Projeto Conte sua História – Celebração do Sorriso
Depoimento de Carlos Viana
Entrevistado por Lila Schnaider e Marcia Trezza
São Paulo, 04/08/2017
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV574_CarlosViana
Transcrito por Melissa Lourenço Machado
Revisado por Viviane Aguiar
P/1 – A gente vai co...Continuar leitura
Projeto Conte sua História – Celebração do Sorriso
Depoimento de Carlos Viana
Entrevistado por Lila Schnaider e Marcia Trezza
São Paulo, 04/08/2017
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV574_CarlosViana
Transcrito por Melissa Lourenço Machado
Revisado por Viviane Aguiar
P/1 – A gente vai começar a entrevista, Carlos. Fale o seu nome completo, onde você nasceu e a data.
R – Meu nome é Carlos Alberto Correia Viana. Eu nasci em Campinas em 31 de janeiro de 1956. Sou campineiro daqueles defensores, mas já estou em São Paulo, saí de lá com 20 anos para estudar, e fui para Santos, fui estudar em Santos, fazer faculdade em Santos. Depois eu me mudei para São Paulo como parte do estudo, no sexto ano, que era no Heliópolis. E aí comecei, prestei residência, fiquei em São Paulo na residência, me casei com uma colega de faculdade e...
P/1 – Não voltou mais para morar em Campinas?
R – Pois é, eu não voltei, mas eu tentei várias vezes voltar para lá.
P/1 – Então, a gente vai começar a história desde que você era criança lá em Campinas.
R – Muito bom.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Bom, meu pai é um farmacêutico que resolveu dar uma volta lá para cima quatros anos atrás. Puxa! Faz mais, 2011, faz mais. E minha mãe chama-se Vanda. A minha mãe é uma dona de casa, e eles se conheceram na verdade em uma festa, em um baile, porque o irmão dela a levou e a namorada dele levou o meu pai. E eles se conheceram, e a coisa deu certo. Esses tios também deram certo. Uma das fotos é de um deles que eu gosto muito mesmo. Então, meu pais começaram, eu tenho que contar?
P/1 – Sim. Pode contar.
R – Meus pais são pessoas simples, de família simples. Meu pai é filho de um chefe de estação de trem, que, dentro da hierarquia da estrada de ferro, ele chegou a ser o chefe da estação de Campinas. A próxima estação seria a estação da Luz em São Paulo, mas o tempo conspira contra algumas vezes, não é? Ele aposentou-se em Campinas. Antônio, o nome dele é Antônio, Antônio Fernandes Correia Viana.
P/1 – O nome do seu avô?
R – Meu avô. Aí eles, uma família grande, oito filhos, nove filhos, e meu pai começou a trabalhar na farmácia da fazenda, onde passava o trem, desde os oito anos de idade. Meu pai trabalhou até os 79, faleceu aos 80, não foi mais porque a gente não deixou. Eu, por mim, teria deixado, somos três irmãos e eu. Por mim, não teria limitado nunca, porque, embora ele tenha tido uma formação primária só, ele foi prestar, regularizar a formação dele de farmacêutico. Eu tinha cinco para sete anos de idade, mais ou menos, quando o Conselho de Farmácia chamou os farmacêuticos para regularizar e, a partir de um exame, ele tornou-se um prático de Farmácia.
P/1 – Ele trabalhou a vida inteira nessa farmácia?
R – A vida inteira ele trabalhou na Beneficência Portuguesa de Campinas, trabalhou na Drogasil em Campinas e, de lá, ele montou uma farmacinha, e em um bairro que era então periferia de Campinas. Então, ele montou essa farmácia, ele casou-se com a minha mãe ainda funcionário da Drogasil, e aí eles resolveram que: “Vamos tocar a vida”, e montaram a farmácia. Um bequinho quatro por quatro, grande hoje em dia, dá um apartamento hoje em dia. Então, montaram essa farmácia, a Farmácia São Carlos. Eu nasci na farmácia.
P/1 – Conta essa história para a gente.
R – Da farmácia?
P/1 – Que você nasceu na farmácia, como assim?
R – Ah, eu vi essa certidão hoje até. Eu nasci na maternidade de Campinas, mas meus pais trabalharam juntos. Então, minha mãe sempre o ajudou a vida toda, acho que, se não tivesse tido a minha mãe, ele não tinha chegado onde chegou porque quem batia o martelo era ela, mas depois da minha mãe ralhar bastante. Minha mãe nasceu em dezembro, não sei que signo é, mas é um signo forte. Era uma mulher forte no sentido físico e era uma mulher forte no sentido de decisão, ativa, atuante, e sempre amparou o meu pai. E, então, eu acho que ele, meu pai deve muito à minha mãe, todos nós devemos, os três filhos, né?
P/1 – São três homens?
R – Não. Tem a Carmen, a do meio. É bem aquela coisa portuguesa e do interior: Carlos, Carmen, Cláudio, então, e composto, Carlos Alberto, Carmen Sílvia e Cláudio Luís.
P/1 – Você é o mais velho?
R – Eu sou o mais velho. Então, eu nasci lá, e minha mãe, pelo fato de participar do dia a dia da farmácia com ele, ela me levava e não tinha dinheiro, era uma caixa de remédio mesmo. Então, o meu berço era uma caixa de remédio, era o que tinha. Meu pai foi um cara arrojado para o seu, para até onde ele tinha de formação. Conheço muita gente hoje com diploma na parede que eu acho que não tem, não tem, eu acho, que o amor à profissão que ele tinha e não tem uma determinação pessoal como ele tinha. Então, de crescer e de atender, em um bairro pobre que era a Vila Teixeira em Campinas. Meu pai logo, um ano depois, teve a concorrência de um outro profissional, uma esquina abaixo, que vendia por caderneta e meu pai só vendia no dinheiro, mas o que era um problema – em um bairro pobre é um problemão. Mas meu pai, ele, ao longo da vida, eu acho que um cara vencedor, porque ele teve três farmácias. Foi a primeira, quatro... Foi a primeira ali nesse lugar pequenininho no bairro, em uma garagem onde ele trabalhou e ganhou dinheiro para comprar um terreno da esquina. Lá ele fez casa de português, um comércio embaixo e casa em cima. Meu consultório é assim, é de português: o consultório é embaixo, e eu moro em cima. Então, nessa casa que a gente mudou, eu e minha irmã ainda bebezinha – a Carmen era bebezinha de tudo. E a gente mudou, nós nos mudamos para lá ainda em construção. Então, foi uma vida de luta dele, e eu acho que meu pai sempre se dedicou àquilo, teve pouco lazer. Eu tenho um período de férias, que a gente esteve em Santos, e meu pai, a gente dividiu algumas coisas do dia a dia, período de férias, acho que um foi esse. Acho não, um foi esse. Ele sempre foi muito dedicado. Então, lazer para ele, para você ter uma ideia, lazer para o meu pai era ir em um sítio no fim de semana que ele comprou quando eu tinha 17 para 18 anos. Teve o sítio durante quase dez anos, 13 anos. O lazer era ir para o sítio.
P/2 – O que vocês faziam lá no sítio?
R – Tudo, tudo o que você puder imaginar.
P/2 – Conta um pouquinho como é que era com os irmãos.
R – Então, eu era o mais velho, eu sou o mais velho, e meu pai sempre foi um cara muito rígido, extremamente rígido. Aquela educação que não tinha riso do pai, não é? Mas ele sempre foi muito amoroso, dentro do que ele aprendeu. Você tem que esperar que a pessoa te deu o que ele aprendeu, não adianta você contar com o que ele não teve. Então, era assim, 17 anos. Um dia, tinha o sítio e a gente tinha o Fusca, que vendeu o que tinha para poder comprar o sítio. E, naquela época, tinha o pessoal que era de colégio, e eu era o mais novo. E, um dia, a gente foi os quatro, enche o Fusca e vamos para o sítio. E aí o pessoal, era estradinha de terra – e isso eu estou contando para vocês terem uma ideia do que era a figura do meu pai. “Você pode dirigir da saída da estrada até a porta do sítio, naquele pedacinho, tá bom?” “Tá bom.” E o pessoal que estava comigo fez assim: “Vamos embora, guia aí!” E aí eu comecei no percurso e eu terminei no percurso. “Vamos embora!” Eu falei: “Não. É o percurso permitido, é esse que vai fazer.” Quando tinha as histórias de alguém pegou o carro do pai... Meu pai sempre na cabeceira da mesa, e cada um com o seu lugar. Até hoje é assim na minha família, o que é uma bobagem. Às vezes eu tento quebrar, mas é uma bobagem a manutenção disso.
P/1 – Na sua casa?
R – É. Hoje, minha mãe senta-se na cadeira que era do meu pai, eu sento na dela, cada filho sabe onde senta. Eu tento quebrar às vezes, mas, por respeito à minha mãe, eu fico quieto. “Então, vamos andar mais aí, ninguém está vendo!” Não, ninguém está vendo, é assim, não vou andar.” E meu pai dizia: “Nunca faça isso, o dia em que você tirar carta você vai andar com o meu carro.” Isso para mim era um pacto de homem, de honra, e foi isso que aconteceu. O dia em que eu fiz 18 anos, eu acordei, minha mãe fez assim: “O seu pai está te chamando na farmácia.” Falei: “Putz, o que ele quer, mãe?” “Não sei, ele está te chamando, vá lá.” Aí cheguei lá, entrei na farmácia, não me lembro de ele ter me dado os parabéns dos 18 anos, mas ele me chamou lá dentro da farmácia, e eu vi ele escrevendo alguma coisa. E ele fez assim: “Tó, vá na autoescola e tire a sua carta.”
P/2 – Muito bom.
R – Aí eu fui, tirei minha carta. Tomei pau na primeira, que dirigir assim feito... Meus tios eram motoristas de caminhão, eu adorava aquilo lá. Eles me colocavam. Eu tinha o Tio Lola, o mais novo, não era o caçula, mas era o ídolo. Ele me sentava em cima do motor assim, me pegava pequeno e me sentava em cima de um motor aqui, e a gente saía mexendo com as moças. Eu não posso nem falar o que eu falava, tamanha...
P/1 – No caminhão?
R – No caminhão. Então, eu dirigia como eles, braço para fora e aqui. E, quando terminou o exame, dos três que estavam fazendo prova, os dois já tinham tomado pau na prova de morro porque não deram seta e tudo o mais, e eu o caminho inteiro conversando: “Vamos e tal”. Quando terminou, ele falou: “O senhor está reprovado porque não fez prova de morro. A senhora está reprovada porque não deu seta com a mão. E o senhor está reprovado porque o senhor não é maneta, o carro foi feito para ser dirigido com as duas mãos.” Falei: “Puxa, meu, como é que pode?” E ele fez: “Não tem conversa!” Fui para a segunda e aí passei. E foi realmente o que aconteceu. Tirei carta e está aqui, o meu carro pode andar.
P/1 – Carlos, voltando bem para a sua infância, você diz que nasceu na farmácia, falou do berço. Você se lembra de situações que te deixavam muito feliz nessa época, convivendo nessa farmácia, nessa casa? Você tem lembranças?
R – Boas e ruins, né? Por conta da satisfação para as pessoas, embora eu tive uma infância muito boa porque a minha avó que, para mim, é a pessoa mais bondosa do mundo que eu conheci. Não é minha mãe, é minha avó. E eu digo para minha mãe que nenhum dos filhos e filhas puxou para ela; se tivesse puxado, iria para o céu. Vocês ainda têm alguma coisa por pagar, não podem reclamar e, se a senhora, quando ficar velhinha, for igual à sua mãe, vai ser bom. Se não, vai ser difícil. Ela puxou para o pai, mas eu sempre fui muito querido por minha avó. Minha avó sempre me protegeu muito, meu avô também. Eu era o neto predileto, sempre fui o neto predileto, mas no bairro eu não podia fazer nada. Os outros: a Carmen sempre foi boazinha, uma menina, um toquinho assim de gente; o Cláudio, quando nasceu, já foi tudo diferente; mas eu não, comigo era pão, pão, queijo, queijo. Eu não podia de maneira nenhuma dar motivo para que houvesse algum comentário do bairro a respeito de algo que eu tivesse feito. Tomei uma dura uma vez porque erraram de Carlinhos, não era esse Carlinhos, era outro Carlinhos, filho do tapeceiro, que tinha aprontado, mas quem tomou fui eu. Hoje ele é meu primo, casou-se com uma prima.
P/1 – E vocês tinham muitas brincadeiras nessa época, quais brincadeiras preferidas? Não precisa ser nesse período dessa casa primeira, mas na sua infância.
R – Então, a gente morava a 1 quilômetro da casa de minha avó, e era um conjunto de BNH [Banco Nacional de Habitação] chamado IAPI [Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários], Conjunto Residencial do IAPI, IAPI, IAPC, IAPTEC, aquelas coisas de velho. E o dela era IAPI, e era muito arborizado, era muito grande. Então, era uma vida mais do que desejada de qualquer criança, tinha de tudo: subir em árvore, bola, tudo, caçar, pescar. Mas eu nunca ia porque meu pai: “Não vá! Não vá com essa molecada!” Não pescava. Era só ir ao córrego nadar, sabe aquela história de criança do Milton Nascimento de “vá no córrego nadar”? Eu não podia, eu ia até a beirada, mas eu não podia.
