Projeto Perpetuando a Rede LAC
Depoimento de Verónica Andréa Gómez Prestes
Entrevistada por Immaculada Lopez e Mariângela de Paiva
São Paulo, 15/11/2006
Realização: Museu da Pessoa e Rede LAC
Entrevista nº Redelac_HV010
Traduzida por Andreia Menezes
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
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Projeto Perpetuando a Rede LAC
Depoimento de Verónica Andréa Gómez Prestes
Entrevistada por Immaculada Lopez e Mariângela de Paiva
São Paulo, 15/11/2006
Realização: Museu da Pessoa e Rede LAC
Entrevista nº Redelac_HV010
Traduzida por Andreia Menezes
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Gostaria que você dissesse seu nome completo, a data e o local onde você nasceu.
R - Meu nome é Verónica Andrea Gómez Prestes. Nasci em Dolores, Soriano, Uruguai, em cinco de agosto de 1969.
P/1 - Sua família é toda do Uruguai? O que você sabe sobre a sua família?
R - Sim, são todos do Uruguai, ainda que metade da minha família esteja na Venezuela - minha mãe e meus dois irmãos estão na Venezuela. Mas todos os meus avós eram descendentes de portugueses. Seus pais eram portugueses, mas nascidos no Uruguai - em Soriano, no litoral do Uruguai.
P/1 - E seus avós? O que você pode nos contar sobre eles?
R - Do meu avô, tenho uma imagem muito bonita. Era uma pessoa muito boa, sentia muito carinho por ele, muito amor. Senti muito quando o perdi, quando tinha apenas dez anos, e fiquei sozinha com a minha avó e minhas tias e todos os adultos. Minhas tias já eram mocinhas nessa época. Acabei de ser criada com o apoio de três tias e minha avó.
P/1 - Seu avô e sua avó são de parte de …?
R - Da minha mãe.
P/1 - Como os seus avós se chamavam?
R - Meu avô se chamava Pedro de León Prestes e minha avó, Carmen Ferreira.
P/1 - Como era a vida deles?
R - Minha avó era uma mulher da casa, eu não entendo… E meu avô trabalhava muito, muito, em dois trabalhos, o dia todo. Trabalhou até uns anos antes de falecer. Faleceu bem velho, mas trabalhava, era muito trabalhador o meu avô, e sempre procurava alguma coisa para fazer. O que me lembro dele era de vê-lo no trabalho. Quando voltava tinha uma oficina, um lugar de ferramentas, banco carpinteiro, essas coisas. E ele passava o tempo lá, trabalhando, fazendo brinquedos, arrumando sapatos. Era muito trabalhador.
Uma lembrança muito boa que tenho da minha infância - são muito poucas - foi um dia que tinha chovido muito, ver meu avô comigo com um barquinho - se chamava Leonor o barco - um barco de madeira, na sarjeta, onde passa a água, lá, brincando. Essa é uma das imagens mais lindas que tenho da minha infância, que são muito poucas.
P/1 - Os dois brincando com o barco?
R - O que mais lembro da minha infância é essa beleza e algo, acho, que marcou a minha vida nesses anos. O Uruguai entrou na ditadura militar e na zona onde eu morava ficavam os guerrilheiros, chamados tupamaros, lá no Uruguai - numas cavernas, no campo, eram chamados de tatuceras. E o que eu me lembro era de sentir sobre a minha casa o helicóptero dando voltas e voltas por cima da casa.
Essa é a parte ruim da qual me lembro. Tinha seis anos. Muito poucas lembranças. Não sei se tenho poucas lembranças ou se não quero lembrá-las, mas o que eu posso te dizer é isso…
P/1 - E sua avó era dona de casa, não é?
R - Minha avó era dona de casa, mas eu não me entendia com ela porque era muito rígida, dura demais. Foi uma infância muito difícil, com muita violência por parte da minha avó, violência física. [Isso] me marcou. Muda a vida da gente.
P/1 - Quem mais morava na casa?
R - Depois que meu avó faleceu, moravam três tias, muito jovens, adolescentes naquela época. Hoje em dia gostam de mim como uma irmã. Somos como irmãs.
P/1 - Como se chamam?
R - Chamam-se María del Carmen, Mónica e Isabel. Eu me relaciono mais com a Isabel. É a que mora em Montevidéu, perto de onde eu moro. As demais moram em Dolores e nos vemos pouco porque desde que me mudei de Dolores vou muito pouco para lá.
P/1 - E fora de casa você brincava na rua? Brincava com seus amigos?
R - Tinha muitos amigos, amigas de escola.
P/1 - Quando você foi para a primeira escola?
R - Estudei numa escola da região, que era suburbana, não era no centro; na verdade, era já saindo da cidade. Chama-se Juan Manuel Blanes. Lá fiz toda a escola.
P/1 - Como era essa escola? Você se lembra?
R - Era muito bonita. Éramos muitas crianças, muitas classes, muitos primeiros, segundos anos. Íamos todas as crianças pobres a uma escola do bairro e do que me lembro é que, ao lado da minha escola, havia um moinho de grãos. Eu sofria muito nos recreios, porque o pó vinha parar no pátio da escola, pó de trigo, e me fazia muito mal. Eu tenho alergia, bronquite alérgica, e me fazia mal. Mas a escola era linda.
P/1 - Como era? Grande?
R - Não muito grande, era uma escola... Faz tanto tempo que não a vejo, tantos anos... Capaz que não fosse tão grande. Às vezes, quando a gente é criança, as coisas parecem tão grandes.
P/1 - O que você gostava de fazer com seus amigos nessa época?
R - Eu gostava muito de estudar. Era muito boa aluna, era boa em tudo, me comportava bem. Eu nunca tive problemas e uma coisa que eu guardo da minha escola é o professor. Tive professoras nos primeiros anos, depois tive durante três anos o mesmo professor. Ele se chamava Luís Ángel Frigueiro. Era o mesmo professor. Era casado, tinha uma filha. Depois, foi embora porque encontrou um trabalho melhor e todos sofremos porque ele foi embora. Foi uma pessoa muito importante na minha vida, meu professor Luís.
P/1 - Por algum motivo especial?
R - Pelo carinho que dava para mim e para todos os meus companheiros. Era muito bom conosco.
P/1 - Como era a cidade onde você passou a sua infância?
R - É linda. É uma cidade antiga e tem uma grande história porque é uma das primeiras cidades do Uruguai e por lá passou a cruzada libertadora. Então, na época das datas cívicas, eu lembro que em dezenove de abril passaram pela minha cidade os 33 uruguaios que libertaram a pátria. Eu ia à praça Romero, a Acción de Dolores.
