P/1 – Então vamos lá. Eu queria pedir pra você dizer o seu nome, local de nascimento e a data.
R – O meu nome?
P/1 – Nome inteiro, o lugar onde você nasceu e a data de nascimento.
R – Ivaneide Bandeira Cardoso. Nasci em Plácido de Castro, no Acre. Nasci no dia 17 de junho de 1959.
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P/1 – Então vamos lá. Eu queria pedir pra você dizer o seu nome, local de nascimento e a data.
R – O meu nome?
P/1 – Nome inteiro, o lugar onde você nasceu e a data de nascimento.
R – Ivaneide Bandeira Cardoso. Nasci em Plácido de Castro, no Acre. Nasci no dia 17 de junho de 1959.
P/1 – E qual que era o nome dos seus pais?
R – O meu pai (Aldenor?) Macedo Bandeira e minha mãe (Noêmia?) Cardoso Bandeira.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Bom, meu pai veio do Ceará com 18 anos, fugindo da seca, e veio pra trabalhar nos seringais, no Acre. Minha mãe morava no Acre. O meu pai chegou, morava em Plácido de Castro, o papai se apaixonou por ela, pegou, casou. Ela tinha 14 anos e ele levou ela pro meio do mato com um filho na barriga, que neste caso era eu.
P/1 – E quando vocês chegaram em Rondônia?
R – Então, aí quando eu tinha seis meses, o meu pai saiu do Acre, de Plácido de Castro, comprou um barco, que aqui chamava batelão, e foi vender mercadorias no Rio Jaci, subindo o Rio Jaci pra vender mercadoria pro ribeirinho e pros seringueiros. Aí o barco pegou fogo com a gente dentro. Queimou todo o barco, queimou tudo. A gente escapou dentro de uma canoa, eu, minha mãe e minha irmã, e meu pai nadando dentro do rio. E aí meu pai foi trabalhar no seringal, cortar seringa.
P/1 – Onde que era esse seringal?
R – No Rio Jaci, na beira do Rio Jaci. E depois a gente foi, o que hoje já é marcado como Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, fomos morar dentro da terra indígena. Ficamos lá até eu completar 12 anos, quando vim pra cidade.
P/1 – Conta um pouco como é que foi, quando vocês chegaram nessa terra, como é que foi. Era em Rondônia ou era Acre?
R – Em Rondônia. Quando a gente foi... Bom, o barco pegou fogo e o meu pai foi com toda a família lá pra dentro dessas terras, marcando a terra e tal. Até aí eles não sabiam que era terra indígena porque ainda não era demarcado. E aí o meu pai ficava no mato cuidando da gente e tirando seringa, e minha mãe cuidava da gente. A gente morava... Não sei se você conhece tapiri, sabe o que é tapiri.
P/1 – Não. O quê que é?
R – Tapiri são quatro forquilhas enfiadas e cobertas, vocês chamariam de chapéu de palha, só que o de vocês é redondo, o da gente não é. É só coberto com palha. E a gente morava no tapiri. Meu pai saía pra cortar seringa e minha mãe ficava cuidando da gente e ia caçar pra pegar comida pra gente, que no caso a gente só tinha o mato pra comer, farinha, que plantava mandioca, fazia farinha pra comer, e caça. Então a minha mãe era quem caçava. E uma vez minha mãe, lavando as nossas roupas, olhou e viu assim um monte de homem pintado de vermelho dentro do igarapé. E minha mãe saiu correndo e eu correndo junto com minha mãe, que eu tinha uns quatro anos e minha irmã tinha três anos. Só que a minha mãe esqueceu a minha irmã e aí ela teve que voltar pra pegar minha irmã. Quando ela voltou os homens já tinham sumido. Quando o papai chegou da estrada de seringa... Estrada de seringa tu conhece?
P/1 – Estrada de seringa? Não, pode explicar.
R – Estrada de seringa é assim, quando o seringueiro corta a seringa no mato, seringa nativa, ele marca o caminho que chama de estrada, que é o caminho das seringueiras, das árvores de seringueira por dentro do mato, onde ele vai cortando a seringa.
P/1 – Como que é marcado?
R – Elas são cortadas. Como é marcado? Eles limpam, eles fazem o que a gente chama aqui de varadouro. Varadouro é fazer picadas no mato, cortar a mata pra tu poder andar dentro dela. Só que não são estradas largas, são um metro assim. Você limpa um metro dentro da mata, que são picadas. Deixa eu ver algo que tu... É tipo, não tem umas estradas, uns caminhozinhos bem pequenininhos em parque?
P/1 – Tem.
R – Bem estreitinho. É aquilo, só que mais estreito ainda, que não é limpinho que nem o do parque. É só cortado pra tu poder passar e cortar a seringa. E aí meu pai fazia isso. Saía super cedo. Quatro horas da manhã saía pra cortar seringa e minha mãe ficava cuidando da gente e das coisas e fazendo comida, caçando, plantando, essas coisas todas.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Ah, nessa época a gente, quando a gente foi pra lá eu tinha o que? Tinha três anos. A minha irmã tinha dois. E a gente ficou até os 12 anos. Os brinquedos da gente eram paca, cotia, macaco, que no mato não tem brinquedo. Então tu brinca com os animais do mato.
P/1 – Como é que eram essas brincadeiras com animais do mato?
R – Ah, a gente, é igual... Criança da cidade não cria as bonecas lá?
P/1 – Hã hã.
R – A gente cria bicho. A gente cuida dos macacos como se fosse uma criança, cuida de gavião, de arara.
P/1 – Você tinha todos esses bichos?
R – Tinha, tinha todos.
P/1 – Você lembra de cada um deles? Conta um pouco pra gente,
R – Lembro porque os bichos vinham. Como o local, tu fica no meio do mato, e naquela época aqui era mata virgem, não é que nem hoje que está tudo destruído. Então os animais vinham no quintal de casa, vinham atrás de casa. Então a gente, eles não tinham medo, naquela época. Não era que nem agora, que os bichos correm das pessoas. Naquela época os bichos iam pertinho. Então a gente criava muito bicho, brincava muito com os bichos do mato.
P/1 – Mas fala assim cada um deles. Quais que eram os bichos?
R – Tinha macaco-prego, macaco-barrigudo, tinha macaco-cuatá, tinha paca, tinha cotia, tinha arara, tinha gavião, tinha maracanã, tinha periquito, tinha veadinho, tinha veado. Ah, tinha muito bicho.
P/1 – E qual que era mais fácil de brincar?
R – O veado.
P/1 – Por quê?
R – Porque o veado é mais mansinho, o veado e macaco. O veado é mais mansinho, o macaco parece com gente. O macaco é muito amoroso.
P/1 – E tinha alguma estratégia pra fazer ele se aproximar?
R – A minha mãe era caçadora. Ia caçar, matava a caça. Se matava uma fêmea, no caso de um macaco, criava o bichinho, o filho, criava o filhote.
P/1 – E você acompanhava a sua mãe na caça?
R – Na caçada?
P/1 – É.
R – Ah, não, era muito perigoso. A minha mãe conta que uma vez ela... Você deveria entrevistar a minha mãe, você ia rachar de rir das histórias que ela conta. Ela uma vez, caçando no mato, e os índios faziam o que eles chamam de tapagem. Sabe o que é isso?
P/1 – Não, o que é?
R – Então vamos lá. Tapagem é assim, eles fecham os caminhos na mata. Eles pegam palha e fazem um trançado para que você não passe ali. Eles pegam cipó da mata e cruzam na mata fechando o caminho que você está acostumado a passar. E minha mãe disse que uma vez, passando, eles tinham cruzado todos os cipós com palhas, e minha mãe sentiu um cheiro muito forte de pessoa suada, pessoa muito suada, e minha mãe voltou. Porque a gente morava nesse tapiri, mas também morava uma outra família num outro tapiri perto, que era da família da Maria das Dores. E minha mãe, quando sentiu essa coisa, esse cheiro de pessoa, ela voltou. Ela nunca passava. Onde ela via o sinal ela nunca ultrapassava o sinal. Uma vez ela viu. Foi caçar e eles deixaram um veado amarrado de presente pra ela. E ela via os pés, as marcas dos pés não tinham dedo, tinha só a planta do pé, que tinha deixado lá o veadinho amarrado. E ela voltava e não pegava o que era deles. Essa família que morava no outro tapiri um pouco mais distante da gente, eles pegavam. E essa família, inclusive, eles desapareceram. Os índios levaram, ninguém sabe até hoje o que aconteceu. Quando o marido dela chegou em casa, eles encontraram a casa toda flechada e ela mais as crianças tinham desaparecido. Só sobrou o filho mais velho, que tinha se escondido e viu os índios carregando os irmãos pequenos e a Maria das Dores. Mas com a mamãe não. Como a mamãe respeitava todas as coisas, eles não faziam nada com a gente. Eles apareciam, a mamãe fugia. Nesse dia que a mamãe correu comigo e com minha irmã, que tinha visto eles... E aí, quando o meu pai chegou a minha mãe disse: “Olha, eu vi os índios, tal”, papai disse: “Nada, você está com medo. O que você viu foi uma onça vermelha”. A mamãe falou: “Não, não é onça vermelha. O que eu vi foram os índios mesmo”. E aí meu pai, tudo bem, ficou por isso mesmo. Mas a minha mãe voltou a ver várias vezes, porque eles apareciam pra gente. Mas eles nunca nos atacaram.
P/1 – E que etnia que é essa?
R – Olha, a gente não sabe dizer ao certo. A gente não sabe dizer se são os Uru-Eu-Wau-Wau, porque lá, isso era nas margens do Rio Jaci, onde a gente morava, que é terra dos Uru-Eu-Wau-Wau. Ou pode ser os Uru-Eu-Wau-Wau, que ali era área de ocupação dos caripuna. Aí, além dos Uru-Eu-Wau-Wau, lá também era caminho dos caripuna, e aí a gente não sabe qual das duas etnias é. É mais provável que seja Uru-Eu-Wau-Wau, hoje é terra dos Uru-Eu-Wau-Wau, entendeu?
P/1 – E vocês tinham só esse contato então deles aparecerem assim de vez em quando? Neidinha, você quer atender a um telefonema e eu ligo de volta? Eu posso fazer isso. Eu posso interromper e ligar de novo.
R – Eu vou só transferir a ligação pra outra sala, é possível?
P/1 – É.
R – Tá, só aguarda um minuto.
(PAUSA)
R – Oi, Antônia.