P/1 – E tinha alguma coisa que você podia fazer, alguma situação, ou que você até fez uma arte?
R – Eu podia fazer de tudo, desde que eu não colocasse em cheque a posição da farmácia do meu pai. Então, nunca fiz arte, não. Eu nunca fui um arteiro, eu sempre fui tido como o bom filho, o bom neto, o bom sobrinho, o bom aluno. Fui sempre o bom aluno, não fui de arte.
P/1 – Mas tinha alguma coisa na sua infância que te deixava...
R – Feliz?
P/1 – Que hoje você lembra e te deixava feliz dentro dessas regras?
R – Sempre adorei andar de bicicleta. Ganhei uma bicicleta azul, a primeira, sempre foi azul. A primeira era azul, a segunda era azul, e eu gostava muito. O que eu gostava mais de minha infância, além de estar ao lado de minha avó, e eu sou daltônico para verde, azul, verde e vermelho, era sentar no fim da tarde, sentar ali no campinho de futebol e olhar o pôr do sol, porque era de uma cor tão bonita, que eu acho que as pessoas não devem enxergar da mesma forma. Quando alguém fala para mim: “Mas as cores da aurora boreal...”, eu falo que não deve ser mais lindo do que aquilo. Porque hoje, às vezes eu volto de Campinas para São Paulo, e o sol fica à direita, o pôr do sol fica à direita, e tem dia que eu tenho vontade de parar para ver o sol descer e entrar assim no meio do mato. E isso era do que eu mais gostava. E eu gostava de cantar.
P/2 – Que cor era o pôr do sol?
R – Puxa, era lindo (risos). Acho que...
P/2 – Para você, qual é a cor?
R – Então, para mim, era um amarelo, um alaranjado. Eu sempre gostei de amarelo, já tive um carro amarelo, uma caminhonete amarela. E eu gosto de cor viva. Então, meus carros são de cor viva: vermelho, amarelo, coisa forte. Mas era um amarelo que ia se desfazendo assim, um alaranjado, talvez fosse até avermelhado, mas eu não enxergava. Eu tenho dificuldade de identificar, mas era lindo.
P/1 – Deixa eu perguntar uma coisa, Carlos: você falou que a sua avó, você gostava muito de ir à casa dela, você se lembra de situações com ela que ficaram marcadas na memória?
R – Minha avó chamava-se Marta, era uma camponesa muito doce. Pode ser que eu chore, era muito doce. E meu avô Américo, Américo. Mas a minha avó Marta... Eram também nove filhos, casou-se aos 14 com aquele moço que veio lá, que tinha quebrado o dedo no futebol e o pai dela foi consertar. Aquele homem era um ferreiro. Esse moço virou um ferreiro, e ela conta que, na festa dela que o bairro fez também um histórico dela aos 90 anos – ela viveu até os 100 –, que ela segurava a pata do burro ou do cavalo para o meu avô ferrar. Então, casou-se aos 14 e foi embora. De lembrança do pai dela tem só uma foto dele velhinho assim, no Paraná.
P/1 – Mas você com ela, você se lembra do que assim?
R – Nossa, bom, eu lembro...
P/1 – Que te faz até hoje feliz quando você lembra.
R – Eu lembro dela fazendo o café para a gente, que eram aqueles bules de café deixados sobre o fogão. Para quem chegasse, tinha um café mais ou menos morno. E ela fazia, ela tinha, puxa, minha avó, esse meu tio caminhoneiro, ele adquiria de uma maneira não tão honesta alguns sacos de milho nas viagens. Minha avó fazia um curau... Era um cerimonial o curau que ela fazia. Porque tinham as filhas mais moças, e era todo mundo ralando milho, ralando mesmo ali, isso era inesquecível. Então, ela fazia um curau delicioso. Ela tinha sempre um café ali esperando, um cafezinho à tarde. Uma passagem engraçada porque, um dia, a gente foi tomar um café, e minha tia, eu estava passando manteiga no pão – não tinha margarina, era manteiga. Estava passando manteiga no pão, e aí a minha tia falou: “Opa, espera um pouquinho, se você quer passar manteiga dos dois lados do pão, é na sua casa, aqui não. Aqui é de um lado só.” E minha avó falou: “Deixe ele quieto, Celina, deixa o menino comer o pão dele!”
P/1 – Ela te contava histórias?
R – Minha avó? Não. Minha avó, me lembro dela cuidando dos macacões dos meus tios, lavando naquele tanque deste tamanhinho, uma mão pequenininha, curta, gordinha lavando, lavando. Aquilo saía vermelho da terra do Paraná, do caminhão. Ela espantando os gatos que queriam roubar a sardinha que ela comprava na feira para fazer o almoço de vez em quando. Tinha gato, ela tinha de tudo ali, tinha gato ali, cachorro não, tinha gato. Os gatos eram ladrões, eles roubavam. Sempre escapavam com uma sardinha, que era sempre contada, né? Era uma por filho, e o miserável sempre roubava a sardinha dela.
P/2 – Quais eram os maiores ensinamentos dela para você?
R – O maior ensinamento que minha avó deu e que eu acho que todo neto guardou é ser amoroso, é ser compreensivo, é não brigar por nada, porque, quando alguém falava alguma coisa, alguma contenda ali, ela falava: “Deixa quieto, meu filho, não faça nada, isso depois se resolve, deixa quieto. É assim mesmo, não liga, não. Isso depois passa.”
P/2 – Você se lembra de alguma situação específica em que aconteceu isso?
P/1 – Com você?
R – Uma vez, meu pai quis me pegar de jeito, e a gente estava na casa dela. E eu corri para o colo dela, e ela falou: “Deixa ele quieto, Carlito” – ela chamava meu pai de Carlito, Seu Carlito. E minha avó falou: “Deixa ele quieto, Carlito, deixa o menino, não bate nele, não. Ele é assim mesmo, é criança, deixa quieto.” E ali eu estava guardado. E, olha, sabe uma coisa amorosa? Qualquer coisa era amoroso, um ovo frito era amoroso, eram simples, como eu te falei. Não tinha mesmo, a televisão quem deu foi o meu pai, a primeira, a segunda, a terceira e assim por diante. A geladeira. Minha mãe sempre ajudou a minha avó nesse sentido material. Era a filha melhor de vida. Os outros eram, um era torneiro mecânico aqui em São Paulo, o tio Romeu. Minha tia Neli morava aqui em São Paulo, na Cantareira, Cantareira mesmo, no tempo em que a Cantareira só tinha pedreira, não precisava espantar gente.
P/1 – Carlos, você falou do seu tio que levava você de caminhão. Você se lembra de alguma história engraçada que aconteceu?
R – Além de eu mexer com moças?
P/1 – Ou descreve um pouco mais como eram essas andanças com o seu tio.
R – Bom, eles me levavam. Inclusive, eles trabalhavam com caminhão de vidro. Então, eles, a fábrica de vidro era a Santa Marina, que ainda é em São Vicente. Eu adorava viajar com eles de caminhão para baixo e para cima, e era legal porque meu pai fazia assim, quando a gente ia sair da farmácia, meu pai fazia assim: “Toma, Lola!” – Lola era o nome do meu tio, o nome era Antônio, mas ele chamava de Lola, não sei por quê, ninguém sabe. Lola. Eu tinha um outro tio, o tio Vardo. Mas ele fazia assim: “Toma um dinheirinho para vocês comerem alguma coisa.” Então, a gente vinha de caminhão, vinha e voltava de caminhão, e o jantar, e a volta, não me lembro, qualquer posto de estrada. Mas era um galeto da estrada, um frango, um churrasco da estrada. A gente almoça um comercial para guardar um dinheiro para depois ter um galeto para comer. Então, era muito legal. E esse tio era o pescador da família. Ele me levava para pescar, me punha no caminhão junto com o pessoal da companhia para jogar futebol. Eram aqueles homões, aqueles moços, e eu no meio dos moços. “Senta aqui que os moços vão se trocar agora, fica para cá.” E eu acompanhava para baixo e para cima. Ele, esse tio era tido como o melhor motorista.
P/1 – Teve alguma viagem realmente inesquecível, por alguma coisa que aconteceu?
R – É interessante porque eu sempre achava que os meus tios eram donos do lugar em que eles trabalhavam. Então, minha tia Celina era dona das Lojas Americanas, embora fosse uma balconista, mas eu achava: “Puxa, meu, olha a loja da minha tia!” (risos) E meu tio era dono da empresa de vidro. Claro, era assim, era muito prazeroso, então, não teve um fato, sabe? Mas era sempre muito prazeroso, a companhia deles era muito prazerosa, a gente pescou bastante, quando eu falei com meu pai. Meu pai só fechava a farmácia na Sexta-feira Santa obrigatoriamente. Sexta Santa, farmácia está fechava, e no almoço de Natal. O resto estava aberta, e ele estava lá.
P/1 – Sábado, domingo...
R - Sábado, domingo, feriado, dia, noite, qualquer coisa. Acordavam a gente de noite, de madrugada, para comprar um Sonrisal, um Melhoral. O bairro pobre, né? E ele levantava e ia.
P/1 – Você trabalhou na farmácia?
R – Trabalhei. E aí teve um tempo que esse tio, por influência desse tio, meu pai fez uma tarrafa. E a gente morava em uma casa que tinha um quarador – acho que hoje em dia o pessoal nem sabe o que é um quarador, onde quara a roupa. E lá eu treinei para jogar a tarrafa, mas a tarrafa era do meu pai, não punha nem a mão, de jeito nenhum. E aí esse tio levava a gente para pescar e caçar passarinho, tudo o que o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] prende hoje, tudo o que não se pode fazer: caçar, pescar para uso próprio. Então, nessa pescaria todo mundo pescou, pescou, pescou, e aí sabe quando você fala assim: “Tá bom, então, toma, joga vai, joga a tarrafa uma vez você, vai”. Meu pai me deu e ninguém estava pegando nada e eu joguei. E ela foi uma coisa de noiva: ela abriu, abriu, caiu e pegou os primeiros peixes do dia. “Então, joga mais, não é que o menino joga? Joga mais uma, então!” Joguei, peguei de novo. “Chega, está bom, agora a gente vai pescar!” Os grandes vão pescar, lembro do meu pai, isso eu lembro. Às vezes, eu estou no meio do trânsito, entre um ônibus e um caminhão, alguma coisa assim, aquela coisa que você vai encostar em algum lado, e eu lembro da mão do meu pai. Isso é uma coisa que eu guardo muito: a mão do meu pai, me ajudando a atravessar uma picada assim, quando a gente foi pescar. Eu era pequeno, e meu pai segurando a minha mão. “Venha e olha para frente, não olhe para o chão, olhe para frente!” E aí, então, nessa hora, eu lembro do meu pai falando: “Olhe para frente, não olhe para o lado, vai em frente. Olhe para frente e vai, que vai dar certo.” Teve uma passagem que eu quase morri na pescaria, em Carlos Gomes, porque tinha um remanso, eles falaram, porque eu sempre fui obediente, sempre, sempre fui meio “patso”: “Você vai ficar aqui, está bom?” “Está bom.” Era uma ordem, e eu fiquei lá naquele lugar, mas começou a chegar um gado para beber água. Puxa, eu me assustei e fui entrando para o meio do rio e gritando por socorro. E o primeiro a chegar foi o meu pai, que veio correndo para me buscar. O rio ia me levar, minhas passagens com água são meio difíceis. O rio ia me levar com certeza, eu ia morrer, e ele me pegou. “Vamos embora!” Das pescarias, a passagem mais tenebrosa foi essa. E uma feliz foi essa que eu pesquei e a partir daí eu me tornei, foi um ritual de passagem, eu me tornei um pescador novo da família. E isso durou muitos anos, essas pescarias.
P/1 – Então, vamos falar um pouquinho agora de quando você estava mais crescido. Enquanto jovem e adolescente, que foi ficando, podia sair, fazer, tinha amigos... Como foi quando você se tornou jovem, vamos dizer assim, como era a rotina?
R – Tinha. Bom, tinha o pessoal do bairro onde a minha avó morava, mas eu sempre era tido como filhinho de papai, porque todo mundo era pobre. Tem uma passagem, tem uma passagem que, uma vez, o meu pai, ele era um cara que gostava, por ter nascido em sítio, me ensinou muita coisa. Uma das coisas era cuidar de planta. Um dia, eu falei para uma vizinha: “A senhora quer que eu corte a grama da sua casa?” “Quero.” Aí ela... E eu sei que eu fui lá e fiquei o dia inteiro cortando a grama dela com tesoura, cortei, arrumei e tudo. “Está bom?” “Está bom!” “Ficou bom?” “Ficou bom!” E daí a uns dias, eu fiz assim: “Cadê o Zé Luís, o Zé Luís está aí?” Aí ela falou assim: “Você pensa que ele é filhinho de papai igual a você? Zé Luís está trabalhando!” Como se aquilo que eu fiz não tivesse sido. Falei: “Pô! Que sacanagem!” Eu tinha muitos amigos e eu sempre, tinha aquelas rixas entre ruas, e eu sempre tive trânsito livre porque eu era amigo de todo mundo. Nunca fui de encrenca, nunca fui de briga, nunca fui, nem sabia brigar, como não sei até hoje. Se me derem um safanão, é capaz de eu falar: “Puxa, pra que isso?” Odeio MMA [Artes Marciais Mistas], essas coisas de gruda, encosta e joga no chão. Nunca gostei. Então, meus amigos sabiam que eu era um cara de paz, sempre fui de paz mesmo. E eu ia, eu podia sair com os caras, mas eu só fui sair com os meus 17 anos, só fui deixar o cabelo crescer com 16 anos, 17 anos, porque cortava o cabelo fuzileiro até então.