É uma cidade que vive da gente do campo, vive dos que plantam trigo, girassol... Lá tem muita população rural e está perto do rio São Salvador, que é um rio que desemboca no rio Uruguai, o rio mais importante que temos.
Às vezes, hoje em dia, penso que Dolores de hoje não é a Dolores que eu trago na memória. Hoje, Dolores é de monocultura de soja, que transformou a vida das pessoas. Eu sei que a Dolores que eu vivi não é a de agora.
P/1 - A que lugares você gostava de ir?
R - Em Dolores... A praça principal. Quando éramos crianças, jovens, todas as famílias iam à praça pública, havia bancos… Então, nós, jovens, caminhávamos ao redor da praça. Muita, muita gente...
[Era] a tradição da cidade, algo incrível que nunca esqueci. Imaginem muita gente dando volta na praça, andando e conversando. É único.
P/1 -
Só as meninas?
R - Não, todos que quisessem. Tinha gente que se sentava nos bancos, outros começavam a caminhar ao redor da praça: a volta da praça.
P/1 - Jovens e adultos?
R - Jovens, adultos, senhores. Todos.
P/1 - Em que momento?
R - No domingo à noite. Eu nunca vi isso em outro lugar. Essa tradição era somente em Dolores.
P/1 - O que mais tinha na praça?
R - Tinha um monumento, que se chama Acción de Dolores, que é uma mulher se libertando e está com a mão erguida. A igreja de Dolores é muito bela, antiga, que também vejo nesse momento. É belíssima! Todo o altar, cada santo.
P/1 - Você ia à igreja?
R - Muito. Minha avó era muito devota, então íamos sempre que podíamos à igreja e ela levava minha tia e eu. Quando eu ia à igreja, eu dormia. Terminava a missa, me levavam assim, dormindo para casa. [Elas] me seguravam, uma em cada braço.
Na minha casa, criaram um ressentimento muito grande em mim. Eu acho que, para mim, sou católica, mas acho que levo Deus comigo em cada instante da minha vida e não é tão importante ir a uma igreja pedir perdão. Mas de tanto, tanto ir à igreja e saber a missa de cor... Até hoje em dia, sei: desde que começa até que termina, cada palavra da missa.
P/1 - Todos os dias?
R - Sim, todos os dias.
P/1 - Você passou a juventude lá? Como foi a juventude em Dolores?
R - Minha juventude, desde quando era muito criança, foi estudar até o terceiro ano do colegial. Fiz o terceiro ano e parei, porque minha avó não tinha dinheiro para pagar e para ter uniforme, sapatos, não dava.
Dos quinze aos dezesseis anos, não fiz nada porque minha avó dizia que não, que trabalhar, não. E não fiz nada. Aos dezessete, eu decidi estudar e fiz o quarto, quinto e sexto ano. E eu trabalhava de empregada doméstica, cuidando de crianças de uma família que terminou de me educar, de me dar uma formação: de como falar, até como limpar, como comer, uma educação que eu não tinha. Essa família, que hoje em dia é como minha própria família, está em Dolores. Temos uma relação de visita.
P/1 - Você morava com eles?
R - Não, eu ficava o dia inteiro com eles, à noite ia estudar e depois voltava para dormir na casa da minha avó. Eu digo sempre que depois que comecei a trabalhar, nunca mais me faltou comida, roupa. E a dar conta de mim mesma, porque se passava muita necessidade. É o que eu te dizia: não suporto as pessoas que não se mexem. Não suporto. Trabalhar e dar conta de si mesma. Então, trabalhei, estudei.
P/1 - Como era essa casa, quem eram essas pessoas?
R - Era uma casa no centro da cidade. Eu conhecia a dona, que é minha amiga hoje em dia. Construímos uma boa relação. Um dia eu estava na praia - porque em Dolores tem praia, de rio, pequena - e ela disse: "Você está trabalhando?” "Sim, estou, mas ganho cerca de trinta pesos", algo assim. Eu tinha que trabalhar três meses para comprar um par de sapatos. Então, ela me disse: "E por que você não vem trabalhar comigo? Eu te pago vinte pesos. Você só tem que cuidar das crianças." "Vou."
No dia primeiro de março, comecei a trabalhar com ela. As crianças eram pequenas. Cuidar da Inés e do Guillermo. Daniel, como se chama o esposo dela, tem uma fazenda no campo, com todas as coisas.
P/1 - Nessa época, que diversão você tinha? O que você gostava de fazer?
R - Gostava de fazer tudo, mas não podia fazer nada. Sentia-me com as mãos, os pés, os braços atados. Não podia nada. Ir a um baile, ainda que fosse de dia, não podia. Um aniversário de quinze anos, não podia. A nenhum lugar podia. Minha avó não me deixava sair, tinha medo que acontecesse alguma coisa.
P/1 - E no colégio? Quais são as lembranças do colégio? Do que você lembra?
R - Do colégio... Tem uma festa que se chama Festa da Primavera. Fazemos uma carruagem, é feita com o apoio de toda a cidade. Eu podia participar fazendo flores, fazendo a carruagem, mas não podia desfilar no dia da festa. Não me deixavam porque ia mostrar as pernas. Nunca desfilei, mas aproveitava muito porque tinha trabalhado.
P/1 - Que trabalho você fazia?
R - Fazíamos flores, são carruagens com flores. Flores de papel, flores de nylon. Fazíamos uma estrutura grande de ferro que enfeitávamos com flores.
P/1 - E eram muitas carruagens?
R - Eram muitas. Trinta, mais.
P/1 - E o que acontecia?
R - No dia da festa, a carruagem saía com um trator e os jovens dançavam... Eu, disso, não podia participar.
P/1 - Em que dia era essa festa?
R - Segundo domingo de outubro. Todos os anos, o segundo domingo de outubro era a Festa da Primavera.
P/1 - Você vai morar com essa família, depois você casa. E essa transição? Como foi conhecer o seu marido, se casar?
R - Conheci meu marido... É engraçado, porque estava no mercado da cidade. Eu o conhecia, mas de longe, de vista. E o conheci no mercado numa charrete. Vendia verduras: alface, cenoura, todas essas coisas do campo.
Depois que nos conhecemos, era incrível: ele podia passar um domingo dando volta ao redor da minha casa, no quarteirão, durante toda uma tarde. Eu o olhava pela janela, não saía. Na verdade, não gostava dele; tenho que reconhecer que não gostava desse rapaz. E ele ia ao colégio. Aparecia e eu corria. Até que um dia, saindo da missa, quando esse senhor veio, parou do meu lado com a bicicleta e a minha avó gostou dele. Então, quando chegamos em casa, disse: "Posso vir visitá-la?” “Sim.”
