Projeto Memória da Convenção da Diversidade Biológica
Depoimento de Maria Cecília Wey
Entrevistado por Stela Tredice e César Borges
São Paulo, 20/02/2006
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: BIO_TM001
Transcrito por Anabela Almeida Costa e Santos
Revisado por Luiza Gallo Favareto...Continuar leitura
Projeto Memória da Convenção da Diversidade Biológica
Depoimento de Maria Cecília Wey
Entrevistado por Stela Tredice e César Borges
São Paulo, 20/02/2006
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: BIO_TM001
Transcrito por Anabela Almeida Costa e Santos
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1- Cecília, eu queria que você começasse falando o seu nome completo, e local e data de nascimento.
R- É Maria Cecília Wey de Brito. Eu nasci em São Paulo, dia 28 de janeiro de 62.
P/1- 28 de janeiro? Eu faço dia 27.
R- Ah, olha só.
P/1- Bom, eu queria saber porque que você escolheu… Porque que você resolveu estudar Agronomia.
R- Então, eu fui fazer Agronomia porque durante minha vida de criança e de pré-adolescente, adolescente, nós, minha família, visitávamos muito uns familiares por afinidade que criamos lá em Mato Grosso do Sul. Particularmente meu pai tinha esse contato desde menino e nós continuamos o contato dele, por meio dele mesmo, visitando essas fazendas, que eram fazendas de criação de gado extensivo, um sistema bem rudimentar de criação de gado. Então todas aquelas atividades que pra quem mora em São Paulo eram totalmente inusitadas, lá na fazenda, a gente vivia. Então, tirar leite de vaca, marcar gado, correr atrás de boi, caçar, pegar galinha pra fazer almoço. Essas coisas todas eram nossas atividades das férias. E como na escola, no colégio onde eu estudei, no Santa Maria, tinha um professor magnífico de biologia que chama-se Gilberto Matro, eu gostei muito de Biologia. E quando eu fui fazer o vestibular eu juntei um pouco as duas coisas, ou tentei pelo menos, que era a Biologia junto com a atividade agrícola e, portanto, chegava na Agronomia. Mas, quando eu fui fazer Agronomia eu mal sabia onde era Piracicaba, não tinha a menor ideia do que o curso oferecia, porque eu saí do colégio com dezessete, eu, como eu faço aniversário no começo do ano. Aliás, saí com dezesseis, eu fui entrar na faculdade com dezessete, então a minha perspectiva de futuro ainda era muito nebulosa, mas eu, eu entrei na faculdade em Piracicaba e fiz o curso, um pouco por essa motivação.
P/1- Só um minutinho.
P/2- Vamos dar uma pausa que eu recebi um recado do estúdio, deu uma vazada numa fita crepe, então ele pediu pra que a gente retomasse e fizesse esse pedaço inicial novamente. É possível?
P/1- Tá.
R- Tá.
P/1- Desde o nome ou só da primeira questão
P/2- Pois é, ele não deu detalhe, mas ele falou que toda essa primeira parte
R- Vamos de novo.
P/1- Então vamos lá.
P/2- Quando vocês quiserem, ele falou.
P/1- Está. Então, de novo, Cecília, eu queria que você começasse falando seu nome completo, local e data de nascimento.
R- É Maria Cecília Wey de Brito, nasci em São Paulo, no dia 28 de janeiro de 1962.
P/1- Tá. E conta pra gente porque que você escolheu estudar Agronomia.
R- Então, eu, quando menina e junto com os meus familiares, íamos muito a Mato Grosso do Sul visitar uns fazendeiros que eram amigos do meu pai. E que, de tanto visitarmos e tão amigos que foram, viraram um pouco nossa família. E essa fazenda era uma fazenda de criação de gado, mas nos moldes bastante tradicionais, onde os donos faziam tudo na fazenda. Então nós, quando íamos pra lá, fazíamos essas coisas com eles, todas as atividades, uma fazenda como aquela no Mato Grosso. E também, no colégio que estudei, no Santa Maria, havia um professor de Biologia que eu gostei muito, o Gilberto Matro e juntando o meu gosto pela Biologia, naquela ocasião, junto com as minhas atividades lúdicas da minha vida, eu achei que a Agronomia era uma boa alternativa pra estudar e fazer uma carreira. E assim fui parar em Piracicaba, onde eu fiz a faculdade, na Esalq [Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz]. E depois de lá já encaminhei-me propriamente a minha vida profissional.
P/1- E como foi os anos oitenta, uma mulher estudar Agronomia em Piracicaba?
R- Ainda era bastante diminuto o número de meninas que faziam Agronomia, era na faixa de 25% do conjunto dos alunos, mas já era um pouco menos estranho do que foram anos anteriores, né? Hoje em dia já é, acho que, quase metade do contingente, mais ou menos equivalente. Foi estranho por isso, sem dúvida, e também porque eu vinha de um colégio onde havia duas classes por série e essas classes não tinham mais do que vinte pessoas, 25, então todo mundo se conhecia bastante bem. E de lá, de repente, eu me vejo numa cidade onde eu nunca havia morado, não tinha nenhuma relação de parentesco, de amizade, com ninguém, e morando com pessoas que eu nunca havia estado antes. Então, de uma situação da casa da sua mãe, onde você tem todas as regalias e mais um pouco, você vai morar numa casa onde não há regalia nenhuma, com pessoas que você não conhece. Então, de fato, o primeiro ano foi um ano um pouco estranho, vamos dizer assim.
P/1- E qual foi o seu primeiro trabalho, Cecília? Mesmo que não tenha sido na área ambiental, enfim, na área que você atua atualmente.
R- Bom, sem considerar estágios e trabalhos de férias, que eu fiz alguns na minha vida, meu primeiro trabalho, que eu considero assim, foi no IPT. Eu fui, logo que me formei, procurar trabalho, como todo mundo, e tive oportunidade de visitar algumas pessoas no IPT, que eu também não conhecia e que apontaram a necessidade de pessoas, que faltavam pessoas pra trabalhar lá, isso e aquilo. E como não havia aparecido nada, eu voltei depois pra lá e falei: “olha, eu gostaria de trabalhar aqui, mesmo que fosse de graça, porque eu preciso me manter, funcionando.” E meus pais moravam perto do IPT, era relativamente fácil pra mim. Daí foi um pouco complicado pra eles, falou: “não, não podemos.” Porque eram todas as pessoas ainda muito vinculadas à esquerda, então a mais-valia, tinha toda umas coisas assim. Falei: “olha, não quero saber de nenhuma dessas questões, eu preciso estar aqui fazendo alguma coisa.” Então eu comecei fazendo um estágio não remunerado no IPT, na área de Minas e Geologia Aplicada, com projetos, que eles tinham na ocasião, de irrigação em áreas do Nordeste brasileiro, e também áreas da Cesp, no estado de São Paulo, onde a Cesp estava recuperando solos de locais que haviam sido desapropriados para enchimento de barragens, ali na região do Rio Paraná. Então eu comecei trabalhando nisso. E fui bastante vezes ao Oeste paulista. Nunca fui ao Nordeste pelo IPT, mas fiz uma série de trabalhos lá. E de lá eu continuei depois fazendo outras coisas. Mas o meu primeiro trabalho, propriamente dito, foi no IPT.