P/1 – Vocês faziam o quê para se divertir?
R – Ah, vida de interior, você vai na lanchonete e fica lá paquerando.
P/2 – Como foi a sua primeira conquista amorosa?
R – Sei nem se fui eu que conquistei (risos). Mas acho que não fui eu, porque eu era muito quieto. Era uma amiga da minha irmã, ela era uma mocinha bonita, deve ser bonita ainda hoje. E ela, e a gente se cruzou em um baile que minha irmã, minha irmã, embora pequena, mas a minha irmã sempre foi mais ativa do que eu. Não era namoradeira, namorou com o primeiro, casou-se com o primeiro e está até hoje. Carmen hoje tem três filhos. E foi através dela, era uma colega de escola dela que eu namorei. Essa moça namorei um tempo e aí depois ela própria disse assim: “Agora está bom, vamos dar um tempo”, aquela história do “vamos dar um tempo”. Eu falei: “Mas como vai dar um tempo, não está namorando?” “Vamos dar um tempo.” “Ah, então está bom.” E assim foi.
P/1 – Mas conta um pouco como é que você conseguiu namorar com ela.
R – Sei lá, nunca fui bom de conversa. Foi em um baile, e a gente se encontrou e ali começa a conversa de umas coisas e de outras. E ali ficou. E ali que a gente começou a namorar. Ela que me ensinou a dançar. Gosto muito de dançar. Meus pais, embora aquela rigidez toda, gostavam de dançar. Para mim, a maior surpresa foi um Carnaval que o meu pai me levou, e foi a primeira vez que eu vi meu pai usando bermuda e pulando feito uma criança. E aí eu falei: “Puxa, mas esse é o meu pai?!” Pulando assim, jogando confete, com serpentina e lança, tinha lança. Eu falei: “Puxa, como é que pode ser meu pai esse cara?” E era meu pai. E a gente podia sair de noite, mas tudo tem horário, e eu respeitava essas coisas. Eu nunca fui, só depois que eu tirei carta: “Você pode ir.” E a história do cabelo é que um dia eu voltei com o cabelo cortado em um outro estilo, que na época chamava-se quadradinho, o pé do cabelo era quadrado, eu acho que era isso. Aí cheguei em casa depois do almoço, e o meu pai vem e fala para a minha mãe: “Que novidade é essa?” E aí eu ouço minha mãe falar: “Deixa o menino, ele já tem 16 anos, vai cortar fuzileiro que nem soldado? Deixa o menino, já está crescendo.” E a partir daí foi. E depois eu fiquei um cabeludo juramentado, cabeludo, cabeludo maior que o seu.
P/1 – E o seu pai?
R – Eu já tive cabelo, não parece, né? Mas eu já tive. Ganhei apelido até na faculdade por conta do cabelo.
P/1 – E qual era o seu apelido?
R – Vanusa (risos). E o pessoal me conhece como Vanusa. Se der o meu nome, indicar: “Olha, você vai e procura esse médico.” Não sabem meu nome, porque sempre foi Vanusa. Desde o primeiro dia até hoje.
P/1 – Você, quando com amigos, teve algum episódio marcante? Engraçado?
R – Engraçado teve (risos). Teve um episódio que eu e o Mário, um colega de escola que é meu amigo até hoje, o pai dele era o dono da melhor lanchonete de Campinas, que era a Torre de Pisa. Seu Vicente faleceu faz três meses, 90, quase cem. Fui na festa dele dos 80 e falei: “Vou voltar na sua festa dos 90.” Foi a festa dos 90, mas aí ele já estava esquecido. Então, eu e o Mário, a gente saía muito e aí teve um dia que a gente parou de madrugada, era madrugada, na casa de um outro amigo, que era o Mabília, que também resolveu bater asa cedo, dois anos atrás. Puta amigo, acho que o cara mais inteligente e doce que eu conheci, amigo mesmo. E ele era o filho caçula, moravam só ele e mãe, a mãe dele era brava para caramba, mas a casa deles era assim, dava para a rua não sei o que lá Bueno, lá em Campinas. E a gente, eu e o Mário, de cara cheia, de lata cheia, a gente pulava pela janela, voltava da janela, aquela puta algazarra, e ele falava: “Puxa, minha mãe vai me pegar, cara! Minha mãe vai me pegar!” E a gente dava uma, rindo, encheu a lata. É uma desgraça, ou chora ou ri. Foi gozado aquele dia. Tem outras coisas engraçadas. É que ele era muito amigo.
P/1 – E de escola?
P/2 – Que outras coisas, lembra de outra situação?
R – Engraçada? Bom, embora eu fosse novo de carta, o Seu Vicente me deu um Corcel 2, zero, fez assim: “Leve as minhas filhas para a fazenda em Minas.” E eu levei. Trouxa, né? Maria Alice, Ana Maria, Andreia, que tinha quatro anos mais ou menos, e a Eliana. Eu as levei e, trouxa, duas coisas gostosas, porque, com esse grupo, no fim, a gente montou um grupo de acampamentos. E um dos acampamentos mais legais que a gente fez, a gente acampava em Maresias, quando não tinha estrada, o pessoal fala hoje: “Puxa, Maresias!”, e não sabe nem o que era. A gente chegou lá quando ainda estava abrindo, isso em 73, estava abrindo a estrada. E eles tinham perdido a mãe, o Mário e as meninas. E justamente a dona do único bar chamava-se Alice, o nome da mãe deles. Adivinha se não ficamos no bar? Então, a gente ficava a semana inteira lá, enchendo a lata, comendo. As meninas, nenhuma cozinhava nada, nem macarrão. Então, a gente tinha que levar pão Pullman, almoço, café, almoço e janta, com alguma coisa. E eu tinha um violão, era aquela vida Woodstock: violão dia e noite e cachaça, porque a gente tomava, a gente tomava pinga mesmo. Quando não, só quando era o fim de semana, Seu Vicente levava um engradado para repor, um engradado de limão e algumas garrafas de Steinhaeger. Então, era uma caipirinha de Steinhaeger com o Seu Vicente, era uma delícia. Puxa, Maresias era maravilhoso! Acampava ali. Hoje os caras falam “pé na areia”. Pé na areia era ali, a barraca estava ali. Então, era gostoso. Puxa, como era bom! E lá na estrada de Guapé, a fazenda era em Guapé, em Minas, e Furnas, quando alagou, inundou tudo, inundou parte da coisa. Então, uma das noites mais lindas que eu vi foi lá. A gente estava acampado na beirada lá. Estavam o Mário, eu, Maria Alice, irmã dele, um doce de pessoa, é um doce até hoje – puxa, como a Maria Alice é doce! –, e um boliviano que estava estudando na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], que a gente, o nome dele era Juan Carlo, era ou é Juan Carlo, que a gente punha um nome de sacanagem nele que eu não posso falar. Mas foi uma noite fria para caramba de julho, uma noite com a lua assim, a gente na barraca, aquela fogueirinha e tal, a gente comendo alguma coisa que eu não lembro o que é que era. Então, era a gente sentado, tudo ali, aquele puta frio, uma lua assim na represa, e a gente já tinha, estava com a cara cheia também. O pessoal acha que eu não bebo porque eu sou médico. Eu bebo. Minha mãe se surpreendeu a primeira vez, ela disse: “Meu filho, Carlinhos, você bebe?” “Claro, mãe.” E não estava bêbado, a gente não estava bêbado, não, mas tinha tomado a sua caipirinha e tal. E aí, tarde da noite, o Parreiro, eu comecei a tocar um pouquinho, eu não sou um violonista, eu toco um arroz e feijão da Jovem Guarda o suficiente para ficar feliz. E aí o Parreiro começou a declamar Pablo Neruda, e eu não sei te dizer, eu não sei declamar o que ele declamou, mas eu ouço ele declamando. Sabe aquela coisa do filho olhando, perguntando para o pai: “Pai?” – padre, né? E pergunta e vê um outdoor da Coca-Cola e pergunta: “Pai, o que é isso?” E o pai diz para o filho que aquilo era alguma coisa que eles não tinham acesso pela dificuldade financeira, aquelas coisas de Pablo Neruda. E aquilo foi noite adentro, mais de uma noite. Uma noite maravilhosa, linda, linda, linda, inesquecível. Eu gostaria de encontrar esse moço de novo um dia.
P/1 – Qual era o nome dele?
R – Juan Carlo, mas nunca mais o vi. Ele se formou na Unicamp e voltou para a Bolívia. Dizem que ele se tornou um cara politicamente interessante na Bolívia, mas eu não sei quem é.
P/1 – Carlos, você, quando criança, já pensava em ser médico?
R – Nunca.
P/1 – O que você pensava em ser? Pensava em ser alguma coisa?
R – Quando eu brigava com o meu pai – eu nunca brigava com o pai, eu nunca levantei a voz para o meu pai, jamais. Nem conversar durante o almoço era permitido. Uma vez, eu fui limpar a calça do meu pai, que estava suja de branco, tomei um safanão, mas um safanão...
P/1 – Mas quando você brigava, entre aspas, com ele?
R – Aí, quando eu tomava dura do meu pai, que eu sempre odiei tomar dura, é uma coisa que eu vou no psicólogo até hoje, que eu preciso aprender a tomar dura, mas eu não aprendo, é uma coisa mais forte do que eu. Eu detesto tomar dura. E aí eu falava que nunca na vida eu iria ser nem médico nem farmacêutico. Meu pai tinha coisa boa que ele fazia, quando alguém encostava no balcão e falava: “Ele vai ser médico, Carlito?” “Ele vai ser o que ele quiser. Se ele tiver vontade de ser, ele vai ser. Se ele quiser outra coisa, ele vai ser o que ele quiser.”
P/1 – E como você chegou a essa escolha?
R – Por mim, por mim.
P/1 – Em que momento? Conta um pouco sobre isso.
R – Eu sempre tive... Como a gente ajudava o meu pai, os três filhos ajudaram. E, quando você me falou aquela coisas dos seus amigos, a história do meu pai era assim, o meu pai sempre falava: “O seu melhor amigo sou eu, os outros são só amigos, eu sou o seu melhor amigo. Tudo o que você precisar, eu estou pronto para te ajudar.” Mas eu nunca tive liberdade de chegar e falar: “Pai, o que é isso?” ou “O que eu faço?”. A primeira vez que eu fiz isso foi quando eu fui me separar. E eu dar, prestar contas para o meu pai, eles contam que, quando eu era pequeno, o primeiro tapa que eu tomei foi porque eu queria dormir no meio deles, e chegou uma noite que meu pai falou: “Vai para a sua cama, moleque!” E a partir daí eu nunca sentei na cama dos meus pais, nunca. A tal ponto que, um dia que eu fui falar com o meu pai, falei: “Pai, eu vim conversar com o senhor, eu vou me separar.” E aí ele me chamou no quarto, sentou-se na cama e falou: “Senta aí pra gente conversar.” E eu falei: “Não, não, pai, eu estou bem aqui.” “Não, senta aí pra gente conversar.” “Não, pai, estou bem assim.” E não sentei. Me desculpe, eu me desviei da pergunta.
P/1 – Não, então, eu perguntei como você escolheu ser médico, porque você disse que nunca...
R – É, então, e o meu pai assim, isso vai resultar em Colgate lá na frente. Eu sempre gostei, eu sempre gostei do fazer, do cuidar, sempre, sempre foi assim. Gosto, gosto muito da minha profissão, a única que eu acho que tem gente que fala assim: “Se eu nascesse de novo, faria tudo de novo, tudo, tudo.” Eu digo: “Eu não, aliás, eu ia mudar um monte de coisas, mas eu ia ser médico.” E, se existir de fato, eu gosto de ser católico, eu adoro ser católico, mas a minha família tem aquela, sabe aquele católico safado que tem a veia do espírita? Hoje, eu frequento um centro que eles me recomendaram. “Você precisa trabalhar e tal.” Eu vou com a maior boa vontade, mas eu nem sei o que eu estou fazendo lá, mas, se eu estou ajudando, está bom. Então, eu sempre tive essa veia do cuidar, sabe? E eu, sempre, meu pai me ensinou muitas coisas, não só na farmácia. Eu, se um dia eu ficar sem a minha profissão, poxa, eu posso fazer muita coisa, eu sei realmente fazer muita coisa e bem feita, porque ele sempre foi muito exigente. Então, eu decidi desde cedo, não por ele, por mim. Por conta de um amor de juventude, eu me desviei, aliás. Como a condição era “ou você estuda em Campinas ou termina”, eu achei, eu acho uma puta sacanagem que eu prestava os vestibulares e não ia ver o resultado, só para não sair de Campinas.
P/1 – Quem que colocava essa condição?
R – A namorada da época, e por ironia do destino...
P/1 – Isso no vestibular?
R – E, por ironia do destino, não, eu chego lá...
P/1 – Conta a história desde o começo (risos).
P/2 – É, vamos começar do começo.
