P1 – Então, Miguel, na primeira pergunta eu vou pedir para você repetir o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Certo. Meu nome é Francisco Miguel de Lima Silva, eu nasci em 13 de outubro de 1969, e nasci em Itaiçaba, no Ceará.
P1 – A sua família toda é dess...Continuar leitura
P1 – Então, Miguel, na primeira pergunta eu vou pedir para você repetir o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Certo. Meu nome é Francisco Miguel de Lima Silva, eu nasci em 13 de outubro de 1969, e nasci em Itaiçaba, no Ceará.
P1 – A sua família toda é dessa região, é nascida lá, você pode falar isso aí?
R – É, a minha família é nascida lá mesmo, não é dessa região.
P1 – O seu pai fazia o que lá, ou faz?
R – O meu pai, ele é agricultor.
P1- É agricultor? Tem uma terrinha, coisa assim?
R – É, tem umas terrinhas lá, umas vaquinhas lá... (risos)
P1 – E você veio para São Luís por que? Quando você veio?
R – Eu tinha parentes aqui em São Luís, e em 85, 1985, eu fui convidado a vir pra cá estudar. E, chegando aqui, em 89 eu consegui um estágio aqui na Vale, e depois desse estágio eu estou até hoje aqui na Vale.
P1 – Por que estudar em São Luís, quero dizer, era a melhor possibilidade que você tinha pra estudar? Fortaleza, por que não Fortaleza?
R – Não, eu tinha outra opções, como Fortaleza, né, mas eu me aventurei a vir pra São Luís.
P1 – Ah, é? Por que você imaginava o quê, o que você ia encontrar em São Luís, assim?
R – Eu imaginava, assim, que talvez, devido à distância seria mais fácil eu me adaptar em outro local, e talvez conseguir uma oportunidade melhor.
P1 – E aí como é que foi, você conseguiu estágio, como é que você conseguiu esse estágio?
R – Aí na... estudando aqui na Fundação Bradesco, ela encaminhou para estágio aqui na Vale e, durante o estágio, eu consegui passar para uma empresa, uma empreiteira da Vale, né? E em 90, fevereiro de 90, a Vale chamou os ex-estagiários do ano de 89 pra que participassem de uma prova para o quadro efetivo da Vale. E aí eu fui escolhido entre os estagiários do ano de 89, eu fui escolhido e fui efetivado na Vale. Na época eu trabalhava na oficina, e passei a trabalhar na parte de carga, na estação de carga, embarque de cargas diversas.
P1 – Do quê exatamente?
R – A gente fazia despacho de carga, você chegava lá com uma carga pra transportar, a gente embarcava.
P1 – O que é que se transportava nesse...?
R – Lá a gente transportava muito veículo, veículo sobre vagão plataforma, né, e tinha também cargas, como a soja, que hoje está bem avançada a soja aqui no Maranhão. E
cargas diversas, diversos outros, qualquer carga que chegasse lá a gente transportava.
P1 – Depois você, desse período...?
R – Aí, em setembro de 90, teve umas mudanças e eu fui convidado a trabalhar no trem de passageiros. Aí foi que eu ingressei no trem de passageiros, e trabalhei durante sete anos no trem de passageiros como chefe de trem.
P1 – Como chefe de trem?
R – Como chefe de trem. Não, eu passei ainda uns dois meses como oficial de trem e logo em seguida, passei pra chefe de trem.
P1 – Como que é? O que faz um chefe de trem, como que é isso?
R – Um chefe de trem, ele fica responsável por tudo o que ocorre dentro do trem, ele é uma espécie de capitão, o que ele fala lá dentro do trem lá é o que vale, né, (risos). Isso seguindo as normas, né, os regulamentos que a empresa tem. E a gente comandava lá, eu tinha uma equipe de 16 pessoas, que trabalhavam comigo, e lá era feito todo um trabalho de fiscalização, e qualquer problema que ocorresse durante a viagem fica o chefe de trem responsável em resolver.
P1 – Quando acontece algum problema que não está na norma, que não existe na regra...
R – É, a gente tinha muito problema devido a gente passar por uma região muito pobre, a gente tinha muito problema de gente que não tinha dinheiro, embarcava lá e depois a gente descobria que não tinha dinheiro, aí você tinha que tomar uma ação em cima disso. Aí, às vezes a gente conseguia, e, quando não, a gente apelava às vezes até para os colegas lá, fazia uma arrecadação, ajudava a pagar, a gente fazia muito isso lá.
