Projeto CSP
Depoimento de Valdenice Fernandes de Moraes
Entrevistada por Eliete Pereira
Sítio Cercadão, Caucaia, Ceará 31/05/2014
Realização Museu da Pessoa
CSP_HV009_Valdenice Fernandes de Moraes
Transcrito por Cristiane Costa
P/1 – Dona Valdenice, pra gente começar (interrupção), eu gostaria que a senhora me dissesse o nome completo da senhora.
R – Meu nome Valdenice Fernandes de Moraes.
P/1 – Dona Valdenice, onde a senhora nasceu?
R – Eu nasci em Morada Nova.
P/1 – Morada Nova é um município ou é o nome de uma comunidade?
R – É uma cidade.
P/1 – É uma cidade?
R – É.
P/1 – E a data do nascimento da senhora?
R – Nasci no dia 13/10/54.
P/1 – Tá.
O nome dos pais da senhora?
R – O nome do meu pai é José.
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João José Fernandes.
P/1 – E da mãe da senhora?
R – Delzuite Lopes de Souza.
P/1 – Eles eram lá, de Nova Morada?
R – Não, não.
Nessa época é porque o meu pai era da Polícia mas ele sempre era daqui mas vivia destacado de cidade em cidade, você sabe que quando passa a ser policial, nessa época, há muitos anos, né, não parava nas cidades.
Ele, às vezes, o mais que ele passava era cinco meses num canto e a minha mãe ficava gestante e na cidade que chegava ela paria os filhos.
P/1 – E o pai da senhora era policial do estado?
R – Era.
P/1 – Do Ceará?
R – Era.
P/1 – E você lembra quantas cidades vocês chegaram a morar?
R – Rapaz, a minha mãe teve 15 filhos e cada filho que nasceu foi numa localidade, num lugar diferente.
P/1 – Tá.
Você lembra, assim, dessas mudanças?
R – Eu, assim, depois de grandinha, eu não tenho, porque eu já fui das mais novas.
P/1 – Então vocês viajavam menos?
R – Era.
Que quando eu cheguei, quando a minha mãe me teve em Morada Nova, meu pai veio pra Fortaleza, pro quartel, né? Aí, ele deixou a família em Caucaia, Garrote, né? Aí, então, eu cheguei com idade de quatro anos aqui.
P/1 – Aqui que seria Caucaia, então?
R – Caucaia.
P/1 – E como que era Caucaia naquela época?
R – Caucaia era muito difícil.
Caucaia, no meu tempo de pequena, eu via falar que Caucaia era Sores, o nome de Caucaia era Sores.
P/1 – Sores?
R – Sores, o nome.
Aí, eu ficava até assim “Sores?”.
Aí, perguntava as outras minhas irmãs maior, maior assim, que eu digo, assim, de cinco, seis anos, que a gente menininha, bestinha, fica perguntando.
Aí, ela dizia assim “Ah, é o nome mesmo”.
Nessa época a gente era muito tolinha, né, mas Caucaia era Sores.
P/1 – E a casa de vocês em Caucaia, como que era?
R – A nossa em Caucaia era de taipa.
P/1 – E você já tinha todos os irmãos ou não? Já eram nascidos todos os irmãos?
R – Era, que eu era encostada da caçula.
P/1 – Tá.
Aí, você já tinha os 13 irmãos.
R – Tinha.
Não! Porque, assim, morreram, nessa época não tinha Medicina, não tinha nada, a Medicina era tradicional, todo mundo paria e não tinha médico, não tinha nada, não existia, nesse tempo.
Só os brancos e quem era rico que tinha direito a ter uma consulta com o médico.
Eu vim a saber de Medicina quando eu vim ter os meus filhos.
P/1 – E a senhora perdeu quantos irmãos?
R – De quinze só ficaram quatro.
Quatro filhas.
P/1 – Só as mulheres?
R – Só mulher.
P/1 – E como que era a infância de vocês lá, em Caucaia?
R – Nossa infância era muito boa.
P/1 – Vocês brincavam de que?
R – Brincava de boneca.
A gente ia pras moitinhas, brincava com boneca, aquelas folhinhas, aquelas sementes, que eram as comidinhas, era só coisinha.
Hoje em dia não tem mais, né?
P/1 – Então, as bonecas eram de quê?
R – Boneca de pano.
P/1 – De pano?
R – De pano.