P/1 - Ele podia te visitar em casa?
R - Sim. Começou a me visitar e, um dia, me deu um beijo.
P/1 - O primeiro beijo...
R - Começamos a nos conhecer, a contar como vivíamos, o que acontecia, que sentia...
Passaram alguns dias, um mês. Um dia, estávamos sentados. Ele usava uns óculos, umas lentes grossas; tirou os óculos, eu o vi e gostei muito. Eu me apaixonei, e até o dia de hoje cada dia mais.
P/1 - Como ele se chama?
R - Chama-se Jorge.
P/1 - E como foram essas primeiras visitas? Como eram?
R - Era... Na sociedade que vivemos hoje, é estranho ficar conversando com alguém e pegar na mão, todo esse romance, tudo isso, durante muito tempo. Os dois jovens, sem experiência.
P/1 - E você lembra do dia em que vocês resolveram se casar?
R - Ele estudava numa escola que estava na Libertad, San José, e disse: “Vamos nos casar.” Ele não perguntou se eu queria me casar. E eu queria. E que vamos fazer? Vamos nos casar.
Decidimos nos casar. Eu faço aniversário no dia cinco de agosto, fazia 21. Em seis de agosto, fomos nos casar porque eu não queria pedir permissão para a minha mãe, não acho que fosse justo pedir permissão. E, ao cumprir 21 anos, eu era livre para poder me casar. Nos casamos em trinta de agosto de 1990.
P/1 - Teve uma cerimônia?
R - Sim. Fizemos o civil primeiro. À tarde o civil e à noite na igreja.
Foi um dia muito feliz, um dos dias mais felizes. Na igreja de Dolores, que é tão bela. Meu sogro foi meu padrinho, quem me levou ao altar, e minha sogra. Eu os considero como pais, gosto muito deles. Aceitaram-me como uma filha e são muito bons, até hoje em dia.
P/1 - O que você lembra mais do casamento?
R - A única coisa é que coloquei um vestido branco e agora entendo por que. Não era necessário.
P/1 - Você escolheu?
R - Sim, eu queria me casar e sair com a mesma roupa do civil. Tínhamos cumprido um sacramento, não precisava das pessoas. Mas minha mãe comprou, lhe dei esse gosto. E a festa foi muito bonita, um pouco triste. Não se podia dançar porque tinha falecido o avô do meu esposo. Lua-de-mel não tive, porque não tínhamos dinheiro.
P/1 - E onde foram morar?
R - Alugamos uma casa, uma parte da casa. Eu morava sozinha e nos fins de semana ele ia me visitar, mas não morávamos juntos. Não morávamos todos os dias juntos porque ele estudava.
P/1 - E você continuou com seu trabalho?
R - Sim, sempre. Nunca parei de trabalhar.
P/1 - Desses primeiros momentos da união de vocês, você se lembra de alguma coisa?
R - Nos primeiros anos, estávamos muito felizes. Ficamos em Dolores, até que depois decidimos vir para Montevidéu. Eu vim para Montevidéu, mas seguimos na mesma, nos víamos nos fins de semana.
Ele terminou seus estudos, começamos a morar juntos e aí encomendamos nossa filha mais velha. Nesse momento, começamos a morar juntos e a ter uma vida mais tranquila. Morávamos na zona rural de Montevidéu - no campo, mas em Montevidéu. Anos muito, muito lindos.
P/1 - Como era o lugar?
R - Era perto do Rio da Prata. É uma zona muito bonita de Montevidéu, de plantação de frutas. E o Jorge era o encarregado dessa chácara, encarregado de administrar. A partir do momento que eu aceito o Jorge como esposo, já começo a me sentir na atividade rural. Se não fosse pelo meu casamento, eu não teria virado uma mulher rural. Foi quando pude ter toda essa experiência de ser uma mulher rural.
P/1 - Porque ele...
R - Ele nasceu no campo, é camponês, técnico agrário, especialista em agricultura, mas é produtor também. Então, nunca parou. Quando éramos empregados, trabalhávamos de encarregados nas colheitas, colhendo pêssego, colhendo maçã, colhendo limão, com minha bebê pequenininha, porque tenho muita habilidade com as mãos. Então, se colho limão, colho muito. E como se paga por quilo...
P/1 - Foi seu primeiro trabalho rural?
R - Sim. O primeiro que comecei a fazer foi juntar limões, juntar pêras, maçãs.
P/1 - Como começou a sua rotina com essa mudança?
R - Mudou muito a minha vida, porque antes eu trabalhava em uma loja, atendendo ao público, e de homeopatia.
P/1 - É mesmo?
R - Houve uma preparação para isso. Fiz cursos de homeopatia em Montevidéu, trabalhei numa farmácia de homeopatia, atendendo ao público. Quando fiquei grávida, quando estava para ter, parei.
Foi uma mudança muito grande. De estar sempre com as mãos impecáveis, mãos bem limpas, por causa da atenção ao público, ir para o campo. Muda a vida... Não parei até o dia de hoje. Eu gosto muito, é uma escolha. Eu escolho trabalhar nisso a trabalhar em outra coisa.
P/1 - Como é seu dia? Você pode descrever um dia?
R - O de hoje em dia ou o de antes?
P/1 - Naquela época.
R - Naquela época, era cuidar da bebê, que era pequenininha, ir à colheita, cozinhar, lavar... Era tudo.
P/1 - Levantar cedo?
R - Sim. Meu companheiro é um companheiro, sempre foi. Desde o momento que ficamos juntos, sempre foi. Uma coisa da que lembro, que valorizo muito nele, é que quando veio a primeira filha eu estava preparada para um parto natural, com a respiração, com todas as coisas e no momento de nascer ela tem um problema, se encaixa mal e fazem uma cesárea. Foi um choque.
E me lembro que ele estava tentando trocar as fraldas da nossa filha. Nunca tinha tido um bebê nas mãos e ele tentava trocar as fraldas da nossa filha, tentava limpá-la. Veio uma enfermeira e disse: “O que você está fazendo?” Quatro filhos, quatro cesáreas e, nas quatro, ele que cuidou de mim. Temos um laço muito forte por esse cuidado, por esses momentos que vivemos juntos.
P/1 - Em que dia nasceu a sua filha?
R - Minha filha nasceu em vinte de maio de 1998.
P/1 - Como se chama?
R - Carolina.
P/1 - O que mais você lembra do nascimento da Carolina?
