A Pesca Artesanal Está em Nós
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Meu colega e amigo da UFPE, professor Cristiano Ramalho, me entrevistou, há um mês, para uma pesquisa acadêmica no âmbito da socioantropologia marítima. A última pergunta pedia minha opinião sobre pesca artesanal.
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A Pesca Artesanal Está em Nós
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Meu colega e amigo da UFPE, professor Cristiano Ramalho, me entrevistou, há um mês, para uma pesquisa acadêmica no âmbito da socioantropologia marítima. A última pergunta pedia minha opinião sobre pesca artesanal.
De supetão, fiquei intimidado diante da filmadora. Jamais seria um profissional mediado por esse tipo de dispositivo tecnológico, pois acho, de acordo com a sabedoria indígena em relação à fotografia, que este suporte rouba nossa alma. Mas, mesmo assim, tentei me expressar, e de forma não acadêmica. Isto é, numa perspectiva muito pessoal, desaconselhável, portanto, quando o assunto é ciência. Seja como for, procurei, à minha maneira, destacar a importância cultural das comunidades pesqueiras tradicionais no Brasil. Sabe-se lá o que ficou registrado. Refaço aqui o caminho, agora de corpo e alma.
Meu primeiro contato com a pesca artesanal foi aos 7 anos de idade. Eu sou do interior. A principal imagem retida até hoje na memória é a do mar azul da Ilha de Itamaracá, numa preamar. Sob uma luz solar estourada, vi deslizar suavemente, nessa paisagem, uma jangada de vela triangular branquíssima. Não à toa, quando escuto a canção O Barquinho, de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, recordo-me, invariavelmente, daquele momento. De tão fascinado com o que via, corri em direção à praia, sob apelos de “segurem essa criança!”
Somam-se a essas imagens as lagostas vermelho-alaranjadas, os peixes e seu cheiro característico, que Clarice Lispector chamou de emanação da ânsia de viver, oferecidos numa fartura que só a natureza é capaz de munir. Os currais de peixes se viam ao largo, como ainda hoje, na maré vazante. Barcos coloridos e jangadas, com velas recolhidas ao mastro, constituem uma gravura à parte, ancorados na areia da praia. Praia repleta de conchas, de todas as cores e formatos. Recolhia bivalves, já descasados, e caramujos, a encher sacolas. Todas interditadas na viagem de volta a Pesqueira, pela prima Helena.
Tenho a impressão de que, em boa medida, foram essas imagens que me levaram à engenharia de pesca e à definição da pesca artesanal, como área de estudo. O ensino da Extensão Pesqueira tem sido meu foco. Foi uma decisão profissional acertada, avalio hoje, embora não foram poucas as vezes em que fui mal compreendido pelos meus pares. Principalmente, quando me opunha (respaldado na literatura e na minha própria produção acadêmica, além dos depoimentos de pescadores e pescadoras) às tecnologias e empreendimentos que invadem os contextos sociais da pesca artesanal, em nome de um pretenso desenvolvimento modernizador.
Os impactos negativos dessas intervenções, passadas e atuais (tecnologias modernas de pesca, turismo, especulação imobiliária nas praias, veraneios, empreendimentos de aquicultura – em detrimento da pesca artesanal e do meio ambiente –, desmatamentos de manguezais, instalações de complexos industriais e portuários) sobre os ecossistemas costeiros e, por conseguinte, sobre os modos de vida de homens e mulheres que têm na pesca artesanal a manutenção das suas próprias vidas. E das nossas também, pois o resultado de seu árduo e arriscado ofício nos fornece segurança alimentar e nos protege ambientalmente, pois a pesca artesanal não polui e não compromete os estoques pesqueiros. Esses impactos constantes sobre a cultura marítima – o recente derramamento de petróleo no litoral é mais um exemplo trágico – nos atingem em cheio, pois a pesca artesanal está em todos nós. A cultura tradicional praieira é uma mescla rica da cultura indígena, portuguesa e africana. Urdida pelas artes de pesca, ela se confunde com a própria vida dos pescadores, como nos informa Cristiano Ramalho, na obra Embarcadiços do Encantamento (UFS, 2018). Essa cultura traz traços próprios na culinária, nos cantos folclóricos, na dança (a ciranda é apenas uma delas), na religiosidade, nas lendas, nas festas, nas formas de catalogar o cotidiano e o saber acumulado para o desenvolvimento da atividade pesqueira, no mar e em terra, em suas múltiplas diferenças e hibridizações culturais, país afora.
Tão peculiar, como tantas outras que compõem a cultura brasileira, a cultura tradicional pesqueira está em nós, queiramos ou não. Dificilmente um brasileiro não se vê na pesca artesanal, ainda que, muitas vezes, de maneira inconsciente. Não há como se eximir dessa cultura ao saborear um prato de peixe, ao tempo em que se reconhece o sabor e o nome do pescado, em geral de origem indígena, como um ato rotineiro. Como negar o olhar poético que direcionamos aos barcos de pesca ancorados na praia, num estuário ou num rio? Mas é, sobretudo, na percepção da beleza do mar e que dali se retira toda uma riqueza de alimentos, que denota o quanto a pesca artesanal faz parte da nossa vida.
O acolhimento e os comentários à série de pinturas Pesca Artesanal, aqui reunidos, reafirmam tal entendimento. Se apurarmos mais a percepção, identificaremos como a cultura tradicional da pesca marcou as artes plásticas e a música popular brasileira. Cantarolamos e ouvimos canções da obra de Dorival Caymmi, ricamente perpassadas pelos modos de vida na pesca artesanal, como tantas outras do cancioneiro nacional. Na pintura, o registro é igualmente marcante, basta se debruçar sobre os trabalhos de Pancetti, Carybé, Di Cavalcanti, só para citar os que mais aprecio.
No cinema (que ando estudando), os exemplos são diversos, desde o cinema mudo. Barravento (1962), de Glauber Rocha, é emblemático neste sentido. Na fotografia, Pierre Verger é o mestre maior, ao retratar o cotidiano da cultura marítima, em especial da Bahia. A arquitetura contemporânea também incorporou elementos estéticos da arquitetura vernácula dos pescadores.
Mas, apesar de tudo isso, a pesca artesanal se recente de políticas públicas efetivas e de apoio da sociedade para garantir a manutenção desse patrimônio cultural brasileiro. Não à toa, a luta maior hoje dos movimentos sociais na pesca é pela regularização dos territórios das comunidades tradicionais pesqueiras no Brasil. Assim, se a pesca artesanal está em nós, como parte do nosso repertório cultural, essa luta deve ser de todos.
A série em pastel seco – Pesca Artesanal –, que encerro hoje, foi criada a partir das minhas percepções às questões acima abordadas. Enquanto arte, o trabalho é despretensioso, mas guardava uma intenção velada: desviar o olhar do outro da tragédia em que vivemos, e o meu próprio, para algo mais intimamente ligado à natureza.
No isolamento social que ora passamos, muitos de nós, talvez, estejam se perguntando como conseguimos nos afastar tanto da natureza e das coisas simples da vida. A pesca artesanal nesse sentido nos dá lições. Mas, como diz o poeta, só nos resta aprender.Recolher