P/1 – Quem fazia essas bonecas?
R – Quem fazia era a minha mãe.
P/1 – A mãe da senhora costurava também?
R – Não, assim, ela remendava, ela não costurava.
Mas, às vezes, ela fazia os vestidinhos da gente, na mão, costurava na mão.
P/1 – E, além de boneca, vocês tinham outras brincadeiras também?
R – A gente tinha as brincadeiras da gente, que a gente saía, ia pra brincar de Cirandinha, essas coisinhas de criança, né?
P/1 – A senhora lembra de alguma música de ciranda?
R – Não, não me lembro, não.
Que era umas musiquinhas tão.
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Hoje em dia as músicas são diferentes, né?
P/1 – E a escola? A senhora estudou em Caucaia?
R – Eu estudei mas era em casa mesmo.
Tinha uma senhora de idade que ela ensinava o ABC.
P/1 – Então, a senhora foi alfabetizada em casa?
R – Em casa.
P/1 – Os irmãos da senhora também?
R – Todos.
P/1 – E a senhora chegou a ir pra escola depois?
R – Cheguei a ir pra escola.
P/1 – A senhora lembra do tempo da escola?
R – Eu me lembro.
P/1 – E como que era a escola naquela época?
R – Naquela época, a escola era assim: uma casa, chegavam muitas crianças, não tinham ganho, elas não tinha ganho, né? E não era pago.
P/1 – A professora, então, não recebia?
R – Não, não recebia, não.
Ela ensinava voluntário, que ela gostava de educar mesmo, pro desenvolvimento das crianças, pra saber ler, escrever, ter mais conhecimento.
E a gente aprendia na carta de ABC.
P/1 – E você lembra, assim, de algum momento especial da escola?
R – Me lembro.
P/1 – De alguma história, alguma coisa que aconteceu ali?
R – Ah, o que aconteceu é que a gente, se danasse um pouquinho, tinha palmatória.
Era palmatória.
P/1 – Você já levou a palmatória?
R – Má! Levava, que era danisca.
P/1 – Ah, é? O quê que você fazia na escola?
R – Eu pegava a tabuada, eu pegava as cartas de ABC, eu resgava, eu riscava e tinha que levar palmatória porque não era pra ser assim, tinha que obedecer a professora.
P/1 – Você lembra o nome de alguma professora?
R – Eu me lembro.
Eu me lembro da professora, que era Dona Maria, e me lembro do professor quando eu fazia o segundo ano, que o nome dele era Vicente, um senhor de idade.
Todos os dois de idade, né, não era jovem, era só pessoas mais idosas os professores, porque eles sabiam ler, né? Aí, a gente respeitava.
P/1 – A senhora ficou quanto tempo lá? Fez até que série nessa escola?
R – Nessa escola eu fiz até o terceiro ano.
Aí, foi o tempo que eu parei, não queria estudar, eu queria era ajudar a criar os meus irmãos que foi o tempo quando a minha mãe morreu.
P/1 – Quando que a mãe da senhora morreu?
R – Minha morreu em 1963.
P/1 – A senhora era pequena, então?
R – Era pequena.
P/1 – E a senhora lembra quando ela faleceu?
R – Me lembro.
Me lembro que a gente morava aqui, em Caucaia, ela teve que ir pra casa de um irmão dela em Fortaleza porque lá era mais próximo, assim, tem médico que podia que levar pra consultar, que aqui não existia, não tinha, né? E ninguém tinha, financeiramente, condição.
P/1 – Ela foi pra lá, então, se tratar?
R – Ela foi e lá mesmo ela ficou e lá mesmo ela morreu.
P/1 – O quê que ela teve?
R – Ela teve foi problema do parto da minha irmã mais nova.
Devido a família, que não era no lugar adequado, né, e todos foram parto, assim, digamos, em casa, não era em maternidade nem era nas mãos de médico, não tinha maternidade, era assim.
Ela pariu em cima de caminhão.
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P/1 – Tá.
A senhora chegou a presenciar algum parto da mãe da senhora?
R – Nunca, não.
P/1 – Mas, então, ela faleceu de parto, então?
R – Foi.
Que ela teve a minha irmã mais nova e ela nasceu de pé, pra completar, um parto muito perigoso.
Eu conto porque ela contava e eu ouvia.
Aí, então, ela ficou doente, doente, doente.
