Memória Oral do Idoso
Depoimento de Palmira da Cruz Marques
Entrevistado por:
São Paulo, 09/10/92
Realização Museu da Pessoa
Código do depoente:
Entrevista nº 14, fita nº 09
Código: MOI_HV014
Revisado por Fernanda Regina
P/1 – Me diz o nome de onde você nasceu, em que lugar, né? Data d...Continuar leitura
Memória Oral do Idoso
Depoimento de Palmira da Cruz Marques
Entrevistado por:
São Paulo, 09/10/92
Realização Museu da Pessoa
Código do depoente:
Entrevista nº 14, fita nº 09
Código: MOI_HV014
Revisado por Fernanda Regina
P/1 – Me diz o nome de onde você nasceu, em que lugar, né? Data de nascimento.
R- Bom, meu nome é Palmira. Nome completo? Palmira da Cruz Marques, eu nasci em Portugal, numa cidadezinha chamada Cantanhede e vivemos lá durante, quer dizer, eu vivi durante seis, seis anos e meio até vir para cá, que meu pai já estava aqui então ele chamou e nós viemos para cá. Então, a primeira parte da minha infância é em Portugal, né, até mais ou menos seis, seis anos e meio. A aldeia onde nós morávamos era uma aldeia muito pobre e a atividade costumeira era a agricultura. Minha mãe era agricultora, era muito pobre, excessivamente pobre mesmo. Ela trabalhava praticamente o ano inteiro para poder, no ano seguinte, comprar as sementes e o adubo. Quer dizer, era uma rotina que só dava mesmo para comer. Eventualmente, se precisava comprar alguma roupa, mas era bem difícil. Então, era uma vida realmente muito pobre. Quer dizer que uma criança como eu era não sentia muito na pele isso, eu não tinha brinquedos convencionais. Eu me lembro que a minha irmã mais velha e eu brincávamos, pegávamos uma abóbora pequeninha e embrulhávamos num pano e servia de boneca (risos). E me lembro, assim vagamente, das principais atividades agrícolas que era a semeadura, minha mãe semeava milho, batata e verduras de modo geral, hortaliças, né? E o período da colheita que era,
principalmente, o que era
mais cativante era a colheita do vinho, né, os famosos...vinho da uva, as famosas vindimas. Então as brincadeiras minhas e da minha irmã era ficar andando embaixo dos carramanchões de videiras, catando no final da vindima os últimos bagos de uva, que eram aqueles amarelinhos, doces, incrivelmente doces. Essa lembrança ficou muito forte em mim. E também no período do inverno, depois que a minha mãe fazia o vinho, que aliás, o vinho assim tem uma história à parte né, a fabricação do vinho, ela guardava o bagaço da uva para poder fazer aguardente, mas como éramos muito pobres evidentemente a minha mãe não tinha alambique. Então, uma das minhas lembranças de infância, memória visual e olfativa. Visual porque o lugar onde nós íamos fazer, onde a minha mãe ia fazer a aguardente ficava tudo esfumaçado, tudo cheio daquele vapor do alambique...E
o olfato, então a memória visual e olfativa. Para mim era uma festa, né? Porque era uma casa estranha, tinha uma atividade estranha, era realmente uma festa para mim. Depois, em 1937, nós viemos para cá, então minha irmã mais velha, eu e a minha mãe. Meu pai já estava aqui. Então, eu tenho a memória assim da viagem que, por exemplo, as primeiras coisas que eu vi que nunca na minha vida tinha visto: maçã verde, eu nunca tinha visto (risos), que minha casa só tinha maçãs vermelhas. E queijo, aquele queijo famoso Palmira, que tinha meu nome, que é aquele queijo vermelho, que tem a lata vermelha, não sei se ainda existe esse queijo. E o primeiro homem preto que eu vi numa ilha por onde o navio passou. Foi a primeira pessoa preta que eu vi na vida. Aí, quando viemos para cá nos fomos morar já no bairro de Vila Maria, que estava bem no início esse bairro. A casa onde meu pai, se não me engano, foi a terceira ou a quarta que foi construída naquela parte baixa da Vila Maria. Então, não tinha calçamento, tinha bonde apenas, e bonde, eu acho que eram divididos por dia, porque tinha determinado horário que a gente sabia que o bonde passava, que nos levava até a cidade. Em tempo de chuva um bairro incrível pelas ruas e cheio de terrenos baldios. Bom, tinha tanto terreno baldio naquela ocasião que a gente se lembra do tempo da chuva que os homens e rapazes iam de lanterna à noite caçar rã. Inclusive, entravam em casa, os girinos. Esse foi o início da nossa vida aqui, e o que eu posso dizer da minha infância é que não foi assim muito alegre não, que aqui nós continuávamos sendo pobres, eu não tinha brinquedos, principalmente os brinquedos convencionais realmente eu não tinha, e o que eu brincava era o que todas as crianças brincavam, vamos dizer, há trinta, quarenta anos atrás, essas brincadeiras de rua, de grupos para brincarem em grupos de crianças das mais variadas casas, naquela ocasião já tinha mais casas lá. Inclusive, eu via brincadeiras interessantes além das de roda e de pedrinha. Não sei se você lembra de brincar de pedrinha.
