia Quando trabalhávamos a meia, se eu quebrasse dez quilos de coco, cinco ficavam para o dono da terra; se eu fizesse carvão, ficava uma parte para o dono da terra. Na roça também era a mesma coisa. Quer dizer, o cara não trabalhava, não fazia nada, só cedia a terra para trabalharmos e ficava com a metade. Fora essa exploração, tinha também a perversidade, a judiação que passávamos. As mulheres apanhavam, tanto do próprio marido em casa, como no serviço, porque não podiam entrar na área do fazendeiro, que dizia que estávamos roubando. Estávamos sendo exploradas. Nós ficávamos imaginando: "Nós trabalhamos tanto e a cada dia ficamos mais miseráveis". Então resolvemos trabalhar para nós mesmas, tirar o nosso lucro e não dar para mais ninguém. Até porque o babaçu é uma planta nativa, é uma dádiva de Deus. Porque esses homens dizem que ninguém pode quebrar esse coco? Nos organizamos e também tínhamos uma luz, que era a Igreja Católica, os padres celebrando a missa, vendo o nosso sofrimento, diziam: "Vocês têm o direito de trabalhar, isso é uma planta nativa, é dádiva de Deus. Vocês não podem quebrar os coquinhos e dar para esse povo. Se organizem e vão trabalhar". Retaliação dos fazendeiros E ficamos trabalhando juntas. Só que os fazendeiros também montavam as estratégias deles, a forma deles nos combaterem. Quando resolvemos trabalhar juntas, eles começaram fazer as derrubadas. "Nós derrubamos as palmeiras, porque vocês não querem trabalhar dando a meia." Primeiro eles cortavam os cachos, porque nós dizíamos que era proibido, que existia uma lei que não podia derrubar, e eles respondiam: "Onde é que está essa lei?" Nós fazíamos aquele bafafá danado até que eles atendiam, ficavam com medo por causa da multidão de mulher que ia pedir para eles não fazerem isso. E eles pararam de derrubar os cachos de coco, mas depois continuaram derrubando palmeira. E o que é pior, os nossos próprios maridos iam derrubar para ganhar dinheiro. Aí a nós começamos a luta com os maridos em casa. E foi uma batalha pesada, porque brigar com o próprio marido, fazer entrar na cabeça dele que nós estávamos tirando o sustento daquelas palmeiras e que o dinheiro que eles ganhavam para derrubar as palmeiras não dava nem para a alimentação de um dia. Uns obedeceram. No caso o meu marido, ele nunca fez nada, dizia que preferia ganhar o mundo e foi pra esse negócio de garimpo. Nós tentamos conscientizar uma boa massa de gente para não derrubar, mas os fazendeiros arrumavam outra forma, colocavam o trator. E íamos, aquele monte de mulheres, pedir, ficávamos na frente de trator. Era uma calamidade. Aí eles começaram a colocar segurança, que eram pistoleiros e até a polícia. Nós enfrentamos a polícia para poder sobreviver. Apoio da diocese contra o terrorismo dos fazendeiros A única diocese da região, em Bacabal, foi que deu apoio para nós. Nessa época o bispo era Dom Pascazzi, ele nos apoiou, foi o único. Porque até os sindicatos de trabalhadores rurais não permitiam que as mulheres se associassem. O Dom Pascazzi ajudou a denunciar, porque nessa época mataram muitos trabalhadores rurais, tinham muitos pistoleiros na região. Tiveram mulheres que foram mortas também nessa época. Ele fez uma denúncia uma vez no Rio de Janeiro, para uma emissora de rádio. Parece que era Globo, que chamava Rádio Globo da Amazônia, uma coisa assim. Mas essa época, a partir de 1986, era difícil demais. Nós dormimos muito no mato. E por conta disso, gerou um terrorismo na nossa região, os fazendeiros derrubaram e queimaram casa dos moradores, expulsavam, seqüestravam trabalhadores. Nós não podíamos dormir, passamos seis meses dormindo todo mundo no chão, porque era o tiroteio mais monstruoso do mundo, saía mais de 500 tiros por hora. Tinha muita bandidagem que eles colocavam na nossa região. Tudo isso para nos intimidar. Os homens que se engajaram nessa luta por uma sobrevivência melhor precisavam dormir muito tempo no mato mesmo, escondidos. Porque tinha segurança para os pistoleiros, a polícia os protegia, mas trabalhador não podia nem aparecer. Meus filhos eram pequenos nessa época. Um estava com oito meses, uma tinha quatro anos e o outro três. E quando tínhamos que fugir para o mato, precisávamos levar eles. Em 1988 a coisa começou a melhorar um pouco. Parece que as autoridades ouviram um pouco e resolveram desapropriar umas áreas e entregar para os trabalhadores. "A área é de vocês e pronto.” Aí nós mesmos fomos sentar e discutir o que íamos fazer, porque umas áreas estavam degradadas, só tinha capim. Precisávamos decidir o que faríamos para essa