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Aí, até que chegou o momento dela partir.
P/1 – E depois, quando a mãe da senhora faleceu, a senhora lembra, assim, como que ficou a rotina da casa?
R – Ficou só pelas nossas mãos e do papai.
P/1 – Ah, o pai da senhora que criou, então?
R – Foi; o meu pai que criou.
P/1 – E ele chegou a se casar depois?
R – Chegou a se juntar, uma prima do meu esposo, pai dos meus filhos.
Eram primos ele mais a minha madrasta, que justamente eles passaram 15 anos juntos.
Depois de 15 anos ele chamou nós quatro, ele já tinha família com ela, tinha quatro filho também, três mulher e um homem.
Aí, devido.
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Ele disse assim “olha, minhas filhas, eu preciso me casar por causa que eu quero dar um direito pra eles.
Precisam estudar”.
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P/1 – Porque ele já tinha tido os filhos com a madrasta?
R – Porque já tinha a outra família.
Nós, como já era de maior, né, aí a gente aceitou ele casar.
Aí, ele foi casar com outra.
P/1 – A senhora já conhecia os irmãos da senhora por parte de pai? A senhora já conhecia antes os filhos dele?
R – Não, porque nós era da primeira família e os outros da segunda família.
A gente conheceu.
P/1 – Já conhecia, então, antes?
R – Conhecia.
P/1 – E como que foi essa casa, agora, com novos irmãos, com uma madrasta? Como que era?
R – No início foi muito bom mas, depois, não foi bom, não.
P/1 – Por quê?
R – Porquê ninguém se dava muito.
Porque quando se fala de primeira família e segunda família não tem mais aquela união, porque ela se acha que tem mais poder, que tem o direito.
Nós, como já existia, não tem mais o direito como os novos.
Aí.
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P/1 – E como ela tratava a senhora e os seus irmãos?
R – Eu mesmo, ela me tratava bem, eu tratava ela bem.
Agora, com as outras irmãs, a mais velha e mais nova, não.
Que a mais nova praticamente quem criou foi eu.
P/1 – Qual o nome dela, da mais nova?
R – Da mais nova é Francisca.
P/1 – E o nome da mais velha?
R – O nome da mais velha era Terezinha, ela já faleceu.
P/1 – Ah.
E a depois, a que nasceu depois da Terezinha, como era o nome dela?
R – Tem a Regina.
P/1 – E, depois, vocês cresceram ali com a madrasta e o pai de vocês, sempre na mesma casa?
R – Foi, na casa, sim.
Aí, foram casando e foram saindo.
Hoje se acha só a família dele, a segunda família.
P/1 – E, dona Valdenice, a senhora deixou de estudar.
Então a senhora lembra, mais ou menos, tinha quantos anos?
R – Quando eu deixei de estudar tinha o que? Eu tinha 11 anos.
P/1 – Onze anos.
Aí, o quê que a senhora ficou fazendo? Ficou ajudando em casa?
R – Foi.
P/1 – E como era a rotina da senhora em casa, com as crianças?
R – Rapaz, eu cuidava de tudo.
P/1 – Só fazia comida?
R – Comida, eu lavava, eu ensinava os deverzinho.
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P/1 – Por que eles iam pra escola, então?
R – Era.
P/1 – Então, a senhora.
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R – Mas sempre a dona de casa.
Eu e a minha irmã mais velha, porque é difícil a gente criança cuidar de uma criança de seis meses.
Quando a minha mãe morreu, essa mais nova ficou engatinhando.
P/1 – E, até o pai da senhora se juntar com a madrasta, vocês ficaram muito tempo morando sozinha, cuidando?
R – Ficamos.
Ficamos quase um ano.
Mas meu pai era ótimo.
Muito bom.
Era meio que comparando, assim, uma galinha que aninha pinto.
P/1 – Ah.
E ele ia trabalhar e deixava vocês sozinhos?
R – Deixava mas tinha que ter uma pessoa mais velha ali pra estar de vez em quando indo lá, pra ver como nós tava, se nós fazia comida direito, tava de barriga cheia, tudo.
Ele dizia tudinho pra vizinha lá, né, que viesse dar uma olhadinha enquanto ele chegava e ela sempre vinha e dava uma olhadinha, orientava alguma coisa, o quê que precisava mais.
P/1 – Os avós de vocês, assim, vocês tinham os avós?