P/1- Em que momento você vai trabalhar no SUDELPA?
R- Então, foi super circunstancial, porque uma das pessoas do IPT que trabalhava comigo, ou melhor, eu com ela, me disse que havia um trabalho na SUDELPA e que eles estavam contratando pessoas. Então eu fui lá, me apresentei. Inicialmente, o diretor da área pra onde eu fui, ele também não tinha como me contratar, então ele falou: “não, você vem, nós pagamos em diárias”, que eu não sabia muito bem o que significava, falei: “tudo bem, eu vou.” E aí comecei a trabalhar no Vale do Ribeira, que era uma das áreas de atuação da SUDELPA. Ao final de um período de quase, não chegou a um ano, esse mesmo diretor foi demitido, e falou: “olha, eu fui demitido, não tenho como te pagar, então você vê o que você vai fazer.” Por acaso, na ocasião, já tinha, obviamente, conhecido pessoas que estavam trabalhando também na SUDELPA, e havia um grupo lá que se autodenominou, depois de Grupo da Terra, mas que tinha um nome maior que chamava-se Grupo de Resolução de Conflitos de Terra, e eles me contrataram então em 84, se não me falha a memória, como autônoma. E depois, só mais um ano depois, ou algum tempo depois, é que eu pude ter um contrato um pouco mais efetivo, e por aí, nessa razão totalmente inusitada, é que eu fui parar na SUDELPA.
P/1- E dentro desse grupo, você atuou nesse grupo de Conflitos de Terra?
R- Sim.
P/1- Você chegou a atuar?
R- Trabalhei bastante tempo lá.
P/1- E tem alguma experiência que te marcou nessa questão social, com preservação ambiental? O que era exatamente o que você fazia?
R- Eu acho que, sem dúvida nenhuma esse trabalho foi o que me… Depois me levou a pensar um pouco mais nas questões de ambiente propriamente ditas, né? Esses locais onde nós íamos, basicamente, eram locais do Vale do Ribeira muito pobres e que tinham ocupações, na ocasião que nós chamávamos de posseiros, e normalmente eram áreas de conflitos, então por isso chamava-se Resolução de Conflitos. Então eram áreas do Estado onde havia mortes por briga de terra. Então, por incrível que isso pareça, em São Paulo, nós fomos apenas a locais onde haviam esses conflitos graves estabelecidos. E a ideia era verificar o direito que essas pessoas tinham sobre a terra, como posseiros, e tentar que eles ganhassem os títulos decorrentes dos seus direitos. Eu, inicialmente, fazia um papel, tentativamente, de uma Assistência Técnica Agrícola. O que depois se mostrou um pouco inviável porque, obviamente, o cara não tinha nem a terra, muito menos condições técnicas de fazer o plantio mais adequadamente segundo os preceitos agronômicos. Então acabei fazendo de tudo um pouco no grupo. Além do trabalho com esses posseiros nessas áreas, nós trabalhamos também com a questão indígena por um período. E o que acabou acontecendo é que tanto esses posseiros, quanto os indígenas com quem nós trabalhamos especificamente depois, ocupavam, via de regra, mas não sempre, áreas que também já eram Unidades de Conservação. Exatamente porque, até como hoje ainda, são áreas do Estado, onde os grupos que não têm condições de ocupar outras áreas acabam até de certa maneira dando preferência porque o Estado tem mil e um passos a dar quando ocorre alguma, entre aspas, invasão. Quando, na verdade, os proprietários privados têm suas, eventualmente, milícias próprias que dão jeito nessa situação com mais rapidez. Então, as pessoas em áreas do Estado, até que o Estado possa tirar e ser o proprietário efetivamente, leva tanto tempo que a pessoa consegue se estabelecer, muitas vezes, numa certa, entre aspas, tranquilidade. Então eu trabalhei basicamente com tudo que o grupo da Terra fazia, desde levantamento cartográfico em campo, até uma tentativa de apoio. Nós chegamos a constituir uma cooperativa de posseiros produtores de banana. Junto com eles nós conseguimos apoio da Igreja da Holanda, que pra eles cedeu um caminhão pra fazer o transporte, da área deles até o Ceasa. Nós conseguimos um box no Ceasa pra que eles pudessem vender os seus produtos e, portanto, ganhar nesse processo os recursos que os intermediários recebiam e eles ficavam com pouquíssimo dinheiro da sua produção. Então chegamos a ter uma experiência que nos levou a até o final da linha. Mas, como eu disse, esses grupos são muito pouco organizados, muito pouco literatos, então pra você conseguir que eles mantivessem, inclusive contabilidades e todos os procedimentos burocráticos mínimos, é difícil, e essa cooperativa acabou durando um tempo e depois acabou sumindo do mapa.
P/1- E vocês chegaram a trabalhar com a questão de como se entender e pensar o que é uma Unidade de Conservação, como trabalhar com a diversidade dessa região, diversidade biológica, enfim, pra ajudar a preservar, pra ajudar a criar um organismo, um mecanismo de preservação pra isso?
R- Nessa oportunidade, ainda nos anos oitenta, isso não era tão presente. O meu próprio currículo na faculdade e dos meus colegas até depois um pouco, não tinha nenhuma leitura de meio ambiente, era só produção agrícola nos moldes mais pacote verde que você possa imaginar. Então era adubo, herbicidas, todos os tipos de ações desse naipe. A única coisa que dava pra já dizer, na ocasião, pra aqueles agricultores, dizia respeito um pouco às suas culturas em áreas de declividade muito acentuada. Então a gente tentava indicar que não era muito razoável se fazer isso, mas isso nem, naquele momento, pra mim pelo menos, não estava muito ligado ao Código Florestal, que é a legislação balizadora até hoje da ocupação do solo no Brasil, mas a gente não tinha, ainda, tão clara essa necessidade. E mesmo no que diz respeito às Unidades de Conservação também não estava muito claro o que dava pra fazer, a gente ainda estava buscando uma alternativa que era a de você constituir um espaço onde se permitia a presença humana, buscando a conservação. A leitura que havia naquela oportunidade ainda era conservação sem a presença humana. E esse era o ponto de toque. Então nós éramos um grupo que, por vários anos, buscou achar uma alternativa a isso, e tentamos, inclusive discutir e entender melhor o que, entre aspas, se chama até hoje, sem uma definição clara, de populações tradicionais. Entendendo que aquele, aquele patrimônio cultural também era uma coisa a ser conservada no sentido amplo da palavra. Então, por aí que nós trafegávamos, naquela ocasião. Mas hoje, certamente, a leitura que se fará, ou que se faz sobre essas mesmas comunidades em Áreas de Conservação é um pouco mais na direção do que você mencionou. Ou seja, uma coisa bem mais na linha da conservação. O que usar, o que não usar, o que não cortar. Naquela ocasião acho que ainda estava pra trás dessas ideias de hoje.