P/1 – Como é que chamava essa brincadeira?
R – Eu não lembro como era o nome dessa brincadeira. Sei que a gente pegava um monte de pedras e a gente dava um golpe e a pedrinha vinha parar aqui. Quanto mais você conseguisse pôr aqui nas costas das mãos mais você ganhava. E havia também uma brincadeira interessante que era em dois grupos: um grupo de cada lado da rua. Era uma brincadeira realmente interessante, mas não me pergunte que eu não sei dizer como é que se desenvolvia a brincadeira. Mas era extremamente interessante essa brincadeira. Da infância eu tenho só essas lembranças
P/1 – Seu pai fazia o quê na época?
R – Meu pai era comerciante. Ele sempre comerciou com jóias, já lá em Portugal ele também viajava com jóias e aqui ele continuou o mesmo tipo de atividade.
P/2 – Qual foi o motivo da vinda para o Brasil?
R – Bom, da minha vinda foi porque o pai já estava aqui. Agora, a vinda dele se deveu a dívidas (risos). Ele tinha muitas dívidas em Portugal, não tinha como pagar então ele veio para cá. Uma aventura, né? E nessa ocasião o dinheiro daqui valia mais, então o pouco que ele ganhava dava para mandar para família para pagar as dívidas. O motivo foi esse. Na minha adolescência, por exemplo, eu não posso contar grandes coisas, porque não foi boa. Eu não tenho memória boa da minha adolescência não, eu não tive uma adolescência alegre, eu não namorava, não ia às festas, não que não houvesse, havia festas, havia grupos de jovens, acontece que eu era muito retraída então a minha vida foi muito isolada, sempre. Não tenho boas memórias da adolescência.
P/1 – E a sua irmã ia para as festas?
R – Ela não ia exatamente para as festas, mas ela se comunicava muito mais do que eu. Então ela tinha um grupo de amigas bem maior. Quer dizer, eu nem grupo de amigas tinha. Realmente, a minha vida era muito isolada.
P/1 – A educação de vocês era muito severa?
R – Era extremamente severa, extremamente. Para o meu pai, a mulher era considerada uma verdadeira escrava. Ela era educada, a mulher seria educada somente para aprender a cuidar da casa. Então, o importante era saber cozinhar, costurar e cuidar da casa para casar e ter filhos. Acontece que isso não aconteceu comigo. Então, eu saí daquela normalidade estabelecida pela educação do pai. Um dos meus desgostos maiores era não poder estudar e ele não permitia mesmo. Ele não permitia. Aconteceu uma série de coisas, houve uma oportunidade na ocasião. Ele conheceu uma pessoa que tinha uma escola e eu acabei indo para a escola, mas já moça. Então...
P/2- Mas para fazer o quê?