terra produzir. E nós fizemos uma associação nas áreas de assentamento. Organização com a Pastoral da Criança Antes disso, nós já tínhamos uma organização junto com a Pastoral da Criança, porque na área do assentamento morria muita criança por desnutrição. Então nos agrupamos e fomos ajudar as crianças e orientar as mães sobre o aleitamento e a questão da multimistura. Nós trabalhamos hortas comunitárias para melhorar a alimentação. Nós recebíamos orientação da igreja. Eu passei dez anos trabalhando na Pastoral da Criança. E nós conseguimos melhorar a situação na nossa comunidade, porque orientávamos os pais a fazer fossa, fizemos campanha de filtro, para dar água fervida e filtrada para as crianças. Nós tentamos ensinar as mães a fazer o soro caseiro, mas algumas não acreditavam que funcionasse. Aí a diocese conseguiu fazer um trabalho na televisão. Quando o Renato Aragão falou do soro caseiro, todo mundo da região acreditou: "Ah, o que aquelas meninas estavam falando era verdade", e todo mundo passou a dar soro caseiro para as crianças. A multimistura também. Nós pegávamos as nossas plantas mesmo: folha de mandioca, macaxeira, o cuim do arroz, sementes de abóbora, amendoim... Nós pisávamos tudo com casca de ovo e colocava uma colherada na comida. A criança ficava saudável que só vendo Elas ficavam livres de verminose. Ainda hoje, muita mulher corre léguas atrás de nós pedindo a multimistura. Hoje na nossa região não tem cemitério de criança, só de velho. Associação dos assentados Depois que nós criamos a Associação em Áreas de Assentamento, Assema, fomos buscar uma forma de produzir e comercializar os nossos produtos. A Assema é administrada pelos trabalhadores e as quebradeiras de coco. E nós conseguimos contratar uma equipe técnica para nos orientar, porque ninguém sabia se virar, como buscar recurso, fazer projeto, essas coisas. E também depois, através da Pastoral da Criança, criamos nossa Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais, que é das quebradeiras de coco do Município de Largo do Junco. E nós já trabalhávamos a questão do sabão, resgatando o que os nossos pais já faziam. Eu cansei de ver a minha avó e minha mãe fazendo sabão do óleo do coco, que era torrado e pisado na panela, que virava o azeite e fazia também com o rescaldo de cinza de madeira, que na época tinha muita madeira, ficava um sabão muito bom. Mas nós imaginávamos: "O que nós vamos fazer?” Porque não tinha mais madeira e usávamos soda caustica, e fomos caçar uma nova forma. Queremos uma forma de que nosso sabonete fique totalmente natural. Ainda não foi possível, mas estamos tentando. Esse sabão que fazíamos, vendíamos para nós mesmas, porque não tinha quem acreditasse nele. O grupo de mulheres era grande, então nós doávamos alguns litros de azeite, porque ele também servia para temperar comida. Ali eu trabalhava fazendo sabão e também o comprava e assim fazíamos a nossa caixinha. Trabalhava na horta comunitária também e preparando uns eventos. Uma época a Emater, um instituto do governo do Maranhão, funcionou. Então tinha um grupo fazendo acompanhamento, fizeram uma capacitação no nosso grupo em Ludovico. Tinha um rapaz que trabalhava com o grupo de homem e uma mulher que ficava com as mulheres, ela fazia acompanhamento na nossa horta comunitária, com os homens eles trabalharam a questão de aração de terra manual. Nessa capacitação ela trouxe receitas e nós a estudávamos e imaginávamos como faríamos. Aí nós inventamos o Sabão Mulher, história que repercutiu muito. De lá pra cá as coisas foram melhorando, nós ganhamos muita confiança na da produção do sabão. Quando fundamos a associação de mulheres e propusemos trabalhar com a produção de sabonete e sabão do coco babaçu, queríamos uma forma de nos apresentarmos para o governo, para eles nos darem mais apoio. Porque a palmeira do babaçu tem muitas utilidades. Nós cobrimos as casas, fazemos os cofinhos para carregar qualquer coisa, e o adubo, acho que não tem outra coisa melhor par adubar a planta. Nas terras desapropriadas tinha muito babaçu, só que os fazendeiros já tinham devastado um bocado de terra, que era só capim. Nós procuramos toda forma de apoio, consultamos outras entidades até que encontramos uma forma de reflorestar essa área, como plantar coisas que ajudam a melhorar o solo, como leguminosas. O babaçu está gerando renda para mais de duas mil pessoas na nossa região. E também criamos uma cooperativa para melhorar a nossa produção e a comercializar. Além dos sócios, outras pessoas, os indiretos, também estão sendo beneficiadas. Outra coisa