P/1- E você se lembra em que momento da sua vida profissional começou a se usar, e as pessoas começaram a entender o que era Desenvolvimento Sustentável?
R- Bom, eu nem diria que as pessoas começaram a entender porque eu acho que elas não entenderam até hoje. Mas eu acho o seguinte, que a partir de um certo ponto, quando nós então, eu em particular e esse mesmo grupo e algumas pessoas passamos a fazer parte da Secretaria do Meio Ambiente, aí a gente começou a entender um pouco mais, também, todo o arcabouço de Unidades de Conservação e de ambiente, de um modo geral. Embora, no início, obviamente a legislação sobre isso era bem mais escassa, então não havia tantos instrumentos pra algumas coisas. A partir de um certo ponto, quando você tem por obrigação conservar, e você vê que esse conceito tradicional, de população tradicional é uma coisa muito difícil de você compreender e, inclusive, dar continuidade, é que você começa a ver que, bom, então não é tanto a questão de população tradicional e sim o melhor uso dos recursos. Que aí, no ponto de vista, pode ser feito por alguém, entre aspas, considerado tradicional, ou por alguém até que nem seja tradicional e que pode ter todas as técnicas e pensamentos voltados pra esse chamado, aí desenvolvimento sustentável. Só que isso é bem mais recente, do meu ponto de vista, porque inicialmente ficou essa disputa por anos entre conservação é possível com pessoas dentro de unidades ou é só possível se elas estiverem fora das unidades. Eu acho que passamos anos nessa discussão sem efetivamente nos adentrarmos na coisa prática de: bom, está aí, os caras estão aí, estão usando os recursos, estão eventualmente estragando mais do que poderiam, ou precisariam, quem que vai fazer alguma coisa com eles? Então isso só foi surgir, eu acho, um pouco mais adiante, em noventa e poucos, 92, particularmente na Juréia, quando lá se desenvolveu um trabalho que foi bastante interessante, levado pelo Ricardo Russo, que é um Agrônomo também, que era, nós chamávamos de micro zoneamento. Então era isso, já que a legislação não permite, mas até você poder fazê-la cumprir, vai levar um tempo que você não tem noção de quanto vai ser, então o jeito é trabalhar as pessoas e a terra da melhor forma possível, visando à própria conservação. Então lá eu não trabalhei nisso diretamente, mas foi quando começou a se pensar objetivamente sobre isso. E acho que, isso no governo, é claro que talvez experiência com outras entidades, ONGs,
possam ter surgido em paralelo ou antes. Eu duvido um pouco, mas acho pode ser que, pra não errar muito, pode ser que tenha acontecido também.
P/1- Então voltando um pouquinho à Secretaria do Meio Ambiente. O que significou pra você, quais experiências que você agregou à sua vida profissional? O que mais te marcou nesse momento em trabalhar na Secretaria?
R- Bom, primeiro acho que conhecer um pouco do estado numa área riquíssima de biodiversidade, que é Vale do Ribeira, e também um pouco do Litoral Norte de São Paulo, que era originalmente área da SUDELPA, e também área de muitas das unidades importantes, unidades de conservação importantes do estado. Então isso foi importante pra mim porque eu tinha pouco contato com a Mata Atlântica enquanto ecossistema. Eu era como quase todos nós, passamos pela Mata Atlântica e nem sabemos onde ela está. Então isso foi muito importante, conhecer um pouco, entender um pouco a dinâmica do sistema, do ecossistema. Por outro lado, esse contato com essas pessoas, com essas comunidades aí, também foi muito importante, um pouco, pra ter essa visão do outro lado da história, por assim dizer. Ou seja, aquelas pessoas que estão lá, que dependem de recursos, não têm nenhum apoio governamental, não importa se federal, se estadual, se municipal. E que vira e mexe são levadas ou a exercer uma atividade clandestina por pressão da demanda de alguns ou das próprias necessidades de recursos. Então foi importante conhecer um pouco essa coisa e também conhecer todo mundo que se diz tradicional e interessado e que, na verdade, não tem, além do discurso, interesse algum, né? Eu acho que deu pra ter uma noção um pouco, vamos dizer, mediada dessas alternativas aí, que estão à mostra, que se você não tiver cuidado de início, você acha que todo mundo que está em campo é maravilhoso, bonzinho, deve ficar lá, é harmônico, inclusive os índios. Ou você tem um lado da visão que todo mundo é ruim, que tem que ser, se possível, fuzilado, e sair de lá o mais rápido possível. Então acho que essa experiência na SUDELPA, principalmente, foi muito útil pra poder ter uma noção um pouco mais abrangente do problema como um todo.
P/1- E você chegou a trabalhar diretamente com movimentos sociais ligados à terra?
R- Então, nós trabalhamos com esses grupos que não eram ligados, não havia em oitenta e poucos, ainda, o Movimento Sem Terra. Havia a CNPT, se não me engano, que era a pastoral da terra da igreja católica. Havia alguns grupos com ligação, mas a ligação que, pelo menos me vem à memória mais objetiva desse pessoal era com a igreja católica. Mesmo na Amazônia alguns grupos que conseguiram se organizar melhor também tiveram um passado de Teologia da Libertação, tem um pouco de parte nisso, esse movimento católico aí, mais recente, mas os movimentos hoje constituídos, Sem Terra, e alguns de moradia, ou sei lá, coisas parecidas com essas, eu depois praticamente perdi, nunca mais trabalhei diretamente com eles. Agora, recentemente, por força até da obrigação, nós temos tidos contato com algumas comunidades de quilombo, que não dá pra dizer que seja um movimento propriamente dito, pelo menos em São Paulo. Talvez o movimento se estabeleça mais em Brasília como uma regra, vamos dizer, de atuar no Brasil como um todo. Mas, não tem mais movimentos sociais, propriamente ditos, não.