P/1 – Oi.
R – Agora vamos lá, que agora é que está chegando um monte de gente pra reunião. Vamos lá. Onde eu parei?
P/1 – Então, a gente estava falando da etnia, que os índios apareciam.
R – A gente acha que é Uru-Eu-Wau-Wau porque a terra é dos Uru-Eu-Wau-Wau hoje, que é nas margens do Jaci.
P/1 – E eles nunca fizeram contato de chegar? Você lembra de alguma coisa?
R – Não. Eles apareciam e iam embora, e deixavam um presente pra gente, pra minha mãe, deixavam nos caminhos. Deixavam comida, fruta, essas coisas.
P/1 – E ela sempre foi caçadora? Quando que ela começou a caçar?
R – Quando foi pro mato minha mãe tinha 14 anos. Estava grávida, casou com o meu pai e aí o meu pai levou pro mato. Com 14 anos era uma menina, pra cuidar dele, de mim e dos irmãos dele, que os irmãos dele foram com ele também. E ela aprendeu a caçar lá por uma questão de sobrevivência, tinha que sobreviver. Era mata virgem e a gente precisava comer. Então a única coisa que tinha pra comer era fruto do mato, raízes do mato e caça. E como tinha cartucho, espingarda, essa coisa, meu pai ensinou ela a atirar. E aí ela que caçava e trazia a comida pra casa.
P/1 – Conta um pouco das frutas. Quais eram as frutas?
R – Ah, menina, tinha bacuri do mato, cacau do mato. Eu não sei te dizer os nomes das frutas porque eu sei te dizer os nomes como a gente chamava.
P/1 – Pode falar do seu jeito mesmo.
R – A gente chamava, tinha mão de onça, mão de gato, tinha (pama?). Tinha várias frutinhas do mato que a gente inventava nome, a gente não sabia. E os nomes eram todos nomes de animais. A gente botava nome de bicho. O bicho que a gente achava que parecia a patinha a gente colocava o nome.
P/1 – Tinha algum que você gostava mais?
R – Eu gostava muito da mão de onça.
P/1 – Como que era?
R – Era uma frutinha, parecia a mão de uma oncinha. Assim, parecia as patas da onça, só que amarelinha e bem azedinha. Eu adorava ela, achava ela... Bacuri de anta também eu gostava muito. Bacuri de anta que a gente chama parece um figo grande. E gostava muito da frutinha do breu também.
P/1 – O breu é resina?
R – É, só que a árvore dá uma frutinha vermelha, com a casca vermelha e por dentro branca.
P/1 – E as raízes?
R – Então, as raízes a gente tinha cará do mato. A gente chama de cará, mas eu não sei se é cará mesmo. Era cará do mato, a gente comia muita mandioca. Tinha umas raízes lá que eu não sei te dizer o nome. A gente também inventava nome pra tudo, entendeu?
P/1 – Qual que era o nome que vocês inventavam?
R – Ah, a gente falava raiz da cotia, raiz de paca. Comida era nome de bicho. A gente era meio bicho também.
P/1 – Você e seus irmãos?
R – Eu e minha irmã, nós somos só duas. Mas a gente... E os amiguinhos também, dessa outra família que depois os índios carregaram.
P/1 – Eram só duas famílias vivendo?
R – Eram só duas famílias.
P/1 – E esse lugar que vocês moravam era bem dentro do mato mesmo?
R – Hoje é Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, é demarcada terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau. É bem dentro do mato.
P/1 – Vocês chegaram andando, depois que o barco...
R – Ah, a gente chegou andando. Lá pra onde a gente estava era 60 dias andando dentro do mato, pra conseguir chegar no local onde era a nossa colocação.
P/1 – Você era muito pequena ainda quando fez essa viagem? Você lembra de alguma coisa dessa viagem?
R – Então, quando a gente foi pra lá eu tinha três anos. Eu cresci até os 12 anos. O que eu lembro é da gente andando muito dentro do mato com o meu pai pra tirar seringa, cortar seringa, e também pra ir mudando. Quanto mais distante iam ficando as coisas, a gente ia mudando. Quando a gente adoecia não tinha médico. Aí eu lembro de andar com minha mãe em busca de raízes e de folha do mato pra fazer remédio pra gente tomar. Então às vezes andava muito no mato pra buscar uma raiz que era boa pra febre, pra fazer banho pro corpo. Não tinha médico, não tinha remédio, era o mato mesmo que salvava.
P/1 – E como que sua mãe sabia? Ela experimentava, alguém ensinou a ela? Como que era?
R – A avó dela ensinou a ela. Porque o meu avô e minha avó também eram seringueiros, então passaram, ensinaram a ela.
P/1 – Tem algumas plantas que você lembra pra quê que ela servia, como é que era?
R – Ah, menina, eu lembro bem de um cipó que servia pra diarreia, que é cipó de macaco, servia pra diarreia. Tinha uma folha que eu não sei o nome, que eu não sei te dizer qual é o nome, mas servia pra picada de inseto, quando tucandeira picava. Uma vez uma tucandeira me picou que eu fiquei 48 horas com febre. Sabe o que é tucandeira?
P/1 – Não.
R – Quando tu não souber tu fala: “Neidinha, o que é isso?”
P/1 – Mas é bom pra gente, tudo que você falar, explicar mesmo, porque é legal.
R – É uma formiga grande. Então ela te pica e tu fica 48 horas com febre. Então eu tive uma febre de 48 horas. Aí a minha mãe pegava essa folha e passava em cima pra aliviar a dor. Eu não sei o nome da folha, é uma espécie de cipó. Eu não sei te dizer o nome da folha não. Mas tinha várias folhas.
P/1 – Quais que eram os maiores perigos de morar na floresta?
R – O maior perigo de morar na floresta é o homem. Tem uns meninos aqui na minha frente dizendo que é pegar malária, mas porque lá não dava malária, entendeu? Mas o maior perigo é o ser humano, não tem... Porque, assim, o ser humano ataca os animais, entendeu? Os animais não atacam você. E eu só fui... Olha, eu passei a minha vida inteira... Quando eu saí e vim pra cidade, aí estudei e depois retornei, que hoje eu trabalho nessa mesma área que eu vivi, eu trabalho com os índios Uru-Eu-Wau-Wau. E eu passei o quê... Do meu trabalho, há 20 anos trabalhando com índio eu só fui atacada por uma onça uma vez.
P/1 – Nossa, quando foi isso?
R – Isso faz uns dez anos. Dez anos atrás, a gente fazendo... Isso foi o quê... Foi em 96. Nós estávamos, porque eu trabalhava com a localização de índios sem contato, índios que não têm contato com a nossa sociedade, eu e um grupo. E aí a gente estava procurando os índios no mato, localizar a área que eles vivem, localizar as malocas, essa coisa toda. E durante três dias a gente foi ouvindo um assobio, mas a gente pensou: “Ah, seringueiro sempre fala que as onças assobiam, mas elas estão por outro canto”, e não ligamos pra aquilo. Só que nós éramos cinco pessoas, quatro homens e eu de mulher. E como eu sou muito pequenininha, e a gente era cada um num canto separado, ela me acompanhou. Quando a gente sentou, quando finalmente os cinco nos reunimos de novo e sentamos, subimos uma cachoeira lindíssima e lá em cima da cachoeira a gente sentou pra dar uma olhada no mapa pra ver em que direção a gente estava, e aí ela apareceu. Ela saiu de dentro da mata. A gente estava sentado em cima de um tronco, eu e um amigo meu, olhando o mapa. Ela abriu, saiu da mata pra pular em cima de mim. Os meninos ficaram todos apavorados, os quatro se apavoraram. A sorte é que um dos quatro, que é o Evandro, ele teve a reação de pegar o facão e bater no focinho dela. Aí ele bateu no focinho dela, ela retornou e eu, maluca, que naquela hora tu não pensa, eu era quem estava com a máquina fotográfica, eu gritava pra eles: “Não mata, não mata que eu quero tirar fotografia”, porque eu só pensava em tirar. É a coisa mais linda que você já viu no mundo. Era maravilhosa, e eu queria fotografar. E aí ela retornou. Aí eu gritando, eles atiravam pra cima, eles não mataram. Aí ela foi embora. Só que aí, quando ela foi embora eles queriam me matar porque eles disseram: “Tu é doida, tu não tem juízo”. Aí, quando eles começaram a falar, brigar comigo, é que me caiu a ficha, como diz, caiu a ficha do perigo. Aí sim, aí eu tremi durante uns 15 minutos. Então a única vez que eu fui atacada foi essa e depois uma outra vez duas suçuaranas ficaram... Suçuaranas são onças também, tá? Essa tu sabe?
P/1 – Essa eu sei.
R – Elas ficaram... A gente aqui chama de onça vermelha.
P/1 – Que era a que seu pai achava que sua mãe tinha visto.
R – Que era a que meu pai achava que minha mãe tinha visto. E elas ficaram assim, eu andando com os meninos, também procurando os índios no mato, e aí resolvemos acampar, porque a gente começava a andar seis horas da manhã e só parava às quatro da tarde. A gente só comia duas vezes no dia, seis horas da manhã e às quatro da tarde. E aí, quando a gente parou, os meninos preocupados que a gente ouvia muito barulho durante o dia, disseram: “É o seguinte, a gente parou bem na bifurcação de um igarapé. A tua rede vai ficar aqui”, porque a gente dormia só na rede. A gente carregava duas roupas, uma que a gente vestia pra dormir e uma pra gente andar, e a nossa rede e a coberta, cada um levava isso. Isso, a gente ficava seis meses dentro do mato. Quando a gente saía ninguém encostava perto de nós, que a gente fedia mais do que qualquer outra coisa. E eu tinha um cabelão muito grande, o cabelão era lá na cintura. Então tu imagina, aparecia aquela Matinta Perera saindo. Matinta Perera tu sabe quem é também, né?
P/1 – Hã hã.
R – E aí, ao contrário do que a gente pensava, ficando na bifurcação, elas passaram a noite inteira rondando ali e de manhã cedo elas pularam o igarapé e foram embora, mas nunca atacaram. Então eu sempre digo, o que é mais perigoso no mato é o homem. É o madeireiro que vai lá destruir a mata, é o garimpeiro que vai lá destruir.
P/1 – E na infância você lembra desses perigos assim que rondavam a família?
R – Então, na infância o que eu me lembro mais é assim, eu invoquei de criar um gavião. Eu queria porque queria criar um gavião. Aí fui criar o gavião. Pequenininho, o meu pai pegou o gavião pequenininho e eu criando o gavião. E eu criava nambu como quem cria galinha, nambu, essas coisas.