P1 – Vocês ajudavam a pagar a passagem?
R – É, porque a gente não podia levar de graça, e como tinha casos que a gente sentia mesmo que a pessoa tinha necessidade, e a gente chegava e ajudava. A gente teve muitos casos desses que a gente ajudou. E a gente também teve de desembarcar, porque tinha gente que tinha dinheiro e dizia que não tinha, né, (risos). E tinha um caso também muito interessante lá, que criança pagava meia passagem, de seis a nove anos pagava meia passagem, e acontecia muito das vezes que tinha criança que tinha já, acima de seis anos,
aí a gente chegava lá e pedia a passagem, “não, ele só tem cinco anos”, aí a criança virava assim: “Ih, papai, eu já tenho é nove” (risos). Acontecia muito isso, e aí depois a criança devia levar uma coça lá dos pais, com certeza.
P1 – E a situação toda do trem, maternidade, conta pra gente como é que foi essa história?
R – A gente tinha, eu presenciei uma situação lá, que a pessoa foi me procurar e me falar que tinha uma senhora sentindo dor, aí eu disse: “Mas que dor?”. “não, vem aqui que você vai ver.” Aí eu cheguei lá no vagão, aí o cara apontou lá para o banheiro, eu disse: “Mas no banheiro?”, “é, ela está sentindo dor aí”, nisso que eu abri a porta do banheiro, a criança tinha acabado de nascer, a mulher estava tendo nenê, estava parindo, e tinha uma senhora com ela ajudando. Aí eu me senti assim: “o que é que eu faço?”, nunca tinha presenciado uma cena daquela, mas aí você tinha que fazer alguma coisa, aí eu segurei a criança, e ainda não tinha cortado o umbigo, e eu digo: “E agora, como é que vai ser isso?!”. Aí a senhora que estava com ela: “Não, eu já fiz vários partos, já sei como... deixa que eu faço isso aqui.” Aí, ela simplesmente pegou uma Gillette do bolso lá, e cortou o umbigo da criança com Gillette, cara.
P1 – Ela estava com uma gillette no bolso, ela tirou e cortou?
R – Tirou e cortou. Aí eu fiquei assim, que eu quase caí com criança, com tudo (risos). Aí, depois a gente levou a criança lá num, tinha um vagão lá que era um vagão de bagagem, onde ficava o chefe do trem, e lá a gente fez a limpeza da criança, tinha um, a gente tinha alguns equipamentos lá, uma caixa de primeiros socorros, e a gente fez a limpeza, a senhora limpou a mulher também, e a gente arrumou tudo pra encaminhar para a cidade mais próxima, para o hospital. E a mulher não quis de jeito nenhum, a família que estava com ela também não, na parada que era a dela, ela desceu com a criança, praticamente saiu andando. E depois ela viajou outras vezes lá com a criança, me apresentou: “Olha aqui, o menino, ó, que nasceu aqui no trem ferroviário aqui” (risos).
P1 – Qual é o nome dele?
R – Eu não lembro, mas não colocou meu nome! (risos)
P1 – Depois, você contou também que o trem aí, da cólera, o trem acabou virando uma...?
R – Sim, aí, depois, na época que teve o surto de cólera, a Vale colocou um vagão com uma espécie de ambulatório, com enfermeiro, né? Pra algum, se ocorresse algum caso de cólera a pessoa estar treinada lá para tomar uma ação. E, acontece que, acabou o surto da cólera e o vagão foi ficando, e a gente acabou... a Vale acabou tendo que tirar, porque o vagão se tornou uma verdadeira maternidade, né? Devido, como eu falei, passava numa área muito pobre, e acabava que as pessoas iam lá, entravam no trem já quase parindo e iam direto no vagão lá, e a gente fez diversos partos lá, o enfermeiro...É, numa meia hora de viagem era um parto, e, inclusive, eu tenho até umas fotos, uma senhora deixou que a gente fotografasse o parto dela, eu tenho umas fotos lá de um parto que foi feito pelo enfermeiro do trem.
P1 – E coisas estranhas que as pessoas carregam, tem isso, ou não? Tentar botar cargas estranhas...