é a educação, porque nós não tínhamos nenhuma informação e os nossos filhos não estudavam. Mas depois de 1988 as coisas melhoraram porque conseguimos conquistar muita coisa. Foi um desafio muito grande, passamos uma calamidade pesada, mas depois nós despertamos, pois não podíamos ficar desse jeito. Tínhamos que gritar, nos mostrar e quando pedimos apoio nós conseguimos. Hoje a Associação tem cem mulheres que tiram o sustento do babaçu. Agora que já fazemos o sabão e o sabonete, queremos descobrir uma forma de fazer óleo corporal de babaçu, que foi uma experiência que deu certo. Precisamos de apoio financeiro para a comercialização desse óleo. Também queremos que a venda do sabonete melhore. Nós temos muitos parceiros que compram, mas ainda está não está bom. Entrada das mulheres no sindicato O desafio foi pesado, porque tivemos que brigar com o sindicato para que as mulheres se associassem, fomos orientadas de que também tínhamos direito de ser sócias, não podíamos viver independentes. E nós achamos os nossos direitos para reivindicar. Nos reunimos e fomos reivindicar com o presidente e ele também se deu conta de que a mulher tinha que se associar mesmo. Logo um bocado de mulher se associou. Mas não tínhamos condições, então nos juntamos em mutirão, 60 mulheres quebrando coco para que 20 se associassem. E assim as mulheres foram entrando no sindicato. E depois brigamos para tomar a direção e ocupar um espaço dento do sindicato, porque nessa época só tinha homem. Nós conseguimos ocupar o sindicato, porque ele estava totalmente nas garras de gente que valorizava os patrões, não os trabalhadores. Muitos e muitos abaixo-assinados de denúncia que nós fizemos para o Ibama do nosso estado estavam engavetado no sindicato e nós descobrimos, mexemos nas gavetas, quando entramos a diretoria. Nós enviamos o abaixo-assinado para o Ibama, só que se fossemos esperar o Ibama resolver alguma coisa eles derrubavam todas as palmeiras. Nós éramos obrigadas a ficar no pé. Sabão Mulher As mulheres da nossa comunidade compravam muito aquele sabão Omo. Aí um dia nós estávamos trabalhando, ralamos o nosso sabão e botamos em umas embalagens para ver se conseguíamos comercializar. Começamos e discutir qual seria o nome do sabão. Era muita mulher dando opinião e eu disse: "Por que nós não botamos Sabão Mulher? Porque ele é feito por grupo de mulher, né?" Aí fizeram uns desenhos nas embalagens, desenharam uma palmeira, uma margarida e uma mulherzinha com o cabelo todo assanhadinho. A companheira da Emater que trabalhava conosco, a Vinólia, gostou muito da idéia. Ela nos ajudou muito, deu muita força. Ela que nos passou a receita do sabonete e depois colocou alguns na vitrine dos escritórios da Emater. E como lá andava muita gente, quando viam aquilo, perguntavam: "Ôxente, que negócio é esse?" E ela explicava. A partir daí, o Sabão Mulher repercutiu muito, nós recebíamos visitas e mais visitas que queriam conhecer o Sabão Mulher e queriam comprar. Depois fizemos o sabonete, que também se chama Sabonete Mulher. Nós discutindo com a nossa assessoria e uma das companheiras teve uma outra idéia: "Como nós estamos lutando por um livre acesso de trabalho, então vamos colocar o nome do nosso sabão de Sabão Babaçu Livre”. E a partir daí, nós concordamos que o sabão e o sabonete se chamariam Babaçu Livre. Mas esse sabonete tem dado dor de cabeça para nós É muita luta. Ingredientes antigos Minha mãe e minha avó também faziam sabonete com o babaçu, mas era um pouco diferente da receita que usamos hoje. Naquela época elas usavam rescaldo de cinza e nós colocamos soda cáustica. Agora, o nosso sonho mesmo é usar alguns ingredientes que usavam antigamente, que dava um aroma na roupa, que é outra planta da região, a oriza. Quando a minha mãe e a minha avó lavavam roupa com o sabão, elas colocavam anil e folhas de oriza num paninho e desmanchavam na água das roupas. As roupas no varal perfumavam o quintal, era um cheiro muito bom. Elas também colocavam folhas dentro do baú, porque nessa época não guarda-roupa. Hortas comunitárias Na nossa região estamos trabalhando a questão das roças orgânicas. Tem um grupo de mulheres que trabalham com plantas para fazermos essências, as plantas aromáticas, inclusive a oriza. E nessas roças orgânicas, plantamos também alimentos, como mandioca, feijão, milho, arroz, abacaxi e até babaçu. De essências, plantamos, das que eu conheço da época da minha mãe, manjericão, patchouli, oriza e rosa. Tem uma rosa que é muito cheirozinha que minha mãe usava muito, chamava rosa todo ano. Função atual dentro da