R – O curso secundário, porque eu só tinha o primário até a essa altura. Eu apenas lia bastante em casa. Na minha casa era um hábito ler, minha irmã lia muito. Meu pai também lia, apesar de ele ter pouca educação mas ele lia. Então, nós desenvolvemos esse hábito em casa.
P/1 – Você sabe o que você lia?
R – Tudo o que aparecesse pela frente. Nós éramos associadas de uma biblioteca que tinha lá na Vila Maria e mesmo aquela central já, e nós tirávamos livros. Eu lembro que de adolescente eu li quase todos os livros de Dostoievski. É interessante, para mim era fascinante porque como ele gosta muito de estudar o caráter das pessoas ele analisa muito o que a pessoa é, a sua vida íntima, como isso casava muito comigo, eu adorava ler Dostoievski. Adorava mesmo. Daí, quando houve uma oportunidade, eu já moça, fui fazer ginásio. Aí, ninguém me segurou mesmo, porque era o que eu queria fazer na vida, que era estudar. Me sentia muito satisfeita estudando.
P/1 – Onde você fez o ginásio?
R – Eu fiz primeiro no colégio desse tal senhor, ela ficava na Rua Bom Pastor, no Ipiranga. E por sorte eu saí no terceiro ano do ginásio que depois a escola acabou e eu ia ter problemas. Aí fui para o Ginásio Estadual Antônio Firmino de Proença, na Moóca. Esse era um colégio realmente bom. Aí, passei sempre a estudar em colégio do estado. Terminei o ginásio, fui para a escola normal do Brás, o famoso Padre Anchieta e depois pensei que não fizesse mais nada mas eu tive vontade de fazer mais alguma coisa aí fiz o vestibular na USP e fiz Direito na USP, na tradicional escola das arcadas.
P/1 – Mas antes de passar pelas arcadas, você lembra o tempo do final da guerra?
R – Ah, lembro vagamente sim.
P/1 – O que você lembra dessa época?
R – E durante a guerra me lembro do racionamento de alimentos, especialmente do pão. Eu me lembro que eu ia para a fila bem cedo, eram filas enormes e nós íamos mais por causa da minha mãe, porque ela sente muita falta de pão. Até hoje ela come muito pão. Então nós ficávamos horas e horas naquelas filas e muitas vezes não pegávamos pão nenhum. Então depois ela descobriu junto com várias outras pessoas que, comprando macarrão, dava para fazer pão. Então ela usou esse método para poder satisfazer a vontade dela comer pão. E até que não ficava tão ruim assim, fazia novamente a massa com o macarrão e fazia pão. E, no tempo da guerra é mais isso que ficou na minha lembrança. Agora, quando terminou eu me lembro sim daquelas festas, movimentos de rua, isso eu me lembro. Mas assim, não muita comemoração especial eu também não tinha acesso, como tinha pouco relacionamento social. E acho que do final da guerra é só isso que posso me lembrar. Porque realmente a minha vida era muito, muito assim, vamos dizer, restrita em termos sociais e relacionamentos era mesmo muito restrita.
P/1 – E quando você saiu de casa? Você saiu de casa ou continuou na casa dos seus pais?
R – Pela minha educação eu devia morrer na casa dos meus pais, já que eu não me casei. Mas havia muitos conflitos entre meu pai e nós por causa de problema de preconceito que ele tinha contra as mulheres. Então a situação ficou insustentável e fui obrigada a sair. Aí comprei um pequenino apartamento e fui embora de casa, realmente custou muito para eu me habituar a uma vida sozinha, foi muito difícil. Muito difícil por causa da minha educação.
P/1 – Difícil como, Palmira?
R – Psicologicamente muito difícil. Eu trabalhava. Eu lembro que todas as noites eu chegava em casa, entrava no banheiro para tomar banho, sentava no chão e chorava. Chorava, chorava, chorava (riso). Foi muito difícil me habituar a viver sozinha. Agora adoro viver sozinha, mas realmente foi muito difícil viver sem a família. Foi muito difícil.
P/1 – E você atribui a uma dependência afetiva apesar de eles serem muitos severos?
R – Ah, sim. Ah, sim.
