ARLINDO DANTAS: ATITUDE SERTANEJA
(1905 – 2005: 100 ANOS)
O principal protagonista desta história viveu a vida digna dos autênticos personagens da literatura de Graciliano Ramos ou de Euclides da Cunha, dentre outros. Nasceu aos 31 de julho de 1905 no Estado da Bahia, no município de ...Continuar leitura
ARLINDO DANTAS: ATITUDE SERTANEJA
(1905
–
2005: 100 ANOS)
O principal protagonista desta história viveu a vida digna dos autênticos personagens da literatura de Graciliano Ramos ou de Euclides da Cunha, dentre outros. Nasceu aos 31 de julho de 1905 no Estado da Bahia, no município de Mirandela, 2º Distrito de Ribeira do Pombal, cidade já adiantada e progressista. Filho do agricultor José Antônio de Mattos que exercia também a profissão de marceneiro, tal o José de Maria, e junto com Benigna Dantas Dias criou seus cinco filhos naquele interiorzão baiano.
Arlindo cresceu tímido, sonhando com as coisas da cidade grande, cheio das fantasias inerentes aos jovens que nascem longe das luzes e ilusões das grandes metrópoles.
Enquanto tratava do roçado, chegou a levantar pequena morada, como João de Barro, para ali habitar, um dia, com a amada dos seus sonhos, sem deixar de lado seu árduo trabalho de cuidar e levar o gado para pastar.
Aos quinze anos meteu-se em maus lençóis por culpa de desavenças com vizinhos invasores. Diante das repetidas provocações de tais vizinhos, Arlindo resolveu dar um basta na situação, fazendo uso do seu rifle para espantar os bois alheios, intentando inclusive acertar mortalmente alguns deles. Isto aumentou a desavenças entre as famílias, tendo como conseqüência o abandono de suas próprias terras para tentar vida melhor em outro lugar.
Esses acontecimentos impulsionaram-no a largar tudo e seguir em busca de novos tempos na capital baiana, Salvador, fazendo toda a longa caminhada a pé, com a trouxa ao ombro, chegando ao cúmulo de, após constatar o cantil esvaziado e findado o “de comer”, ter que se alimentar de folhas e beber água retirada dos cactos.
Mas o sol, implacável, castigava e ele não encontrava sequer uma fonte onde pudesse amenizar a sede. Mesmo assim caminhava resoluto, já em andrajos, sujo, abatido e acabrunhado, pois se considerava um fracassado, após ter dedicado tantos anos na luta para construir seu pequeno sitio nas terras que seu pai lhe dera. Tais pensamentos traziam de volta á sua mente a tortura da intensa saudade dos seus entes queridos.
Enfim, a capital! Como primeira providência, alistou-se no exército e logo foi transferido para o Rio de Janeiro, indo servir no 5º Grupo de Artilharia de Montanha na Cidade de Valença. Concluiu todo o serviço militar açoitado pela saudade dos pais e, não suportando mais, resolveu voltar ao sertão, onde tinha deixado também seus sonhos e o seu amor da juventude. As lembranças invadiram sua mente, trazendo à tona a terna figura de Zizi por ele descrita como morena bonita, de pernas torneadas que conhecera à janela de uma pequena morada onde os meninos do lugar aprendiam as primeiras letras. Compunham assim a imagem romântica daqueles tempos: a donzela à janela e o trovador ao violão. Ansioso sequer esperou pela lua, em plena luz do dia cantou para ela, ganhando como prêmio um breve sorriso desconfiado.
Corria o ano de 1927 quando resolveu tentar novamente a vida na Capital Federal. Retornou ao exército, agora com o intuito de montar praça e seguir carreira. Para tal aventura, resolveu levar consigo a moça da janela, mesmo sem o consentimento dos pais dela. Os enamorados planejavam se casar na Bahia. Assim o fizeram no ano de 1932. No ano seguinte nascia a primeira filha do casal. De novo foi transferido para o Rio de Janeiro por interferência do General Almério de Moura, ao qual estava subordinado.
Os anos se passavam e a prole aumentava, como igualmente a renhida luta contra as dificuldades que se apresentavam. No Rio de Janeiro Arlindo passou por vários gabinetes militares, na função de Servidor Geral, sendo transferido várias vezes durante o ano de 1933, passando pelo gabinete do Ministro da Guerra, General Nestor dos Passos, do General Espírito Santo Cardoso, do General Góes Monteiro, de Washington Luis e finalmente de Eurico Gaspar Dutra, que mais tarde ocuparia a Presidência da República, chegando até a ocupar o cargo de Servidor do Serviço de Veterinária do Exército, trabalho este árduo e sacrificado, pois morando no distante subúrbio de Ricardo de Albuquerque, tinha que se levantar à uma hora da manhã para iniciar suas atividades por volta das três, quatro horas da madrugada, inclusive aos domingos e feriados.