R – Não, meus avós não moravam perto de nós.
Não.
P/1 – E o pai da senhora chegou a mudar depois? Porque ele tinha o trabalho lá.
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R – Não.
Aí foi o tempo que houve o acidente com ele.
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P/1 – O quê que aconteceu?
R – O quê que aconteceu foi uma virada de um transporte quando ele tava sendo transferido de um lugar pra outro, aí ele ficou com uma fratura na bacia.
Aí, através disso ele foi ser.
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Ele se aposentou, né? Aí, hoje em dia.
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P/1 – Aí, ele ficou só em casa, então?
R – Foi.
P/1 – Ele chegou a fazer outro trabalho, ou não?
R – Ele gostava muito era de pescar e caçar.
P/1 – Ah, ele pescava, então?
R – Pescava e caçava.
P/1 – Vocês o acompanhavam?
R – Rapaz, até ontem eu tava falando, que meu pai era assim, porque sempre a família era mais mulher, só tinha um homem.
E ele dizia assim “minha família, hoje eu to com vontade de comer peixe, eu vou pra Barra – pra Barra da Barra Nova, aqui em Caucaia, fica perto de Cumbuco – qual é de vocês quatro que quer ir?”.
Aí, ele olhava assim e dizia “é você” , eu dizia: “Pai, eu?” “Sim, bora, minha filha, servir de companhia”.
Aí, a gente ia, ficava na beira d’água, tomando banho, às vezes pegava um siri, com bastante cuidado porque ele dizia assim “minha filha, isso aí pega e corta o dedo, você tem as mãos fina” e ficava, porque sempre os pais têm pena dos filhos, né? Não quer que seja ferido nem mal tratado de jeito nenhum.
Ele dizia “não, deixa estar que eu mesmo pesco”.
Ele levava tarrafa, ele levava landuá.
Às vezes eu ficava na beira com o landuá e ele com a tarrafa.
P/1 – O quê que é o landuá?
R – O Landuá ele é deste tamanho, é uma rodia de cipó trançado feito tipo as malhas de uma tarrafa.
Agora, só que ela é comprida, ela é deste tamanho, comprida, as malhas de tarrafa.
Ali a gente pegava ali no cabo e vai, chiiii.
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P/1 – Vai pegando tudo.
R – Pega siri, pega camarão.
Os peixes, só ele, na tarrafa, né? Às vezes a rede de arrasto.
P/1 – E quais peixes que tinha na época que vocês pescavam?
R – Na época tinha camarão, tinha siri, tinha aquela saúna, tinha saúna dura, tinha aquele peixinho duro que chamava.
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Não to lembrada agora no momento.
As carapebas grandes, as carapebinha pequena, vários tipos de peixe diferente que vinha, né?
P/1 – E vocês ficavam só na beira da água.
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R – Esperando.
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P/1 – Vocês não iam com jangada, com barquinho, não?
R – Não, que ele gostava de pescar com água nos ombros, ele lanceava demais.
P/1 – E tinha um horário pra ir pescar ou não?
R – Não, não era qualquer horário, não.
Tinha os horários.
P/1 – E quais eram os horários?
R – Os horários sempre das pesqueiras era dependendo da maré.
Era.
Ele via que a maré tava vazando pelo horário.
Aí, ele via o sol, aí ele via pelo sol, pela lua, aí ele dizia: “ah, a maré tá vazando, eu não vou agora”, marcava assim, mais ou menos, pra poder ir.
P/1 – E qual era a época boa pra pescar, assim? Quando a lua tava cheia, quando a lua tava.
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R – Não, quando ela tava vazando.
Quando tava vazando, aí, pronto, era onde a maré tava vazando também, era só lanceando e enchendo.
P/1 – A lua quando tá vazando é quando ela tá menor?
R – Ela tá menor, baixa?
P/1 – Quando ela tá baixa.
R – É.
P/1 – Aí, a senhora acompanhava sempre o pai da senhora?
R – Eu ia.
Era sempre eu e a outra minha irmã.
P/1 – Sua irmã mais nova?
R – Sim, a encostada de mim.
A gente ia.
Aí, a gente acompanhava, a gente ficava tão alegre, a gente levava farinha, rapadura pra comer lá, na beira d’água.
A água era de lá mesmo, tinha conversa, não, e ninguém levava nada, só levava as vasilhas pra pegar e beber.