P/1 – E o relacionamento continua bom com eles?
R – Com a minha mãe sim, mas com o meu pai continua ruim. Ele realmente não aceitava e no fundo ele deve ter sentido uma espécie de humilhação de eu ter ido embora, de eu ter conseguido ir embora. Que por mais que ele me maltratasse provavelmente ele achava que jamais eu sairia de casa. Então como eu ia lá todos os fins de semana para visitar a minha mãe ele... Dava para ele contar às pessoas conhecidas que eu estava em casa. Ele não aceitava muito confessar que eu não estava em casa.
P/1 – Nessa época você trabalhava em quê, Palmira?
R – Eu comecei a minha vida profissional como professora, professora primária. Mas a essa altura eu já tinha feito concurso para uma Secretaria de Estado e... Foi até na Secretaria da Administração. Eu fiz concurso, entrei, entrei lá, depois de ter trabalhado já em outras duas secretarias. Mas a partir daí, a minha vida profissional ficou muito gratificante, realmente ficou muito gratificante. Adorava aquele trabalho.
P/1 – Por quê?
R – Eu passei a trabalhar num grupo novo que tinha sido criado na Secretaria da Fazenda que trabalhava com organização e estruturação das Secretarias do Estado.
P/1 – Você se lembra da data?
R – Eu fui para lá em 67. Então, foi um período muito gratificante para mim. Eu não tinha problema quando me perguntaram se eu estava satisfeita no trabalho, eu dizia que sim, não tinha nenhum problema em relação ao trabalho.
P/1 – Nem no salário, nada?
R – Não, porque ele era tão gratificante que eu nem, vamos dizer, nem me queixava se o salário era pequeno ou não. Ele nunca foi grande mesmo, mas houve um período em que ele estava bem atualizado até. Mas depois, como tudo na vida, esses órgãos públicos também têm uma vida, uma vida útil. Então houve o auge desse órgão e depois houve a decadência. Ele ficou sendo muito desvalorizado pelos outros secretários, pelos governantes e aí o órgão começou a decair. E com ele, é claro, as pessoas que trabalhavam lá. Aí eu passei a me sentir humilhada. Aí realmente o trabalho já não era mais gratificante, pelo contrário, era muito frustrante até. Daí a vida começou a piorar em termos profissionais e psicológicos também. Até que pela mudança excessiva de secretaria que cada governante que entrava o órgão ia para uma secretaria diferente sendo mais e mais desvalorizado, aí a situação dos funcionários acabaram piorando muito, alguns foram embora, eu permaneci até que chegou a época da aposentadoria eu fui obrigada a sair mesmo muito frustrada, mas me aposentei, sem grande vontade.
P/1 – Dentro desse caminho nas Secretarias e com toda a vida do país se desenrolando, do quê você se lembraria dessa vida do país que corria ao mesmo tempo? Tipo políticos, festas que aconteceram, incidentes, o Quarto Centenário passou por aí, né?
R – É, no Quarto Centenário eu ainda estava na escola normal (riso), 54.
P/1 – E aí, o que você conta do Quarto Centenário?
R – Eu lembro como foi planejado o Parque do Ibirapuera para as comemorações do Quarto Centenário, as festas, tudo, eu acompanhava, mas eu não participei de comemorações, eu acompanhava assim ao longe. E nas atividades que havia por acaso na escola normal eu participava, mas só aí mesmo. Eu nem cheguei a conhecer o Parque do Ibirapuera na inauguração, só conheci depois de inaugurado.
P/1 – Mas aí você fez Direito. Conta essa passagem.
R – É, como a minha vida era muito simples, eu achei que fazendo a escola normal eu ficaria realizada porque assim eu teria uma profissão, mas aí eu vi que tinha uma oportunidade de seguir, fiz um cursinho e fiz o exame na USP, não por causa do nome, mas porque era de graça.
P/1 – Você se lembra o cursinho que você fez? Qual era?
R – Lembro bem, era de um senhor português, chamado Curso Azevedinho. Ele faleceu anos depois, eu achei interessante.