P/1 – Nambu o quê que é?
R – É um pássaro. E aí o gavião comeu os meus bichinhos tudo. Esse é um grande perigo de infância. E aí minha mãe comeu. Aí eu queria um macaco. Aí meu pai, queria um prego, porque eu tinha um barrigudo e queria criar um prego. Aí tu vai entender porque eu acho que o homem é mais perigoso do que os bichos. Eu criava o meu macaco, mas só eu podia encostar no macaco. Todo dia de manhã eu dava leite de castanha porque a gente tomava muito leite de castanha. Muita castanheira no mato e a minha mãe fazia muito leite de castanha pra gente. E aí todo dia de manhã eu dava leite de castanha para o meu macaquinho. E minha mãe um dia resolveu dar banho no macaco, porque onde ficava o nosso tapiri tinha uma cachoeira linda bem próximo. Ah, tinha uma coisa que também era muito perigoso, que eu estou esquecendo.
P/1 – Tapiri é a casa, né?
R – É, que ficava bem próxima à cachoeira. Outra coisa perigosa no meio do mato é mosquito. Nossa Senhora, tinha tanto mosquito nesse lugar que o pessoal usava o que a gente chama de mosquiteiro de cabeça, que era aquela coisa Klu Klux Klan. Já viu, da Klu Klux Klan?
P/1 – Hã hã.
R – Então, o pessoal colocava porque não conseguia nem comer, de tanto mosquito. Mas criança não liga muito pra isso. Criança, o mosquito pode comer ela e ela não ______
P/1 – Não _______
R – E aí minha mãe foi dar banho no macaco e o macaco mordeu o dedo da minha mãe. Aí a minha mãe mandou o vizinho matar o macaco, o da outra família. E aí ele pegou, eu soube que ia matar o macaco, eu soltei o macaco. Só que quando eu soltei ele era acostumado comigo, ele não queria ir pra longe de mim. Eu fui no meio de um mato bem longe, soltei, ele voltou. Aí eu ia no meio do mato, soltava e ele voltava. Aí o vizinho pegou o terçado e cortou a cabeça dele. Eu chorei eu acho que durante uns dois meses. Toda vez que me lembrava do meu macaco eu chorava. Por isso que eu acho que o homem é mais perigoso do que os bichos.
P/1 – Ele tinha nome, esse macaco?
R – Não, ele não tinha nome.
P/1 – Não dava nome pros bichos?
R – Não. Macaco era macaco mesmo, era macaco-prego.
P/1 – Era um bicho de cada e chamava pelo nome do bicho mesmo?
R – O nome do bicho era macaco-prego. Era o macaco-prego, a minha cotia, a minha paca, o meu gavião.
P/1 – Como é que era a paca pra criar?
R – Ah, ela é bem mansinha. A gente pegava a tucumã. Paca é paca, é só tu... Como tinha muito pé de tucumã perto de casa, então elas vinham perto de casa. Então tu faz o que chama de cevar. Cevar tu sabe, né, cevar o animal. Coloca o que ele come. Tem barreiro, sabe? Barreiro é o local onde eles vão comer uma água salobra. Então você coloca um pouco mais de sal lá no barreiro e eles vão vir sempre, e aí tu começa a acostumar o animal dentro da tua casa. Aí ele vai ficando mansinho. Quer dizer, eles eram mansinhos. Naquela época não tinham medo de gente, não era... Hoje em dia tu não consegue chegar perto de nenhum bicho porque eles fogem, a não ser que tu pegue ele muito pequenininho pra estar ____ criando. Na minha casa as antas iam bem atrás de casa. Então era uma convivência muito pacífica. Uma vez, o perigoso... Ah, o que era perigoso era a cobra porque eu sempre fui muito distraída. Então eu sempre passava em cima das cobras. Então ia andando no mato e pisava nas cobras, não olhava direito.
P/1 – Como é que é? Já foi picada alguma vez?
R – Não, nunca fui picada, mas sempre passava por cima. Aí o pessoal via e gritava. Aí eu corria. Mas passei perigo assim. Mas nunca nenhum bicho nunca me picou. Essa parte emocionante a gente não tem nada a ver, né? Nunca fomos picados por nenhum bicho. Fora a onça, o resto sempre foram todos nossos amigos. A onça também, imagina, a vida inteira, uma única vez a onça atacar.
P/1 – Que tipo de cobra que tem nessa região?
R – A sucuri, a cobra papagaia, cobra cipó, coral. Como é, meu Deus? Tem uma que eu pensava, jiboia. Tem uma que eu pensava que a bicha era venenosa. Aqui na Canindé eu o pessoal que cuida de cobra fala: “Que venenosa? Não tem veneno nenhum”. Cobra dormideira. Ah, todo tipo de cobra. Lá, pra você ter uma ideia, a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau no meio tem um parque, que é o Parque Nacional de Pacaás Novos e a gente ficava nessa parte do parque. E eles, assim, é uma área de extrema alta biodiversidade no Brasil, entendeu? Então tudo que tu imaginar, desde o gavião real até formiga, insetos que tu nunca viu, a gente tinha lá.
P/1 – Que foi exatamente essa área onde você cresceu, né?
R – Que foi onde eu cresci. Eu cresci até 12 anos e meu pai resolveu trazer pra estudar. Aí, quando a gente chegou na cidade, eu me lembro porque lá ou tu saía andando e tu levava 60 dias pra chegar no primeiro lugarejo que se chamava Campo Novo, que era um lugarejo, ou tu saía, tu andava um pouco e tinha uma pista de pouso que tinha sido feita e o avião pequeno descia lá e pegava a gente. E aí eu sabia o que era avião, mas eu não sabia o que era um carro, eu nunca tinha visto um carro na minha vida. Aí, quando eu vim pra cidade, a primeira vez que eu vi um carro eu saí correndo achando que era um bicho. Eu corri, corri, corri até me esconder dentro de casa. Me escondi dentro de casa e fiquei lá me tremendo toda porque pra mim aquilo era um bicho. Eu lembro a primeira vez que eu fui no cinema. Eu fui assistir um filme do Tarzan, a primeira vez que eu fui assistir. E aí era da Metro-Goldwyn-Mayer e tem um leão, né? O leão aparece. E aí o cinema ia abrindo as cortinas e o leão ia aparecendo rugindo. Eu corri até em casa porque eu achava que o leão ia sair de lá, ia me pegar e ia me comer. E eu fiquei apavorada durante uma semana, com medo do leão. Primeiro que eu nunca tinha visto leões. Já tinha visto onça, veado, todos os bichos, queixada, que a gente comia muito queixada, muito _____, mas nunca tinha visto um leão. E aí eu lembro que eu morria de medo.
P/1 – Isso foi em Porto Velho.
R – Isso em Porto Velho, quando Porto Velho era uma cidade bem pequenininha. Acabava em locais bem... Era o Centro da cidade, o Bairro do Areal, onde eu morava, e o Quilômetro Um e o Bairro do Estanque, a estrada de ferro, aí acabava a cidade. Eu lembro que a partir dos 12 anos, morando em Porto Velho, assim, como eu morava no mato e a gente não vestia roupa, andava só de calcinha, eu vim com 12 anos pra cidade achando que podia andar de calcinha, e aí fui descobrir que não era bem assim, que tinha que por roupa, o que foi uma coisa muito difícil pra mim: por roupa e sapato. De todos, o mais difícil foi calçar sapato porque eu não gostava de sapato, eu só gostava de andar com o pé no chão. Por sapato pra mim foi uma tortura. Até hoje eu não gosto muito de sapato.
P/1 – E na mata mesmo então era só descalço, andava?
R – Só descalça, ou pelada ou com calcinha. Não vestia roupa não. Nem tinha roupa pra vestir também.
P/1 – Se tivesse eu ia perguntar da onde viria.
R – A gente não tinha roupa pra vestir. Tinha uma calcinha, um vestidinho, uma coisa.
P/1 – Que era o que tinha já de quando vocês vieram ou vocês faziam alguma viagem pra cidade?
R – O pessoal que levava comida, porque esse avião levava comida, porque tu não tinha como levar comida, né? Então essa pista foi feita pro avião ir deixar comida, a pista de pouso. E aí eles levavam roupa. Levavam comida com roupa, mas era porque a minha irmã vestia roupa. Eu é que não gostava de roupa. Me incomodava.
P/1 – Quem era que levava?
R – Ah, eu não lembro o nome do senhor, mas era um senhor que era o seringalista do seringal.
P/1 – Era o dono das terras? O seu pai trabalhava pra alguém ou ele...
Como é que era?
R – O meu pai depois comprou. Meu pai produziu muita seringa. Esse seringal eu não me lembro do nome do dono, que meu pai trabalhava. Depois meu pai produziu muita seringa e comprou o seringal, junto com os irmãos dele. Ele e os irmãos dele, trabalhando, compraram o seringal, lá onde a gente estava, mas isso não significou que a vida melhorou não. Significou que a gente continuou lá do mesmo jeito. Minha mãe que dá risada. Minha mãe disse que um monte de terra, mas não tinha nem um centavo no bolso pra nada, né? Mas aí a terra passou a ser como se fosse de propriedade do meu pai, que depois deixou de ser também porque quando foi demarcada a terra indígena, a terra já era dos índios mesmo, mas meu pai só foi descobrir isso depois.
P/1 – E indenização também não teve, né?
R – Não. O Governo Brasileiro é o mesmo. Só faz mudar nome de presidente, mas eles agem da mesma forma.
P/1 – Mas aí como é que era...
R – Mas também não tinha que indenizar mesmo porque é dos índios mesmo, a terra é deles. Eu sempre falo com o meu pai: “Pai, nós é que estávamos errados, nós que entramos na terra dos índios. A terra é dos índios”.
P/1 – E como é que era esse trabalho do seu pai? Você acompanhava ele? Como é que era tirar seringa?
R – A gente ia. Então, às vezes a gente ia. Como eu te disse antes, a gente ia pro mato com ele pra ele cortar seringa. A gente era pequena, não cortava, né? Então não sabia cortar. O que a gente, depois que fiquei com dez anos, essas coisas, ajudava a trazer o leite da seringa. Tu sabe como corta seringa?
P/1 – Eu queria saber.