associação Continuo quebrando coco, trabalhando na roça para sustentar os meus filhos. E também trabalho na discussão política da associação, porque hoje estou na direção dela. Já é a terceira vez que eu fico na direção da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais, hoje eu estou como secretária geral da AMTR. E também sou sócia da cooperativa e na comercialização dos produtos. Nós temos algumas lojas na Inglaterra que compram nosso sabonete. Agora nós paramos, mas já fizemos quatro exportações para os Estados Unidos e foi uma coisa que deu uma força para nós, trouxe mais ânimo para as mulheres, porque elas já estavam esmorecidas. A nossa equipe de assessores ficava buscando informações sobre exportações. Eles nos levaram a alguns lugares para trocarmos experiência, visitamos fábrica de sabonete, por exemplo, para termos idéia do jeito que queríamos o nosso produto, que ele não afete a saúde das pessoas, porque estamos usando muito produto químico. E no Rio de Janeiro a Maria Alaíde se encontrou com o pessoal de uma entidade chamada Capina e depois eles vieram nos visitar e disseram que se tivéssemos paciência, teríamos sucesso. E que eles iam nos ajudar. Depois vieram outras entidade e também prometeram ajuda. As visitas foram acontecendo até que um dia veio uma pessoa da Inglaterra, que achou interessante a nossa organização, que além de produzir, nós preservamos a natureza, e nos deram apoio, com as exportações. Aí a coisa pegou fogo A mulherada se animou. Cantinas Nossa associação tem oito cantinas que compram nossos produtos, porque a cooperativa fornece às comunidades só o básico. Então nós quebramos o coco, vendemos na cantina e trocamos por coisas que precisamos para casa, e se sobrar, ficamos com o dinheiro. Com as cantinas, a nossa situação ficou muito diferente do que era no tempo do atravessador, porque éramos humilhadas. Hoje o comércio é nosso e, graças a Deus, até agora está dando certo. Nós podemos comprar, mas temos um limite de 20%, eu não posso ultrapassar, porque o depósito é de 200 quilos de coco, então preciso ter cuidado para chegar só a esses 200 quilos. Se a pessoas está precisando de alguma coisa, ela pode pegar adiantada na cantina. Antes nós não tínhamos isso. Quer dizer, muitas famílias que são sócias da cooperativa não passam mais dificuldades de antes. E mesmo as famílias que não são associadas na cooperativa são beneficiadas. Elas também vendem seus produtos nas cantinas, porque se elas vão negociar com o atravessador são muito mal tratadas. Filhos Os meus filhos estão bem informados, nós conseguimos educar os nossos filhos lá na região. Antes eles não chegavam nem na oitava e hoje nós conseguimos a escola Família Agrícola. Tenho dois filhos que já fizeram, um deles está formado em Agropecuária, e a outra fez a oitava série. Eles conhecem a minha história, o que eu passei, o que sofri com eles, eles não lembram bem, mas sabem. E hoje eles agradecem muito, porque se não fosse essa luta toda, eu não sei o que seria deles. Eles não teriam nem metade da felicidade que eu tive quando criança, de brincar dentro dos matos, comendo fruta. Com certeza eles vão continuar na comunidade, porque já estão adultos, trabalham com o babaçu e vendem na cantina. Processo de transformação do babaçu Nós quebramos o coco do babaçu e tiramos as amêndoas dele, é isso que vendemos, é disso que nos sustentamos. Da cantina, o babaçu vai para prensa, que tira a casca dessa amêndoa e fica uma massinha. E essa massa é muito gostosa para fazer bolo, mingau, e também é muito nutritiva. Ela deixa criança desnutrida gritando e pulando. A massa continua na prensa, é de onde tira o óleo que nós fazemos o sabonete. O farelo que sobra é muito rico para ração de gado, peixe, porco e galinha. E a película da amêndoa do coco passa por um processo que esmaga tudo para fazer decoração no papel reciclado. Fica muito lindo. A casca do coco, nós usamos como carvão, porque ela é muito dura. Nós fazemos no forno, ou mesmo da maneira tradicional, que é um buraco no chão e o carvão cozinha. A maioria das companheiras não têm fogão a gás. Avaliação Contar a minha história foi emocionante. Tem uma parte boa, que eu sinto orgulho de contar, de 1988 em diante, e tem a parte ruim, que acho que é o início. Eu agradeço vocês por me deixarem contar minha história. Porque eu acredito que é uma forma de vocês nos ajudarem, não só eu, mas a humanidade inteira. Porque o que nós sofremos lá é uma o mesmo que vocês sofrem por aqui, não tem quase diferença.
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