Os anos corriam rapidamente. Em 1938, acometido por imensas saudades dos pais, resolveu solicitar férias, com a intenção de rever a família. Concedida a licença, seguiu com seus quatro filhos no pequeno navio denominado Almirante Jaceguaí com destino à Bahia. Não tendo meios para adquirir melhores acomodações, seguiu mesmo na terceira classe. Sua primeira filha, Maria de Lourdes, adoeceu na viagem e tudo se complicou, até o dia do desembarque em Salvador, onde teve que ficar sem condição de seguir viagem até a localidade de Tucano, no interior baiano onde, na certa, haveria forma de baldeação. Tentou contratar algum veículo, sem sucesso. Estavam todos ocupados. A muito custo conseguiu carona num caminhão de ferramentas e, enfim, enfrentaram a difícil viagem de três horas, em meio a ferramentas, arames, ferro-velho e outros objetos desse tipo, sob chuva e sol, apenas protegidos com pedaços de lona e algumas sombrinhas.
Infelizmente, ao desembarcarem se deparam com mais dificuldades, pois lhes aguardavam ainda 12 léguas correspondentes a 72 quilômetros para serem vencidos a céu aberto sobre a terra seca sem fazer rastros. Mesmo assim conseguiram encontrar um guia que aceitou conduzi-los, trazendo pelo cabresto, para espanto de todos, a nova condução: três raquíticos jumentos. Não havia mesmo jeito, lá se foram eles escanchados nos animais. O mês era de fevereiro de verão intenso.
Na caatinga o calor era lancinante. Para complicar ainda mais, a filha novamente adoeceu, vitimada por otite que lhe provocava febre e choro constante. A menina teve que viajar no cabeçote da cela de um dos jumentos, conduzido pelo pai. Os demais pequeninos viajam com a mãe e o guia, em condições idênticas. Nesta cena genuinamente graciliana, atravessaram o tabuleiro de Tucano em direção a Serra da Canastra desde as sete horas da manhã até as três horas da tarde.
Da alimentação transportada, os biscoitos rarearam, a água para as mamadeiras esquentaram, tornando difícil saciar a sede e sem encontrar um abrigo que ao menos oferecesse alguma sombra e descanso. Arlindo sofria muito com tal situação, chegando certa feita às lágrimas, achando que aquilo o só poderia mesmo ser castigo de Deus por ele ter se aventurado daquela forma levando ainda os pequenos inocentes. Não havia alternativa. O grupo seguia pela caatinga sem sequer ouvir um pio de pássaro. Nem mesmo o canto da seriema que ele tanto desejaria ouvir naquele deserto seco e ensolarado. As sombrinhas que os abrigavam mal podiam impedir a ação da infernal temperatura. Não é difícil imaginar estas cenas para quem assistiu ao filme “Grande Sertões, Veredas”.
Finalmente Arlindo avista um pé de jacuritá, sob cuja sombra alguns gados estavam alojados. Lá estava um pedaço do socorro providencial naquele momento de imensa agonia. Arlindo apeou o jumento e ficou olhando para os seus, desolado, sofrido e arrependido por ver a família em situação tão crítica. De súbito ele tomou uma decisão desesperada: montou num dos jumentos e esporou o pobre animal em busca de qualquer coisa que pudesse socorrê-los ou iludi-los, como a miragem de um oásis. Enfrentou, a galope a serra que se agigantava à sua frente até o pico, de onde conseguiu enxergar o que lhe parecia verdadeiramente um milagre: paisagens mais amenas, cheias de coqueiros verdes, que significavam o final do martírio da sua peregrinação. Lá do alto vislumbrou a casa do velho “majó Chico”, grande fazendeiro da região e amigo de sua família.
Voltou apressado para pegar a família que ficara junto com o guia. Faltava pouco para a salvação, mas as crianças ainda choravam. Os habitantes da fazenda perceberam os forasteiros e vieram agoniados em socorro.
Depois de atendidos em suas necessidades, descansados e refeitos, se prepararam para prosseguir por mais algumas horas na longa e dura viagem rumo à outra fazenda pertencente a Zé Antônio, pai de Arlindo. Para tanto foi preciso enfrentar uma noite tão escura quanto o breu, repleta de percalços, por estradas e caminhos já esquecidos ou modificados. Arlindo já não reconhecia mais aquelas paragens antes tão familiares. O grupo se confundiu diversas vezes causando demora, aumentando o cansaço e tornando o sono indomável, fato este que fazia o corpo ficar ainda mais pesado. Mas Arlindo não era de esmorecer facilmente. Algumas longas horas a mais e chegaram enfim ao casarão dos velhos pais que já beiravam os 78 anos de idade. Foram todos recebidos com alegria e preocupação. Este era apenas mais um breve descanso prejudicado pelo tempo perdido na acidentada viagem. Apenas cinco dias foram bastante para que refizessem as forças, o ânimo e a carência alimentar.