R – É assim. A seringueira é uma árvore bem alta, com um caule bem comprido, e ele é cortado com o que a gente chama de faca de seringa, e ele é cortado numa espécie de espinha de peixe, parece espinha de peixe. E aí você coloca embaixo dos cortes uma vasilha que coleta a seringa, que o leite vai descer e vai cair dentro dessa vasilhazinha. E aí o leite da seringa, conforme ele seca, ele vira uma bola. Aí você leva o leite pra o que a gente chama de defumador, que faz uma casinha de palha, enfia uma forquilha de um lado e do outro, aí põe um pau no meio e você vai jogando o leite da seringa ali, que ele vai virando a borracha, certo? E aí você vai defumando, o que a gente chama de defumar. Você vai defumando e ele vai virando a bola de borracha. Aí vai se transformando numa pelota de borracha que vendia pra fazer pneu, pra essas coisas. Hoje em dia estão fazendo até camisinha com seringa.
P/1 – E isso vocês levavam pro dono? Como é que era?
R – Não. Aí meu pai fazia, aí botava no rio, descia pelo rio para ser vendido pro cara. O cara comprava, pagava uma parcela pro meu pai e era vendido pro Basa, o Banco da Amazônia, toda a produção.
P/1 – E a seringueira é nativa mesmo?
R – É nativa daqui da Amazônia.
P/1 – E quantas você encontrava assim?
R – Ah, só o meu pai sabe, mas eram milhares de seringueiras. Tem muita seringueira no meio do mato. A distância de uma árvore pra outra é dois, três metros. São muitas. Uma estrada de seringa tem, no mínimo, 300, 400 pés de seringueira. É muita seringueira. As estradas são grandes. Quanto mais pé de seringueira você tiver, mais produção você tem, as que você encontrar no meio do mato.
P/1 – E os índios usavam já a seringueira?
R – Não, esses índios não. Não usam até hoje. Os índios Uru-Eu-Wau-Wau são nômades. Eles foram contatados em 1981. Eu saí do mato em 70, não... Eles foram contatados bem depois que a gente saiu. A gente já tinha saído.
P/1 – A sua data de nascimento qual que é?
R – 1959. Eu sou velhinha, menina.
P/1 – Imagina, que isso. E quando a sua mãe ia caçar, como que era, como que ela caçava?
R – Com espingarda, com tiros.
P/1 – Você lembra?
R – Eu lembro dela olhar. Quando via um mutum num pé de árvore, pense numa mulher de tiro certeiro. Não podia ver um jacu. Via o jacu lá em cima, lá no pé da castanheira lá em cima, ela metia o tiro, o bicho caía. Veado ela saía caçando, metia o tiro, jogava o veado nas costas e vinha embora pra casa, e deixava a gente lá sozinha, cuidado do tapiri. A gente ficava lá. Ela voltava... Como a gente tinha medo dos índios, ela tinha medo, aí qual era a proteção que tinha? Tinha um rádio e a minha mãe acreditava que se colocasse o rádio pra cantar bem alto os índios não chegavam perto pensando que era muita gente. Aí todo dia era música o dia inteiro dentro do tapiri, bem alto. Diz que era pra proteger. Eu acho que era isso que os índios gostavam. A minha mãe pensava que afastava, estava era trazendo pra ouvir música. E eles ficavam em volta, escondidos, olhando o que a gente fazia. Mas sempre nos trataram super bem.
P/1 – E era a bateria esse rádio?
R – Era a pilha.
P/1 – Pilha?
R – Era a pilha.
P/1 – E pegava a rádio da onde, Porto Velho?
R – Pai, qual era a rádio que pegava quando a gente morava no mato? Qual era o nome da rádio? O pai está aqui, vai tentar. Era uma rádio aqui da Igreja, era da Rádio Nacional. Eu não lembro. Era uma rádio aí. Não era Rádio Progresso? Era a rádio que tinha a Voz do Brasil, qual que era eu não sei. Tinha a Voz do Brasil, que o povo ouvia.
P/1 – Tocava muita música?
R – Tocava muita música.
P/1 – Que tipo de música?
R – Ah, tudo... Olha, eu só aprendi música do Ataulfo Alves. Tanto é que o meu gosto musical hoje, o povo diz que eu sou muito velha, porque era só... Como é o nome daquilo lá? Waldick Soriano. Waldick Soriano era o que mais ouvia. Waldick Soriano, Ataulfo Alves, Nelson Gonçalves, Francisco Alves, esse povo antigo. Orlando Silva, está o papai falando aqui. Pra tu vê, né? Meus gostos musicais são bem antigos, porque eu cresci ouvindo esse povo antigo. Como é? Amelinha, Aabobrinha, como era? Amelinha? Ah, Emilinha Abóbora, Emilinha Bóba, sei lá. Aquela mulher que falava: “As cantoras do rádio”. É tudo antigo. Eu fico cantando aqui, os meninos dizem: “Meu Deus, essa mulher é muito antiga”. Eu digo: “Sou pré-histórica”.
P/1 – Bastante coisa que pegava lá.
R – Pegava, pegava todas essas coisas.
P/1 – E aí vocês ficavam cuidando do tapiri, o que vocês faziam?
R – Brincando com os bichos. Não tinha o que cuidar. Dentro do tapiri só tinha as redes e as panelas. Não tem móvel, não tem coisa nenhuma. A única coisa que tu tem é o quê? Quatro panelas pra fazer comida, os copos pra beber água e brincando. Não tem o que cuidar. No meio do mato tu não tem preocupação com nada porque tu não se preocupa com roubo, tu não se preocupa com absolutamente nada. Porque primeiro que tu não tem nada pra te roubar por ninguém, né, e também não tem ladrão. Então tu passa o dia inteiro brincando. Tu faz a comida pra comer e brinca o dia inteiro.
P/1 – E tinha alguma brincadeira assim com os bichos?
R – Ah, brincava de correr no mato com eles, de tomar banho. Era gostoso ficar pulando dentro do rio, tomando banho.
P/1 – Que bicho que gostava mais de tomar banho?
R – Ah, veado gosta muito. Veado é um bicho ___. Veado é bem legal. Macaco, macaco gosta. Pendura no teu pescoço e vai embora contigo.
P/1 – E como é que preparava a comida, a caça, quando ela chegava?
R – Ah, ou fazia assada, que tu põe na, sabe moquém?
P/1 – Não. Como é que é moquém?
R – Moquém. Como é que eu descrevo moquém? Sabe jirau?
P/1 – Não.
R – Menina, eu tenho que arranjar um palavreado que tu entenda. Tu coloca umas forquilhas. Forquilha tu sabe?
P/1 – Não, explica também.
R – Tu pega um pau que tenha... Traduz forquilha pra mim aí.
P/1 – Explica como é que é, que aí também a gente entende.
R – É uma vara que tem bifurcação assim, duas pontas. Aí tu põe uma de um lado, outra do outro. Aí tu põe quatro assim e enche de varinha em cima. Isso se chama moquém. E aí tu põe o animal em cima pra assar. Ou tu pega também e faz, põe uma forquilha de um lado e outra de outro e enfia ele igual churrasco, igual faz churrasco, só que com madeira.
P/1 – E a farinha vai em cima?
R – Não, a farinha não. A farinha, tu torra a farinha. A farinha tu pega um tacho, que é de ferro. Você sabe o que é bateia?
P/1 – De espremer?
R – Não, bateia não é de espremer. Bateia é... Já viu como os garimpeiros limpam o ouro?
P/1 – Não, explica.
R – Bateia é como se fosse um chapéu de um chinês. Boa, o pessoal aqui... O chapéu do chinês é uma bateia, só que é de aço. Então você coloca ela, você faz o coisa pra ela ficar segura, a forquilha põe, e você coloca o fogo embaixo. Você pega a mandioca, você puba. Pubar mandioca é por a mandioca de molho e deixar ela amolecer. E aí a gente espreme, coloca na batéeia e mexe com um pauzinho até a farinha torrar, até ficar torradinho.
P/1 – A bateia é pra torrar então?
R – É pra torrar farinha. Aí você come a farinha com a carne assada, com a carne cozida, que cozinhava também. Cozinhava macaco, veado, paca, cotia, tudo quanto é bicho. Mutum, eu adorava comer mutum e jacu. Mutum e jacu são pássaros, são muito gostosos. Ah, a gente criava um pássaro bem interessante, que é jacamim, que onde tu vai andando ele vai andando atrás de ti. Vai que vai. Já ouviu falar: “Tu parece até filho de jacamim”? Já viu essa expressão?
P/1 – Não. Jacamim?
R – É. Porque jacamim é um pássaro que segue as pessoas. Então quando tu fala pra alguém: “Pô, tu parece filho de jacamim”, é criança que vai com qualquer pessoa, entendeu? Então eu parecia filho de jacamim, minha mãe fala, porque todas as pessoas que chegavam pra visitar a gente eu ia, todo mundo. Então aí minha mãe dizia: “Parece filho de jacamim, vai com todo mundo”.
P/1 – Quem que era esse todo mundo?
R – Eram os seringueiros das outras colocações. Tinham outras colocações.
P/1 – E eram muitos?
R – Não, não é muito não. Subindo, tu andando assim uma base de quatro, cinco dias de viagem dentro do mato tu encontrava outras colocações. E às vezes tu andava um mês inteiro pra chegar noutra colocação. Mas os seringueiros se visitam. Passam o mês inteiro pra chegar na colocação do outro, eles vão. A gente ia. Saía porque ia andando dentro do mato, né, pra visitar, ia caçando. Saía pra andar, e aí você vai visitando os outros.
P/1 – E era muito diferente assim a casa dos outros ou todo mundo era parecido?
R – A dos outros era um pouquinho melhor do que a nossa porque a dos outros... Eu lembro, esse seringueiro que os índios levaram a família, a casa dele era toda de paxiúba, era cercada. Paxiúba é uma palmeira do mato. Era coberta de palha e cercada de paxiúba. Tanto é que quando os índios levaram ele, eles flecharam toda a casa de paxiúba. A nossa não era. A nossa era tapiri. Depois, quando a gente tinha assim uns dez anos, o meu pai fez uma casa de paxiúba pra nós. Aí a gente já estava rico, já estava importante, a gente já tinha casa de paxiúba. E ela é construída bem alta do chão, tipo palafita. Palafita você sabe?
P/1 – Sei.
R – Só que toda fechada de paxiúba e coberta de palha. Mas aí a gente já estava ricão, já tinha paxiúba.
P/1 – E estação, assim, de chuva, seca, como é que era?