R - Foi um dia longo. O trabalho de parto o tornou tão longo, tão longo... Quando ela nasceu, eu não sabia o que era. Eu pensava que fosse um menino, mas não podia acordar. O sofrimento de acordar da anestesia e vê-la foi um momento muito, muito emocionante. Algo meu, minha filha. Foi muito importante o nascimento da minha filha.
P/1 - E esse nome? Por que?
R - Carolina… Mesmo que pareça mentira, minha irmã se chama Carolina. Eu gosto muito da minha irmã, porque ela não tem culpa do que aconteceu, nem do que aconteceu antes. Tenho mais contato com a minha irmã, é uma irmã virtual; nos comunicamos pela internet ou por mensagem de texto ou pelo chat. E, por isso, lhe chamei Carolina: pela minha irmã.
P/1 - Quando nasce a sua filha, vocês estão na casa do campo. Por quanto tempo?
R - Nós, procurando melhorar nossas vidas, primeiro trabalhamos de empregados, os dois. Depois, trabalhamos de meeiros: metade para você, metade para mim. Foi uma época muito linda, quando nasceu Santiago, meu filho mais velho dos homens.
Depois disso, quisemos ir além: alugamos uma chácara e começamos a ser produtores, somente nós. Em 1999, sai um projeto no Uruguai para jovens que quisessem se estabelecer no campo. Era um projeto muito tentador, e compramos outra chácara por intermédio de um banco. Fizemos muito sacrifício, porque o dólar estava quase três vezes mais e somente recentemente pudemos saldar nossa dívida.
Passamos todo um período de crescimento, até hoje. Ser produtores, como camponeses. Somos uma família muito grande, então nós dois temos trabalho extra, fora do campo.
P/1 - O que vocês fazem?
R - O Jorge assessora pequenos produtores. Ele tem uma filosofia de trabalho de uso reduzido de agrotóxico e aplica isso, e eu trabalho num programa de microcrédito para pequenos produtores assalariados, que é muito bom para as pessoas. E, assim, estou constantemente lidando com as pessoas, que é do que eu gosto.
P/1 - Essa chácara foi uma conquista, não?
R - Sim, a terra foi uma conquista.
P/1 - Como é o lugar?
R - É uma pequena área de cinco hectares. É uma fração estreita e muito comprida. No meio, está a casa. É uma casa antiga, tem uns cinquenta anos, feita de tijolo e barro, com reboco de material, em forma de rancho. Hoje em dia podemos deixá-la digna, bonita por dentro.
P/1 - E o que vocês plantam hoje?
R - Tomate. Temos uma estufa de tomates.
P/1 - E como é esse trabalho de plantação de tomate?
R - Decidimos ter tomates porque acho que nos dá mais rentabilidade. É mais seguro o ano todo. Nós fazemos duas colheitas ao ano. Levantamos uma colheita, já temos as mudas novas. Deixamos uns quinze dias fechadas, para curar. Está sempre em estufa fechada.
P/1 - Você mesma? Trabalha diretamente?
R - Trabalhamos os dois, eu e o Jorge.
P/1 - Todos os dias?
R - Não, não é um trabalho diário porque o acompanhamos de perto: os tomates brotam, tem uma corda por onde você vai enrolando a planta, tira os brotos. Isso permite poder fazer outras coisas. Além disso, cuidar das crianças, que estão indo para escola, e cuidar da casa, cuidar da organização, cuidar do grupo, os vizinhos que sempre precisam de alguma coisa. É assim.
P/1 - Como é a sua casa?
R - Minha casa? O que tem é que eu sinto que é um lar, um lar onde todos valemos o mesmo, todos somos iguais. Nós, as crianças, todos temos opinião, todos somos respeitados. Mais do que as coisas, as paredes, ou se o piso está bonito, interessa o outro.
O bom é que vamos para escola, vamos e dizem: "Seus filhos refletem o que é a casa de vocês por tal e tal coisa.” Isso nos enche de satisfação, porque vamos por um bom caminho para eles.
P/1 - Em que momento vocês estão juntos?
R - À noite, de tardezinha, quando voltamos, procuramos ter um jantar, uma refeição todos juntos, conversar e contar o que um fez, o que fez o outro. Às vezes, eu e o Jorge falávamos de trabalho e eles se sentiam fora disso. Então, minha filha disse: “Vocês estão só entre vocês.” Então, decidimos que vamos procurar separar. Trabalhamos muito os dois juntos, então somos companheiros de trabalho, mas temos ainda que aprender a separar o trabalho, a família e a vida privada. É o que está custando um pouco.
P/1 - Você gosta de cozinhar, não?
R - Eu gosto de cozinhar. Eu faço bolo de aniversário para eles. Eles me pedem e se não faço, reclamam.
Faço tudo caseiro, toda a comida na minha casa é comida feita em casa - desde do bolo até o último sanduíche, tudo caseiro. Mas me agrada muito eles preferirem a minha comida.
P/1 - E o movimento de mulheres? Quando começa a entrar nessa história?
R - No ano de 96, 97, meu filho pequeno... Tinha um grupo de jovens na zona e nós íamos acompanhar nas festas, e eu dizia às mulheres: “Vamos fazer um grupo." Aí nasceu o grupo.
P/1 - Não entendi. Iam a uma festa?
R - Uma festa no campo, nas escolas. Os homens tinham seu grupo, as mulheres, não. E nós necessitamos desse espaço para conversar e formamos um grupo. Éramos vinte mulheres e, depois, algumas mulheres não se interessaram em participar. Até que chegamos a doze mulheres e hoje em dia somos onze.
Eu começo a trabalhar e a me dar conta... Minha cabeça voa, imagino coisas e mostro. Elas gostam das minhas ideias, aí vamos todas e fazemos. Percebi que eu gosto de trabalhar com as mulheres, para as mulheres.
P/1 - Que tipo de atividades tem nesse grupo?
R - Atividade produtiva. Fazemos doces, geleias. Foi um processo, de muitos anos de trabalho e desenvolvimento, de independência. Conquistamos cada pedacinho e levamos as companheiras a ganhar este espaço continuamente. Começamos na escolinha rural e hoje temos um lugar grande, com cozinha, com um salão de vendas. Tudo isso conseguido através de gestões, de projetos, de escrever experiências. Eu escrevi uma experiência e o projeto ganhou.
P/1 - Você escreveu com a ideia de fazer algo produtivo?
R - A cozinha da escola.
P/1 - A cozinha?
R - Mas ao mesmo tempo é o todo, porque também fazemos oficinas de saúde, saúde reprodutiva. Fazemos alianças com outras instituições, trabalhamos com o meio ambiente. É um grupo que, às vezes digo: "Vocês vão me matar!" Sabem de uma coisa, de um convite... "Vocês vão me matar." Mas a gente tem que estar sempre trabalhando.