P/1- E essa sua experiência com comunidades, de uma forma empírica, você levou isso pra sua produção acadêmica? O que essas experiências fazem parte dessa sua produção acadêmica?
R- Então, minha produção acadêmica não é assim tão extensa, mas o pouco que eu consegui fazer, que foi o meu mestrado e depois um livro publicado em razão da dissertação, ele tenta exatamente discutir isso, a questão das Unidades de Conservação, de como elas no Brasil e particularmente em São Paulo, foram apresentadas e vieram à tona, e os conflitos que têm em função dessas ocupações e dessa dificuldade que ainda existe no Brasil de entender se a conservação é necessariamente uma atividade que exclui todo mundo, no sentido de ocupar, né? Não excluir na visitação e no conhecimento, mas exclui na ocupação. Ou se ela é uma atividade que tem que ter uma ocupação inclusa como uma das formas de conservar. É uma discussão super complexa porque ela implica em interesses, muitas vezes, não só contraditórios, mas também interesses que não são tão claros quanto o discurso levaria a crer. Mas de todo modo eu tentei, nessa dissertação discutir um pouco isso, eu fiz o meu trabalho de campo no Rio, numa comunidade caiçara, na Ponta Negra. E esse trabalho, depois ele ajudou a essa discussão no próprio termo, no próprio texto da dissertação a tentar discutir o modelo de UCs que a gente estava e está utilizando no Brasil até dois mil. Hoje já existem novidades aí no front. Mas, depois, outros textos também produzi um pouco nessa direção. Recentemente, no ano passado, eu e a Lucília Viana dividimos um capítulo que discutimos a questão de índios e o Parque Estadual da Serra do Mar, por convite do Instituto Sócio-Ambiental, que fez um livro grande de sobreposições de terras indígenas e Unidades de Conservação. Então a gente discutiu um pouco essa questão de índios ali. Então, tentativamente, a gente aborda aí essa dicotomia existente.
P/1- Me corrija se eu estiver errada, mas você fez um estudo sobre a Joatinga e a APA do Cairuçu, né?
R- Isso. Ham ham.
P/1- Então como é que foi esse estudo, queria que você falasse um pouquinho o que significou pra você, quais os resultados desse estudo.
R- Então, ele foi importante também pra mim nessa direção que eu tentei abordar anteriormente, que era de você verificar em campo o que é a vida e o cotidiano daquelas pessoas, e como aquela unidade que foi criada, sobre elas, que no caso são duas, afetaria positiva ou negativamente. E a mesma forma, como a biodiversidade ali estava sendo afetada, seja pela presença das pessoas ou pela presença das unidades. Então, na Joa… A Ponta da Joatinga, que genericamente é um nome dado ali pra aquela região, ela tem sob seu território uma APA, que é a APA Federal do Cairuçu, que um outro nome local, e também a Reserva, eu não me lembro agora o nome exatamente, mas é uma reserva que o Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro, criou ali, que é diferente de qualquer categoria que exista, inclusive formalmente, no Brasil. E a intenção daquela reserva na ocasião era, exatamente, buscar que os caiçaras permanecessem e também fosse lá uma área de proteção. Então essa sobreposição e os motivos os quais levaram à criação, seja de uma unidade, seja da outra, eu acho que são bastante interessantes de se conhecer. É um pouco na linha do conhecimento de campo mínimo, ou seja, as pessoas fizeram algumas incursões de barco, porque lá não tem estradas. Isso quando foi criado, quando foram criadas as áreas, e verificaram en passant as ocupações que havia. E acharam que inclusive o fato de ter ocupações caiçaras era um ponto positivo que impediria, entre aspas, ocupações de segunda residência, de veranistas, e assim por diante. O que obviamente ninguém perguntou pros caiçaras se eles gostariam que assim fosse, ou seja, eles moravam lá, não queriam saber se eles iam ser um buffer zone pro que fosse. E por outro lado, as ocupações das casas dos caiçaras não representam a ocupação territorial que eles exercem. Todo mundo que minimamente foi a uma área dessas sabe que existem as casa, existem as roças, que são às vezes bastante distantes das casas, e que têm esses sistemas rotacionais, quando possível. Claro que com o aumento da população, isso diminui, porque tem menos terra. Mas de todo modo a lógica sempre foi essa. Uma composição pesca e agricultura, de forma que durante o ano todo eles tivessem o que comer e como sobreviver. Claro que com a passagem dos anos isso muda e o turismo passa a ser uma atividade econômica importantíssima. E aí toda a estrutura local acaba se desmontando, com exceção de alguns poucos focos de resistência. E não resistência, eventualmente, é consagrada, mas sim, talvez até um hiato de tempo, eu diria assim. Então pra minha experiência lá foi bastante legal de tentar entender essa questão do território, demarcar isso em mapa, usar o GPS, que era um instrumento pouquíssimo, ainda, conhecido na ocasião, pra tentar mostrar fisicamente como é que as coisas se davam, mostrar os erros que, do meu ponto de vista, haviam sido cometidos na criação daquela unidade. Então foi bacana porque eu pude exercitar a discussão que eu estava fazendo teórica, numa região específica, portanto bem prática. Somando aí, as duas partes de uma pesquisa.
P/1- E você viveu, acho que você não tem mais nenhuma relação, mas você viveu um pouco a, talvez, agora esse drama de ter, saiu na mídia, né? Dessas casas de veraneio imensas que foram construídas...
R- É. Em Parati, em Mamanguá.
P/1- Isso. Justamente nessa região e que até vão demolir, enfim, né? Você já viveu alguma situação dessa, de uma APA que foi, enfim, tomada por casas de veranistas, apesar de uma legislação, e ter que trabalhar diretamente na atuação, enfim, de como retirar essas casas dali, tem alguma experiência nesse sentido?