R – Ah, pra gente era normal. A gente... Aqui chove o tempo todo. Antes chovia bem mais. Agora, devido ao desmatamento, está chovendo menos. Mas nessa época chovia muito, muito, muito, muito. Uma coisa que assustava bem a gente no mato eram os raios porque no mato cai muito raio. Então, quando começava a trovejar dava trovões imensos. Então os raios caíam e cortavam as árvores e isso dava medo pra gente. A gente corria pra dentro das redes e ficava encolhidinho lá, escondido dentro da rede. Deixava só os olhinhos do lado de fora olhando os raios caírem. Mas quando parava de cair raio, a gente ia direto pra chuva. A gente adorava a chuva porque adorava tomar banho de chuva. Então todo dia era banho de chuva porque era uma coisa que a gente gostava de fazer. E era um divertimento ficar pulando na água, no chão, batendo com o pé no chão e a água subindo pelo teu pé.
P/1 – Qual que era o nome da sua irmã?
R – Ivanete.
P/1 – Mas tinha assim um período de seca, outro de chuva?
R – O período de seca, naquela época aqui, que a gente aqui fala que a gente tem duas estações, inverno e verão. Mas mesmo no verão chove, só que chove menos. E no verão a gente ... A vantagem do verão é o seguinte, porque tu ia pro rio pescar e ficava mais fácil pescar, e a gente pescava muito. Então, como tinha muito peixe naquela época, muito peixe, e aí era muito bonito tu nadar porque tu via aqueles cardumes de peixes. Hoje em dia já está difícil ver essas coisas, mas naquela época a gente ia pro rio, nadava. Então no verão ficava muito mais bonito o rio porque ele ficava mais limpa a água. A água sempre foi limpa, mas na época do verão tinha muito mais cardume do que no inverno. Então a gente adorava ficar pescando, nadando, pegando peixe com a mão, essas coisas assim.
P/1 – Como que vocês pescavam?
R – Ah, pescava com... Ah, deixa eu achar a palavra certa pra ti. Eu tenho que me lembrar dessas palavras. O que chamam hoje, a gente fazia tipo arpão, só que a gente fazia de vara. E fazia caniço também. Pescava com anzol e arpão de vara. Ou seja, a gente pegava uma varinha do mato, deixava bem fininha a ponta dela, tipo uma flecha de pescar, e pescava. E pescava com a mão, porque tinha muito peixe também.
P/1 – Tinha nome esses peixes, que vocês davam?
R – Não, aí a gente já tinha os nomes. Traíra, jatuarana, pacu, tambaqui, surubim, piaba, piau, muito bicho.
P/1 – Tinha algum mais gostoso?
R – Ah, eu gostava muito de jatuarana.
P/1 – Por quê?
R – Ah, porque eu acho que é o peixe mais gostoso. Ele assado eu acho ele gostoso. Sabe uma coisa que a gente fazia no meio do mato, por incrível que pareça? Tu não vai acreditar nisso, mas a gente lia revista. Minha mãe gostava de ler. Então quando o avião ia deixar a mercadoria ele mandava revistas e mais revistas, daquela revista Grande Hotel, que nem existe mais hoje. Grande Hotel, Cruzeiro, Contigo, livrinhos de bolso. Eu li toda a saga do Flash Gordon, aqueles livrinhos de bang-bang de bolso. Eu lia muito, tanto é que eu e minha irmã, quando saímos do mato a gente sabia ler e escrever porque a minha mãe ensinava a gente, tinha uma cartilha do alfabeto. Eu lembro da minha mãe, pegava a cartilha, pegava folha de papel em branco e fazia buraquinho em cima das letras, e cobria todas as outras letras e perguntava: “Que letra é essa?” E aí nós aprendemos a ler e a escrever, a somar. Mas aprendemos a ler na revista Grande Hotel, Cruzeiro, Contigo e nesses livros de bolso de bang-bang e ficção, tanto é que eu gosto muito de ficção até hoje por ter lido muito quando criança. Então, quando a gente chegou na cidade a gente tinha uma vantagem. Quando fomos pra escola a gente tinha uma vantagem em cima das crianças que viviam na cidade, que era que a gente sabia ler e escrever, somar, multiplicar, tudo que minha mãe ensinou no meio do mato.
P/1 – Ela tinha talento, né, pra ensinar.
R – Não, minha mãe era ótima, minha mãe era fantástica. Ela, assim, por isso que eu digo. É uma história interessante ela contar porque ela sabe assim. Ela salvou a gente quando o barco pegou fogo. Aí, quando o barco pegou fogo estourava, porque dentro ia muito tambor com combustível, com gasolina. Então os tambores estouravam, subiam, pareciam foguetes assim, estourava em cima. E toda a gasolina espalhou em cima do rio e o rio foi pegando fogo. Assim, minha mãe conseguiu, com um pedaço de tábua, levar a canoa comigo e minha irmã. Ela salvou a gente. E isso era meia-noite, tu não enxergava nada, que meia-noite no meio do mato não enxergava nada, só enxergava o rio pegando fogo, o rio e a beira do rio, a mata na beira do rio pegando fogo. Ela era uma mulher fantástica. Ela cuidava do meu pai, dos irmãos do meu pai que também moravam lá. E era caçadora, era quem fornecia a carne em casa.
P/1 – Incrível.
R – Não, ela e meu pai. Meu pai, se tu ouvir as histórias do meu pai tu racha de rir, porque os dois são bem... E a gente passou a infância assim com eles dois ensinando a gente a andar no mato. Tanto é que quando eu me formei e fui trabalhar com os índios eu sabia andar no mato. Eu fui a primeira mulher a trabalhar com localização de índio sem contato porque até essa época a Funai achava que isso era trabalho de homem. E eu fui a primeira mulher. Então ia pro mato. Eu sabia andar no mato porque meu pai me ensinou a andar no mato, minha mãe me ensinou a andar no mato. Eles ensinaram pra gente a caçar, pescar. Então a gente sabia se virar, a se proteger. Se eu ando no mato hoje, um bicho me pica, eu sei exatamente qual é a folha que eu vou pegar e vou passar em cima pra me livrar da picada. Então a gente aprendeu muito com eles.
P/1 – Só lembrando um pouquinho dessa história do barco. Vocês estavam vindo do Acre, exatamente onde?
R – Não, a gente não estava vindo do Acre. O meu pai tinha mudado de Plácido de Castro pra Rondônia, que aí a gente foi aqui pro Jaci, que é Jaci-Paraná, que hoje é uma região que vai ser alagada pela hidrelétrica. E só de pensar nisso eu começo a chorar porque eu sei que vai destruir parte da minha infância, da minha história que a gente viveu ali. E aí ele foi trabalhar no Jaci. Quando o barco pegou fogo, pegou com a gente no Jaci. Nós éramos o que? Tinha uns três anos, que em seguida a gente foi pro mato.
P/1 – Só pra entender um pouco a questão espacial. Você nasceu no Acre...
R – __________ minha mãe contando. Eu era muito criança.
P/1 – É, deve ser interessante escutar ela contando, né?
R – Aí ____
P/1 – Da onde você nasceu, no Acre, pra Rondônia, quanto tempo que era? Era no meio do mato também, como é que era?
R – Era no meio do mato. Tu assistiu Mad Maria?
P/1 – Meia de Maria?
R – Não, Mad Maria não, Galvez, o Imperador do Acre?
P/1 – Eu vi alguns capítulos.
R – Então, lá onde o Plácido de Castro está fazendo as confusões, é lá que eu nasci. A minha mãe, quando assistiu, a minha mãe assistiu a minissérie todinha, ela contava: “Não, não é desse jeito aí não. Algumas coisas são desse jeito, outras estão tudo errado”. A gente nasceu ali, em Plácido de Castro, que era um seringal. Não tem uma cena dos seringueiros no meio do mato?
P/1 – Tinha várias.
R – Então, mas tem uma cena dos seringueiros em Plácido de Castro, no Seringal Santa Rosa, que em seguida vira, depois de toda a confusão vira a cidade de Plácido de Castro, que antes era o nome da colocação, Colocação Santa Rosa.
P/1 – Mas aí até Rondônia como que foi?
R – Ah, meu pai eu acho que deve ter saído de carro, eu não sei. Mas deve ter sido, de carro não tinha estrada, né? Não, ele saiu de barco, deve ter descido de barco pelo Rio Branco. Naquela época não tinha estrada.
P/1 – Mas a sua identidade mesmo é com Rondônia?
R – Totalmente rondoniense. Eu vim pra cá com seis meses. Se tu me perguntar da cultura do Acre, eu não sei. Eu me considero rondoniense porque nasci, fiquei seis meses lá, vim embora. Então não voltei mais. Voltei pra fazer reuniões de negócio em Rio Branco, mas eu nem sei como é Plácido de Castro, se tu quer ter uma idéia. Olha, eu vi na Mad Maria... Eu devo até voltar lá pra conhecer como é a terra onde eu nasci, mas eu me considero rondoniense porque eu cresci aqui, eu tenho toda a cultura daqui. Eu não tenho nada da cultura do povo do Acre, eu tenho uma cultura bem rondoniense, uma identidade rondoniense.
P/1 – Que bom. Você falou que nasceu no Acre, eu fiquei: “Ah, mas ______”
R – Mas a maioria do povo que está em Rondônia, antigo que nem eu, ou nasceu no Acre ou nasceu no Amazonas. Raríssimas as pessoas que nasceram aqui, porque Rondônia é um estado de migrantes. Então tu tem vários períodos de migração. Você tem o período da migração da estrada de ferro, aí você tem a migração da borracha, aí você tem a migração do período de garimpo, aí da pecuária. Eu vim pra cá pro meu pai trabalhar com seringal.
P/1 – O seu pai já é a migração do seringal?
R – É, o meu pai veio do Ceará pro Acre. A minha mãe que é do Acre. E aí nós crescemos aqui. Dizem os acreanos que querem me resgatar, mas eu digo pra eles, meus amigos acreanos: “Não adianta, eu tenho corpo e alma rondoniense”.
P/1 – E você também falou do leite de castanha, né? Tinha muita castanheira, como é que era?
R – Nossa, muita castanheira. A gente comia muita castanha. Então o meu pai coletava a castanha. A vida inteira a gente tinha castanha. E a minha mãe fazia muito leite de castanha. Tu amassa e tira o leite. Então a gente comia muito feijão, que o meu pai tinha feijão lá, plantava. E feijão no leite da castanha, já comeu?
P/1 – Não.