Ou, então, pegava assim, na mão, comia rapadura e farinha, enchia barriga.
Bebia água, pronto, passava o tempo.
P/1 – A senhora tava falando que vocês tomavam a água com a quenga.
R – Era.
P/1 – E vocês levavam, então, a quenga pra praia?
R – Às vezes a gente levava mas nem precisava, porque tinha à mão, a gente pegava aqui e vup.
P/1 – Mas, então, tinha água doce lá, né?
R – Tinha.
Tinha água doce também.
P/1 – Qual era o nome do rio que fornecia essa água?
R – Era o rio do Cauipe com a água que entrava, água do rio do Cauipe ela cruza com a Barra.
A Barra recebe água da praia.
Aí, ela vem, sacode na boca da Barra, aí ela vaza.
A outra água entra, a água doce.
Tem água doce também.
P/1 – Ah, então era tranquilo, vocês não precisavam nem se preocupar de levar água.
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R – Não, não, de jeito nenhum.
Nesse tempo não tinha negócio que dizia “ai, que eu não vou tomar água que é quente”, não.
Todo mundo era saudável.
P/1 – E, dona Valdenice, tinha festas naquele época da senhora?
R – Tinha forró.
P/1 – Tinha forró?
R – Tinha forró.
Era sanfona, era pandeiro, era triângulo.
Era sanfona.
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Não era sanfona, era os bastos, sanfona antiga.
P/1 – E como que era o forró, assim, era final da tarde, era à noite? Como que era?
R – Era assim, começava depois de seis horas da noite.
P/1 – Aí, todo mundo ia e assenhora ia também, mesmo sendo pequena?
R – Não, eu ia quando era moçotinha.
Meninazinha eu não ia, não.
Pai não deixava, não.
Quando a gente foi crescendo mais é que ele deixava mas era com pessoas conhecidas.
P/1 – E ele ia também pro forró?
R – Papai não, ele não ia, não.
Porque os parentes ele confiava.
P/1 – Então, ele deixava vocês irem pro forró?
R – Deixava.
P/1 – E como era o forró? Era dança? Você gostava de dançar?
R – Eu gostava.
Toda vida eu gostei.
P/1 – Ah, é? A senhora lembra de alguma música da época, que a senhora gostava?
R – Rapaz, é tanta música que eu nem me lembro, não (risos), aquelas músicas antigas.
P/1 – Mas a senhora não lembra de nenhuma, especial?
R – Rapaz, não.
Agora não.
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P/1 – E, dona Valdenice, então vocês se divertiam no forró?
R – Era.
P/1 – Tinha alguma festa de santo também?
R – Tinha, tinha os terços, tinha as novenas, tinha os rosários.
Tinha.
Ah, essa daí é que era a importante.
P/1 – A senhora lembra, assim, de algum santo que era importante ou uma santa?
R – Tinha o rosário de.
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Nossa Senhora da Saúde; tinha o rosário que a Santa protetora da vista, que é a santa.
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P/1 – Santa Lúcia?
R – Santa Luzia.
O terço, o rosário de Santa Luzia, nós sempre costumava rezar três horas da tarde.
Ali era uma festa.
Nessa época tinha festa dessa padroeira, do rosário, tinha leilão.
P/1 – Tinha alguma oração, assim, pra Santa Luzia?
R – Tinha.
P/1 – A senhora lembra?
R – Do rosário?
P/1 – Do rosário.
R – Rapaz, eu nunca gostei, assim, de gravar muitos essas coisas, não, viu?
P/1 – Mas a senhora seguia, né? A senhora gostava e seguia.
R – Gostava, gostava.
Eu rezava, o Pai Nossa e a Ave Maria eu acompanhava mas eu não era muito beata, não.
P/1 – Tinha alguma procissão também?
R – Tinha, com a Santa mudando.
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São José, que é o protetor do inverno, né? São José, que as pessoas roubavam o São José, escondiam numa casa e a pessoa ficava preocupada “onde tá o santo, onde tá o santo?”.
Quando a gente esperava que não, dia de São José, chegava aquela procissão, aquela festa.
Aí, vamo rezar o terço de São José.
P/1 – O pessoal roubava, então, a imagem do santo?
R – Roubava.
P/1 – Mas era.
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R – Pra chegar o inverno, porque o inverno tava demorando.
P/1 – Ah, então tinha que roubar o santo pra poder chegar o inverno?