Apesar da felicidade por ter realizado o sonho de rever os pais vivos, Arlindo teve que tomar o caminho de volta, já que teria que se apresentar ao Ministério da Guerra. E Arlindo, deixando algum dinheiro para a viagem de volta, se despede da mulher que deveria ficar com as crianças por mais algum tempo naquelas longínquas paragens, até que ele se estabelecesse de forma segura na cidade grande.
Corria o ano de 1938 quando Lampião rondava por aquelas terras com seu bando. Os alarmes eram sempre os mesmos. “Aí vem Lampião para trucidar, humilhar, roubar e matar!” As ameaças de ataques às fazendas se espalhavam aos ventos, forçando Zizi a tomar a decisão de antecipar a sua volta antes do tempo combinado. Apressadamente fugiu com as crianças, uma ao colo, outra enganchada na cintura e as outras levadas pelas mãos, além da companhia de uma ajudante chamada Maria Cabocla. Tomadas de pavor, elas se embrenharam no matagal, aos tropeços, cortando atalhos, tentando alcançar o mais rapidamente possível a cidade de Tucano. E Lampião no encalço, cada vez mais próximo. Nessa correria apavorada ela deixou cair uma das crianças que levava no colo e também uma pequena trouxa feita com sua meia de pano, amarrada com um nó, onde escondia todo o seu pouco dinheiro. Logo, um porco que rondava por ali, confundindo a trouxa com comida, a abocanhou. Zizi teve que correr atrás do animal para, a muito custo, resgatar suas economias, arrancando com muito custo a trouxa da boca do animal. Enfim, o grupo esbaforido conseguiu se distanciar do bando de cangaceiros e alcançar o destino seguro desejado.
Para a sua tristeza, tias economias representavam muito pouco para custear a viagem de volta. Sem perda de tempo ela mandou um aviso para Arlindo, no Rio, que precisou vender alguns pertences, entre eles a sua aliança, uma pequena máquina fotográfica e um par de sapatos, enviando de imediato a quantia arrecadada para sua esposa completar o valor total das passagens. Finalmente todas conseguiram embarcar a bordo do navio “Comandante Alcides” rumo ao Rio de Janeiro, numa viagem que durou seis longos dias.
Aguardando ansioso no cais, Arlindo se emocionou bastante ao ver sua esposa, os filhos e Maria Cabocla desembarcarem inteiros e salvos e chorou abraçado à sua querida família.
Tudo então se transformou em alegria. Tomaram um “carro de praça” e, agitados, foram conhecer o novo lar, no longínquo subúrbio de Ricardo de Albuquerque.
Arlindo continuou trabalhando sem jamais esmorecer, lutando, reagindo à sorte quase sempre madrasta. O casal passou a se dedicar à confecção de roupas masculinas, montando pequena oficina dentro da própria casa. Com muito trabalho e dedicação obtiveram pequeno progresso, alugaram uma lojinha no bairro de Madureira, na Rua Maria Freitas, o que fez as coisas melhorarem.
Eis que surge mais um fato inesperado para dificultar suas vidas: a Segunda Guerra Mundial. As crises se sucedem e os negócios comerciais sofrem profunda queda. Não suportando a situação Arlindo pediu concordata. Nessa altura o casal, já com seis filhos, resolveu retornar ao solo baiano levando toda a família.
Na Bahia, motivado pelo prestígio diante de sua gente, Arlindo foi nomeado Delegado de polícia do 2º Distrito de Mirandela, onde se estabeleceu com três lojas de tecidos, denominadas “Casas Mattos” (pioneira neste registro), localizadas nas cidadelas de Banzahê, Mirandela e Fortaleza de São João. Por lá veio a prosperidade e Arlindo solicitou exoneração do posto de Delegado, passando o cargo ao seu substituto legal.
Arlindo vivia de um lado para outro, cuidando de suas lojas, montado em seu belo cavalo branco ironicamente denominado “Black”, ornando com uma não menos bela cela, estribos de metal e arreios dourados. Sentia-se mesmo um rei. Até ser acometido do desejo de reiniciar novas aventuras e decidir retornar ao Rio de Janeiro. E lá vêem novas brigas com a vida, dribles na má sorte que espreita e outros contratempos. Os filhos agora já somam nove. Em busca de solução definitiva se torna uma constante. Sua personalidade difusa a cada momento lhe sugere uma idéia nova e diferente, muitas vezes equivocada, que o impulsiona a novos riscos, dando prosseguimento à sua constante luta com a vida, caindo em muitas ocasiões, mas sempre se erguendo e retomando o combate. Viajante habitual e inconformado continuou seguindo caminhos adversos, estreitas trilhas repletas de decepções, entremeadas de sonhos, de promessas e de esperanças sempre renovadas em aventuras inéditas por todo o transcorrer da sua vida que teve a duração de 74 anos.
Hoje Arlindo ocupa o pedestal de sua história bem vivida, sofrida sim, mas quem sabe, prazerosa intimamente. Vida essa que ele soube muito bem desfrutar, a seu modo. Na certa que soube.
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