R- Então, nós temos, eu tenho pessoalmente uma experiência indireta com esse tipo de assunto. Indireta porque atualmente no meu cargo, lá no Instituto Florestal, na Direção Geral, nós temos exemplos em São Paulo semelhantes a esses que você mencionou, lá do Mamanguá, no Rio de Janeiro. Nós tivemos na região da Picinguaba, no litoral, Norte de São Paulo, que é o Parque Estadual. Primeiro havia uma vila caiçara que foi mantida quando o parque foi criado, dentro do parque, exatamente buscando que aquela vila, ali, permanecesse com aquelas pessoas e tal, que já foi um grande sonho. Porque ninguém permanece como estava se a essas pessoas forem trazidas... Trazido qualquer tipo de desenvolvimento que lhes pareça mais adequado. Então a vila foi inteiramente ocupada, não diria cem por cento, mas bastante ocupada por casas de veranistas. Muito, inclusive, bem conhecidos nossos. Um, se não me engano, é o senador Eduardo Suplicy, tem o, tinha a casa de algum outro deputado que agora não vou me recordar. Mas então são casas de veranistas que estão lá estabelecidas. Lá, inicialmente, se criou uma situação de conflito, depois, o conflito hoje está aparentemente amainado. Ou seja, há moradores, há os veranistas, uns servem aos outros num certo sentido. Na mesma praia ou no mesmo lugar, foram feitas casas, também, de veranistas em local proibido. E só agora, depois de dez anos de uma ação que foi movida contra essas casas, elas foram demolidas. E foi uma ação espetacular, no ano passado, coisa que nenhum de nós acreditava que pudesse acontecer de fato. Então foi lá o trator e demoliu as casas e tal. E aí temos problemas semelhantes a esses na Juréia, tem uma série de casas que foram construídas irregularmente. Só que o Estado, ao mover uma ação contra essas casas, tem que esperar que a ação seja julgada. O juiz claro que não tem, obrigatoriamente, nenhum prazo que tem a ver com os nossos prazos. Ele que tem o poder de decisão, então ele que decide quando ele quer. E muitas vezes ele decide, como é o caso agora de muitas situações na própria Juréia, que a casa está lacrada. Ou seja, você que é dono não pode mais usufruir da casa. Porém nós não temos o poder de demolir, a não ser que a ação chegue ao final. Então, em termos educativos, por assim dizer, é uma ação inócua, até o momento em que ela está. Porque só depois que você vê que, de fato, a pessoa deixou de ter a casa lá, é que você fala: “então o cara estava errado.” Até lá, todos os outros que acham que estão certos vão mantendo as suas atividades irregulares. Então existem bastantes exemplos nesse sentido aí, de situações como essa, de ocupações irregulares, demolições.
P/1- E você já fez parte, você já foi diretora de uma Unidade de Conservação em São Paulo, né? Queria que você contasse em qual, como foi esse período, quais também as experiências que te marcaram em dirigir uma Unidade de Conservação.
R- É, eu dirigi um núcleo do Parque da Serra do Mar. O Parque da Serra do Mar é uma unidade imensa, que tem 315, aproximadamente, mil hectares, e que vai, então, de Pedro de Toledo, que é já Vale do Ribeira, até Ubatuba, que é litoral norte. Então qualquer estrada que qualquer pessoa desça pro litoral passa por dentro do Parque da Serra do Mar. Por ser tão grande ele foi dividido em partes, e cada parte nós chamamos de núcleo. E o Núcleo Picinguaba é um dos que faz parte desse conjunto e foi onde eu trabalhei. Quando eu trabalhei na Picinguaba eu tinha 25 anos aproximadamente, e foi bastante difícil. Não foi uma experiência muito agradável de princípio, porque eu, primeiro, cheguei num momento político muito complicado na Picinguaba. Havia uma disputa que tinha acabado de acontecer lá, entre um diretor, que era do Instituto Florestal e uma coordenadora desse mesmo Grupo da Terra, onde eu trabalhava. E cada um tinha visões completamente diferentes sobre como deveria ser tocado aquele lugar. Então houve, obviamente, um conflito forte, com problemas sérios pras duas pessoas e pros conjuntos das pessoas que estavam ao lado de cada uma delas ou... E aí quando eu assumi a Picinguaba eu não tinha nenhuma equipe. Eu tinha alguns funcionários em campo, que nós chamamos genericamente de vigias, alguns que nós chamamos também de braçais, que são pessoas com, ainda, uma função mais simples. E ninguém mais que um rapaz que lá já estava pra me ajudar tecnicamente a tocar o núcleo. Como é praxe no estado, falavam: “você vai cuidar da Picinguaba.” Eu fui, ninguém me deu o endereço, ninguém me levou pra conversar com ninguém. Quer dizer, eu cheguei lá, olhei pra uns vinte marmanjos e falei: “olha, agora eu que vou ficar aqui cuidando da área.” Então foi muito complicado, porque não havia nenhum equipamento, isso era geral, não era só na Picinguaba. Nós não tínhamos veículos pra nos locomover, não tínhamos telefone na unidade, tudo funcionava por rádio. O rádio ficava em São Paulo, então você tinha que ligar pra São Paulo. A burocracia inerente ao serviço público é bastante terrível de você, primeiro, conhecer, depois conseguir sobreviver com ela. Então eu passei dois anos, que pra mim foram torturantes, efetivamente. Porque não havia condições mínimas pra se trabalhar. E eu posso garantir que não tenho nenhuma frescura de dormir onde quer que seja, de andar em qualquer tipo de carro, ou a pé, a cavalo, se fosse preciso. Mas, efetivamente, as coisas não eram simples lá. E havia esses conflitos com essas comunidades já existentes antes do parque. Então a Picinguaba era uma questão complicada, outras comunidades menores. Então tudo isso era difícil pra eu administrar. E, portanto, esses dois anos não me fizeram ter vontade nenhuma de voltar a administrar unidade posteriormente. Muito embora, logo depois, eu voltasse a trabalhar nas unidades, aí não como diretora propriamente, mas como parte da equipe.
P/1- Tá. E você participou da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, né?
R- Hum hum.
P/1- Eu queria que você contasse qual foi a qual foi a sua participação efetiva, que resultados pra você, em particular, saíram dessa conferência.