R – Era.
P/1 – Era uma espécie de promessa, então, que se fazia pra São José?
R – Era, era uma promessa.
P/1 – E dava certo?
R – Dava! Era uma invernada medonha.
P/1 – E a senhora lembra de alguma seca na região quando a senhora era jovem?
R – Rapaz, eu era muito jovem, muito jovem, mas sempre o papai ele falava muito, né? Na época dos três oito, papai que foi uma seca tão grande que comia calango.
P/1 – Três oito era o que?
R – Eu sei que ele falava.
P/1 – Ele falava era a época dos três oito?
R – Dos três oito, que ele falava dos avós, dos pais.
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P/1 – Ah, deve ter sido o ano de 38?
R – Exatamente, eu acho que é.
Aí, diz ele que já teve umas secas mas não foi que nem essas antigonas, né? Porque tá tendo seca mas, mesmo assim, é uma seca verde, chamada seca verde.
Mas, aqui teve um ano que antes de eu chegar, os parentes mais antigos que vinham aonde eu tava e conversava e dizem que na época de 1938, aqui teve uma seca tão grande, que eles bebiam água barrenta, porque ia encontrar muito fundo.
Fazia dó.
P/1 – Agora, dona Valdenice, vocês moravam lá em Caucaia mesmo, na cidade, né?
R – Perto, que era ali no Garrote.
P/1 – Ah, no Garrote.
R – Nesse tempo era mata.
P/1 – Mas o pessoal chamava lá de Garrote, então?
R – Era, era, sempre eu ouvi falar Garrote, né?
P/1 – Tinha outras famílias que moravam lá, com vocês, assim, por perto?
R – Era meio distante.
É.
Meio distante, lá era assim.
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P/1 – Tudo espalhado?
R – Tudo espalhado, distante, casinha de palha, casinha de barro, coisinha.
P/1 – E vocês plantavam alguma coisa?
R – Meu pai plantava.
P/1 – O quê que ele plantava?
R – Ele plantava roça, feijão, milho.
Era jerimum, era melancia, tudo isso ele plantava.
P/1 – E, assim, ele plantava mas ele trabalhava também como policial?
R – Sim.
P/1 – E como que ele fazia pra cuidar da roça? Vocês que cuidavam?
R – A minha mãe.
A minha mãe era um.
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Porque ele deixava épocas, saía, né? Aí, quando a gente se afirmou mesmo, de morada, aí ele plantava tudo.
Mas enquanto ele não se afirmou, porque quem trabalha de policial não demora muito tempo.
Agora, no lugar que ele demorava cinco meses mais um pouquinho é que ele fazia as plantações.
P/1 – Então ele trabalhava de época também, né?
R – Era.
P/1 – Trabalhava um período.
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R – Era.
P/1 – Ficava fora de casa e, depois, voltava pra casa e ficava lá trabalhando?
R – Era.
P/1 – E você também ajudava na plantação?
R – Eu ajudava pra colher.
P/1 – O quê que você colhia?
R – Eu colhia feijão, botava no cesto, a bolsa de palha, pra trazer mandioca, que justamente macaxeira, né?
P/1 – E vocês faziam farinha com a mandioca?
R – Fazia.
E a macaxeira fazia, trazia, ralava no ralador, aí espremia pra fazer beiju.
P/1 – Mas como que vocês faziam essa farinha? Tinha uma casa de farinha por perto de vocês, pra fazer a farinhada?
R – Não, era longe.
P/1 – Mas vocês iam levar a mandioca de vocês pra fazer a farinhada?
R – Sim, dava pros parentes, eles faziam e dividiam.
P/1 – Você chegou já a fazer farinhada?
R – Eu?
P/1 – É.
R – Ave Maria, aqui só eu trabalhei muito (interrupção).
P/1 – Então, dona Valdenice, a senhora tava comentando da casa da farinha, que a senhora trabalhava.
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R – Sim, trabalhava.
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P/1 – Fazia farinhada.
R – Fazia, eu passava de duas semanas fazendo farinha.
Passava até mais tempo.
P/1 – E como vocês faziam? Vocês pegavam as mandiocas de vocês e dos parentes e juntava tudo pra fazer a farinhada?
R – Não, cada qual fazia a sua.
P/1 – Cada qual fazia a sua?
R – Porque era muito.