R – Eu fiz o cursinho em Campinas já para as Ciências Biológicas, mas meu foco era Unicamp e eu nunca passei. Mesmo depois, estando na faculdade, eu tentei. Dois anos depois tentando passar e não passei, porque eram, aquilo era assim, era o impossível, era tudo o que eu queria na vida. Aí eu ficava realmente nervoso e não passava. E aí eu me mudei, eu me desviei desse caminho e, para poder continuar namorando essa moça, eu entrei em Biologia. Eu, na verdade, eu teria que entrar em uma faculdade. Aí eu fui prestar Letras em Itu, passei em primeiro, lógico, não porque eu era inteligente, mas porque ninguém sabia, não tinha o tempo de formação de cursinho que eu tive, ou era Engenharia ou era Medicina, dali para baixo eram assim. Não é por desmerecer, mas o preparo era diferente, como é hoje, tá certo? Se você falar “eu vou para uma outra área” é diferente. E eu sempre fui muito estudioso. Então, eu estudava, sempre fui um tremendo de um CDF – e depois você precisa escrever o que é CDF para o povo saber o que é. Aí, então, fui para Itu, prestei em Itu, passei em primeiro, pedi transferência para Biologia em Campinas e comecei a estudar. E aí o pessoal falava, foi o primeiro ano que abriu Medicina na PUC [Pontifícia Universidade Católica] de Campinas e você poderia mudar ou para Odonto ou para Medicina, inclusive. Mas eu não quis Odonto, falei: “Não, eu vou ficar aqui.” E Medicina não tinha vaga. O primeiro exame ainda, a primeira turma, e eu falei: “Não, eu vou ficar aqui.” E aí o que aconteceu foi que você vai fazendo o curso, mas aquilo é muito simples, a ponto de uma prova de Psicologia, o cara que era um professor muito legal, era um puta cara inteligente, ele, quando foi dar a prova, ele fez assim pra mim: “Ah, não, essa prova é muito fácil para você, não vai fazer essa prova, não.” E daí eu falei: “Poxa, por que eu não posso fazer?” “Não, essa é muito pouca coisa, deixa quieto.” Quando deu a metade do ano, isso para mim, eu conto isso porque é como se fosse uma luz, eu falei assim: “O que eu estou fazendo aqui?” Essa palavra “o que eu estou fazendo aqui” na minha vida é meio fatal. O dia que eu falo: “O que eu estou fazendo aqui?”... Já me separei duas vezes. Eu falei: “Não é isso que eu quero, eu vou entrar no cursinho de novo pela terceira vez, eu vou fazer seis meses e eu vou entrar!” E eu entrei em três, só não entrei na Unicamp. Essa moça que eu namorava já estudava, eu não sabia, ela era mais velha que eu e eu não sabia quanto. Só agora talvez a gente fale sobre isso, que eu fui saber que ela é dois anos mais velha do que eu. E por isso que eu tinha que entrar na faculdade, porque ela já estava. Então, eu sei que ela teve uma Intermed, que era uma competição das dez faculdades de Medicina, que foi aqui em Campinas, e uma noite eu deixei ela na casa dela, fui dar uma volta na torre e o pessoal de Santos estava lá. E ela odiava o pessoal de Santos porque eram os caras mais bocas sujas, eram os caras mais metidos, mais metidos, não, porque os mais metidos sempre foram da USP [Universidade de São Paulo]. Os mais metidos sempre foram da USP, Paulista, Santa Casa, USP sempre foi, como se aquilo fosse, e ainda fosse a fina flor – um dos piores hospitais em que eu já fui, um dos piores onde eu levei pessoas para serem mais mal atendidas na minha vida, onde eu vi mais estudante largado, essa história que você tem que aprender por si próprio, esquece, né? Você precisa de professor capaz, atencioso, inteligente, que te dirija, que saiba te guiar. O livro está aí, essa história que você pega o livro e aprende, isso não é ensinar, me desculpa. Meu pai me ensinou muita coisa. Eu adorei aquilo lá porque os caras estavam em uma puta batucada, um puta de um samba, tinha o Dudu, que eu vou encontrar com ele daqui a algum tempo. Ele fazia assim, lá na papeleira, como se estivesse jogando confete e serpentina no povo. Puxa, é nesse lugar que eu quero estudar, nessa faculdade. Eu não sabia onde era, eu quero entrar nessa faculdade. Por ironia do destino, aquilo era Santos, e eu passei em Santos e fui para lá. Melhor época de minha vida.
P/1 – Acabou o namoro.
R – Não por isso, por interferência familiar, não é porque a...
P/1 – Mas você ia falar, desculpe, pode continuar.
R – É por interferência familiar dela, uma história difícil.
P/1 – Quando você entrou na faculdade, você lembra desse dia?
P/2 – Qual foi a sensação?
R – Puxa, era um sonho.
P/1 – Conta de quando você, antes, que você estava na expectativa...
R – Então, teve uma viagem que a gente foi prestar exame em Taubaté, meu pai tinha um Dodge Dart vermelho, lindo. E aí nós fomos, um, dois, três, quatro, cinco prestar exame lá com esse carro. E aí a gente, e eu passei. Dos cinco, só eu passei, e isso foi um lance legal, que eu cheguei de noite em casa, o carro foi em um alegria e voltou em uma tristeza. Só eu feliz. Comprei um chapéu, eu estava, não cabia. Eu sei que cheguei lá, parei aquele Dodgejão na porta da farmácia, o meu pai estava atendendo uma senhora e eu de chapeuzinho, esse cabelo assim já. Aí desci e falei assim: “Pois é, pai, eu vou ser médico!” Poxa, foi uma alegria tão grande para ele. Eu acho que foi uma... É um negócio indescritível. Eu digo sempre assim para as pessoas: “Mas você é médico?” Ser médico não é nada. Essa história de “você é médico”, alguns se acham, muitos se acham – tem duas categorias de profissional que se acham: uma que se acha Deus e a outra também, mas que se acha mais poderoso. Posso te dizer porque eu trabalhei na TAM cinco anos, na época do Comandante Rolim, são os pilotos, porque eles se acham como acima deles se existe Deus ninguém viu. Então, eles são porque eles fazem aquela máquina voar, aquilo voa graças a eles, eles são poderosos pra caramba. Abaixo deles, aí sim os médicos, que também se acham porque os outros, a gente é que dá o choque ou tira o choque. Que bobagem. A gente não é nada, nada, realmente a gente não é nada. Demora para aprender que não é nada, mas aprende. É uma profissão legal, é uma profissão legal, difícil de chegar, difícil de conquistar, difícil para terminar, difícil para levar. É aquilo que está passando na televisão, é ruim mesmo. Ser médico no Einstein é fácil. Ser chef de cozinha lá no Masterchef é fácil, você tem lá um puta de um supermercado que você faz o prato e fica maravilhoso. Chef de cozinha para mim era a minha a vó, que, com uma omelete, tinha que ser criativa, uma omelete para sustentar nove filhos, isso é ser criativo, isso é ser um Masterchef: você administrar uma casa pobre e ainda dar de comer para os filhos, de comer e de beber, ter o cafezinho no fogão, ter um ovo frito carinhosamente para um filho que chega à noite. Isso é Masterchef, não aquela bobagem. Aquilo é merreca, aquilo é igual a ser médico no Einstein: é muito fácil, porque você manda e tem. Vai ser médico na periferia? Eu já fui, no Einstein e na periferia. Então, eu acho que, só para fechar essa coisa de ser médico, eu acho que é legal e eu não me arrependo, não. Só não é o suprassumo como as pessoas acham e principalmente como os médicos se acham. Isso aqui é tão... Isso aqui não é nada. Isso talvez seja por uma questão de crença pessoal minha, e não discuti, mas eu argumentei em um jantar uns dias atrás com um cara, estava um casal, que foi quem, esse de a pessoa que vendeu a casa para mim, onde eu moro hoje, um dia tornou-se meu paciente e hoje eu sou amigo dele. E tinha um amigo dele aqui, um casal de amigos, e eles contando que um dia fulano foi tratado no Einstein. A conta, putz, sabe quanto ficou a conta? Cento e oitenta paus. Ele fez assim para mim, eu falei: “Cara, posso te falar uma coisa? Você não acha que a gente gosta disso? Eu acho isso uma puta sacanagem, você me desculpa, eu acho uma puta sacanagem.” Eu falei: “Você veja como a gente é um pessoa privilegiada, a gente mora em um país desigual, desumano.” E tem uma outra palavra também que eu acho que o Brasil é injusto, injusto com as pessoas. Então, eu acho que a gente mora em um país como esse e, apesar dos pesares, é um bom lugar. Então, a gente nasceu brasileiro, nós somos brancos, nós somos loiros de olho azul, loiro de olho verde, eu acho que a gente nasceu, eu particularmente nasci em uma boa família, eu tive a graça de nascer aqui, eu tive a graça de nascer em uma boa família, eu tive a graça de ter uma profissão como esta. Eu não preciso disso, de ganhar esses 180 mil reais. Eu, tirar isso de alguém, eu falei: “Você me desculpa, eu acho isso um crime, acho isso um crime.” E aí acabou a conversa.
P/1 – Carlos, eu te cortei, mas eu queria voltar um pouco mesmo à sua sensação de ter, depois de tanta batalha, entrado em Medicina. Aí você conta que, quando soube do resultado, você chegou para seu pai com aquele carro, mas, quando você vu o resultado, você lembra da sua reação?
R – Ah, foi. Bom, Deus é bom para mim mais do que vocês possam imaginar, porque eu falei: “Eu vou entrar!”, prestei os exames, fui no cursinho, que chamava-se União de Cursos, depois passou a ser Objetivo ali na General Osório, em Campinas, onde é agora, em Campinas. E eu olhei a lista, eu sempre estava nos simulados, eu era o primeiro ou era o segundo, eu nunca saí dessa classificação, eu sei lá por quê. Não porque eu era o melhor, não, porque era coincidência, acontecia, sorte. Aí eu sei que eu fui lá, tinha um menino porteiro chamado Josafá, a mãe dele ela freguesa, cliente, não sei como se chama, do meu pai. Era uma cliente do meu pai, magrinha, bem miúda, o pai dele um caminhoneiro, transportava combustível, um japonês. E eu sei que o Josafá trabalhava de porteiro no União de Cursos, e eu fui lá, olhei a lista, olhei, olhei, olhei a lista de Santos. Eu já tinha entrado em Taubaté, mas olhei a lista de Santos, olho, olho, olho, olho. “E aí, Josafá, tudo bom?” Ele falou assim: “Tudo bom?” Eu falei: “Tudo bom.” “E aí, entrou?” Eu falei: “Puxa, não entrei, vou para Taubaté. Puxa, não entrei, eu vou para Taubaté.” “Ah, está bom, ainda tem outros por sair, né?” Eu falei: “Tem.” Aí cheguei em casa, toca o telefone, ligando do cursinho: “Olha, é o seguinte, nós estamos ligando porque o senhor entrou na faculdade.” Falei: “Não, não entrei, é outro Carlos, não sou eu, porque tem um Carlos Alberto Viana, tem um Carlos Alberto Correia, tem um Carlos Alberto Viana, né?” Falei “Não, eu não entrei.” “Entrou, o seu nome está na lista!” Eu falei: “Não está!” “Como não está? Venha aqui ver de novo.” Não tinha celular com o “zap”. Fui lá. Não é que estava e eu não vi? Eu ia perder, faltavam só dois dias para terminar o prazo de inscrição, tinha um dia e mais um. Aí voltei, falei com o meu pai, falei: “Pai, entrei em Santos, assim, assim, assado.” E ele falou: “Vai lá, se inscreve também.” Aí fui lá, eu me lembro de que eu estava preenchendo a ficha na secretaria, e a moça falou assim: “Já sei o apelido que vão te pôr.” E falei: “Qual é?” Ela falou assim: “Risonho.” E eu falei: “Por quê?” Ela falou: “Porque você não para de sorrir.” E aí, bom, primeiro dia de faculdade, primeiro dia de trote – eu fui presidente de comissão de trote durante três anos. O trote de Santos é um trote bom, eu adorava trote, adoro trote. Quem começa a falar: “Ah, mas o trote...” “Putz, você, então, o trote é ruim, mas o trote é legal, não é malvadeza, não é judiar, é outra coisa.” A gente tinha uma atividade filantrópica que era muito legal. Aí entrei lá, os caras pintam cabelo. “Vamos arrumar um nome para você!” Pinta cabelo e tal, e aí: “Bom, você está cabeludo, loirinho, então, seu nome vai ser Vanusa.” E aí o Miguel, que já foi também, o Miguel Tonel, que era um bom pediatra, um puta cara legal o Tonel – imagina por que Tonel, né? –, e ele fez assim: “Mas Vanusa é muito pouco, hein? Precisamos sacanear de alguma forma, então, você vai se chamar Vanusa Esmegma.” Eu falei: “Está bom”, mas ficou só Vanusa, felizmente. Foi a primeira semana de trote, quarta-feira teve a gincana, e na gincana foi a primeira vez que eu vi, literalmente tive contato com droga em Santos, porque a prova era arrumar um papagaio que falasse, e eu estava correndo pela cidade e chegou um garotinho, um garoto mais novo que eu, e falou assim, eu falei: “Cara, você sabe quem tem um papagaio?” Ele falou: “Cara, eu não sei quem tem um papagaio, mas eu tenho isso aqui para você se você quiser.” Aí eu olhei e falei: “Não, cara, obrigado, não quero, quero não.” E continuei. E aí teve uma prova nessa gincana, uma das provas da gincana que era fantasia, tinha uma atividade assim, fantasia. O dia vai ser curto. Tinha uma atividade assim para fantasia, e a gente não arrumou fantasia, meu grupo. Aí eu pedi para um mecânico, que eles tinham uma caminhonete, e eu pedi para um mecânico: “Empresta um macacão para mim?” E eu me vesti de mecânico, o chapeuzinho para trás, graxa no rosto e levei um pneu comigo, da caminhonete da faculdade. Bom, sobe na mesa para desfilar, sobe na mesa, sobe na mesa, e aí tinha um cara baiano franzino, que eu nunca pus fé naquele cara, chamado Juraci Alves Neves que, ao longo dos anos, tornou-se o meu melhor amigo lá, e que também – chato eu falar –, mas também ele foi. Ele foi embora o Jura, que eu acho que era também um dos melhores médicos que eu já conheci, médicos, sabe o que é médico, né? Médico, médico é o cara que resolve o seu problema onde não tem nada. Fazer robótica no Einstein, e é caro, não é fácil, é caro e é bom, não estou dizendo que é isso, mas é que é fácil. Duro você falar assim: “Onde você vai, Jura?” “Eu vou aprender a fazer parto, vou aprender fazer ultrassom”, que estava engatinhando ainda naquela época, 81 para 82. “E eu vou voltar para a minha terra, vou ser médico na minha terra.” E ficou rico, rico na terra dele.