R- Hum hum. Então, quando a conferência ocorreu, em 92, eu já tinha saído do Instituto Florestal e estava trabalhando com o Fábio Feldmann, no escritório de São Paulo que ele mantinha. Então o que foi possível pra eu acompanhar não foi tanto a parte das discussões preparatórias. Houve inúmeras PREPCONs como se chamava, que eram essas discussões pra efetivamente montar algo que depois virou o texto da conferência. Não só da Conferência do Rio, como da Convenção de Biodiversidade que foi um dos documentos que de lá saíram. Então, basicamente, o que a gente acompanhava era um pouco em função do Fábio, o que o Fábio tinha condições de nos passar nos tempos curtos que havia de contatos entre nós. Nós, efetivamente, fomos ao Rio e participamos do fórum das ONGs, tinha um nome que agora não consigo me recordar exatamente, mas que era o fórum paralelo. Porque na convenção, propriamente na conferência, só eram convidados e podiam participar pessoas que haviam sido indicadas pra isso. Então não era o meu caso. Eu fui como parte da equipe do Fábio, tentando no fórum paralelo lá, acompanhar o que estava acontecendo. E, efetivamente, foi muito interessante, foi super divertido, teve mil coisas pra contar. Agora, o que foi mais me chamou a atenção do fórum, na minha memória atual, era a diversidade de coisas, assuntos, pessoas, e interesses que estavam ali representadas. Então era uma coisa de meio ambiente, mas era uma coisa de meio ambiente no seu mais lato sensu. Então a parte desde a espiritualidade, o quanto isso e o ambiente se coadunam, a parte propriamente de técnicas de reciclagem, uma coisa bem mais tecnicista. E todo tipo de propaganda dos diversos, pequenos e maiores, grupos que haviam já estabelecidos pra tocar este tipo de ações. Então era um… Parecia um congresso de estudantes ali, onde se encontrava de tudo e mais um pouco, no fórum paralelo. As questões das discussões ficaram pra mim muito restritas ao que dava pra você ver na imprensa. Não dava você acompanhar. E mais tarde eu fui a uma, tive a oportunidade, na gestão do Fábio, de acompanhar uma dessas conferências das partes, como teremos agora em Curitiba. E aí já deu pra sentir um pouco mais qual que é o drama ali na briga de verdade, que do lado de fora tudo é festa, tudo é possível. Mas do lado de dentro a briga é de cachorro grande, né?
P/1- E qual COP, você se lembra qual foi?
R- Eu não me lembro do número, mas foi a COP que ocorreu em Bratislava, na Eslováquia. E nós fomos também antes a um… Sempre havia e sempre há um encontro que agora não se mantém antes da COP, mas que na ocasião foi antes da COP. Também onde ONGs se encontram, discutem aspectos importantes que devem estar sendo tratados depois na conferência. E nós fomos apresentar o que nós fazíamos na secretaria naquela oportunidade, que era um programa de biodiversidade. E havíamos já conseguido algumas coisas importantes que nós achávamos relevantes de serem mostradas naquele ambiente. E depois eu, eu pessoalmente, acabei ficando na reunião, acompanhei, como é possível, as reuniões, tanto nas plenárias quanto nas reuniões do side events, como eles chamam, que aí tratam de assuntos bem particulares, né?
P/1- E como foi recebida esse... Como você falou um programa, não? O que você foi fazer?
R- Era um programa, nós tínhamos um programa, é, estadual de biodiversidade.
P/1- Como foi recebido?
R- Num fórum desse tamanho, com pessoas do mundo inteiro, certamente você tem que cavar um espaço, assim, com uma certa dificuldade pra poder mostrar o que você trouxe, o que você faz. Porque todo mundo tem coisas interessantes a mostrar. Eu acho que foi bem recebido porque era uma ação estadual, no estado mais importante em termos de desenvolvimento histórico, tal, do Brasil. Então nós tínhamos alguns documentos importantes que levamos pra oferecer pros parceiros lá, que estavam como nós, mostrando o que estavam fazendo. Mas também não era, não dá pra se dizer que nós éramos nenhum foco de grandes atenções, naquela ocasião. Até porque esse programa de biodiversidade na Secretaria do Meio Ambiente vivia de apoio do secretário praticamente, apoio político, ele não tinha um recurso destinado a ele a priori, em tudo o que você conseguia era na base de articular aqui, articular ali. E isso dá um trabalho desgraçado. E obviamente as instituições, o próprio Instituto Florestal, Instituto de Botânica que, naturalmente, trabalhariam com biodiversidade, enxergavam o programa sem muito entender exatamente pra que ele servia e como é que ele deveria atuar. Porque era uma tentativa de fazer uma relação matricial entre as coisas e isso é complicado, porque você tem que ter uma coordenação muito, muito clara. E você tem que ter as pessoas muito interessadas em que isso aconteça. Se elas não estão interessadas você não vai muito adiante, né? Então o programa, mesmo em São Paulo, teve alguns produtos importantes. A gente mantinha uma relação bem mais próxima com o Programa Nacional de Biodiversidade. Estávamos acompanhando, dentro do possível e das nossas capacidades, que não eram muitas porque éramos poucas pessoas, o que acontecia em Brasília e tentávamos, de alguma maneira, atuar em São Paulo na mesma direção. Ou até nos avançar, até avançar um pouco no que diz respeito a Brasília. Conseguimos em algumas situações. Mas depois, infelizmente, já no final da gestão do Fábio, quando a Stela Goldenstein assumiu e depois o Trípoli, o programa praticamente deixou de existir. Então...
P/1- Quais eram as diretrizes e alguns resultados, conseguiu-se fazer alguma coisa nessa época?
R- Então, eu acho que a primeira grande coisa que o programa fez, e ainda não comigo, mas com o Joly - que foi o primeiro coordenador, que é o Carlos Alfredo, que é um professor da Unicamp - foi começar a discutir o conceito biodiversidade. Até 92, se você olhar textos da própria secretaria e de outros locais, você não vê essa palavra utilizada com frequência como hoje. Então já trazer esse assunto pra secretaria já foi um grande avanço que o programa fez. E o Joly ainda proporcionou e executou uma ação importante pra São Paulo, que nunca consegui também ir depois muito adiante, que foi uma discussão sobre o cerrado em São Paulo, que é um ecossistema, no Brasil, muito mal tratado. Os cerrados no Brasil servem pra campos de produção de soja ou de pasto, e em São Paulo não é diferente. Então discutir um pouco os cerrados em São Paulo, tentar achar uma forma de conservar ainda o que sobrava, etc., foi um produto inicial que o Probio ajudou a fazer com parcerias de várias instituições. Mas foi importante pra, não só chamar atenção pra esse ecossistema, mas como pra trazer essa novidade de juntar muita gente de expertises diferenciadas, de instituições diversas, pra discutir o mesmo assunto. Normalmente, a secretaria, eu não me lembro de ter visto antes nada muito parecido com isso. E isso acabou virando uma certa metodologia que depois, em muitos lugares e para muitos assuntos na área de meio ambiente, pelo menos, tem sido utilizada. Com variações, obviamente. Então acho que a primeira ação foi um pouco nessa direção. A segunda foi continuar trazendo à tona essa discussão e principalmente no caso da Secretaria em São Paulo, trazer novidades de pessoas mesmo que estavam discutindo assuntos polêmicos e que não havia ressonância interna ainda. Então acho que uma das coisas que a gente tentou avançar mais do que todas foi a parte de acesso a recursos genéticos. Eu sei que vocês conversaram com a Kitty já, e ela deve ter falado bastante desse assunto, mas nós conseguimos, até porque avançamos primeiro em São Paulo, chegar a fazer uma minuta de projeto de Lei Estadual. Antes ainda que houvesse a própria minuta federal, buscando regulamentar mesmo a matéria. Mas por um azar nosso acabou que quando a minuta estava pronta para ir a adiante e, eventualmente, virar uma lei, houve esse desmonte, por assim dizer, na Secretaria, depois do Fábio, e o Probio ficou muito pouco capaz de tocar coisas. E aí o Governo Federal avançou e efetivamente teria que ter feito isso mesmo na frente, né? Então a gente introduziu um pouco esse tipo de assunto lá dentro, que não era uma agenda que nós definíamos, mas que era uma agenda definida internacionalmente, que refletia-se no Pronabio, o Programa Nacional, e por consequência em nós. E eu acho que se perdeu muito depois que o Probio sumiu do mapa, porque nós passamos a fazer o que fazíamos antes, que era olhar pro próprio problema do dia a dia, do nosso umbigo, que não é pouco, e você não consegue ver o que está acontecendo lá fora, e perde com isso algumas oportunidades. Então nós discutimos muito isso de transgênicos, acesso a recursos genéticos, essa questão de áreas prioritárias para a biodiversidade ser conservada, algumas questões relacionadas à fauna, que na secretaria ainda é muito pouco trabalhada, fizemos a primeira lista de animais silvestres em São Paulo ameaçada, junto com universidades. Na verdade, vamos dizer, universidades eram adiantadas nisso e nós apenas oficializamos um trabalho que eles estavam já desenvolvendo. Então quanto a essa questão do Probio foi, eu acho que ela, se tivesse continuado, teria sido muito bom. Pena que não viram dessa forma e dançou.