P/1 – Como foi sua vida na faculdade de Direito? Você conseguiu vencer a timidez?
R – Não, não consegui vencer (riso). Como eu fiz tudo atrasado na minha vida, então na minha turma eu também era das pessoas mais velhas. E eu me sentia muito retraída em relação a isso. Eu esperava que não parecesse, como realmente não aparecia. Inclusive, tinham pessoas mais novas que eu que apareciam mais velhas. Mas eu sentia, eu me sentia um pouco humilhada, mas de qualquer maneira foi... Embora eu tenha levado uma vida universitária um pouco restrita, porque eu não participava de festas, porque eu realmente não tinha dinheiro para comprar roupa, então eu tinha vergonha de participar de festas, e havia muitas festas, mas eu não participava.
P/1 – E o Onze de Agosto, você nunca participou?
R – Não, eu não participava de atividades políticas na escola.
P/1 – Nada de Pendura?
R – De Pendura sim, é claro (riso). No cinema, teatro. Restaurante não, nunca pendurei conta em restaurante, mas cinema, teatro, confeitarias, isso sim. Era normal.
P/1 – Qual era a grande confeitaria da época?
R – Olha, eu não me lembro realmente. O que eu me lembro no Onze de Agosto, especial, por que por sinal eu estava apaixonada por um colega, é que nós tivemos a entrada grátis para o Cine Olido, que naquele tempo tinha piano nos intervalos, cada sessão. Eles fizeram uma sessão especial para nós. Foi muito gratificante esse dia onze de agosto. E a Kopenhagen que dava sempre chocolates, não precisava ir lá roubar, eles davam, eles ofereciam para todos.
P/1- O que foi feito desse affair, dessa paixão?
R – Essa paixão também foi frustrada, como grande parte da minha vida.
P/1 – Ele era colega seu?
R – Era, a cabeça ótima e tão tímido quanto eu. Mas a vida não nos reuniu. Então continuamos a fazer o curso juntos. Ele foi para o lado dele, eu fui para o meu e acabou.
P/1 – Depois que você se formou nas arcadas, isso mudou a sua vida de alguma forma?
R – Ah sim, mudou.
P/1 – Em que ponto?
R – Porque, bom, de um lado foi bom, de outro lado me trouxe mais uma carga de frustrações, porque...De um lado foi bom porque eu me senti orgulhosa de ter conseguido diploma de nível universitário numa faculdade que eu sabia que muitas pessoas mais preparadas do que eu não tinham entrado. Eu estava estudando junto com uns rapazes que fizeram o exame e não passaram. E eu por acaso, passei. Então eu tinha esse orgulho, e claro, uma moça pobre como eu fui toda a vida, para mim era motivo de orgulho conseguir. Era uma vitória. Mas por outro lado eu vi que na prática estava muito difícil.
P/1 – Seguir a profissão?
R – É, seguir a profissão. Eu cheguei a trabalhar com vários advogados, seria como nós chamamos hoje de estágio, só que naquele tempo não chamava estágio, a gente trabalhava com advogado e geralmente não se recebia nada.
P/1 – Isso estávamos nos anos?
R – Nos anos, eu sou da turma de 61, aí foi 62, 63. Até que depois eu abandonei totalmente. Abandonei, não senti falta não, não senti falta, porque vi que na prática não era muito bom para mim, eu não me sentia muito bem trabalhando no fórum. Realmente eu não me sentia muito bem, então eu acabei me entregando só ao serviço público e foi bom até certo ponto como eu disse.
P/1 – E nessa fase toda, até você sair da faculdade de Direito, o que mais marcou você nessa trajetória que você não tenha dito ainda?
R – (pausa) Acho que nada. Foi assim uma linha sem muitas quebras, nem boas nem más.
P/2 – Você tinha alguma outra atividade?
R – Eu trabalhava.
P/2 – E além de trabalhar você frequentava algum lugar ou tipo de reunião social, atividade política, religiosa?