P/2 – Era onde?
R – Candiba e Caetité, ele atendia nessas duas localidades, Doutor Juraci Alves Neves. Eu sei que Doutor Juraci sobe na mesa do anfiteatro, todo mundo lá, veterano, todo mundo, eu subo na mesa de um lado vestido de mecânico e ele sobe na mesa do outro lado, vestido de Carmen Miranda (risos). A gente tinha que fazer alguma coisa para poder ganhar o primeiro lugar. Eu sei que tanto eu como ele, a gente fez tanta palhaçada em cima da mesa... Eu fazia como um palhaço, eu derrubava o pneu, eu ia catar, eu chutava o pneu, sabe aquelas coisas assim de circo, circo pobre, né? Não é o que está vindo aí em setembro. Circo, circo, né? Eu sei que os caras deram o prêmio para nós dois. “Vocês dois ganharam em primeiro lugar e ponto final.” Me tornei um puta amigo desse cara, que eu não dei nada no trote. “Esse cara não vai dar nada na vida.” Foi o meu melhor amigo na faculdade, me acolhia. Ele se casou cedo, então, me levava. “Vamos estudar juntos!” Almoçava, jantava na casa dele, tudo. Puta cara legal. Aí começou a faculdade, na sexta-feira teve, tinha uma carreata, que você angariava fundos para a casa Gota de Leite. Por isso que Santos era legal. Então, a gente saía, tudo pintado, tudo ferrado, e antes de sair os caras falaram: “Vamos cortar o seu cabelo.” Eu falei: “Não vai, não.” “Vamos sim.” “Não vai porque eu já fui calouro uma vez, eu não sou mais.” “Você foi lá, aqui você é.” Conclusão: rasparam a minha cabeça, fiquei puto da vida, pela segunda vez. E aí começou a faculdade, faculdade de Medicina é um pega pra capar, você não pode tomar pau em nada. Foi lá que eu descobri que eu era daltônico.
P/2 – Até então você não sabia?
R – Não.
P/2 – Sério mesmo?
R – Juro, eu quase tomei pau. Tinha uma matéria que, se você tomasse pau, você perdia um ano. E quase eu perdi. Que era uma prova de Física ou Química e você tinha que fazer uma experiência de uma titulação, chama “ponto de viragem” isso aí. Tem um ácido, tem uma base, quando chega e neutraliza aqueles dois, aquilo fica rosa. Quando eu enxerguei o rosa, não enxergo rosa até hoje, eu nunca vou enxergar na vida, nem pondo aquele óculos novo. E eu precisava de 4,25 para passar, ela era pré-requisito para fisiologia e a titulação valia sete, o resultado um, a equação dois. Era a maior equação. Eu fiz por duas vezes a titulação e eu disse: “Puxa, meu Deus, muito obrigado, hoje eu acertei! Puxa, que legal, muito obrigado!” O cara pediu para entregar a prova, eu consegui fazer a titulação, consegui passar o resultado, e eu fui para a república tão contente, sabe? Falei: “Puxa, passei!” À tarde saiu o resultado. Bom, eu acertei a equação, tirei dois, e o resultado, tirei dois. A titulação valia sete, eu errei tanto, mas tanto, de assim... Não é gota, eu errei copo de água, entendeu? Porque eu tirei dois e meio e eu passei por 0,25 só ali, assim na raspa, achando que eu tinha tirado uns oito. Se não fosse aquele 0,5...
P/1 – Carlos, você morou em república lá?
R – Morei, morei em uma república, adorava minha república. Era uma república de quatro caras: o japonês Tadashi, o Otto, chamado Feijão, que é de São José dos Campos, um pediatra muito bom, um amor de pessoa, um amor de pessoa, o cara mais adorado daquela faculdade – tem história dele na faculdade, o cara é histórico –, morava no mesmo quarto, eu rachava o quarto com o Roberto Cerebelo, que também tem um porquê de ser Cerebelo. Porque a república, para a gente baratear, a gente rachava o almoço e o jantar. Ao todo eram dez homens, e Dona Vivi, que era uma pretinha deste tamanho, ela não tinha um metro e meio, ela não tinha filhos, a gente, nós somos os filhos dela. Um dia, que eu conheci Dona Vivi, ela fez, depois de algum tempo na república, ela fez assim para mim: “Meu filho” – e aí o Feijão, tirando um sarro, fez assim: “Vai sei campineiro.” E ela fez assim séria, ela fez assim: “Oh, meu filho, você é de Campinas, é?” Eu falei: “Sou, Dona Vivi, sou de lá.” E ela falou assim, negra como tua blusa, e ela falou assim: “O povo da sua cidade judiou muito do meu povo, né?” E eu fiquei olhando para ela sem entender na hora, depois que eu fui ver, eu falei assim: “Claro, né?” Se isso foi em 1976, fazia 80 e poucos anos que tinha sido, que a Princesa Isabel foi lá e assinou a Lei Áurea. Então, ela seguramente era filha ou neta de algum escravo. Foi aí que eu entendi o porquê. Me adorava, no fim, me adorava.
P/1 – Carlos, teve algum acontecimento nessa república que você lembra até hoje, engraçado?
R – Puxa, a melhor coisa é vida de república. Todo mundo acho que devia sair de casa um dia e ir estudar em uma república. Você ia ver o que é bom. Comer ovo, realmente, ovo e salsicha. Nós temos em Santos uma música que é a que o João Bosco canta, que é aquela da marmelada, só que a gente fez uma apologia à faculdade e a gente tem um versinho que fala assim: “Seis anos, seis anos de república, muito ovo e salsicha...” É isso mesmo. A república era um paraíso, um paraíso, eu adorava aquilo lá. Foi o primeiro aniversário que eu tive na vida em escola, porque eu nasci em 31 de janeiro, então, em janeiro nunca comemoraram o meu aniversário em escola. “Poxa, ninguém comemora o meu aniversário na escola, né?” E aí os caras fizeram o meu primeiro aniversário. Foi uma puta festa e a república era um lixo porque ela era naqueles predinhos de Santos, na José Antônio Coelho, 600 e alguma coisa ou cento e alguma coisa. Era o último apartamento mais mofado lá no fundo, mas aquilo era um paraíso. Imagina os vizinhos? Aquilo comeu solto a noite inteira, aquele aniversário. Foi muito legal, muito legal.
P/2 – Por que, como foi? Conta um pouco do aniversário.
R – Ah, puxa, você sabe. Aquilo... Porque aí um aniversário em república vira o ponto de encontro. Tinha gente de todos os anos, todas as classes. Foi assim: cerveja, cachaça, pouca cerveja, muita cachaça, pouca, alguma comida, muita conversa. Mas não tinha sacanagem, não tem nenhum maconheiro na minha turma, para você ter ideia, nenhum. E aí a gente tomava, a gente bebia, jogava truco, eram aquelas coisas assim que, para estudante, são uma alegria. Isso é que é, isso que é uma alegria, a vida. Acho que você não leva nada assim, realmente não leva nada. “Leva saudade.” Eu não vou levar saudade porque eu vivi bem. Se você fala: “Você tem saudade?” Saudade não, porque eu vivi tudo o que eu tinha direito. Então, eu fui chefe de torcida da faculdade, fui eu que fiz a maior bandeira da faculdade, pedindo dinheiro para fazer a maior bandeira. O símbolo das faculdades de Medicina é sempre algo, é sempre uma caveira. Santa Casa é uma freira caveira, né? Paulista é a fina flor da medicina, é um cara fumando uma piteira com uma cartola. A minha em Santos o que é? Um pirata, é um pirata com um bisturi assim. Eu adoro o Pérola Negra, não perco um filme dele, só de lembrar da minha faculdade. Então, era um pirata, e eu fiz aquele pirata enorme, e o Tadashi, que era bom de desenho, fez um pirata. Não um pirata legal, não. Ele fez um pirata satânico, com aquele olhar assim, sabe? Tenho o desenho até hoje, devia ter trazido, aquele olhar satânico e tal. Uma bandeira de sete, dez metros de altura. Ficou linda a minha bandeira. Não era minha, era do pessoal todo, mas fui eu que fiz. Fui assistente no departamento assistencial, depois fui diretor do departamento assistencial, fui secretário do diretório. Era para ser a escada, era para eu ser presidente do diretório, mas, por interferência de algumas, basicamente de uma pessoa que era o relações públicas da faculdade, a gente chegou a correr da polícia. Naquela época, 70 e poucos, correr da polícia algumas vezes porque a gente fez greves importantes. Na casa do deputado Atieu, um dia, a gente foi fazer uma reunião e tinha um tremendo camburão na porta. Corremos pra caramba aquele dia, de medo.
P/1 – Você participava do movimento estudantil, Carlos?
R – Eu sempre fui cabeça de greve. Eu tenho essa cara de bobo, mas eu sempre fui um cara bastante ativo. Então, eu fui ativo nessa greve, na outra greve da faculdade menos, mas nessa eu fui. Então, por interferência desse cara, que era um cara que tinha, com quem eu tinha muita amizade, Ademar, Ademar Francisco, ele me pediu: “Não seja, já chega de estresse, não dá mais, a coisa está feia, não seja.” E aí, quando eu falei para todo mundo que eu não ia ser o candidato, eles falaram: “Pô, como não vai ser o candidato, a chapa está pronta, está todo mundo te esperando.” Eu falei: “Pois é, mas eu não vou ser.” Foi um banho de agua fria.
P/1 – E do movimento estudantil tem algum episódio? Não precisa ser engraçado, mas que foi marcante.
R – Tem. O pior, porque eu era o secretário do diretório, isso foi realmente marcante na minha vida, porque eu era o secretário do diretório, nós tínhamos uma greve que durou 63 dias em Santos e a gente foi ao fórum da cidade. Nós tínhamos, a gente tinha assembleia todos os dias e tinha que manter o povo lá, tirar o povo da praia, tirar o povo do chope e “vamos para lá”. Tirar o CDF da biblioteca e “vamos para lá”. E não é fácil, nunca é fácil. O povo nunca é fácil, o povo reclama, mas não faz nada, nunca fez. Nem aqui no Heliópolis, quando eu batalhei também aqui no Heliópolis uma greve de 30 dias, os caras querem saber de operar, cada um pensa em si próprio, não pensa na coisa “o que nós estamos buscando?”. Eu nunca fui vermelho, não, eu sempre defendi o que foi honesto. Eu não sou petista, não tenho nada contra, acho que nenhum deles vale a pena, que ao longo da vida me demostraram que não valem a pena. Grandes amores com política não valem a pena. Você tem que acreditar no que você acredita e não acreditar no que você acredita que é bom para você. Você tem que acreditar no que é bom para todo mundo. Se é bom para todo mundo, é bom para você, se é bom para você só, então, não é bom. Então, eu fui sim, e teve uma reunião no sexagésimo terceiro dia que, no final do dia, a gente foi no fórum de lá, de Santos, tinham alguns, tinham dois pais de alunos lá, dois pais de alunos e mais o juiz. Inesquecível o nome daquele juiz, porque ele fez assim: estava o Toninho, o Zé, que era o presidente, vice-presidente estava o Urtiga, o José Dias Martins, dermatologista em Itanhaém hoje, um puta cara legal, estavam os três. Um é cirurgião plástico, um é dermato e o Toninho é o GO, obstetra, ginecologia e obstetrícia, hoje. E nós quatro entramos naquela sala, e o doutor, posso falar o nome, o Doutor T, nunca vou esquecer o seu nome, ele fez assim: “Então, gente, vamos terminar essa greve hoje, vamos terminar essa greve hoje, nós já resolvemos que vocês vão terminar a greve hoje, está resolvido.” “Mas como o senhor resolveu?” “Está resolvido, a greve termina hoje, tá bom? Vocês têm que pensar que homem tem que ser igual a bambu que verga mas não quebra.” E na minha vida o que eu aprendi com o meu pai foi: é melhor quebrar, mas acredite, defenda o seu princípio. Essa história que a gente, você tem que ser flexível, então, você não acredita no que você pensa. Foi o que eu aprendi com o meu pai. E, quando, e eu nunca que vou esquecer essa frase: “Você verga, mas não quebra. Acabou a greve hoje, vocês voltam e comunicam todo mundo.” Aquilo foi o inferno, o inferno, a grande decepção. A gente tem decepções na vida, tem alegrias e tem decepções. Esta foi marcante na minha vida de estudante e como pessoa, como homem, como ser humano. Não foi fácil virar para 500 caras e falar: “A greve termina hoje.” “E por que terminou? Como terminou?” “Terminou, terminou porque teve um acordo entre pais e a fundação e acabou hoje.” Puta merda, esse juiz há de pagar caro um dia.