R – É uma delícia, faça isso. Feijão no leite da castanha, macaco no leite da castanha é uma delícia. Macaco no leite da castanha é a coisa mais gostosa. Mas hoje eu não recomendo ninguém mais a comer macaco não. Naquela época tinha muito macaco, agora está em falta.
P/1 – Como é que é a carne do macaco?
R – A carne do macaco?
P/1 – É.
R – Hum, é uma delícia. Carne de macaco é gostosa. No leite da castanha é muito gostoso. Mas hoje não pode mais comer não. Hoje eu digo pra ninguém comer carne de bicho porque foi muito devastado, mataram muito bicho. Então vamos preservar os bichinhos. Depois não precisa, tem supermercado, né?
P/1 – É. Mas aí as castanheiras não tinha...
R – Todas nativas.
P/1 – Todas nativas?
R – Todas nativas. Essa área é riquíssima. Pra tu ter uma ideia, tem muita castanha, muita pama, muita copaíba. Copaíba a gente...
P/1 – Pama?
R – A gente usava muito copaíba pra tratamento de saúde. Copaíba, andiroba. Então tem muito.
P/1 – Pupunha tem também?
R – Muita pupunha. Tem pupunha, tem tucumã, super rica. A gente teve um... O período que a gente morou no mato era muito rico. A gente veio passar fome na vida da gente quando a gente veio pra cidade. Que eu lembro que quando o meu pai saiu a gente não tinha grana. Então não tinha... Eu lembro que teve um mês que a gente não tinha o que comer. A nossa sorte é que era período da manga e aí tinha muita manga. E a gente ia num local chamado, que é conhecido como Candelária, que era onde funcionava o hospital da época da estrada de ferro, _______, e depois virou um orfanato, né? Nessa época era o orfanato, quando a gente foi lá. E tinha muita mangueira e a gente comia manga. Ou seja, passou fome de comer comida, mas não outro tipo de fome porque a gente comia muita manga. Era nosso almoço, janta, café da manhã, mas isso já na cidade. No mato não, no mato nós nunca passamos fome. Muito pelo contrário, a gente era muito saudável no mato. Eu era, né? Minha irmã nunca foi muito saudável no mato, mas eu sempre, no mato eu era uma pessoa muito saudável.
P/1 – Porque a sua irmã não era?
R – Ah, porque minha irmã, no mato ela pegou hepatite. Pegou hepatite. E a minha tia morreu. Eu tinha uma tia que morreu no mato, de hepatite. A minha tia morreu e em seguida a minha irmã também pegou, e não tinha como tratar. A sorte da gente é que o senhor que levava as coisas no avião, ele levou doce, muito doce, e minha mãe tratou a minha irmã com doce de goiabada, muita goiabada. Então ela hoje não come muita goiabada não, ela comeu muito. Quando eles conseguiram tirar e o avião desceu lá e trouxe ela pra cidade, o médico aqui disse que ou operava o baço dela ou ela morreria, porque o médico pra fazer isso aqui tinha que ir pra Belém. Aí a gente não tinha dinheiro. Aí voltamos pro mato, né? Porque vai tratar como? Não tem dinheiro. Aí voltamos pro mato e minha mãe levou muita goiabada e leite condensado, e tratou ela com goiabada, leite condensado e as ervas do mato, folhas do mato. Aí ficou boa. Mas ela também, quando um mosquito picava ela, ela vivia cheia de ferida. Então eu acho que ela gosta de roupa porque ela, ao contrário de mim, ela vivia vestida por causa dos mosquitos. Eu não, pegava um urucum, passava, o mosquito não me picava. Eu acho que eu tenho couro de onça, era mais protegida.
P/1 – Malária não tinha?
R – Não, não pegamos malária. As doenças que deram lá foi hepatite, que deu na minha irmã e nessa minha tia. A minha tia morreu, por sinal, mas a minha irmã não.
P/1 – De hepatite ela morreu?
R – De hepatite. Quando ela chegou na cidade ela morreu. Aí a minha irmã, o médico condenou, disse também que ia morrer, se não levasse pra tratar em Belém ia morrer. Mas aí a gente não tinha grana, aí voltamos pra esperar morrer no seringal. E aí minha mãe ficou lá cuidando, dando remédio do mato e dando goiabada com leite condensado. Aí curou, ficou boa.
P/1 – Era uma hepatite forte?
R – Era bastante forte. A minha irmã é mais gordinha do que eu. Eu sou magrela e ela é mais gorda.
P/1 – E ela curou?
R – Curou. Eu acho que Deus faz milagres, entendeu? É aquela coisa, tu reza, entrega a Deus, como diz o outro. Reza, dá goiabada e leite condensado e chá do mato, e o resto você entrega a Deus. E Deus curou, no caso dela curou.
P/1 – Mas tinha alguma contaminação de água, alguma coisa?
R – A gente não sabe, não temos a menor idéia. A gente era bicho, Antônia, a gente era bicho do mato. Eu digo, a gente era Matinta Perera, curupira, (mapim clarim ?). Essas coisas da cidade a gente não sabia muito não.
P/1 – Matinta Perera é o passarinho, né?
R – É.
P/1 – Que faz aquele barulho. E aí, quando você foi pra cidade como é que foi essa passagem?
R – Então, aí eu vim pra cidade. Aí tem aquelas coisas de ter medo. Eu tinha medo das pessoas, eu tinha medo das coisas. Quando eu saí da cidade eu tinha muito medo porque não era o mundo meu. Então aquilo foi um choque muito grande pra mim. E minha mãe me matriculou na escola pública, que é o Colégio Getúlio Vargas, que era perto da casa que a gente mora. O meu pai construiu uma casa de barro, casa de adobe. Conhece casa de barro?
P/1 – Hã hã.
R – Então. E construiu a casa de barro, cobriu com palha e a gente morava lá. A vantagem da casa de barro é que quando caía um pedaço a gente juntava o barro e fechava o buraco. E também servia pra uma coisa que eu achava muito legal, que era pra ver as vizinhas namorando. Vivia cheio de buraco a casa que a gente derrubava um pedacinho de barro pra ficar vendo as filhas da vizinha namorar. Aí eu fui pra escola. Até me acostumar com as pessoas levou um tempo. Resolvi fazer teatro, já na escola. Aí comecei a fazer teatro na escola. Terminei o primeiro grau. Como eu pintava óleo sobre tela, me juntei com uma outra artista que pintava óleo sobre tela e resolvemos fazer um projeto de arte para o pessoal pobre, porque tinha o pessoal que tinha grana e dizia que arte era só para rico e a gente, eu e ela, dizia que não, que pobre também gosta de arte. E aí fomos pra, aqui na cidade tem uma praça chamada Praça Estrada de Ferro Madeira Mamoré, que na época não tinha uma praça, era só a coisa do trem. E a gente resolveu ir lá no trem e fazer, todos os sábados, ensinar as pessoas a pintarem, as pessoas que não tinham grana, que não tinham... A gente ensinava a pintar e ensinava a fazer teatro. Aí fomos descobrindo várias outras pessoas que faziam arte na cidade e fomos juntando o pessoal que cantava, o pessoal que fazia artesanato. E aí o projeto cresceu, colocamos um nome, chamava Projeto Urucum, e assim conseguimos ensinar várias pessoas a amar a natureza, porque a gente sempre pintava a natureza e sempre fazia peças de teatro representando a natureza, e os músicos cantavam músicas regionais. E fazíamos poesias. Fizemos chuvas de poesia na cidade. E eu fui me envolvendo com a questão indígena. Aí fui pra faculdade, fiz História na faculdade por acreditar que eu tinha que fazer História porque eu queria manter a história do povo, eu queria manter a história de Rondônia. Eu ficava muito cansada de ouvir o povo dizer que o pessoal de Rondônia não tem identidade, que Rondônia é uma terra de ninguém. Eu dizia: “Não, Rondônia tem identidade!”. E aí fui fazer História. E aí fiz História, depois me especializei em Análise Ambiental e fui trabalhar com os índios, e aí fundamos uma ONG, que é a Kanindé, que é a ONG que eu trabalho, atual. E enfrentamos muito madeireiro. Já levei muita carreira de madeireiro. Tem um fato que é bem legal assim. Uma vez a gente tinha expulsado os madeireiros de dentro da terra indígena e os madeireiros se reuniram com outros madeireiros e garimpeiros na estrada, saindo, quanto tu passava na estrada de Campo Novo. E aí vinha eu e meu amigo saindo do meio do mato. E os madeireiros fecharam a estrada, junto com algumas outras pessoas que eu não sei quem eram, e meu amigo queria parar. Aí eles armados pra parar o carro. Eu digo: “Rapaz, eu vou matar meia dúzia, mas parar nós não vamos não”. Ele: “Não, vamos parar”. Eu pisei no pé dele, no acelerador, não ficou um no meio da estrada, minha filha, todo mundo pulou fora. Aí nós passamos e os tiros, os caras ficaram atirando, mas não morremos não, estamos vivos até hoje. Até hoje estamos ameaçados porque, como a gente trabalha com a coisa de proteção, então a maioria do pessoal aqui está ameaçado de morte.
P/1 – Sempre tem isso, né?
R – É. Diz ela aqui: “Principalmente tu”. Eu sou o alvo principal.
P/1 – Neidinha, a gente pode só dar uma pausinha que eu vou trocar o CD, que a gente já fez um CD. Eu vou trocar rapidinho.
R – A gente não pode fazer isso meio-dia não?
(PAUSA)
P/1 – Então vamos voltar um pouco. Como é que foi essa relação de voltar a trabalhar com os índios no lugar onde você cresceu, como é que foi?