P/1 - Nesses primeiros anos, você lembra de alguma coisa que te marcou?
R - Eu, no nível pessoal, percebo que tenho que fazer coisas.
P/1 - Mas o que te deu essa percepção? Aconteceu alguma coisa?
R - Fazer o projeto. Estávamos com um engenheiro que trabalhava para nós, fazendo um projeto.
Eu comecei a trabalhar com uma companheira, que é como uma irmã para mim, trabalhávamos juntas. Nós fizemos e percebo que tenho capacidade, poder de desenvolver uma ideia, de colocá-la no papel. Percebi que tinha essa habilidade de escrever, de poder formar uma ideia e de convencer. Íamos a uma entrevista e era fácil para nós convencer, então aí que vou percebendo que sirvo para isso.
Depois, fazendo capacitação em tudo: liderança, administração, marketing. Tenho um currículo muito longo. Quando estava fazendo um dos cursos, conheço a presidenta da Rede de Mulheres do Uruguai e temos uma conversa. Nós nos conhecemos e, poucos dias depois, ela me chama e propõe que nosso grupo faça parte de nossa rede. Que ótimo! Aí começo a trabalhar na Rede de Mulheres.
P/1 - Você lembra da sua primeira participação na Rede?
R - Trabalhei primeiro na comissão de apoio. E quando foram as eleições de representantes, me elegeram como presidenta. Com muitos, muitos votos.
P/1 - Como foi esse dia?
R - Muito, muito feliz [por] ser reconhecida. Muito feliz por poder representá-las.
P/1 - Lembra de como essa notícia chegou até você?
R - Sim. Estávamos na reunião e a presidenta contou os votos. Um dia muito importante. Estava todo o meu grupo comigo, minhas companheiras, e elas estavam muito contentes porque era seu grupo que ia presidir uma organização.
P/1 - Todos levantaram a mão?
R - Era voto secreto. E foi um desafio muito grande para mim. Percebi no outro dia o que me esperava.
P/1 - Quando foi isso?
R - Há uns quatro anos.
P/1 - E como são as atividades da Rede Uruguaia?
R - A rede trabalha com grupos de mulheres que sejam rurais, e trabalha com diferentes temas. Trabalhamos por meio de oficinas, abarcamos muitos temas.
P/1 - Por exemplo?
R - Participação política de gênero, violência doméstica, saúde, meio ambiente, produção, desenvolvimento… Muitos temas. Não trabalhamos mais porque não temos tempo.
P/1 - A Rede apoia outros movimentos?
R - A Rede apoia seus grupos com oficinas de capacitação. A Rede dá uma oficina sobre agrotóxico, por exemplo. Nós achamos que damos às mulheres oportunidade de conhecer. Nós levamos ferramentas, elas decidem.
P/1 - São muitos grupos?
R - Para o tamanho do Uruguai, somos muitos. Somos 22 grupos de mulheres com diferentes características. Grupos sociais, são muitos; grupos sobre produção, são poucos. Muitos sociais, que trabalham muito dentro de seu grupo, que têm muito trabalho de prevenção com relação à saúde. Eles têm um lindo trabalho de doação de sangue. Um trabalho sobre prevenção de câncer, prevenção de drogas. São muitos grupos sociais e poucos sobre produção.
P/1 - Tem alguma história ou algum momento que você poderia nos contar que ilustre um pouco a importância do trabalho que você faz com as mulheres? De como, de alguma forma, afeta a vida das mulheres?
R - Afeta e muito. Às vezes, tem pessoas que não estão no lugar; não vêem como é funcionar com poucos recursos, sem uma assessora, sem uma administradora, uma secretária. Todo o trabalho de uma organização é administrativo, e às vezes a gente sente que não evolui porque você tem que apagar incêndios continuamente: cumprir os compromissos da Rede LAC, mas também responder os e-mails - chegam muitos por dia -, e também ir a reuniões, a palestras. É um trabalho duro, que desgasta muito. Tem que ter muita força de vontade para continuar lutando.
Além do mais, somos mulheres pobres, não temos recursos para nos locomover. Eu saio… Agora não, mas até um mês atrás, ia de bicicleta até a estrada e esperava o ônibus que me levava a Montevidéu. Muitas vezes com frio, muitas vezes com chuva, muitas vezes voltar à noite. Sempre você fica pensando nos outros e, às vezes, acontecia que esquecia de mim mesma, me esquecia da Verónica. Não me cuidava, não fiz o check-up, o que me trouxe consequências porque estava sempre correndo, mas não me arrependo do trabalho, o crescimento que tive, o desenvolvimento pessoal...
P/1 - Que tipo de coisas te anima?
R - Eu me animo quando vou visitar alguém na sua casa, e me irrita muito que é o homem quem atende, é o homem quem fala. Falta tanto trabalho para fazer. Quando vejo que as mulheres estão nas suas casas e não têm como sair, não têm seu dinheiro... Isso é o que te anima a continuar. Eu me proponho algo e sigo, sigo, sigo.
P/1 - Você mencionou a Rede LAC. Como você começa?
R - A Rede LAC... A Kika é um personagem. É uma das fundadoras da Rede de Mulheres do Uruguai, mas também da Rede LAC. Eu conheço a Kika antes de integrar a rede, trabalhando numa mesa de desenvolvimento local, da qual nós duas fazemos parte até hoje em dia, e começamos uma amizade muito bonita. Até hoje em dia a gente gosta muito uma da outra. Conversamos e nunca é suficiente, nos vemos e nunca é suficiente. E ela foi me passando toda a sua experiência.
Em 2005, ela vem a uma reunião no Brasil onde se decide o 2º Enlac, no México. Ela me pergunta se eu posso ajudar na coordenação e trabalhar um pouco nas oficinas prévias que fizemos no Uruguai, antes de ir ao México, e começo a trabalhar com as minhas companheiras. Trabalhamos muito porque tínhamos que conseguir as passagens, falar com as embaixadas. Fizemos todo esse trabalho prévio, até que decidimos que eu era uma das mulheres que participaria do encontro, porque a Kika dizia que eu era muito valiosa, que tinha que participar. E assim foi como eu participei com muito sacrifício econômico do 2º Enlac.
P/1 - Como é o processo de se preparar para um Enlac?