R – Não. Eu sempre me afastei destas atividades, não sei porquê, me afastava dessas atividades, pode ser até considerado um defeito. E eu me indago hoje por que, mas eu realmente nunca me entreguei a essas atividades.
P/1 – E qual é a sua ocupação hoje?
R – Bom, como eu disse,
chegou um ponto a minha vida profissional que não dava mais para continuar, então eu resolvi me aposentar, como eu já tinha tempo mesmo. E realmente foi um fim de carreira muito triste para mim. Foi muito frustrante, eu me sentia irrealizada, a aposentadoria para mim foi considerada um fracasso na vida. Aí, eu não tinha muito sentido de vida, eu achava minha vida tão vazia, foi aí que eu procurei fazer algum trabalho voluntário. Então o que eu achei mais interessante para mim foi o trabalho voluntário do Centro de Valorização da Vida, o CVV, que eu aliás, continuo fazendo até hoje.
P/1 – Há quanto tempo você está lá?
R – Dois anos.
P/1 – Fez cursos, tudo, lá? Eles dão uma preparação.
R – Fiz, fiz curso lá.
P/1 – Você dá plantão normalmente?
R – Dou plantão. Acho ótimo.
P/1 – E o que essa atividade significa para você?
R – Olha, para mim era a verdadeira lição de vida, porque ela me ensina a conhecer as outras pessoas, enfim, tentar ajudar e saber que há pessoas com problemas muito mais graves que eu, tanto que eu posso ouvi-las. Então para mim tem sido bastante gratificante essa atividade. Eu espero que para os outros também seja bom, acredito que seja, embora haja falhas, mas a gente vive de falhas também. E vai aprendendo.
P/1 – Como você teve a ideia de participar do CVV?
R – Já havia tempo que eu vinha acompanhando as atividades, como é que se processavam os atendimentos, os cursos. Então eu resolvi, me integrei num curso e fiz.
P/1 – Embora seja um atendimento mais assim, tipo apoio, você acha que todas as atividades que você já teve na vida te dão ajuda, que é ajudar a essas pessoas, te dão um embasamento para ajudar as pessoas no CVV?
R – Acho que sim, porque, por exemplo, eu sou uma pessoa carente, sou uma pessoa com pouca dose de entusiasmo, cheia de problemas, mas talvez isso me ajude a compreender melhor os outros. Então, quando alguém me fala de solidão, de desgosto, de tristeza, eu entendo perfeitamente. Sou capaz de ouvir, entender e sei que a outra pessoa está sabendo que eu estou entendendo, que não estou rejeitando essa outra pessoa.
P/2 – Palmira, você não tem contato com a sua mãe?
R – Ah, sim. Mantenho permanentemente, porque agora ela é...
P/1 – Seu pai ainda é vivo?
R – Não, ele morreu já há nove ou dez anos.
P/1 – E você nesse momento, lá no CVV, que mais você faz?
R – É, eu voltei para os bancos escolares, parece mentira, mas como eu achei que a minha vida estava muito vazia, eu precisava de alguma coisa que me desse assim um incentivo de vida, aí resolvi fazer Filosofia, entrei na PUC, já estou quase terminando o primeiro ano. E aí podem me perguntar, mas a essa altura da vida, para que fazer Filosofia, né? Mas eu acho que Filosofia é um curso tão extraordinário que eu tenho certeza que vai me ajudar a entender melhor a mim mesma, a entender aos outros, entender as situações que ocorrem. Enfim, a Filosofia dá muita bagagem de vida. Espero, não espero fazer nada com o curso, espero que o curso faça muita coisa por mim. Então estou satisfeitíssima em voltar aos bancos escolares, seria, vamos dizer, um novo recomeço, um novo caminho que eu tomo na vida e eu acho que para mim é muito válido. Para outra pessoa pode até não ser, já fui chamada de louca porque eu resolvi fazer filosofia, mas tudo bem, eu sou uma louca assumida. Eu faço Filosofia e pronto (riso).
P/1 – O que você acha que mais transformou a sua vida e o que mais prejudicou a sua vida? Uma coisa ou outra ou as duas?