P/1- E pra você, Cecília, qual a relação entre política e meio ambiente?
R- Ah, é completa. Eu acho engraçado quando as pessoas ainda falam: “ai, eu não sou político, detesto política.” Porque se mostram completamente, acho que, desinformadas do que é a realidade, porque todas elas, na verdade, precisam, não ser políticas no sentido de virarem deputados ou vereadores, mas se você não souber o que está sendo decidido e como é que esses meandros minimamente funcionam, você está sendo levado, como qualquer pessoa que não tem o menor interesse sobre nada vai ser levada também. Então eu acho que tem total, total interferência, total necessidade de ser trabalhada. Política entendida no seu caráter mais amplo mesmo, né? Se a gente não tem no país um interesse e uma percepção do que seja meio ambiente, você tem políticas, ações e diretrizes completamente equivocadas, do meu ponto de vista. Então ainda eu creio que é muito presente essa visão de que meio ambiente é tudo o que não está na cidade. Então: “ah, vamos para o meio ambiente.” Tipo, vamos pra floresta, que é o meio ambiente, as pessoas de modo geral. E isso é péssimo porque você não trabalha isso nas cidades, as cidades podem, e tudo acontece nelas, quer dizer, então a falta de áreas verdes, o uso que se dá pras áreas verdes. Praticamente você tem áreas verdes hoje em São Paulo que são o quê? Esses canteiros entre avenidas, o que se poderia chamar de praça, que também fazem parte da malha viária, e não um local, efetivamente, onde as pessoas tenham condições de apreciar como um espaço também condizente com a vida nas cidades. Quer dizer, a vida nas cidades pode ser muito próxima das florestas. Não precisa estar cercado e distante. E aí a política nesse caso, é um pouco naquela direção, o discurso continua presente, cada vez menos ainda na área do meio ambiente. Eu me lembro de uma reunião que foi antes do Serra ser Prefeito agora, que ele falou, deixou claro de cara: “olha, eu não vou falar de meio ambiente na campanha porque isso não interessa, a não ser… Não quer dizer que eu não vá fazer coisas em meio ambiente, eu não vou falar de meio ambiente.” Então por aí você vê que não dá pra você ficar brava com o Serra, falar: “ah, o Serra é um péssimo candidato.” Não. Dá pra você verificar exatamente como é que o mundo funciona. Está bom. Então alguma coisa está errada ou alguma coisa está faltando. E acho que houve uma derrocada aí, do Movimento Ambientalista, nesse sentido. Quer dizer, se conseguiu muita coisa, não há dúvida que houve progressos grandes e etc., mas o movimento não existe mais, do meu ponto de vista. Existem ONGs, algumas que mais fazem farol do que fazem projetos, e as que fazem projetos estão preocupadas que seus projetos tenham financiamento e que eles possam ser pagos no fim do mês, e estão certos até, nesse ponto de vista, mas não existe uma força e um lobby como existe pra qualquer outro setor junto aos políticos e na política brasileira. Então é importantíssima a questão política, meio ambiente, e Unidade de Conservação. E eu acho que está sendo pessimamente mal trabalhada por nós, e aí eu me incluo também como parte disso daí.
P/1- Quer dizer, e a Rio 92 que teve uma força muito grande naquele momento e agora esse esvaziamento, essa dissolução aí do Movimento Ambiental em relação ao meio ambiente. Como você vê, porque naquele momento foi tão forte, hoje em dia, no seu ponto de vista, não existe mais?
R- Eu acho que não havia como não ser forte naquele momento, porque havia questões, pelo menos pro Brasil, muito importantes de estarem sendo trazidas à tona. Como, particularmente, as questões amazônicas e outros assuntos de caráter de mudanças climáticas, que já se tinha muito claro que estava acontecendo. Então eu acho que naquele momento o mundo tomou consciência de que havia aquele monte de coisas também e se propôs positivamente, acho que com a crença mesmo, de que se conseguiria mudar uma série delas dentro de um prazo de tempo relativamente pequeno até, dez anos, ou uma média por aí. E acho que o que foi minando não só isso, mas o movimento, as intenções, ações, e interesse das pessoas por essa questão ambiental é que você não viu as coisas mudarem efetivamente, quer dizer, os passos que se deu não foram capazes de, eu acho, pro grande público, mostrarem: “olha, de fato, aquilo que se disse ia fazer lá, se fez e mudou.” Então acho que a percepção das pessoas acabou sendo aquela assim: “ah, teve um monte de falação, um monte de reclamação, o mundo ia acabar, o mundo não acabou, eu continuo podendo fazer tudo que eu fazia, nada mais foi do que um catastrofismo concentrado.” E, portanto, perdeu-se a oportunidade de que as pessoas efetivamente mudassem seus modos de agir. Ainda considerando que, obviamente, os interesses, no sentido das grandes, não é das grandes, a vida capitalista e o consumo, eles foram bombardeados para que continuassem acontecendo e cada vez mais. Então não houve um arrefecimento disso para que a outra coisa florescesse também. Então a outra coisa não conseguiu florescer e aquela outra parte, que era o consumismo super exagerado, hoje presente nas nossas vidas, continua sendo tratado como se fosse a melhor coisa do planeta, né? O crescimento, crescimento, crescimento com base nas questões econômicas. Então eu acho que essa descrença do movimento foi um pouco nessa direção. E no outro lado também, uma falta de argumentos técnicos mesmo. Você vê até hoje alguns argumentos contra coisas que estão sendo propostas que não têm nenhuma base técnica, então você perde a oportunidade de usar aquele espaço que você teve de cinco segundos pra falar sobre alguma coisa, falando uma bobagem lá, que é super ideológica, e que se perde no vento e, portanto, diminui a força do movimento.
