Pelos últimos vinte e dois anos tenho estado em salas de aulas, trabalhando em diversos espaços ligados à educação e nos diferentes níveis, da educação infantil ao ensino superior. Passei por algumas das mais caras e respeitadas escolas privadas de Porto Alegre, onde muito aprendi sobre o se...Continuar leitura
Pelos últimos vinte e dois anos tenho estado em salas de aulas, trabalhando em diversos espaços ligados à educação e nos diferentes níveis, da educação infantil ao ensino superior. Passei por algumas das mais caras e respeitadas escolas privadas de Porto Alegre, onde muito aprendi sobre o ser professor, mas onde sofri com a hipocrisia: valorizavam o meu currículo, por ter viajado e participado de congressos e cursos fora do país, mas se eu quisesse ir a um congresso ou participar de um projeto educativo de Bienal, negavam, pois teria que me ausentar temporariamente. Outra constatação: diretores e gestores das escolas privadas acham ótimo que o professor seja também artista, que faça exposições e que apareça no circuito de arte, mas impõe uma carga pesada de trabalho para casa, com planejamentos, avaliações, relatórios, pareceres, entre outros, que não deixam sobrar tempo para ler, estudar e criar. Após a conclusão da minha primeira graduação - Bacharel em Artes Plásticas, habilitação: desenho (Instituto de Artes – UFRGS, 2003) – fiquei bastante tempo com a sensação de estar perdido. Por cerca de cinco anos, fiquei sem saber o que fazer com o desenho, que tão arduamente tinha desenvolvido. Na dúvida, seguia fazendo com o desenho algo que adorava: ensinando-o. Alguns artistas que conheci nesse período trouxeram grande motivação e entusiasmo, como a alemã Anja Schrey, que veio à cidade pelo projeto "Artist in Residence", uma parceria Torreão -Instituto Goethe. O próprio Torreão era um espaço que trazia uma dinâmica diferente e interessante: dois artistas, Jaílton Moreira e Élida Tessler, trabalhando diretamente com outros artistas, numa relação diferente daquela da Universidade, sem o peso (para ambos os lados) da avaliação, sem burocracia, mas também formativa. Eram ali, no espaço que criaram independentemente, artistas-professores. Tive o privilégio de poder “cursar” o último semestre do Torreão, e testemunhar seu réquiem. Naquele ambiente tive contato com artistas incríveis que admirava, como o argentino Julio Le Parc e a brasileira Regina Silveira. Até aqui eu era muito mais professor do que artista, mas queria muito ser artista, constituir uma obra que atribuísse significado ao mundo a partir da minha perspectiva, fazer exposições. O contato com toda essa efervescência do Torreão, com artistas internacionais de variadas linguagens artísticas e também de uma nova geração de artistas de Porto Alegre, mobilizou em mim uma potência criadora que ainda ficaria latente por mais alguns anos, até que encontrasse seu espaço na minha cabeça, na minha semana, na minha casa, na minha vida. No ano de 2005 duas experiências precipitariam mudanças, ainda que graduais e lentas: o Fórum Social Mundial e a 5ª Bienal do Mercosul, ambos em Porto Alegre. Um grupo chamado Utopia Station, formado por cerca de vinte artistas e curadores internacionais dos mais influentes, dentre eles Rirkrit Tiravanija, Allan Sekula e Lawrence Weiner, se reuniu em Porto Alegre para participar do Fórum Social Mundial, a convite do INHOTIM (Centro de Arte Contemporânea, em Brumadinho, Minas Gerais). Tive a sorte desse pessoal ter alugado a casa de um amigo para se hospedar e, por saber falar inglês e ser formado em arte, acabei sendo convidado para acompanhar esse grupo durante uma semana, como guia. Essa breve convivência e as conversas, principalmente com Weiner e Jakob Fenger (do coletivo SUPERFLEX, da Dinamarca) me fizeram perceber que minhas ideias para projetos sobre arte eram extremamente imaturas e formalistas, ou seja, preocupadas demasiadamente com a forma em detrimento do conteúdo, carentes de conceitos mais profundos e de um engajamento social. No mesmo ano houve a 5ª Bienal do Mercosul e a coordenadora do Projeto Pedagógico, Mônica Hoff, me convidou para supervisionar uma equipe de mediadores. Quando perguntei o motivo do convite ela afirmou que minha experiência com estudantes de ensino médio seria importante, pois os mediadores eram responsáveis por receber as escolas que visitavam as exposições. Fiquei lisonjeado pela confiança no meu trabalho e aceitei o desafio. Para encurtar a história, que renderia um livro, trabalhar naquele evento foi incrível, a equipe era ótima e muitos de nós somos amigos até hoje. Ali pude conhecer mais de perto e me tornar amigo de uma ex-professora da graduação: a saudosa Claudia Paim (1961 - 2018). Mas o mais marcante: acompanhar a montagem das exposições, conversar com as/os artistas nos bastidores, ter acesso ao que está por trás de um evento do porte de uma Bienal, foram momentos inesquecíveis e de aprendizado incomensurável. Coisas que não se aprende na sala de aula nem nos livros, como quando puder perguntar ao Cildo Meireles se sua obra “Babel” (2002) tinha relação com “The more, the better” (1988), de Nam June Paik. Cildo sorriu e disse que seria impossível nao ter.