R - Duro. Porque nós, no Uruguai, chegamos ao acordo de que íamos dividir as passagens entre as organizações das quais participávamos. A rede conseguiu algumas passagens e isso não era muito, por tudo o que a mulher tem que conseguir quando tem que ir a um encontro - porque não tem passaporte, não tem como pagar o embarque, não tem roupa apropriada, não tem uma mala. São tantos os detalhes que é fundamental a solidariedade das companheiras para poder ajudar, para que se possa participar.
P/1 - Como solucionar isso?
R - Eu tenho amigas muito queridas, muitas amigas - muitas não, porque amigo para mim é muito sagrado. E me deram roupas para vir, a outra me deu uma mala e assim se soluciona. Mas é difícil de vir, não ter um peso no bolso. As mulheres das delegações uruguaias foram muito solidárias, todas muito companheiras. Continuamos nos reunindo até agora, mesmo depois do Enlac, várias vezes.
P/1 - Há também outro tipo de preparação?
R - Sim, preparação nos diferentes temas que íamos tratar. A situação das mulheres no Uruguai, por exemplo. E aí era outro desafio trazer as mulheres para as reuniões preparatórias. Fizemos reuniões onde participaram as que iam para o México e outras mulheres. Fizemos três reuniões, prévias e preparatórias para o Enlac. Trouxemos um especialista no tema, por exemplo, para dar uma palestra.
P/1 - Lembra de uma temática que você achou importante discutir nesta preparação?
R - Temática não, mas foi muito difícil a discussão da identidade, porque sempre é um tema interminável de discussão decidir quem é a mulher rural, quem era uma mulher rural. Tem companheiras que se aposentaram ou ficaram viúvas, moram na cidade; elas querem continuar, mas a Rede não quer isso. A Rede quer que more e trabalhe no campo.
P/1 - Que more e trabalhe no campo?
R - Que more e trabalhe no campo. Não que somente more, que trabalhe no campo. Foi muito difícil, tanto para as integrantes da coordenação, como para mim, que era a que presidia a organização. Foi muito difícil poder decidir quem viria...
P/1 - E você aprendeu algo novo nessa preparação para o Enlac?
R - Aprendi a respeitar as opiniões das demais, de outras organizações. E aprendi a respeitar que elas podem pensar de outra maneira, que podemos ter diferentes enfoques, dependendo da situação do lugar onde moramos. Minha ótica pode ser uma; a de uma mulher que mora no litoral, outra - diferente da minha e tão valiosa quanto a minha.
P/1 - E a chegada no México, como foi?
R - A chegada no México foi incrível, nunca sonhamos... Eu sempre digo que nunca sonhei, nem pensei, nem estava nos meus planos chegar a ir a outro país que não fosse o meu. E foi tudo emocionante. Primeiro, ver São Paulo de cima foi impressionante, porque fizemos escala em São Paulo. Descer no aeroporto foi incrível. Nunca tinha visto tantas casas e, ao chegar no México, a mesma coisa. O México é impressionante.
P/1 - Foi sua primeira viagem internacional?
R - Não. Eu tinha viajado pro Rio no começo de 2005, para um encontro. E, no Enlac, tudo: a escala, o lugar onde estávamos, era incrível. Ver tantas mulheres, essa diversidade de mulheres, diversidade de culturas, de raças, do que você puder imaginar. Tantas mulheres, tantas. Acredito muito na cultura de cada uma.
P/1 - O que você pensava sobre o 2º Enlac quando te convidaram?
R - Não pensava nada; não sei, eu imaginava outra coisa. A verdade é que foi uma surpresa porque nunca tinha visto tantas mulheres juntas, e de diferentes tipos. Depois, toda a metodologia, o trabalho foi excelente. Eu digo que todas podíamos ser protagonistas. Considerei esses detalhes. Para mim, foi muito bom.
P/1 - Você pode descrever um pouco melhor a metodologia?
R - Eu gostei de muitas coisas, desde como se formaram os grupos. Eu me lembro que tinham entregado a fita e não sabíamos para que era; cada uma ia com sua fita ao grupo que tinha lhe caído por acaso. Foi muito interessante a formação dos grupos.
Uma coisa muito importante para mim é que tinha uma assessora, mas a pessoa que coordenava o grupo era uma de nós, e eu fiquei com a coordenação. Então vejo isso de bom na Rede LAC, essa oportunidade que dá às mulheres de poderem se valorizar. A assessora escrevia o que escutava, ela escrevia, mas nós, com nossas pares, pudemos trabalhar. Foi muito bom, isso foi muito interessante, a participação das mulheres: todas participaram, todas opinaram.
P/1 - Isso também na Rede do Uruguai?
R - Também somos assim. Outra coisa que me chamou a atenção foi os temas que eu não sei por que não participaram do encontro. O tema do comércio, por exemplo, éramos três ou quatro mulheres. As mulheres se inclinavam para os temas mais sociais, então isso me chamou a atenção. Quando se propunha a escolha do tema, as mulheres se interessavam mais por uma coisa que por outras. E, em alguns, as mulheres não foram, não houve encontro.
P/1 - Ou seja, não havia gente interessada.
R - Não havia gente interessada.
P/1 - E alguma discussão lhe marcou mais?
R - Eu tive uma discussão como coordenadora da delegação.
Estávamos no almoço e a companheira da Argentina diz a umas uruguaias: "Você está permitindo que plantem celulose no seu país!" E a uruguaia lhe diz – ficou muito brava: "Que eu! É o meu governo!" Esse foi um momento muito difícil para mim. Ter que dizer a uma companheira que se contivesse.
Estamos na delegação do Uruguai, mas não pensamos todas da mesma forma a esse respeito, com relação às plantas de celulose. Não conhecemos o tema profundamente, não vamos entrar em discussões, não era nossa ideia. Mas ela, que era de outra organização, não sabia disso; sentiu-se muito ofendida porque eu pedi para ela se calar, e ficou durante muitos dias magoada. Mas não era minha intenção fazê-la se calar. A ideia era acalmar os ânimos e não criar algo mais grave.
P/1 - Como você descreve a Rede LAC?
R - Para mim, foi um encontro de mulheres, para onde foi levada uma grande diversidade de costumes e é muito, muito bom. Tem coisas, esses encontros de corredor, conversas das mulheres, que não estão registradas. São muito interessantes, muito boas.
P/1 - Um exemplo...
R - Eu tenho para contar uma experiência que tive com Maria, uma brasileira, um encanto de mulher. Era uma senhora que me dizia de noite: "Vem, Verónica!" E começava a cantar para mim as suas músicas. Fazia músicas para mim, muito bonitas. Nossas conversas com Maria... Em “portunhol”. Fizemos muitas relações com pessoas que marcam muito. Conhecer a Vanete foi impressionante, porque eu a conhecia pela Kika, mas a gente não imagina a pessoa até que não a vê pessoalmente.