P/1- E você acha que as relações entre os países num futuro, nem num futuro muito longínquo, até num futuro próximo, mais especificamente sobre seus cidadãos no que tange a questão do Desenvolvimento Sustentável, como que está se dando agora com, justamente com esse cenário que você nos colocou, as relações entre os países, nesse sentido, temos que pensar no Desenvolvimento Sustentável, acontece ou não, pra você?
R- Eu acho que não acontece. Sinceramente, eu acho que acontece esse pesar das vantagens e desvantagens. Então aquela coisa, bom, se eu puder ganhar alguma coisa fazendo diminuir a minha produção de CO2 num outro país, então eu faço. Eu não vejo, talvez eu esteja meio cética nesse sentido, eu não vejo um espírito humanitário movendo os países em prol do planeta. Sinceramente eu não vejo. Eu vejo um medir muito preciso do que ganhamos e o que perdemos fazendo isso ou aquilo. E é o que ganhamos e o que perdemos a curto espaço, não é o que ganhamos e o que perdemos no futuro. Tanto é que as discussões sobre a mudança climática estão no ponto que estão, ou seja se assinou, ratificou o protocolo, e pouca coisa você vê alterada. A não ser cada dia informações mais catastróficas de que o gelo daqui, o gelo dali já derreteram e assim vai. Então eu não consigo… E aí todas as questões hoje, de fundo, tratadas sobre a ONU… Quer dizer, o papel da ONU, que já é super importante, então a ONU perdeu totalmente o terreno com a história da invasão do Iraque e aí com denúncias também de outra natureza lá sofre o próprio Kofi Annan. Então acho que não se tem hoje no mundo… Talvez as gerações mais novas do que a minha não consigam ver no mundo um ente que seja, vamos dizer, sobre tudo e sobre todos, que quer o bem de todos. Porque a ONU eu acho que perdeu muito espaço nesse sentido também. E aí, do meu ponto de vista, é isso mesmo, relações que mantém e definem são infelizmente as relações comerciais. E ponto. E comerciais e estratégicas, no caso, o petróleo, a água e outros quesitos dessa natureza.
P/1- Está certo, Cecília. Tem alguma pergunta, César, que você quer fazer? Bom, então, pra encerrar, Cecília, eu queria que você fizesse uma avaliação. Enfim, o que que você tirou, quais as principais lições pra você, pra sua vida, que você tirou a partir da sua carreira, da sua carreira mesmo?
R- Olha, fora as de caráter mais talvez até de formação pessoal, do tipo, olha, você deve perseguir os seus objetivos, mas não sob qualquer custo, no sentido de, aí eu vou roubar pra conseguir chegar onde eu quero, né? Então, eu acho que isso é super importante, você manter uma certa coerência nas suas posições e muito ouvir e menos falar do que ouvir. E se possível, ouvir o maior número de lados possíveis, eu acho que é super… Foi super importante. É um aprendizado que eu acho que eu consegui ter e acho que eu consegui exercer até aqui. Acho também que trabalhar com a área de meio ambiente, embora a minha visão relativamente pessimista, ela é um trabalho maravilhoso. Porque, independente das dificuldades, é uma coisa que eu acredito que é importante, que as pessoas podem não estar talvez num grau de sensibilidade que gostaríamos ou que eu gostaria, mas eu acho que aos poucos elas vão alcançando esses diferentes e importantes graus. Espero que definitivamente, no futuro, a gente consiga ter um pouco mais de facilidade pra fazer algumas coisas. Mas eu acho que o aprendizado maior desse período todo é esse, que também não dá pra você acreditar que você vai mudar o mundo, coisa que eu também já acreditei. Achei que o que fazíamos era tão importante que seria muito útil pra todo mundo. Mas, também, não perder a oportunidade de achar que você vai fazer diferença, né? Quer dizer, não é aquela coisa: ai, não vou mudar o mundo, então não vou fazer nada, deixa tudo como está que está tudo perdido mesmo, vou também roubar porque assim... Não, acho que não, acho que isso me dá uma tranquilidade de ter feito sempre na minha vida o mais possível, e o mais na maior lisura. Maior lisura não, na total lisura, não importa onde eu estivesse trabalhando. E acho que isso é ótimo pra você poder continuar trabalhando bem e fazendo as suas coisas bem. E essa coisa de você, se possível, manter os colegas e ouvir, ainda que as pessoas, cada uma vá pra um lado diferente e acabem tendo percepções distintas sobre o problema que antes pra elas era igual pra você, também manter esse tipo de relações, porque isso é o que faz a criatividade dar solução dos problemas. Quer dizer, quando você fica só lá com aquela tua: “ah, eu sei como faz.” Aí você está lascado. Não tem, não tem solução.
P/1- Está certo. Então, só pra encerrar então, o que você acha de ter participado desse projeto de memória da Convenção da Diversidade Biológica?
R- Ah, eu acho sempre interessante. O Fábio é cheio de criatividades, e eu acho que esse talvez seja um grande ponto positivo que ele tem como pessoa e como profissional. Eu acho que uma das coisas que, no Brasil, a gente carece bastante é Memória. Inclusive pra poder não ficar gastando muito tempo, até pra ser pragmáticos e resgatar algumas coisas importantes. Eu gosto de saber como foram as coisas antes, pra poder pegar algum dado que seja relevante. E acho que o projeto da COP é importante até por esse momento que eu mencionei, que do meu ponto de vista, o Movimento Ambientalista é, hoje, muito fragilizado. Acho que é importante resgatar, importante criar pessoas novas que se mobilizem por essa causa. Hoje, a gente, no meu ponto de vista, tem falta de líderes na área, a maioria das pessoas está na faixa dos cinquenta, quiçá sessenta. Você não vê lideranças aí, em grande quantidade, aparecendo mais novas. Então acho a coisa do resgate, de chamar atenção pra tudo que já se fez, eu acho importante pra isso também.
P/1- Muito obrigada, Cecília, pelo seu depoimento.Recolher