P/1 – Qual era o nome dele? Pode falar...
R – Tremura.
P/1 – Carlos, vamos entrar agora na sua vida profissional, você como médico.
P/2 – Como foi o seu primeiro trabalho? Qual foi? Como você começou na vida profissional como médico?
R – A gente começa cedo, a gente começa cedo porque... Eu fiz dois projetos Rondon, um na Bahia e um no Vale do Ribeira. E esse no da Bahia, a gente acordava de manhã, era o médico, quartanista e já era médico. Então, quando eu te falo, quando eu digo para você que a gente tem que ter quem ensina, é claro que eu levei meu violão e meus livros, alguns livros, mas, na hora que eu tinha dúvida do que eu tinha que atender, para quem você acha que eu ligava? Para o professor? (risos) Ligava para o meu pai. “Pai, estou aqui.” Escrevia para os meus pais direto, ia no orelhão e falava: “Pai, tem uma pessoa que está assim, assim, assim, assado, está se queixando disso, disso e disso, eu acho que é isso, o que o senhor daria para isso?” Eu cuidei de muita gente, muita gente, muita gente mesmo. E depois eu fui para o Vale do Ribeira, a gente ficou 40 dias lá no Vale do Ribeira. Um outro período, no quinto ano para o sexto ano, fomos no Vale do Ribeira e aí depois eu comecei a vida, comecei trabalhando na Praia Grande, no quinto ano. Também já era médico no quinto ano, as pessoas me viam, veem a gente assim. Você está lá de branco, você é o médico. E a gente trabalhou e trabalhou legal, viu? Era um plantão legal, aprendi bastante, aprendi bastante mesmo. E trabalhei dois anos, não, um ano na Praia Grande. Depois que me formei, voltei a trabalhar lá, era um lugar gostoso de trabalhar. Na Praia Grande tem (risos) um episódio engraçado, posso contar? Naquela época, a gente tinha uma novela, lembram do Bem Amado, né? Que o Odorico Paraguaçu ia inaugurar o cemitério, né, gente? Teve um, tinha um político naquela cidade, não vou falar o nome, mas tinha um político, que ele precisava inaugurar aquele cemitério e não morria ninguém. Morria, mas o povo ia para Santos para ser enterrado em Santos ou em São Vicente, ninguém queria ser enterrado lá. E, como todo político, eles têm algumas regalias. Então, alguém da enfermagem ia lá cuidar da velhinha que era a mãe dele. Um dia, a velha morreu, mas o muro, mas precisava carpir ainda o campo santo, só ser carpido e as paredes pintadas. Ah, mas não tiveram dúvida. Embalsamaram a velha e foram lá, pintaram a fachada do cemitério, carpiram aquilo do dia para noite, e “vamos inaugurar esse cemitério aqui!” (risos). Aí teve outra passagem, essa passagem é até capaz de ser preso. Pelas duas é capaz de ser preso, né? Mas tinha uma campanha de vacinação antirrábica, agosto, e tinha uma enfermeira. Não, ela não era enfermeira, ela era a moça da cozinha, muito boa, mas ela tomava, sabe? E, naquela época, na Praia Grande, as coisas eram esterilizadas em uma panela, as seringas, e tinha dado um pau, porque uma mulher levou um poodle para vacinar e falou: “Como que vai usar essa coisa? Não é descartável?” “Não, aqui não é.” “Não, mas eu exijo que seja descartável, é o meu cachorro, descartável, como não é?” Eu sei que, para o cachorro dela, foi descartável. Aí o que pegava, fervia tudo aquilo de novo (risos). Só que essa moça, que era servente, estavam as duas panelas no fogo, fervendo a seringada toda. Puxa, e ela confundiu. Qual era a dos cachorros e qual era a das pessoas? É, o cão, né? É o fim do mundo, e eu me lembro que a gente falou: “Mas, fulana, e agora? Como? Quem que é de quem agora?” “Ah, não sei, doutor, eu não sei mais. Esse negócio, essa cachorrada, esse monte de gente, eu já não sei mais quem que é de quem aqui!” Puxa, você imagina nos dias de hoje uma coisa dessa? Cana, né? Sai no Datena. Foi, mas era um, mas era legal, sabe? Ninguém morreu, ninguém teve nada, aprendi muito.
P/1 – Quando você fala que aprendeu, você se lembra de uma situação que você falou “nossa!”, que você aprendeu com aquela situação? Você aprende muito, mas uma que se destaca, que você lembre bastante? De uma situação que você teve que atender e que aconteceu alguma coisa assim ou mais inusitada?
R – Quando eu falo para você que médico se acha é porque é assim: eu entendo que a vida é assim, a vida é a coisa mais frágil que a gente tem. No centro espírita, você ouve que aquilo é um lampejo de luz, é um nada, é uma fagulha de luz, e, por uma bondade de Deus, uma bondade divina, uma centelha divina, essa é a palavra, a vida é uma centelha divina. Foi o que eu ouvi uma vez em um trabalho e nunca mais esqueci. E é verdade. É algo extremamente frágil, do qual você não tem controle nenhum. Então, quando alguém se acha, eu sempre penso nisso, eu falo: “Porque você...” Muitas foram as oportunidades em que estava tudo certo e o paciente foi embora, assim como teve casos de você falar: “Puxa, essa já foi embora. Esse está fechado o diagnóstico, fechado o prognóstico, fechado.” E, das cinzas, a centelha brilhava de novo. Muitas vezes teve isso, né? Eu posso te dizer que o que eu mais aprendi na vida foi a grandeza de Deus, e o quanto eu sou privilegiado. Eu sou um cirurgião, e, por obra assim, por obra realmente divina, acontece de você levantar a cabeça, um anestesista saiu da sala e a paciente estar morrendo. Isso aconteceu comigo, não foi fácil, não. Foram 15 dias de coma, e eu fiquei lá dia e noite, e a paciente saiu bem, bem mesmo. E eu já tive situações em que você está trabalhando assim e, de repente, em uma ocasião que eu fui olhar a minha luva, estava cortada assim, e você trabalhando. Puxa, é tanta coisa, sabe? Por mais cuidadoso que você seja é tanta coisa ali assim, que você fala: “Puxa, minha luva e agora, hein?” E aí, no movimento seguinte, quando você faz assim, parece que uma mão fez assim: “Está aqui, olha, está aqui o que você está procurando, está aqui.” Estava assim nos meus olhos, sabe? Isso é uma bondade, isso é realmente uma bondade. Então, eu aprendi, eu aprendi sim. Eu aprendi com com dedicação. Eu gosto, eu sou um cirurgião, mas eu gosto muito de clínica médica, então, eu acho que isso eu herdei do meu pai, de aprender a cuidar e tratar das pessoas. Eu não sou um suprassumo, eu sou um médico mediano, mas eu gosto do que faço. E não sou um franciscano, mas eu acho que não viemos aqui para ganhar dinheiro, está longe disso, né? Não é para isso que a gente veio. Uma vez, eu fui em uma homeopata que ela falou, a gente conversando sobre as coisas, ela falou: “Carlos, entenda que ser médico não é uma escolha sua, isso é uma decisão divina. Você foi um cara, nós fomos escolhidos porque temos alguma coisa por saldar e não por ganhar, né?” E eu acredito nisso. Então, aprendi sim, aprendi muita coisa boa, aprendi muita coisa ruim, de muita coisa ruim, ruim, ruim assim de você falar: “Isso é mais que um pecado, isso é prisão”.
P/1 – E coisa boa, uma situação que você lembra e que te deixou muito feliz, que te deu muita satisfação?
R – Do passado ou de hoje?
P/1 – Dentro da sua trajetória. Faz tempo, né? Pode ter acontecido muita coisa boa, mas uma que você lembra.
R – Olha, teve muita coisa. Hoje eu faço reconstrução de mama, mas faço plástica de mama, reconstrução estética também. Mas o maior assim, sabe o que me deixa mais contente? É a pessoa, uma mulher, por exemplo, é você ver que, assim, não é criador e criatura, é você poder auxiliar com que ela esteja reconstituída uma parte tão importante dela, entende? Muito importante, não é? E reconstituição de mama dá trabalho, paga pouco, é dispendioso. Câncer de mama é muita lágrima, né? Mas vale a pena. Então, isso foi uma das coisas que me deixaram, que me deixam feliz. Outra coisa que me deixa feliz foi ter participado da Operação Sorriso. Talvez eu ainda volte a participar um dia, que são as cirurgias, via Colgate, através da Colgate, eu os conheci e participei durante 11 anos, anualmente, indo em uma ou duas missões. Só teve uma que foi em Belo Horizonte, e as outras todas foram no Nordeste, onde realmente você, o que eu estou te falando, sabe? Você, de manhã cedo, você dá alta para o seu paciente em um Santa Catarina, em um São Luiz, em um Einstein, não é? Aí você toma um avião, desce em uma cidadezinha, e ali você vê o que é a vida, aquelas mães implorando para resolver o problema do filho. Aquilo realmente é, aquilo é a vida, aquilo é a verdade da vida. Então, você poder auxiliar alguém é ser visto com olhar diferente, ser visto como um ser humano, não ser tratado como um lixo, como um excluso, entendeu? Isso vale a vida, isso vale, isso vale ser médico. Então, isso é legal. A Operação Sorriso, poxa, foi um presente divino, sabe? Teve uma delas que acaba... Começa em lágrima e termina em lágrima toda a operação, porque em média é uma semana em que você começa a operar sete horas da manhã e não tem hora para acabar. Em Fortaleza, por exemplo, a gente operava cem crianças em média em uma semana, é uma operação de guerra, e o duro era chegar na sexta-feira e você ter que falar com uma mãe com um filho com o nariz escorrendo, não pode operar, não dá para o esperar seu filho, quem sabe no ano que vem. É mais um ano de sofrimento, entendeu? É mais um ano de espera de luta de dor para ela, para a família, para o filho. E isso era difícil, acaba em lágrimas, não tem jeito.
P/1 – E o que acabava em sorriso? Você lembra de uma história?
R – Lembro. Lembro. Várias acabaram em sorriso.
P/1 – Que te chamou a atenção?
R – Várias acabaram em sorriso. Em uma delas, teve uma garotinha, isso tornou-se até um caso dentro da Operação Sorriso. Era uma mocinha, dez, 12 anos. Era uma menininha assim, cabelo comprido como a maioria deles, descalça, humilde, aquele vestidinho bem simples. E ela com medo, aquela lágrima grossa de quem não tem o que chorar mais, acabou. Aquela lágrima dura descendo assim. E aí eu sei que ela chegou, entrou na sala de cirurgia, ela estava sentada assim na mesa já para começar a anestesiar. Aí eu falei para ela assim: “Não chora, não.” Eu falei: “Não chora, não. Você está com medo, né?” Eu falei: “Não tenha medo, não, não chora não, porque você vai dormir, e a hora que você acordar, você vai poder passar um batom na sua boca.” Na hora, ela parou de chorar, ela abriu os olhos assim para mim e ela ficou me olhando assim. Acho que aquele desejo eterno. E aí ela dormiu em paz, e hoje usa batom (risos). Então, isso é de uma alegria assim, sabe? É assim, é uma maravilha, é um negócio maravilhoso. Isso foi uma grande alegria, os partos são alegrias. As mortes são as tristezas, não é?
P/2 – Mas você faz parto também?
R – Eu trabalhei nove anos na prefeitura, no São Luís Gonzaga, e eu era o parteiro do dia, embora eu fosse o cirurgião.
P/2 – Deixa eu só pedir, quer enxugar um pouco...
R – Os olhos?
P/2 – Os olhos, está aí, olha, uma caixinha.
P/1 – E, Carlos, você é cirurgião?
R – Plástico. O que eu faço...
P/1 – Mas você chegou a cirurgião plástico, você...
R – É o que eu faço na Colgate, é isso? (risos)
P/1 – Você foi um cirurgião e foi caminhando para ser um cirurgião plástico, né?
R – É, você antes é um cirurgião geral e depois vai para a plástica. Eu ia ser plástico não...
P/2 – Só deixa o seu papelzinho aí, por favor.