Nós arrancava dez cargas de mandioca.
Dez carga de mandioca é muita mandioca.
Aí, a gente raspava, levava pra casa de farinha e arrumava quatro parenta e misturava tudo e a gente danava pra raspar.
P/1 – E quem é que raspava? Era a senhora, as irmãs, a madrasta da senhora também?
R – Sim.
P/1 – No tempo da madrasta.
E na época da mãe da senhora?
R – Na época da minha madrasta, não.
P/1 – Mais na época da mãe da senhora, então?
R – Na época da minha mãe, sim.
P/1 – Aí vocês raspavam e, depois, colocavam aonde essa mandioca?
R – Na casa de farinha.
P/1 – Mas tinha algum lugar que vocês usavam pra poder fazer outra coisa com essa mandioca?
R – Assim, porque da mandioca a gente fazia a farinha, tira a goma, tira a borra, né?
P/1 – O quê que é a borra?
R – A borra é tirada da goma.
P/1 – E o quê que vocês faziam com a borra?
R – Com a borra a gente deixava, torrava que nem a goma pra fazer grolado com coco, misturava com coco e fazia um grolado pra comer.
P/1 – Grolado seria tipo uma farinha também?
R – É, uhum.
P/1 – Aí, vocês faziam, colocavam açúcar depois também, pra fazer?
R – Não, não, com açúcar não.
Só um pouquinho de sal, um pouquinho de sal e pouco.
Aí, mexia no fogo.
P/1 – Ah, então vocês ferviam?
R – Não, não é fervido.
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P/1 – É torrado?
R – É torrado.
Torrado no coisa de barro, frigideirona, botava no fogo de lenha.
Ah, aquilo é uma boa.
P/1 – Vocês comiam, então, com.
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R – Com café.
P/1 – Com que? Ah.
R – Era.
Comia com rapadura, também tudo era bom.
P/1 – E a rapadura vocês compravam ou vocês faziam rapadura também?
R – Não, porque tinha próximo engenho, né, de outros parentes.
Aí.
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P/1 – Aí, como vocês faziam? Vocês trocavam ou vocês ganhavam?
R – Trocava.
Trocava que tudo era mais era trocado.
P/1 – Uhum.
E, dona, Valdenice, vocês – pensando mais na época da mãe da senhora – como era a alimentação de vocês? De manhã vocês tomavam café? O café preto? Comia.
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R – Não, o café torrado.
P/1 – Café torrado, ah.
Aí, passava o café, então?
R – Exatamente.
P/1 – E, depois, vocês comiam o que, assim, de manhã?
R – Era com tapioca e grolado.
Não tinha bolacha, não tinha pão, não existia.
Só existia pros brancos, os brancos tinham condições de comer e era até difícil o negócio de padaria, né, não via nem falar.
P/1 – Aí, depois, no almoço, o quê que vocês comiam?
R – Ora, a gente criava galinha e matava e comia; tinha farinha, fazia um pirão, era bom.
Tinha feijão.
P/1 – Vocês cozinhavam o feijão também?
R – Feijão também, tudo da lavra.
P/1 – Aí, depois, à noite, o quê que vocês comiam no jantar?
R – No jantar era tapioca com café, às vezes a gente botava feijão no fogo, comia com ovos, tudo caipira, né?
P/1 – Porque vocês também tinham as galinhas de vocês.
R – Tinha, a gente criava.
P/1 – Quais outros animais que vocês criavam?
R – Ah, criava porco, criava cabra.
P/1 – Mas isso lá em Caucaia?
R – Sim.
P/1 – Então o terreno era grande, da casa?
R – Era, era grande.
P/1 – Só morava a família da senhora ou tinha outros parentes também, ali, na terra que vocês moravam?
R – Não, não.
P/1 – Era só vocês?
R – Era.
P/1 – E a casa, assim, com as crianças, com os irmãos, vocês dormiam onde? Em rede?
R – A gente dormia nas redes.
P/1 – Ah, cada qual tinha a sua rede?
R – Cada qual tinha uma redinha, morava tudo num cantinho.
P/1 – Era tudo no mesmo espaço que dormiam os irmãos da senhora?
R – Era, era, minhas irmãs.
P/1 – Os pais da senhora também tinham rede?
R – Tinha, era tudo de rede, não tinha negócio de cama, não.
Umas redinhas mesmo, bem simplesinha.