R – Aí eu decidi que, eu comecei a ver, porque eu não tinha, quando eu morava no mato eu não tinha noção do que fosse discriminação, de como tratavam os índios. Pra mim todo mundo era igual, pra mim todo mundo era filho de Deus. Então gente, bicho, todos eram iguais, não havia diferença. Quando eu vim pra cidade eu descobri que tinha diferença, que as pessoas não se tratavam iguais, e percebi que havia muita discriminação em cima dos índios. E aí eu decidi: “Não, eu vou combater esse tipo de coisa. Vou combater a discriminação”. E outra coisa que eu descobri era que havia muita destruição da natureza, que tinham pessoas que destruíam a natureza por ganância. Aí eu resolvi: “Não, eu vou trabalhar com a proteção da natureza e vou trabalhar com a defesa do direito dos índios, é isso que eu quero fazer, além de trabalhar com a manutenção, de manter a minha identidade”. Eu digo: “Eu não quero perder a forma de eu falar, eu não quero perder a forma de eu agir. Eu sou daqui, então eu tenho que manter isso”. E isso pautou toda a minha faculdade, pautou tudo. E aí fui trabalhar com o povo Uru-Eu-Wau-Wau, que era de onde eu tinha vindo. Eu tinha saído de lá, passei a minha vida inteira morando naquela terra. Eu digo: “Não, eu vou proteger esse povo”, que eu nem sabia que se chamava Uru-Eu-Wau-Wau. E aí fiz esse trabalho com arte muito tempo, fazendo a defesa, fazendo arte na cidade. Eu lembro que a gente fez uma peça muito legal assim que se chamava A onça e o caçador, que eu fazia o papel do caçador e uma amiga minha fazia o papel de onça, e tinha os outros bichinhos. E a gente passava a mensagem de como que os caçadores estavam matando apenas pra se divertir. Essas pessoas não estavam indo lá caçar pra comer, por necessidade de alimentação. Elas iam pra se divertir e a gente passava a mensagem que isso tinha que parar, que os animais são seres como a gente e que precisam de proteção, são seres criados por Deus, essas coisas todas. E aí depois fui pra esse trabalho todo com os índios. E aí, pra enfrentar madeireiro, que é super perigoso, pra enfrentar grileiro de terra. Eu lembro, o ano passado, a gente fazendo fiscalização, eu e os índios aí, entramos no meio do mato eu, os índios e um amigo meu, e meu amigo filmando com a filmadora. Aí prendemos o madeireiro. Porque a gente, assim, a gente estava na maloca e aí nós ouvimos... Maloca, você sabe o que é maloca?
P/1 – Maloca sim.
R – Aí estava na maloca e ouvimos o som de motosserra. Aí eu olhei pro (Puruem?), falei: “(Puruem?)”, que é o nome do índio, “tu tá ouvindo?” Ele disse: “Estou”. Eu digo: “Isso é motosserra”. Ele diz: “É” “Então vamos lá? Vamos ver onde é”. Aí pegamos todo o pessoal da aldeia, os homens, que éramos seis, e aí fomos pro mato. Aí entramos _______. Aí chegamos e o cara estava derrubando uma castanheira. E aí cercamos o cara. Aí fomos lá e dissemos: “Você está dentro da terra indígena, derrubando, e não pode”. Ele disse: “Não, estou fora, não tem nenhuma placa”. Eu digo: “Não, aqui é terra indígena”. Eu puxei o ponto no GPS e disse pra ele: “Não, você está dentro do limite da terra indígena”. GPS tu sabe também?
P/1 – GPS sim.
R – E aí apontei no mapa e disse: “Olha, você está dentro da terra indígena, então você está preso”, e aí ele disse: “Não, não tem placa”, e eu falei: “Gente, vamos procurar essa placa”. Ele tinha pego a placa e tinha tirado a placa e jogado, e a gente sabia que ali tinha uma placa. Aí localizamos a placa. E aí prendemos o cara e os índios tomaram todas as coisas, e o cara dizia pra mim: “Não, não, fale pra ele devolver”. Eu digo: “Não, não posso. Não vou dizer pra eles devolverem motosserra, nada disso. Você invadiu a terra deles, está roubando a terra deles, porque que eu vou dizer isso?” Aí estamos lá, tal. Aí o meu amigo que está filmando diz: “Neidinha, afasta um pouquinho”. Aí o madeireiro olha pra mim e diz: “Ah, então você é a tal da Neidinha?” A gente fez até um filme com isso, ficou muito engraçado. “Você é a tal da Neidinha?” Eu digo: “Puta que pariu, no meio do mato um madeireiro me reconhece”. Ninguém merece. Não, aí depois de fazer isso, tomar tudo, aí nós dissemos: “Olha, nós vamos soltar você mas vamos levar todas as coisas”. Eu olhei pros meninos e lembrei que nenhum de nós, a gente não tinha um canivete. Eu digo: “Agora nós estamos lascados, porque como é que nós vamos fazer?” Aí eu olhei, mandamos ele embora e falei pros índios: “Olha, nós vamos ter que sair por um canto por dentro do mato porque se a gente sair ali por dentro da fazenda eles vão pegar nós e nós não temos como nos defender”. Menina, nós tivemos que varar a mata. Saímos todos arranhados, tudo por conta de ter ido prender madeireiro sem um canivete na mão. Tu acha? Não, juízo nenhum, né, juízo nenhum. Mas a gente ria tanto depois, quando chegou na aldeia. Nós dissemos: “Oh, eu não sei quem é mais doido, se nós ou o madeireiro que não percebeu que nós não tínhamos nem um canivete na mão”. Aí levamos tudo preso.
P/1 – E isso vocês estavam atuando pela Funai ou pela Kanindé?
R – Não, eu e os índios só. Eu da Kanindé e os índios da aldeia. Eu não estou te falando que a gente estava deitado na maloca e ouviu o som da motosserra e resolvemos ir expulsar o madeireiro?
P/1 – Mas vocês têm autoridade pra prender então?
R – Não, mas os índios têm. Não fui eu que prendi, foi eles. Eu estava só de companhia.
P/1 – Sei.
R – Eu não prendo. Ele disse que eu não podia prender, eu disse: “Eu não estou lhe prendendo, quem está lhe prendendo é os índios”, não é?
P/1 – Está na terra deles, né?
R – Está na terra deles. Mas a gente já passou por umas situações extremamente engraçadas, assim, vamos dizer, da gente prendendo, eu e os índios prendendo os caras assim. Mas essa foi a... Tem uma bem engraçada assim quando eu fui pra aldeia a primeira vez, na aldeia deles. Aí estava eu sentada, os índios tinham acabado de matar dois madeireiros que tinham invadido a terra deles. Aí estou eu lá. Me chamaram pra ir resolver a situação. Vou pra lá e de noite estou sentada na beira da maloca, e estão os índios andando de um canto pro outro e cantando, com arco e flecha na mão. Canta e dança de um lado pro outro. Quando eu escuto, menina, eu só vi a flecha passar do lado da minha orelha. Eles cantavam contando como que eles tinham matado o madeireiro, como que eles tinham falado, que eles tinham avisado pro madeireiro seis vezes, pros madeireiros irem embora que era a terra deles e que os madeireiros não foram, que os madeireiros ficaram xingando eles, que isso e aquilo. Eles contavam tudinho, só que eles contavam na língua deles. E aí teve uma hora que ele vai simbolizar exatamente como que ele jogou a flecha, aí ele joga bem na minha direção. Menina, quase que eu morro ali.
P/1 – Era de propósito ou não?
R – Não, eles estavam demonstrando pra mim como é que fazia. Não era de propósito, era uma demonstração.
P/1 – Quase real.
R – É. Eu nunca fiquei com tanto medo na minha vida. E eles riam, eles riam, eles rachavam de dar risada da minha cara porque, pô, nunca iam me matar. Agora... Mas é bem legal, tem umas coisas bem legais assim, umas histórias bem... Uma vez eu fui chamada pelo juiz. Tinha prendido os caras fazia muito tempo. E aí, cinco anos depois, o juiz me chama pra depor. Só que quando eu tinha feito o levantamento da área de índios isolados, eu tinha prendido umas coisas e tinha feito um levantamento da área de ocupação dos índios isolados, que são os índios sem contato. E aí, quando eu passei lá, esses caras que invadiram, que eram os fazendeiros, eram tudo muito bem vestido, tudo muito bem arrumado. Quando o juiz me chama pra depor, aí eu já estou casada, estou com a minha nenenzinha no colo, dando de mamar. Vou lá pro juiz com o bebê recém-nascido e o juiz olha pra mim assim, no tribunal. Estavam todos os fazendeiros, só que todos vestidos de coitadinhos, de pobrezinhos. Quem não tinha bigode estava de bigode. Aí o juiz fala pra mim assim: “Me aponte o senhor Capixaba”. Eu falo: “Seus putos lascados, eu vou lá saber que diabo é Capixaba cinco anos depois?”, ainda mais que os caras estavam todos disfarçados. As pessoas que eu tinha visto toda, estavam parecia uns mendigos da praça, entendeu? Eu falei: “Rapaz”. Eu olhei assim. A minha sorte era que o advogado da Funai, que estava comigo, por debaixo da mesa apontou o cara. Eu olhei assim. Aí o cara se mexeu, eu digo: “Aquele que se mexeu”. Aí, a partir daí todos que o juiz perguntava, eu percebi que todos se mexiam. Quando o juiz falava o nome da pessoa, a pessoa se mexia. “É aquele ali”. E assim eu fui reconhecendo todo mundo. Aí quando eu saí, esses caras tinham vindo num ônibus lotado. Quando terminou a audiência, que nós saímos, eles me rodearam. Todos eles disseram: “Não vai ficar assim. Você vai pagar caro. Você não vai mais poder andar na rua sozinha”. Eu digo: “Eu duvido”. Eu era atrevida, menina. Agora eu estou mais calma. Aí foram embora. Mas tem umas fases bem interessantes desse meu trabalho com os índios, de proteção.
P/1 – Como foi a primeira vez que você encontrou com eles, que você saiu pro mato? Como é que foi?
R – Então, a primeira vez é muito emocionante porque primeiro que tu aprende sobre índio em revista, em livro de escola, que ensina tudo errado. Ou nas revistas. Ou o cara é bonzinho demais, é santo, ou o cara é selvagem, e na verdade eles não são nem uma coisa, nem outra, eles são gente igual a nós, com qualidades, defeitos, essa coisa toda. Mas a primeira vez que eu entrei, pra mim eles eram seres sobrenaturais, eram o que eu tinha lido no livro da escola. E aí, quando eu os encontro, eu descubro que eles são iguais a mim, iguaizinhos, e aí me lembra toda aquela coisa da infância, porque eles brincam que nem eu brincava na infância. Eles brincam dentro do rio que nem eu brinco, comiam que nem eu comia na minha infância. Então eu me senti em casa, muito mais em casa do que quando eu estava na cidade. Então foi como se eu estivesse de volta pras minhas origens, entendeu? Então isso me emocionou muito.
P/1 – E teve algum reconhecimento da parte deles também?