R – Deixo. Eu não queria ser plástico, não. Eu queria ser um cirurgião de tórax, eu queria ser um Zerbini na vida, eu queria ser um cara importante. Não ser um cara, eu queria ser um, todo mundo quer ser, não adianta. Você não quer ser o porteiro do centro espírita, você quer ser o Chico Xavier, não é? E, é claro, você se espelha no cara, você quer ser o cara, e eu queria ser sim, porque na minha família todo mundo enfarta, então, eu queria ser um cirurgião cardíaco. Mas, por obra do Zeca, que é um cara que eu conheço, que é um cara que é meu amigo, na hora da decisão, você faz o primeiro e o segundo ano de cirurgia geral e depois vai para a plástica, faz mais dois, naquela época dois, hoje são três anos. Aí o Zé falou: “Meu, vamos para a plástica, lá é legal, larga esses caras tudo carrancudos, mal-humorados, só dão dura. Vamos lá. Lá é um ambiente gostoso, vamos lá, vocês vão gostar.” Aí ele levou eu e o Nelson, a gente prestou e passou, e lá a gente ficou. Então, eu sou um plástico meio assim, não muito plástico. É o que eu te falei, eu aprendi que a doçura não está na plástica, sabe? Minha filha fala: “Pai, você não sabe, mas você ajuda muitas pessoas. Eu era uma até fazer a minha cirurgia de mama, hoje eu sou outra. Você tem que entender isso, que você ajuda de alguma maneira.” Mas eu não me sinto ajudando, eu acho que, eu acho que, assim, tem coisas mais importantes, sabe? Faço poucas cirurgias de rugas por exemplo, por quê? Porque eu vejo uma mulher bonita, eu não vejo assim, eu vejo outras coisas, entendeu? Claro que eu perco o paciente, mas eu faço outras plásticas, mama, abdômen, essas tranqueiras todas. Gosto de fazer nariz, gosto de fazer mamas, gosto de fazer abdômen, faço uma boa lipoaspiração, mas não era a minha a meta, não. Acabou chegando a isso por conta do Zeca. Se não fosse o Zeca, não tinha ido. E aí um dia despencou a Colgate, né?
P/1 – Então, vamos entrar aí.
P/2 – Não, eu queria só que você contasse um pouquinho mais da história de como entrou na Colgate. Já faz 30 anos que você trabalha lá. Se você pudesse dar uma resumida nesse... O que mudou desde que você entrou na Colgate até hoje?
R – Então, é assim. Eu trabalhava na prefeitura, eu tinha sido convidado pelo Alfio, que é um endoscopista muito bom, para ter uma sala de consultório. A sala de consultório, do consultório, custava cinco mil dinheiros da época, já não sei, já mudou tanto, já nem sei mais o que era a moeda. Eram cinco mil dinheiros, e, com a minha ex-esposa, a Eliana, nós tivemos duas filhas, Flávia e Mariana. A gente já tinha a Flávia, e ela era residente na prefeitura e eu tinha terminado a minha residência. Ela já trabalhava na prefeitura, e eu trabalhava na prefeitura também, mas o dinheiro era curto. E aí um dia, de plantão, os mais velhos reclamando que não ganhavam dinheiro, e eu falei: “Eu vou arrumar um trabalho para vocês”, aí eu catei o jornal, acho que era o Estadão ou a Folha. Folheei, fui lá na coisa do emprego, e falei: “Olha aqui, precisa-se médico para clínico geral, para ambulatório de empresa, salário cinco mil dinheiros, horário das 13 às 15, telefone, tarará, tarará.” Eu falei “Alguém quer?” Ninguém quer, eu falei: “Putz, vocês não querem nada, vocês reclamam porque vocês não querem nada.” Fechou o jornal, com toda a arrogância de recém-formado, joguei no lixo, literalmente no lixo, e aí começou. Cinco mil dinheiros, meu Deus, cinco mil dinheiros, mas médico, como é que médico vai arrumar emprego no jornal, médico é médico, grande coisa, né? Quando foi meio-dia, fui no lixo, catei o papel, recortei, e ainda com muito orgulho botei no bolso e não liguei. Quando deu quatro da tarde, eu não aguentei mais, liguei. Aí, Áurea chamava-se a moça, chama-se ainda, ela fez: “O senhor é cirurgião ou é clínico?” “Eu sou cirurgião.” Ela falou: “A vaga é para clínico.” Eu falei: “Não, moça, pelo amor de Deus, eu sou clínico, eu sei fazer clínica.” “Mas o senhor não é cirurgião?” “Eu sou, mas eu sou clínico, olha, eu sou filho de farmacêutico, nasci na farmácia, sempre cliniquei, aprendi com o meu pai, fiz GO [Ginecologia e Obstetrícia], fiz Ortopedia, trabalhei na Praia Grande, eu sou um bom clínico.” Eu falei: “Eu sou um bom clínico.” “Mas o senhor é cirurgião.” “Não, mas eu sou um bom clínico”, eu falei. “Mas eu...” “Tá bom, o senhor sabe onde são as vagas?” Eu falei “Não.” “Então, olha, tenho duas vagas em Santo Amaro.” Eu falei: “Moça, não me interessa.” “Eu tenho outra vaga que é no Jaguaré.” Eu falei: “Putz, eu nem sei onde é isso, eu sou do interior, eu sou de Campinas, não sei nem onde é isso.” “Tenho uma vaga na Vila Mariana.” Eu falei: “Essa me interessa.” Aí ela falou assim: “O senhor conhece a Rua Humberto I?” Aí eu falei, eu juro que eu falei isso, eu falei: “Moça, pelo amor de Deus, eu preciso, eu moro a uma quadra dessa rua, eu preciso desse emprego, eu preciso de uma chance.” Aí, depois de muito chorar, ela falou assim: “Ah, o dono do convênio também é cirurgião e ele trabalha, por que você não pode ir? Vou marcar uma reunião e aí você vai até lá.” Aí fui, Doutor Walter Yaroslav é muito bom cirurgião, falei com ele, chorei todas as pitangas, para ser breve, chorei todas as pitangas de novo e ele fez assim: “Mas você não é clínico.” Eu falei: “Não, mas, pelo amor de Deus, eu sou clínico, eu preciso do emprego, aí eu moro.” Aí ele fez assim: “Está bom, vai, chega, chega, seja o que Deus quiser.” Ele falou: “Seja o que Deus quiser, quando você quer começar?” Eu falei: “Amanhã.” Também não é assim, né? Aí marcou para eu ir, desmarcou, marcou de ir, desmarcou. Aí na terceira ele falou: “O senhor vai sozinho e pronto, se apresenta lá e pronto.” Aí, no segundo dia que eu estava lá, entrou um senhor baixinho com a mão assim, com a mão assim: “Será que o senhor pode me examinar?” Eu falei: “Perfeitamente.” Aí ele entrou na salinha, eu fui lá, olhei, olhei, não vi nada, nada. Falei: “O senhor pode me acompanhar?” Levei ele na sala de curativo e aí eu fiz o que o meu pai faria, não o que o professor falou, porque nenhum professor me ensinou isso. Ele, de terno e gravata, ele sentou-se na cadeira e eu coloquei uma toalha assim. Era o olho esquerdo, para proteger a roupa dele, eu peguei uma gaze e falei: “A senhora tem soro aí?” “Tenho.” Era Dona Olinda, a enfermeira. “A senhora me dá uma gaze?” Ela me deu soro, eu aparei aqui para não sujar a roupa dele, como meu pai faria, e lavei os olhos dele. E aí eu olhei na coisinha, tinha o Moura Brasil, eu falei: “Me dá esse aí.” E fui lá e pinguei o Moura Brasil. E aí eu bati nas costas dele assim e falei: “O senhor vai ficar bom, volte amanhã para eu ver o senhor de novo.” Ele nunca mais voltou. Daí, 30 dias, primeiro salário, quatro mil e quatrocentos reais, fui no RH [Recursos Humanos], falei: “Olha, eu vim falar para vocês que eu não posso mais trabalhar aqui.” “Por quê?” “Porque no jornal estava escrito que a gente ia ganhar cinco mil dinheiros, né? Cinco mil dinheiros, e o salário veio quatro e pouco.” Eu falei: “E eu não posso mais trabalhar.” “Mas quanto o senhor que ganhar?” Falei: “Moço, médico não é assim: quanto você quer ganhar? Médico é assim, tem um plantão, ‘milão’ quer, quer, não quer, outro pega. Eu sei do que eu preciso, quanto eu quero, eu não sei. Eu sei do que eu preciso, eu preciso de cinco mil dinheiros.” E ele falou: “Está bom, eu vou falar com o meu chefe e depois você volta daqui a três dias.” Em dois dias, ele me chamou de volta e ele falou assim: “Olha, a gente conversou, nós resolvemos que nós vamos te pagar sete mil dinheiros.” Eu falei: “Nossa, moço, mas eu nem preciso disso. Com os descontos, vai dar seis, 600 e tanto.” Eu falei: “Nossa, moço, ainda vai sobrar dinheiro.” E ele falou: “Pois é.” E aí eu falei: “Poxa, muito obrigado.” Eu falei: “Muito obrigado.” E fiquei. Esse homem que veio limpar os olhos era na verdade o diretor do RH, que foi lá para me conhecer. Sou amigo dele até hoje e vou ser a vida inteira, dele e dos filhos, gosto muito deles e me ajudou muito na vida. E Colgate é assim, Colgate, como qualquer empresa, mudou ao longo dos anos porque as organizações mudaram, o que é uma pena. Porque você aprende a gostar de um jeito, mas você tem que aprender a gostar todo dia. Então, hoje, cada vez que eu entro, eu tenho que aprender a gostar do jeito que é hoje, mas eu adoro aquilo lá. Foi e é um lugar onde eu me sinto respeitado, onde eu faço um trabalho que gosto, porque atender as pessoas, né? Então, eu me sinto um profissional que presta um serviço em benefício de alguém. E eu não vejo como a Colgate, vejo como eu vejo o funcionário, entendeu? É claro que eu prezo o nome da companhia, eu tenho tudo a agradecer a ela. Trabalhei em outras? Trabalhei, trabalhei na TAM cinco anos, com o comandante. Trabalhei na Líder seis anos, porque chegou uma hora que a TAM falou: “Ou somos nós ou a Colgate.” Eu falei: “É a Colgate.” Seis meses depois, eles me recomendaram para a Líder, trabalhei mais seis anos na Líder, né? Então, tive, claro, que algumas tristezas. Ganhei amigos, tenho amigos na Colgate, muitos. Hoje, eu acho diferente porque hoje é tanta gente estagiária que entra por entrar e sai por sair, para ir para a faculdade e pouco se lixa por quem está passando por ele, né? Então, eu sou de um tempo onde na volta de um almoço, logo no começo, um diretor, que era diretor do jurídico, uma pessoa dura pra caramba, ele fez assim: “O senhor é?”, eu falei: “Meu nome é Carlos.” Eu não fico me impondo, sabe? “Eu sou doutor fulano.” Meu nome é meu nome, essas coisas você vai agregando. Um dia não refresca nada, não é? Então, “meu nome é Carlos”. E ele fez assim: “Muito prazer, seja bem-vindo nessa empresa.” Eu falei: “Poxa, muito obrigado.” E o nome dele está na ponta da língua. E aí eu fiquei. Então, foi lá que eu, através deles, que eu fui na Operação Sorriso, através deles que eu faço uma medicina clínica.
P/2 – Você podia contar um pouquinho? Você trabalhava no ambulatório...
R – Médico...
P/2 – Médico da Colgate. E daí como que foi? O que é? Se você puder explicar um pouco o que é...
R – Então, eu atendo os funcionários.
P/2 – A Operação Sorriso...
P/1 – Não, como é que você chegou à Operação Sorriso? E o que é?
P/2 – O que é a Operação Sorriso? E qual a importância desse projeto?
R – Ah, sim. Um dia, a Regina Antunes, que tem a foto no face dela, tem só os olhos dela, é um olho azul bonito, né? Então, ela tem uma foto que tem só olho azul dela assim, bonito. Eu falei para ela: “Você devia pôr o seu rosto inteiro, você é tão bonita.” Ela passava, então, comigo, ela falou: “É, estou saindo para ir para uma expedição, uma missão.” Eu falei: “Que negócio é esse?” Aí ela me contou. É uma ONG [Organização Não Governamental] internacional que a Colgate patrocina. A Colgate é o maior patrocinador – era até três anos atrás, depois a Colgate parou, quem sabe volte, né? Tomara. É uma ONG que se destina a operar crianças com lábio leporino e fenda palatina. Eu falei: “Eu posso ir?” “Pode, claro.” E aí: “Quando é a próxima?” “Natal, é na cidade de Natal.” E aí ela arrumou para que eu fosse. Naquela época, eu era casado, amigo das vizinhanças. Tinha um vizinho, o Sérgio, que era um bom pediatra, muito bom pediatra, um cara altão, um metro e 90, muito boa pessoa, e mais um outro, e mais um outro, um pessoal. Bom, eu sei que eu fui para Natal para conhecer essa tal Operação Sorriso. Aí, eu cheguei lá e o pessoal fez assim: “Acho que não vai ter. Acho que não vai ter porque a gente está com um problema com um diretor do hospital. Puxa, o cara está regulando o Hospital Albert Sabin, está difícil lá.” Não, Albert Sabin é Fortaleza. “Vamos lá no hospital com a gente, talvez dê certo, talvez não dê.” “Está bom, vamos lá.” Tudo em inglês, e o meu inglês é um inglês macarrônico, quer dizer, por mais que eu estude, eu continuo no The book is on the table, quer dizer, o que vou fazer, faço o que posso, né? Chegamos ao hospital. Aí, a gente chegou ao hospital. Imagine você chegando ao hospital e tem alas e alas e alas, e nós entramos em uma ala. Quando nós entramos em uma ala, a moça que estava com a gente, que era a responsável por tal cara: “Cara, o cara está chegando, olha o diretor chegando!” Aí eu olhei assim no corredor, vinha vindo um cara todo de branco, altão. Ele veio, veio vindo, eu saí correndo, pulei no colo dele, dei um beijo nele e falei: “Puxa, Sergião, o que é que você está fazendo aqui? Cara, o que você faz nesse hospital aqui no fim do mundo, saiu de São Paulo e veio trabalhar aqui em Natal?” Ele falou: “Então”, ele fez assim: “Então, Carlão, eu estou aqui, sou diretor clínico deste hospital aqui”. Eu falei: “Pô, você que é o diretor clínico deste hospital?” “É. O que é que esses caras querem? E o que é que você está fazendo aqui?” Eu falei: “Ah, eu vim com esse pessoal aí da Operação Sorriso.” E ele falou: “E esse pessoal é sério?” Falei: “Claro que é sério, cara.” “É porque nós estamos meio assim, porque...” Eu falei: “Porque esse pessoal é legal.” Bom, aconteceu a Operação Sorriso. Isso não é a mão de Deus? Aí, teve essa que foi a minha primeira. Trabalhei com pessoas do mundo inteiro lá, que tinha gente do mundo inteiro. Era assim uma coisa aberta, vinham voluntários, tudo voluntariado do mundo inteiro. Trabalhei com Doutora Talita Franco, que é uma excelente cirurgiã-chefe da cadeira na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Excelente cirurgiã e muito rígida, e eu tinha medo. Esse nome era um nome assim que amedrontava, porque na residência os caras falavam: “Puxa, Doutora Talita, olha ela lá no pau! Puta merda, essa mulher é brava!” E eu a conheci.