R – Olha, a minha mudança da casa da minha família para um lugar meu, eu sei lá, é um resumo de tudo o que é bom e tudo o que é mau. Porque realmente eu me senti muito mal saindo da minha casa, como se fosse um passarinho que estivesse saindo do ninho e não sabe ainda voar. E embora eu não fosse jovem, já não tinha 20, nem sequer 30 anos eu tinha, tinha mais do que isso. Mas emocionalmente eu sou muito carente, como eu já disse antes. E essa carência torna muito difícil o desligamento. Então para eu me desligar da minha família, desligar fisicamente, foi muito difícil, realmente muito difícil. E ao mesmo tempo foi um fator que veio em meu benefício, custou muito caro, sim, custou muito caro. Mas eu sei que foi muito favorável para mim. Me ajudou a amadurecer bastante, a aprender a viver sozinha, a voar sozinha, porque eu sei que na vida da gente a gente tem que depender da gente mesmo e não dos outros. Então, como disse um psicólogo há tempos atrás que estava na hora de eu cortar o cordão umbilical com a minha família, não no sentido de cortar relações, mas sim cortar a dependência emocional dos parentes, quer dizer, depender emocionalmente dos parentes é a pior coisa que existe porque é muito frustrante, porque sempre há um desentendimento. E se a gente espera demais do relacionamento familiar, aí sofre muito. Mas o corte desse cordão umbilical é bastante difícil, para mim foi bastante difícil.
P/1 – Falando em psicólogo, você arrumou algum psicólogo?
R – Houve um tempo que eu fiz um tratamento psicológico porque eu achei que tinha necessidade, por causa dessas minhas carências, esse meu sentido de perda. Eu tenho muito esse sentido de perda comigo. E foi bom, me ajudou a entender muita coisa.
P/1 – Se fosse possível mudar alguma coisa na sua vida, o que mudaria?
R – (pausa) Talvez eu devesse ter me entregue mais ao Direito, quem sabe agora eu estaria rica, né? (risos). Tem outra coisa também, apesar da minha vida ter sido muito difícil, sempre foi, o pouco dinheiro que
eu conseguia economizar eu me privava de tanta coisa para poder viajar. A minha paixão sempre foi conhecer gente, terras diferentes...
P/1 – Onde você chegou a ir?
R – Olha, eu fui para muitos lugares. Para Europa eu fui várias vezes, fiz um curso em Portugal, fiquei um ano lá.
P/1 – De quê?
R – Mestrado em Direito. Eu fiz na Faculdade Católica de Direito lá, na Universidade Católica de Lisboa. Eu fui sozinha, com a cara e com a coragem, sem indicação nenhuma consegui hospedagem numa casa de família. Fiz uma amizade excelente com um casal com quem eu vivi, que até hoje eu sou amiga. Fui à Índia também, eu adoro esse país, acho extremamente interessante a Índia, o povo, a religião. Eu tenho visitado lugares bem estranhos. Fui ao Egito, quer dizer, eu não tenho carro, o apartamento é pequenininho, mas eu conheço uma boa parte do mundo e me sinto satisfeita em ter gasto nessa distração.
P/1 – Essa sua ida à Índia tem a ver com algum misticismo, você é mística?
R – É, eu sou sim, eu sou sim. Eu passei 35 dias na Índia, né? Então, eu tive bastante contato com a terra, o povo. No início foi bastante difícil, porque eu fazia comparações e a pior coisa é ir à Índia, principalmente fazer comparações. Tem que se por o pé na terra indiana e esquecer que existe o outro mundo, que o mundo da Índia é um mundo à parte. Eu achei muito interessante a viagem à Índia.
P/1 – Já que foi um motivo místico que te levou à Índia, cabe perguntar qual é a sua religião, na verdade. Tem a oficial e a extra-oficial, em geral, não é?