P/1 - Quando exatamente você a conheceu?
R - Num momento que íamos com a Kika. A Kika chama a Vanete e lhe diz: "Ela é a Verónica, nossa presidenta.” E a Vanete lhe diz: "Como é a Verónica? Uruguaia com essa cor?"
Para mim, foi uma coisa me sentir tão orgulhosa da minha cor, e foi muito, muito importante. Porque mesmo dizendo que não somos racistas e não fazemos discriminação, quando eu era criança fui muito discriminada pela minha pele ser um pouco mais escura do que a dos outros. Discriminamos o outro porque usa óculos, discriminamos a outro porque é gay. Então, esta é uma discriminação e vivemos nessa cultura.
Eu, depois de grande, me valorizei. Por que eu tenho que ter a pele mais escura que a dos outros? Por que eu? E, depois de grande, descubro quem sou e que é da minha raça, essa mistura de raças que tenho, porque devo ter um monte de raças na minha cor, na minha pele.
P/1 - E você gostou de ouvir aquilo da Vanete?
R - Sim. Eu era de cor, com essa cor, porque uruguaias somos todas. Há muita gente no mundo e todos muito diferentes. Há muita gente branca, há muita gente negra. E parece que o país ainda não se deu conta disso, de que cerca de vinte por cento da população é negra e que temos que aceitar isso. São coisas com que a gente, com o tempo, vai se fortalecendo.
P/1 - E ao voltar para o seu país, o que você leva de novo?
R - Muitas cartas, muitas oportunidades. Muito para se fazer, que pudemos fazer pouco do muito [a] que chegamos.
P/1 - Que tipo de coisas?
R - Do que fizemos até agora.
Houve encontros entre as que foram para o México. Nós nos encontramos para discutir de que maneira aproximar as mulheres rurais do Uruguai, para procurar a forma pela qual podemos conseguir que as mulheres do Uruguai se unam.
Há muita desunião entre as mulheres. Mas às vezes, eu acho que não é tanto entre as mulheres. Eu estou convencida de que as mulheres são todas iguais e todas nós temos os mesmos interesses, as mesmas necessidades. Às vezes, depende muito do que está por trás, depende muito das organizações. Em muitas delas são homens que mandam nas organizações de mulheres ou são assessoras com muita personalidade. Então estamos neste processo no nosso país, de tentar conseguir que as mulheres se unam.
P/1 - Essa foi uma decisão que…
R - Tiramos do Enlac. Nós saímos do Enlac com esse dever: conseguir que nós, mulheres, nos unamos.
P/1 - E são muitas mulheres nesse grupo?
R - Que vão assiduamente, somos sete ou oito mulheres.
P/1 - De diferentes lugares?
R - De diferentes lugares, diferentes organizações, diferentes posições políticas, posições econômicas.
P/1 - E o desafio é o de unir?
R - De unir.
P/1 - E o que mais? Que outros desafios você trouxe do 2º Enlac?
R - Ai! Muitos mais... Conseguir nossa identidade, nossa autonomia. A identidade, estou conseguindo porque estou dizendo que, se aceito minha condição de mulher, de morena, de pobre... Eu digo que as pessoas valem pelo que constitui uma pessoa e não importa que cargo tenha. É uma das coisas que eu vejo hoje na Rede LAC: as mulheres que são líderes, nós as vemos e as sentimos como líderes e referências, mas elas, em nenhum momento, se colocam como sendo mais do que as outras. Acho que elas são mulheres que fazem a diferença. São mulheres como nós, que tratamos como igual. Isto é o que faz a diferença na Rede LAC: pessoas que são um pilar. Não sei se elas já perceberam o que conseguiram desses anos para trás, se realmente sabem o valor que têm.
P/1 - E além do encontro entre vocês do Uruguai, vocês tiveram contato com outros países? Essa articulação com outros países continua?
R - Não com muitos países, a não ser pelo Brasil. Com os países que participaram, a verdade é que é não, não tivemos contato.
P/1 - Qual o significado de estar na Rede?
R - Acho que o significado é o de pertencer a um lugar.
P/1 - E sua família? Nasceram seus outros dois filhos...
R - Em junho de 97, nasce Federico e, em 99, julho, nasce Guillermo, meus dois filhos mais novos…
P/1 - E como eles ficam quando você viaja?
R - Meu marido cuida da sua família.
Um dia me aconteceu uma coisa. Quando eu ia para o México, uma amiga, que hoje em dia está num cargo muito importante do governo, me diz: “Vero, Vero, como você vai fazer com os meninos? Pobre Jorge... Você o deixou clavado!”. Assim se fala no Uruguai, quando você deixa alguém para fazer todo o trabalho. Eu fiquei gelada, porque eu digo: "O que eu faço agora?" E lhe digo: "Sabe que não? O Jorge tem que se sentir orgulhoso por eu lhe dar a possibilidade de poder cuidar dos seus filhos. Eu acho que é uma oportunidade para ele poder se divertir com seus filhos e ter esses momentos que nós mães temos, de cumplicidade. Eu acho que ele ganha com isso.”
Quando cheguei em casa, meu marido me disse: "Você tem que dizer que é um trato entre nós, e que isso só interessa a nós dois." Se um dia acontecer de ser ele quem tem que ir e eu ficar com as crianças, é possível, não? Eu acho que uma das coisas que foi essencial para levar esses anos de trabalho e de luta foi ter alguém que me apoia, me acompanha, me dá força, me incentiva. Por isso é que eu pude conseguir, né?
P/1 - E há uma luta principal neste momento?
R - Eu acho que a Rede do Uruguai está num processo de mudança, porque estamos nos acostumando a um governo de esquerda. E estamos tendo uma oportunidade que o governo está dando para realizar planos, o que te envolve em diferentes temas no Ministério da Agricultura, no Ministério de Desenvolvimento Social. Então, eu sinto assim, como se estivesse procurando um caminho para seguir. Sentimos a participação da mulher - não a participação partidária, mas a participação política, que é o que está fazendo falta neste momento. Continuar trabalhando o tema gênero, que faz tempo que vem sendo trabalhado.
P/1 - E o que você vê no futuro? Que sonhos vocês têm para a Rede LAC?
R - Sonho que se fortaleça muito mais, tenha muito mais grupos; que venham novas mulheres, não importa se jovens ou mais velhas, mas que venha gente nova para a nossa rede do Uruguai, à Rede LAC. Eu acho que ela está num momento de um desafio muito grande, porque eu vejo assim como quando alguém tem um filho pequeno e é pouco trabalho, mas à medida que o filho cresce, o trabalho aumenta. Vejo que a Rede LAC está crescendo, está crescendo bastante.