P/2 – Deixa eu perguntar: então, essa primeira foi para Natal?
R – É.
P/2 – Então, aquela que você contou da moça do batom foi em Fortaleza?
R – Ah, essa foi em Fortaleza.
P/2 – Você poderia falar um pouco mais só dessa viagem, dessa ida para Fortaleza?
R – Fortaleza é um lugar legal. Olha, se eu for te falar, eu não sei te dizer quantas, mas a média são cem crianças, né? Então, ela está nesse mundão. São cirurgias que duram 35 minutos no lábio. Eles conseguem fazer em 35, 45 minutos um lábio. O palato não. O palato depende da complexidade, vai longe, não é? E, nessa, Fortaleza foi interessante porque teve essa. Se você entrar no site da Operação Sorriso, tem uma garotinha chamada Talita, eu tenho uma foto junto com a Talita. Só que a Talita é um lábio bilateral, é uma fenda bilateral, abre assim, né? Em Fortaleza, foi um lugar que tive a bondade de conhecer uma das pessoas mais boas da minha vida, um cirurgião, um metro e 60 de cirurgia: Teixeira, Doutor Teixeira, um sacristão para te falar a verdade, um sacristão, um cara que saía, catava a malinha dele, ia para o sertão operar e voltava. No meio daquele, sabe aquele ar professoral, estava ali humilde no canto dele, não falava uma palavra em inglês. Uma vez, para a China, sozinho, sozinho ele foi para a China, e em um cantão lá da China. Sem falar inglês, ele conseguiu chegar lá no lugar, mal falava. Bom, só falava o fortalezês, não é? Imagina, ele chegou à China, e eu conheci esse cara lá, trabalhei muito com ele. Ele falava: “Mas Carlinhos, mas Carlinhos, ‘hómi’, seu menino, mas Carlinhos...” E a gente ficou muito amigo. E com ele, eu aprendi muitas coisas lá e vivi grandes sonhos. Te juro que foram sonhos. E aí, um dia, um infarto fez com que ele fosse operar em outro lugar, e hoje eu conheço uma pessoa que o conheceu. Eu não fui nessa última expedição dele, e a última expedição dele foi quase um lamento. Na reunião de despedida, de confraternização foi quase uma preleção do: “Estou indo, não deixe isso morrer”, sabe? Foi assim, foi bem assim no tom: “Vocês precisam manter, e manter e manter atendendo.”
P/2 – Carlos, e hoje você faz o quê na Colgate?
R – Eu continuo como médico do trabalho, atendendo o pessoal lá, atendendo às vezes um filho de um funcionário, a mãe de um funcionário. Eu me sinto bem pra caramba lá. Se eu tenho algum tempo de sobra, eu vou pra lá, sabe? E aquilo tornou-se parte da minha vida, sabe? É parte da minha vida.
P/2 – Por quê? O que é que você sente quando você está lá ou por que você gosta tanto de estar lá?
R – Porque eu sou acolhido, sou respeitado. Hoje em dia, médico não tem respeito nenhum, não só médico, qualquer profissão hoje em dia não é nada, né? Existe uma desvalorização dos profissionais de uma maneira geral. E, então, lá não, sabe? Lá eu sou doutor, lá eu sou o doutor. Mas, se você deixa de lado a figura do doutor, tem o carinho das pessoas. Tem a Zilda, que eu gosto pra caramba, tem o Charles Catlett, que eu adoro o Charles também, que, por sinal, foi uma pessoa que eu tinha uma distância na Colgate. Porque, você imagina, Charles, filho de fazendeiros acho que do Tennessee, acho que é do Tennessee, fumante de cachimbo. Kentucky, fumante, fumador de cachimbo contumaz. A secretária dele fumava que nem uma chaminé na frente de todo mundo, não proibia de fumar na Colgate. Ele falava: “Você pode fumar.” E é uma pessoa adorável, adorável, adorável, uma gaúcha que a gente, eu sempre mexia com ela e falava: “Mas essa gaúcha tem algo escondido e que isso só essa fumaça sabe.” E aí eu fiz uma campanha, fiz várias campanhas na Colgate. Uma delas, trabalhei com Aids [Síndrome da Imunodeficiência Adquirida] desde o primeiro ano de Colgate. A primeira palestra sobre Aids na Colgate, em 1987, fui eu que levei. Há um trabalho que é reconhecido na Colgate mundial como sendo um bom trabalho voltado para Aids, que eu ajudei a fazer ao longo desses anos todos. Em termos de Aids, forte, forte mesmo, forte, forte mesmo, não é? E fiz um trabalho muito grande de tabagismo. Não tenho nada contra quem fuma, eu não sou aquele cara chato: “Putz, você fuma!” Eu sou um médico que fala: “Você fuma?” “Fumo.” “Quanto você fuma?” “Um maço.” “Dá para fumar meio? Então, está bom, se isso te alegra, fuma meio, se puder, né? Se não, faz o que você puder.” “Mas faz mal?” “Faz, mas tem tanta coisa que faz mal, né? Se estiver feliz, cara, isso é o de menos.” Aí, entro na sala para falar sobre o programa, seis meses falando sobre antitabagismo na Colgate já agora, e quem é o diretor? Charles Catlett, com o seu cachimbo. Como é que eu vou convencer esse homem a largar um cachimbo? Jamais, né? Se ele largar o cachimbo, o pai dele deserda ele, não é? “Vai embora, você não é mais meu filho!” Então, me tornei um amigo dele. Depois, quando ele foi para a unidade de Via Anchieta, que é quando a Colgate comprou a Kolynos, ele foi ser o diretor de lá e me tornei um amigo dele. E respeito, gosto muito, muito legal, né?
P/1 – E, Carlos, olhando para a sua trajetória de vida, se você fosse eleger um momento mais marcante na sua vida, qual seria?
R – O nascimento de minhas filhas. Eu casei desejando casar, a bem verdadeiramente, minha esposa, minha ex-esposa, um dia, não deu mais, um dia a gente separou. As coisas marcantes são essas, né? Meu casamento foi marcante, conquistar a Eliana foi marcante, me separar também, mas as nossas filhas são o suprassumo para mim. Tenho uma filha, Flávia, que faz Marketing, que me deu um neto faz quatro meses, o Gabriel, que é um menino muito legal. E, nisso, vem embutido um pedido a Deus que eu possa ver o suficiente para ver esse menino crescer. E não vai dar para ver ele constituir família, não tem como, mas eu gostaria de viver um pouco com esse menino. Tenho uma outra filha, gosto muito de minha filha. Flávia é o encanto da minha vida, o encanto mesmo. Tenho Mariana, que é uma promotora do Estado, muito inteligente, deve ter puxado a mãe. Porque eu e a Flávia, a gente precisa ler dez vezes para aprender e a primeira frase só. Flávia é muito inteligente também, mas a Mari é muito focada, aquelas coisas. Mas é a minha alegria de vida. Eu me lembro da Mariana, naquela semana tinham roubado a criança da maternidade, e eu me lembro que, quando a cabecinha saiu assim, no parto, eu vi a manchinha branca do cabelo dela aqui e eu falei: “Essa é minha, essa ninguém vai tirar de mim.” E a Flávia...
P/2 – Você que fez o parto?
R – Não.
P/1 – Você estava nos dois partos?
R – Estava. E a Flávia, a Flávia é o primeiro filho, né? O primeiro filho você sempre tem um encanto, não é? E adoro ela, adoro meu genro. E eu tenho poucos inimigos. Se eu te falar, eu tenho procurado aprender aquele dever cristão de você só perdoar, senão, você vai voltar e vai encarar de novo, não é fácil, né? Mas eu tento. Eu tenho não são inimigos, eu tenho alguma diferença com três pessoas que vieram profissionalmente, que eu perdi a confiança. Só três. Os outros, não tenho inimigo nenhum, nem eles são meus inimigos. Eu, quando posso, ajudo.
P/2 – E quais são os seus maiores sonhos?
R – Agora ver meu neto crescer (risos). O meu maior sonho é um sonho de vida, é poder ser útil a alguém. Se não for como médico, é de algum outro jeito, né? Mas o meu sonho de vida é esse. É claro que eu tenho aqueles sonhos mundanos, ter o meu jipe, gosto do meu jipe. Ter um amor gostoso, porque a solidão é muito ruim, né? Então, ter um amor gostoso, poder curtir minha família. Se a família crescer, poxa, vai ser maravilhoso. Mas, no fundo, qual é o meu projeto de vida eterno? É ajudar alguém. Não tenho outro. Os outros são segundo plano, tirando as minhas filhas.
P/2 – E como foi contar a sua história aqui hoje? O que você achou de contar a sua história?
R – Acho uma pena ter acabado, se é que acabou (risos). Tem tanta coisa, não é? Mas eu acho legal.
P/3 – Só um minutinho, caiu o microfone dele.
R – Olha lá, viu? Não era para falar nada. Você pode perguntar para mim?
P/2 – Como foi contar a sua história aqui hoje?
R – Uma surpresa que foi: “Puxa, meu Deus, o que será que me espera?” Primeiro que, embora tenha 30 anos, eu conheci pessoas que tem mais, conheço pessoas que tem mais de 30. Agora tem poucos, né? Claro, natural. Companhia, como uma comemoração dos 90 anos da companhia, então, eu acho, para mim, foi uma surpresa primeiro ser convidado. E é uma coisa, eu acho que é uma coisa alegre porque a gente começa a puxar o fio da meada. Você sempre tem que deixar uma beirada aqui porque tem muita coisa para falar. Ainda bem, né? Mas, poxa, foi uma alegria estar aqui, uma alegria. Eu espero que a companhia dure mais 200, 300, escovando o dente do povo!
P/1 – Mas você chegou aqui hoje falando: “Por que me escolheram?” E agora você contou tanta coisa, o que é que você, como é que é essa sensação?
R – É porque, como eu te disse, a companhia tem um grande, grandes personagens, são pessoas muito boas, pessoas inesquecíveis. Se vai fazer um álbum da companhia, não sei se vai fazer, mas, poxa, não pode faltar o Seu Tavares, não pode faltar o Álvaro, não, Peter Dan....
P/2 – Mas eu digo da sua vida. Como foi contar a história da sua vida?
R – Ah, foi legal. É legal. A gente não imagina que tenha tanta coisa. O dia a dia não te permite ficar fazendo isso. Você, obrigatoriamente (risos), ou você fecha a porta da sua casa e “vamos lá, it’s time”, é o seu dia – eu não saio sem agradecer o dia, a Deus, pelo dia, nunca saio. Então, o fato de estar hoje aqui, peço desculpa pelo atraso, que é uma característica, minha mãe diz que eu demorei até a falar “se” e talvez seja uma praga de mãe... É uma alegria estar falando sobre essas coisas que aconteceram na companhia. Particularmente na companhia, tenho grandes amigos, grandes alegrias, grandes auxílios pessoais, profissionais, grandes conversas, muitas conversas. Dividi a minha vida com as pessoas da Colgate, dividi coisas pessoais minhas com as pessoas da Colgate. Eu só posso me sentir em família lá porque eu divido minha vida com algumas pessoas de lá. Eles são importantíssimos na minha vida. Eu os respeito muito, quero o bem a todos eles, fico feliz que eles tenham permitido, tenham feito essa escolha por mim, porque eu acho que realmente eu sou, não é falsa modéstia, eu realmente sou pouca coisa lá. Em uma instituição daquele tamanho, realmente o médico não é nada. O médico é aquele que fica no cantinho ali. Mas, poxa, deve ter sido pela amizade. Então, se foi pela amizade, poxa, muito obrigado. É isso.
P/2 – Muito obrigada a você.
R – Muito obrigado.Recolher