R – Ah, eu sempre fui bem aceita por todos eles. Eu trabalho com várias etnias e eu acho que eles me acham meio parecida com eles. No fundo eu acho, eu sempre digo uma frase que era até do Vinicius de Moraes, que o Vinicius de Moraes dizia que ele era o branco mais negro do Brasil, né? Eu acho que eu sou a não índia mais índia do Brasil porque eu me sinto bem, me identifico com a cultura, me sinto bem, é lá que eu me sinto em casa, é eles que eu sinto como se fosse meu povo, é eles que pra mim são os meus parentes. É com eles que eu quero viver, é com eles que eu quero, entendeu? Eu casei com índio, por sinal.
P/1 – Quem que é?
R – Com Almir Suruí, que é uma liderança indígena.
P/1 – É outra etnia?
R – É outra etnia, é suruí. Tenho duas filhas.
P/1 – Como você conheceu ele?
R – O Almir eu conheci assim, porque eu, como eu faço parte do movimento indígena, aí eu conheci ele numa reunião, e brigando muito, eu e ele. Brigamos muito porque cada um acreditava de um jeito. E aí nós brigamos muito por essa coisa do que a gente queria e descobrimos que estávamos brigando pela mesma coisa, só que de forma diferente. Aí nos apaixonamos e fizemos o nosso casamento na aldeia. O nosso casamento foi tribal. E eu não podia ter filhos quando eu casei, aí eu fiz um tratamento na aldeia. A mãe dele fez um tratamento com ervas indígenas. Fiquei um mês dentro da aldeia fazendo o tratamento, aí engravidei, aí tenho duas indiazinhas.
P/1 – Que legal.
R – É bem legal. O nosso casamento foi muito lindo. Aí, a partir daí a gente está lutando juntos na defesa dos direitos dos índios e do meio ambiente.
P/1 – E a Kanindé surge quando?
R – A Kanindé foi criada em 92. Assim, eu fazia parte de uma ONG e o outro pessoal que formou a Kanindé junto comigo era parte da Funai, eram funcionários da Funai. Nós denunciamos o pessoal, o administrador da Funai, que estava incentivando os índios a vender madeira. Aí o resultado disso é que eles estavam aliciando os índios a vender madeira e esse pessoal que estava na Funai foi expulso da Funai. E eu saí da ONG que eu trabalhava porque eu achava que ela não cumpria com o que ela dizia, que ela recebia um recurso pra apoiar os índios e estava gastando em outras coisas, e eu denunciei ela também. Aí nós nos juntamos e criamos a Canindé pra nos contrapor a toda essa coisa da corrupção e pra fazer a defesa e a proteção do meio ambiente e dos povos indígenas. E na época a gente não tinha um centavo no bolso. Todo mundo pegou o dinheiro das suas rescisões e dissemos: “Olha, nós vamos aplicar pra trabalhar com os índios”, e fomos pro meio do mato. A gente ia pro mato de carona e fomos trabalhando. Durante três anos ficamos trabalhando pedindo carona, com um pouquinho do dinheiro que todo mundo tinha da rescisão. O meu pai tinha uma grana, eu explorei o coitado do meu pai usando o dinheiro dele pra trabalhar com os índios até conseguir o primeiro apoio pra Kanindé, o primeiro financiamento.
P/1 – Que veio de onde?
P/1 – Foi com a WWF. Aí já melhorou porque o financiamento era pra gente comprar equipamento que a gente não tinha. Não pagava salário, não pagava nada, mas pagava a nossa comida e o nosso transporte, e aí a gente ia pro mato lá fazer fiscalização. Depois nós tivemos apoio do Amigos da Terra e a nossa vida ficou bem melhor. Compramos carro, e hoje a gente está bem melhor. Aí os índios que a gente trabalha agora ganharam dois prêmios de cultura, com o trabalho que a gente faz com eles, que foram os índios gavião e os suruí, e aí estamos indo na luta pela defesa do meio ambiente.
P/1 – Como que é esse trabalho? Como é que vocês trabalham?
R – É um bocado de coisa porque a gente trabalha com proteção da área, que é fazendo vigilância e fiscalização junto com o Ibama e a Funai. Fazemos diagnóstico e pesquisa com ave, peixe, répteis, um bocado de vegetação, porque o povo fica me pedindo aqui. Quando tu ver eu parar é porque alguém está mandando eu fazer alguma coisa. Eu estou _____. Aí com vegetação. Trabalhamos com produção, o incentivo à produção da farinha indígena, com a valorização da cultura apoiando rituais, com o acompanhamento de políticas públicas. É bem extenso, é bastante trabalho. E com o manejo de copaíba e com reflorestamento. É muita coisa.
P/1 – E você tem visto resultado de quando começou a agora?
R – Ah, com certeza. A situação dos índios está bem melhor nessa questão da nutrição, da alimentação. A gente trabalha com saúde também, nas aldeias. E eu digo que se não fosse a gente a terra indígena já tinha sido toda destruída. Se não fosse a gente e os índios, lógico. Se não fosse mais os índios até, porque os índios é que realmente garantem a proteção da área e a gente só ajuda eles. Mas eu digo que a gente é uma peça muito importante na defesa do território deles e do meio ambiente. Se a gente sair acho que, coitados deles, porque os madeireiros, garimpeiros, grileiros torturam, pressionam o tempo todo.
P/1 – Hoje em dia já teria uma autonomia, uma liderança por parte dos índios pra tocarem isso ainda?
R – Tem, tem várias lideranças. A gente só apoia, eles tocam só. A gente busca dar apoio. Eles gostam que a gente esteja junto, mas no dia que não quiserem também e mandarem a gente embora eles não precisam mais de nós.
P/1 – Quais que são as maiores diferenças que você vê dessa questão ambiental e social em Rondônia de quando você era criança, adolescente, pra hoje?
R – Rondônia, quando eu era criança, tinha muita mata, muito bicho, hoje não tem. Rondônia está bastante destruída e está sendo cada vez mais destruída. A maioria das pessoas, isso eu noto muito, eu viajo muito também, e aí, assim, você vê pouca gente que é filho daqui ou que veio pra cá muito pequeno, que tenha característica da Amazônia. Rondônia tem muito a cara do sul hoje. Muita gente do Paraná, do Rio Grande do Sul, muito capixaba. Então a população não tem muito aquela característica da identidade amazônica. Você vai encontrar muito isso, com identidade amazônica, um pouco aqui em Porto Velho e um pouco em Guajará Mirim e nos ribeirinhos. A parte que vai pro sul do estado, pegando o trecho da BR-364, é um povo muito de fora e infelizmente não respeitam o meio ambiente, não respeitam. Então Rondônia está muito destruída. Isso choca muito a gente que luta pela defesa do meio ambiente e que luta pelos direitos indígenas. A falta de respeito com os índios aumentou muito, a discriminação aumentou muito. Já havia, mas hoje é bem pior, bem pior do que quando eu era criança, e isso me entristece muito, essa falta de compromisso com a questão ambiental e com o respeito à diversidade, entendeu? Com respeito aos povos indígenas há um desrespeito muito grande em Rondônia. Os políticos daqui são terríveis, terríveis. Desenvolvimento pro estado pra eles é desmatar e destruir, é destruir. Então está muito diferente, tanto culturalmente quanto ambientalmente. Eu sinto... Hoje você não vê. Quando eu era criança todo mundo, que eu vim pra cá, eu tinha 13 anos, todo mundo sentava na frente de casa e ficava contando história. A gente brincava de rouba-bandeira, de pega-pega. A gente corria, brincava, as crianças. Hoje tu não vê criança brincando. A gente brincava muito de roda. Tu não vê, as crianças estão tudo... E todo mundo com medo de deixar seus filhos saírem fora dos seus portões. Então você fica preso dentro da sua própria casa.
P/1 – Muito violento agora?
R – Porto Velho é uma das cidades mais violentas do país. Em proporcionalidade é superior.
P/1 – Isso é consequência...
R – Tudo consequência da migração e do chamado desenvolvimento que escolheram. O que eles chamam de desenvolvimento, pra mim, é aumento da violência, aumento da miséria, aumento de tudo que é coisa ruim. Porque se desenvolvimento é destruir, eu não quero esse tipo de desenvolvimento. Desenvolvimento é tu ficar preso dentro de casa? Eu moro na mesma casa que eu moro desde que eu era criança. Claro que não é mais de barro, né? Agora já é de tijolo, mas é no mesmo lugar. Então esses dias eu estava olhando o quintal de casa, os vizinhos lá tudo com cerca elétrica, entendeu? Ou seja, você está preso. Quando eu era criança não, tu brincava com os vizinhos. Se acabava o teu café, acabava o teu açúcar, tu ia lá e pedia o do vizinho, o vizinho te dava, tu dava pro vizinho outra coisa, entendeu? Hoje em dia também tu não consegue nem chegar perto porque é tudo cercado, tudo com cerca elétrica. Então é muito difícil. Então ficou muito ruim. A vida antes era muito melhor.
P/1 – E a relação, então, das pessoas que vêm do sul não é muito boa com os nativos?
R – Não, o pessoal do sul, pelo menos o que eu observo, eles acham que são superiores aos nativos. Eles esquecem que morre e nasce tudo igual, entendeu? É um tratamento muito ruim. Isso é uma visão minha. Não são todos. Não vou generalizar que todo povo do sul é assim. Não, não é. Mas uma grande maioria acha que... Os rapazes já olharam aqui umas trocentas vezes, me chamando ali, Antônia.
P/1 – Não, tudo bem. A gente pode finalizar, que já foi muito boa a entrevista. Juro, foi muito bonita, viu?
R – __________ bem legal pra contar, mas é que eu estou numa pressão danada com o povo aqui me esperando.
P/1 – Mas o ano que vem a gente está com planos de ir pra Rondônia, Acre, e aí com certeza a gente vai entrar em contato, vai querer fazer uma entrevista de vídeo mesmo.
R – Eu te levo lá nas aldeias.
P/1 – É, então. A gente tem planos pro Memórias dos Brasileiros II. O ano que vem com certeza vamos passar.
R – Tá joia.
P/1 – E aí, assim, agradecer. Foi muito boa a entrevista, muito bonita. Eu acho que vai render uma bela história. E pedir muito, assim, pra você não esquecer de mandar uma foto que seja, porque senão eu não vou poder usar.
R – Vou mandar, mas depois dessa reunião, tá?
P/1 – Tá.
R – Eu devo voltar aqui ______
P/1 – Tá bom. Mas aí se você esquecer eu vou ligar pra você.
R – Pode ligar.
P/1 – Tá bom. Eu quero agradecer muito, viu?
R – Tá ok, Antônia.
P/1 – Até mais, então. Um beijo, tchau.Recolher