O mais bonito seria poder unir todas as mulheres da América Latina e do Caribe e que estejam todos os países, todas as mulheres; que siga em frente, que continue crescendo. Que não faltem nunca mulheres como a Vanete, como a Kika, como a Betty na alma da Red LAC. Mulheres com isso que elas têm dentro.
P/1 - E para você? O que você sonha?
R - Eu sonho com o que me corresponder [a] viver. Não me interessa se é bom, se é ruim: o que o destino tiver me reservado. Até agora foram muitos anos tristes, muitos anos felizes e muitos anos de crescimento, conhecimento e formação. Se é o que o destino me reserva, vou aceitar, sempre estar contente com o que me corresponder. E valorizar cada dia mais o que temos.
P/1 - Muito bem. Obrigada. Por último, gostaria de saber, o que você achou de participar dessa entrevista?
R - É provável que tenha coisas que guardo para mim.
Faz pouco tempo, procuravam uma pessoa para o trabalho onde estou. Alguém que fosse estudado, que tivesse conhecimentos de computação, conhecimentos de administração. Disse para as mulheres do grupo: "Eu quero concorrer a essa vaga, competir para conseguir esse trabalho. Há anos que trabalho de graça." Quando vejo os currículos das mulheres - uma contadora, uma administradora com currículo grande, outra estudou administração de empresas - eu disse a uma de minhas companheiras: “Eu não vou. Olha o currículo delas! Eu não vou passar!” E ela me diz: “Você vai passar porque você conhece a realidade das pessoas. Você é quem vai passar.”
No dia da entrevista, todas as mulheres foram à entrevista e, quando chega a minha vez, eu disse: "Tenho que passar, eu preciso." Quando fizeram a entrevista comigo, eu não fiquei nervosa, fui impecável na entrevista. Tinha menos estudos, mas conhecimento sobre as pessoas e sabia me colocar no lugar das pessoas, me colocar no lugar de um pobre assalariado que vai pedir um crédito. Com isso, passei na entrevista e consegui o trabalho, porque eu sei me colocar no lugar do outro. E mostrei isso na entrevista. Era muita gente, a maioria homens, e me selecionaram.
Fiquei muito contente porque valorizaram a minha trajetória de trabalho, meu conhecimento do coração. E eu adoro o trabalho que faço.
P/1 - E o trabalho na rede é um trabalho voluntário?
R - Voluntário. A rede dá transporte e alimentação, mas depois eu me encarrego de toda a parte de secretaria, de correio, de fazer algum projeto. E trabalho no meu grupo com as minhas companheiras: uma vez por semana vou picar frutas com elas. Ponho a mão na massa.
Trabalho com o Jorge com os tomates e trabalho como administradora numa instituição de deficientes. Aqui me dão salário, pouquinho, mas justo para mim. Eu tenho que fazer os projetos. São 26 meninos, jovens com diferentes deficiências intelectuais, físicas e psicológicas, psiquiátricas. Tenho muito trabalho. São quatro filhos, crianças e o meu marido.
P/1 -
E como você vê o seu papel na Rede LAC?
R - Acho que novo, acabando de conhecê-la. Ainda não conheço bem como é o funcionamento por dentro. Eu não queria vir para cá, eu achava que era a Kika que tinha que vir, porque ela já sabia da história da Rede. [Achei] que não ia acrescentar quase nada, mas ela insistiu que eu viesse. Então vim para acompanhar a Kika e ela ficou muito contente por eu ter vindo.
P/1 - Obrigada. Muita história. Você é uma mulher muito valente.
P/1 - Um dia, um amigo do meu marido, um professor dele, lhe disse: "Sua mulher é uma guerreira!"
Disse que eu era uma guerreira e estou constituindo a ideia. Eu não tinha uma ideia clara da política de direita, esquerda. Não tive tempo de saber o que era um partido político, nem o que era esquerda, porque deram um golpe de estado. Eu não tive tempo disso. E só agora estou vendo porque acontecia tal coisa, porque acontecia outra, porque aconteceu no Uruguai e na América Latina. Só estou vendo agora. Nós apagávamos essa história e quando eu ia à minha escola era a ditadura, apagávamos isso. Nós vivíamos, e como nos faziam ver que estávamos no lugar perfeito, a ditadura, nós, como crianças, não víamos os desastres que estavam acontecendo.
Acho que essa é uma matéria que o estado uruguaio tem pendente, de nos dar a história verdadeira. O que aconteceu, como aconteciam as coisas. Contavam sobre tupamaros por que? Todas essas coisas ficam na cabeça de uma criança. Eu também vou com algo daqui: procurar saber sobre meu pai, quem é ele? Quero saber quem ele é, onde mora, essas coisas...
P/1 - Você não o conhece.
R - Não sei quem ele é, nem onde mora, nem como é, nada.
P/1 - E os irmãos que você mencionou?
R - Meus irmãos são por parte de mãe. Minha mãe me teve como mãe solteira e me deixou quando eu tinha sete meses com os meus avós. Ela foi trabalhar na capital, Montevidéu, e lá se apaixona, se casa. Aos sete anos, ele, seu esposo, me reconhece como sua filha legítima. Eu fico com a minha avó e ela vai embora para a Venezuela, não volta mais.
Quando tenho 22 anos, volta para o Uruguai e eu vou conhecê-la. E diz: "Eu não vim falar de você, eu vim ficar com a minha sogra." Eu me agarrei À minha filha que era pequena e "Bom, então eu vou embora, fica com isso.” Depois, ela pede que fossem me buscar. Mas há passos da vida que permanecem. Eu acho que a gente não pode ter muitas necessidades, mas tenho que fazer isso para os meus filhos.
Eu sofri violência física quando era criança. Quando um adulto quer te bater, quer te maltratar, te bate com o que tem, você se sente tão pequenininho... Eu vejo meus filhos e não bato neles, porque na minha cabeça vêm essas lembranças. Então, meus filhos são muito livres, muito independentes. Há pais que se justificam: “Porque se bateram em mim, eu bato neles!” Para mim, é o contrário: isso aconteceu comigo, com meus filhos não.
Para mim, é difícil abrir meu coração.
P/1 - Muito obrigado por ter feito isso hoje.
R - É difícil. Hoje, falando com a Luz, lhe digo que quando lemos as perguntas, ia passando a minha vida assim, rapidinho, como acontece com os que estiveram no além, que morreram com um choque, um ataque cardíaco, e voltam a viver. A gente vê a vida num instante. A vida passa na sua frente num instante.Recolher