R – Quer dizer, eu estava comentando até ontem com uma pessoa, ontem sim, quinta-feira, que eu tenho grande desgosto de não ser religiosa, não sou mesmo muito religiosa, assim como eu não tenho convicções políticas e eu me critico por isso. Agora, eu já aprendi na PUC que a outra coisa muito mais interessante é o “sentido de religiosidade”. Então, não é às vezes a gente se ligar em uma religião organizada, estruturada. Mas é esse sentido de religiosidade que nós temos dentro de nós é muito mais importante do que seguir a regras de uma religião estruturada. Pode ser errada essa minha opinião, mas é realmente o que eu sinto.
P/1 – Como é que é atualmente o seu cotidiano, a sua relação com outras pessoas, ou pessoas de outras gerações, que provavelmente você deve estar convivendo na faculdade?
R – Esse era um grande medo que eu tinha. De ir para uma grande escola, conviver com jovens e eventualmente não ser aceita, porque eu também sou muito tímida, muito retraída, talvez o meu ar dê uma impressão de gravidade que eu não tenho, mas eu sei que meu semblante talvez transmita esse ar de gravidade que eu não tenho. Mas, felizmente, eles me aceitaram muito bem, os jovens me aceitaram bem, ninguém debochou de mim, ninguém deu risada, ninguém me chamou de tia! Então, eu tive uma surpresa muito gostosa de ser aceita pelo grupo e saber que tem outras pessoas maduras interessadas em estudar, sair dessa rotina de televisão e casa e pensar em outras coisas e querer estudar, conhecer o pensamento antigo e o pensamento moderno, então é realmente fascinante esse mundo. Se a gente procura fazê-lo realmente com paixão, com amor.
P/1 – Agora, para finalizar a entrevista, você sabe qual é o seu sonho, se você já realizou ou ainda vai realizar, e que sonho é esse?
R – (pausa) Eu acho que eu tive tantos sonhos não realizados que eu até nem faço projeto de vida. Não sei se você assistiu aquela série “O poder do mito”, na TV Cultura e que o jornalista perguntou ao... Qual é o nome dele?
P/1 – Campbell. Joseph Campbell.
R – É, o Campbell. O que é que faz com que as pessoas queiram saber, esperar da vida, o que significa a vida, se há alguma missão para a pessoa e ele disse que não cabia se preocupar realmente com isso. Que o importante é caminhar e é o que eu estou fazendo, onde eu vou chegar eu não sei, mas eu estou caminhando, não estou parada. Eu acho que isso é importante, é caminhar. Quem sabe pelo caminho eu encontro os objetivos, ou os objetivos parciais.
P/1 – Mas você tem esses objetivos/sonhos? O sonho é um objetivo.
R – É, eu gostaria de descobrir o que eu ainda posso fazer com essa minha atividade, com esse curso de Filosofia e espero encontrar.
P/1 – E o que você diria para gerações futuras, que mensagem você daria?
R – É muito difícil dar lições para os outros. Acho que cada um tem que encontrar mesmo o seu caminho, tem de caminhar, dar o primeiro passo, depois o segundo e dando um passo e outro passo vai encontrar alguma coisa. O problema é realmente não ficar parado.
P/1 – Você acha importante deixar a sua entrevista registrada da sua trajetória de vida?
R – Bom, eu não sei se vai ser importante para os outros, mas eu estou achando gostoso.
P/1 – Por quê?
R – Sei lá, talvez perceber que alguém está querendo ouvir então, tornando a repetir, é gratificante saber que alguém está se interessando por alguma coisa que a gente possa dar. Eu acredito que todas as pessoas têm alguma coisa para dar.
P/1 – E finalizando mesmo, o que você gostaria que fosse feito com esses dados de sua vida e com esse depoimento que você deu?
R – Bom, eu gostaria de saber se realmente houve alguma coisa que possa ser aproveitada por outras pessoas. Se houve realmente eu me sinto satisfeita e esses momentos que eu passei aqui são importantes. Talvez as pessoas achem até algumas palavras que eu disse alguma coisa importante que eu própria não vi. Gostaria de saber o que as pessoas acharam das minhas experiências, principalmente da última, que eu não me dei por vencida, apesar de todas as minhas carências. Estou fazendo alguma coisa nova, tentar alguma coisa nova.Recolher