R – É uma das coisas que a gente, que eu achei muito estranho quando eu comecei a trabalhar lá, é que chegando numa parada lá, e uma senhora ia descer, e ela estava muito desesperada, eu perguntei o que, porque é que ela estava daquele jeito, né? Ela disse: “Não, moço, é a minha boroca sumiu”, eu disse: “Mas o quê que é boroca?”, ela disse: “Não, minha boroca é minha bolsa.” (risos). Aí eu fui saber que a “boroca” era a bolsa dela, eu nunca tinha ouvido falar o quê que era “boroca”, “boroca”, na verdade, era a bolsa dela que tinha sumido. E viajava, teve um caso também que, a gente não podia carregar animais silvestres, e, de vez em quando, o pessoal tentava passar; e teve um caso lá que, tinham uns vagões com ar condicionado, os vagões, na época eram a classe executiva, né, e uma senhora vinha trazendo um macaquinho de estimação, e conversou com o veterinário, aplicou um sedativo e ele garantiu que o macaco iria dormir até São Luís. Só que, quando chegou lá no meio da viagem, o macaco começou a gritar, e a gente sem saber onde é que estava gritando, e aí a gente ficou procurando, e acabamos descobrindo, estava na bolsa dela, a tiracolo, aqui, o macaquinho dentro da bolsa lá. Aí foi um choro, filho chorando, e acabou que, a gente acabou tendo que trazer o macaco e deixando ela levar o macaco.
P1 – E deixou ela levar o macaco.
R – É.
P1 – E índio, tem muita história com índio?
R – Tinha, né? Teve uma vez lá, numa parada lá, que eu fiquei até muito assustado, que a gente parou o trem pra embarcar o pessoal, tinha um corte assim nas laterais, a ferrovia passava, tinha uma montanha, teve que cortar, e tinha aqueles cortes; e estava cheio de índio lá, de flecha, de espingarda. Aí eu parei, e digo: “Meu deus do céu! O quê que é isso?”. Aí é que tinham matado um índio e eles estavam achando que ele iria embarcar lá no trem, e os índios estavam lá, esperando pra, se olhassem o cara, matar o cara. E viajava também muito índio, tinham uns casais de índios que viajavam, uns dois lá, que eles eram aposentados, aí, final de mês, eles vinham pra cidade receber o dinheiro. E quando retornavam, retornavam cheios da cachaça, e dava um trabalho danado, porque eles ficavam lá na porta e não tinha quem tirasse eles da porta, todo momento tinha que abrir para o pessoal descer, embarcar, e era uma coisa; e era zangado, você não podia mexer muito com eles lá, que eles queriam brigar, bater. E, também, a gente tinha muito caso de garimpeiro. Teve um caso lá que eu tive um problema sério com dois garimpeiros, que no trem tinha um vagão lanchonete, e dentro desse vagão lá, um dia apareceram dois garimpeiros lá, e falou: “Olha, hoje aqui, lanche, tudo aqui é por conta da gente aqui.” E acabou criando uma grande confusão, porque estava todo mundo querendo lanchar por conta dos garimpeiros, invadiram a lanchonete, aí eu tive que ir lá e pedir para que eles parassem, o pessoal saísse, porque não tinha condições daquilo acontecer, né? Aí chegam uns caras muito engraçados...
P1 – Assalto, esse tipo de coisa acontece?
R -
A gente tinha, na época, problema com ladrãozinho, de roubar a bolsa, carregar a porta célula, que eles chamam aqui batedor de carteira, né? A gente tinha muito caso disso e tinham alguns que a gente já conhecia, tinha um aqui que viajava direto, que ele viajava de São Luís a Marabá, só agindo. Quando ele viajava, aí o pessoal “ah, fui roubado, fui roubado”, e a gente sem saber quem era, aí, até que um dia a gente descobriu quem era a figura, aí sempre que ele estava lá, a gente pegava levava lá para o vagão que a gente ficava, na bagagem, “ó, tu não sai daqui.” Mas se deixasse ele solto, ele agia.
P1 – Se você pegava o sujeito, você tem que fazer o que, desembarca na primeira cidade?
R – É, a gente acionava a polícia, via rádio, pedia apoio aqui, pra Central aqui na Vale, no Centro de Controle, aí eles acionavam a polícia, quando chegava lá na parada que tinha estrutura, tinha policiamento, aí a gente entregava para a polícia.