Infelizmente o amadurecimento e a produção artística madura demorariam alguns anos a acontecer, principalmente pela questão material: não havia espaço específico, não havia atelier. Além disso, não havia tempo livre: cheguei a trabalhar em seis escolas em três municípios diferentes simultaneamente, para ter um salário apenas suficiente, só para o sustento. Aqui reside a questão presente no trocadilho do título deste texto, brincando com o título da poesia Morte e Vida Severina, de João Cabral de Mello Neto: essa falta, essa carência, que aqui relaciono à miséria e morte que o personagem Severino encontra ao longo de sua jornada. Ele indo do sertao à cidade grande, fugindo da fome e da seca, eu indo de cidade em cidade, com a angústia de não conseguir saciar a fome de arte. Como diria Arnaldo Antunes (1960), na letra de "Comida": "você tem sede de quê? Você tem fome de quê?". Outra questão relevante nesse tempo de maturação foi o contato com os pares. A influência do colega e amigo Leandro Machado (1970) foi fundamental para colocar em marcha algumas reflexões fundamentais sobre questões identitárias. Leandro me provocou a pensar acerca de ser um artista negro. Ainda não tinha pensado nisso. Ele me mostrou alguns trabalhos e projetos seus, dentre eles o “Lojas Africanas” (2007). Aquilo explodiu minha cabeça e comecei a pensar muito nisso. A culminância dessas reflexões foi a criação do Projeto Casa Grande, com o qual vencemos o Prêmio Funarte de Arte Negra, em 2012, com um grupo de nove artistas dentre os quais eu e Leandro (Incluindo Giuliano Lucas, Luisa Gabriela, Marcelo Monteiro, Michele Zgiet, Rafaéis, Silvana Rodrigues e Valdemar Max). A criação do projeto e a junção dos nove artistas negros e negras foi consequência daquela provocação feita por ele lá atrás, ainda na faculdade (Instituto de Artes da UFRGS). Durante a realização do projeto, que se deu entre 2014 e 2015, criei o “Quadro Negro”, que é o meu trabalho que mais repercutiu até hoje, após ter sido compartilhado pela atriz, cantora e poeta Elisa Lucinda em sua página do Facebook. Bem, conto toda essa história sobre minha trajetória para dizer: o/a artista é um/uma professor/professora em potencial. É difícil ter uma conversa com uma/um artista e não aprender algo sobre arte, seja sobre questões técnicas, sobre processo criativo ou sobre a história da arte. Mas num país como o Brasil, fora do eixo Rio-São Paulo é muito complicado viver de arte. Em Porto Alegre o mercado é quase inexistente, as pessoas pouco investem em arte, não há essa cultura. Leva muito tempo até se atingir a sustentabilidade como artista e, geralmente, se atinge isso conquistando mercados em outros lugares, como no eixo Rio-São Paulo ou no exterior.
Atualmente sou professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico, trabalho no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Osório. Em 2018 concluí minha segunda graduação: Licenciatura em Arte Visuais. Curiosamente, no mesmo ano em que realizei minha primeira exposição individual, “Arte Negra Parede Branca”, para marcar os meus quarenta anos de idade. No meu caso, como tentei exemplificar acima, ser artista e ser professor é uma coisa só. Hoje em dia sou tanto artista quanto professor, os dois papéis estão equilibrados e em articulação. Um exemplo disso é que no ano de 2018 acompanhei um estudante do IFRS a um evento de arte em Munique, Alemanha. Nós dois fomos convidados a apresentar nossos trabalhos artísticos em um festival de arte, o URBAN 18. Meu estudante, voluntário em projeto de extensão, o Eduardo Figueiredo, apresentou o ensaio fotográfico “Iceberg”, belíssimo e ousado, contendo sete fotografias que levaram seis meses para serem realizadas e problematizam questões identitárias e emocionais em relacao à opressão da sociedade contemporâneas. Eu realizei uma versão da minha performance “Gambiarrádio”, que rebatizei de RaDIY FM. Também dei uma aula. Obviamente, jamais perderia a oportunidade de falar aos estudantes alemães sobre arte negra brasileira e racismo no Brasil, exercitando meu inglês aprendido em escola pública, aquela mesma que dizem que é ruim.Recolher