P1 – E hoje, Miguel, você faz o que?
R – Já faz cinco anos que eu saí de Chefe de trem, eu trabalho na área de logística, estava trabalhando na área de programação, a gente programava vagão pra carregar, essas coisas, e, a partir de julho agora, eu estou retornando pra mexer com passageiro novamente. Hoje o serviço de trem de passageiro é terceirizado e...
P1 – É terceirizado?
R – É terceirizado, e tem um contrato lá, eu vou gerenciar o contrato, acompanhar o contrato, fiscalizar o contrato.
P1 – Miguel, o que você acha de morar em São Luís? Você tem uma relação com essa cidade, você adotou?
R – Olha, eu te digo que é muito bom morar em São Luís, tem muita gente que não é daqui de São Luís e que fala mal de São Luís, eu não gosto que falem mal de São Luís, São Luís é muito bom pra se morar. Você ainda tem tranquilidade aqui, pra você sair aqui à noite, aqui em São Luís, coisas que a gente não vê, por exemplo, lá em Fortaleza, lá onde os meus irmãos moram, eu fiquei assim, fiquei pasmo de ver como é que é lá. Enquanto aqui em São Luís, aqui você consegue sair de carro com o vidro baixo, parar no sinal e não acontecer nada. Se bem que tem, mas têm os locais que você sabe que não vale arriscar, mas São Luís ainda é bem tranquila pra se morar, muito bom.
P1 – E o futuro da Vale aqui em São Luís, o que é que você imagina, o que é que você acha?
R – O futuro aqui na Vale, de uns dois anos pra cá a gente está vendo que está cada vez ficando mais difícil de se trabalhar na Vale, né, que devido às mudanças que ocorrem, constante, a gente vê que a gente não tem um futuro certo, a gente fica muito... a gente não sabe o que pode acontecer, por exemplo, hoje eu estou trabalhando, amanhã eu não sei se eu vou, ainda vou estar trabalhando na Vale.
P1- Tem essa ansiedade.
R – É, a gente vive numa eterna ansiedade, né?
P1 – Tem alguma coisa que você queira contar mais para a gente... uma historinha que você, ou outra história que você lembre e queira contar?
R – Tem mais uma historinha lá do trem, que essa eu conheço a pessoa dessa história até hoje. Saindo aqui de São Luís, no trem, uma certa vez aí a equipe que trabalhava comigo veio, chegaram lá apavorados, “Miguel, Miguel, vem aqui!”, “O que foi?”, “É que tem um cara aqui querendo se jogar do trem”, eu digo: “Pô, mas se jogar do trem...”. Aí chegou lá, o cara estava nervoso, que queria se jogar do trem, aí a gente levou lá pra uma salinha lá que a gente tinha, e fomos conversar com o cara. O cara estava desempregado há mais de dois anos, já estava dormindo no banco da praça, estava desesperado, e tinha ido, tinha entrado no trem, e a intenção dele era se jogar pra se matar, aí eu digo: “Pô, mas você escolheu uma péssima, você fez uma péssima escolha, você deveria ter ficado lá embaixo, ter colocado a cabeça embaixo lá, do lado do, do rodeiro lá do trem, ele passava por cima e pronto, era só uma”. Aí, acabou que a gente ficou com ele lá, e na estação mais próxima a gente acionou para a assistente social levá-lo pra entregar, e nisso que a gente desceu na estação, levando ele pra entregar lá para a assistente social, tinha o vagão lanchonete, o gerente da lanchonete olhou e falou o nome dele, eu digo: “Ah, você conhece ele?”, ele disse: “Ele já trabalhou com a gente no grupo Palheta”, e tal. Eu digo: “Ah, é? Pô, o cara está desempregado, você não arranja um emprego pra ele aí não, na lanchonete?”, ele disse: “Fala pra ele aí: ‘vai lá’, amanhã quando o trem chegar, que a gente conversa.” E acabou que o cara arranjou um emprego na lanchonete do trem, e trabalhou bastante tempo lá na lanchonete do trem, a bordo do trem. Eu digo: “Está vendo, o cara foi lá no trem pra se matar, acabou arranjando um emprego”. Estava desesperado, desempregado, acabou arranjando um emprego.
P1- Bacana. Obrigado, Miguel.
R – De nada.Recolher