Nossas redes eram feitas de pano de saco.
P/1 – Vocês compravam o saco e faziam a rede?
R – Era.
E era tão boa, bem quentinha.
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E os lençol.
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P/1 – Ah, é? Quem é que fazia?
R – Quem fazia era a minha mãe mesmo.
Minha mãe arrumava aquelas cabeceiras daquelas pessoas que tinha, dava a ela, ela botava aqueles.
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Emendava, né, o saco e lavava e deixava bem limpinha, mas rapaz! E os lençol era feito de pano de saco, aquelas redes que se rasgava ela dava uns cochilo por lá, lá vai os lençol.
E era bom.
P/1 – E, depois, quando a senhora já tava com a madrasta também, vocês dormiam lá, nas redes?
R – Era, era.
Quando já passou pra madrasta as coisas já melhoraram mais.
Assim, já teve mudança.
P/1 – O quê que mudou com a madrasta, assim, na casa?
R – O quê que mudou que já não era tanto o quanto era com a minha mãe, da lavra.
Ela criava, ela criava galinha, criava porco, mais criação, não plantio.
P/1 – Então vocês deixaram de plantar?
R – Foi.
P/1 – Mas, assim, vocês plantavam e consumiam aquilo que vocês plantavam?
R – Era, não pra vender.
P/1 – Vocês não chegavam a comprar? Assim, outras coisas que vocês precisavam vocês compravam ou não, só trocavam entre os parentes?
R – Não, tinha coisas que era trocado, mas tinha coisas que era comprado também.
P/1 – O quê que vocês compravam, então?
R – A gente comprava, assim, o café, o café em semente.
A gente comprava o açúcar que precisava às vezes também, porque a rapadura ela também adoça mas não é que nem o açúcar, né?
P/1 – O açúcar que a senhora fala é o açúcar branco, então?
R – Sim.
P/1 – Como que era o açúcar naquela época? Ele era um pouco mais grosso? Era fininho?
R – Não, ele era grosso.
P/1 – Era grosso.
R – Era grosso e nem era alvo.
Era, assim, um grosso amarelaço, que hoje eu conheço quase o tipo daquele açúcar mascavo.
P/1 – Era daquela cor o açúcar? Então, vocês precisavam comprar.
R – Era.
P/1 – E, assim, produto de limpeza, sabão, essas coisas tudo vocês tinha que comprar também?
R – Não.
Sabão tinha mas era sabão que tinha lá uma parenta que fazia, que eu não sei como.
Ela fazia e dava a minha mãe, era como lavava as roupas, mas, assim, porque antigamente o pessoal era tudo humano, né?
P/1 – E a água, como vocês faziam pra ter água?
R – Cavava o chão e tinha os buracos.
P/1 – Vocês tinham poço?
R – Tinha.
Poço, hoje em dia, eu conheço poço encamisado.
Nesse tempo ninguém falava em poço, cavava era um buracão e fazia lá tipo um açudeque, lá é que gastava toda a água.
P/1 – Agora, se não tivesse a agua do poço, tinha algum açude por perto ou não?
R – Tinha açude, tinha lagoa.
P/1 – Ah, então água não faltava pra vocês?
R – Não.
P/1 – E vocês tinham que carregar água pra casa?
R – Carregava água nas cabaças, nos canecos véio, no jumento.
P/1 – Aí, a senhora ajudava também a carregar água?
R – Ora, eu ia era buscar.
P/1 – A senhora ia buscar mais ou menos que horas? Era de manhã?
R – A gente às vezes ia de manhãzinha e ia de tarde, né? Mas era colocado no espinhaço dos animais.
Era desse jeito.
P/1 – A senhora tava até comentando antes que eram os burros, né?
R – É.
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Os jumentos.
Jumento ia com as cangaias e os cambitos, ainda tem os cambitos.
P/1 – O quê que eram as cangaias?
R – As cangaias ela é de madeira.
Elas é um gancho, são dois ganchos, tem uma tábua aqui e outra aqui.
Forrava com palha de carnaúba e montava em cima, que justamente é a cangaia, pra não fazer calo no espinhaço do jumento.
Aí, tinha os cambitos, tinha os caçuá.
P/1 – E os caçuá seriam uma espécie de cestos?
R – Exatamente, pra carregar mandioca, carregar porco, carregar tudo.
Criação, tudo carregava porque era longe.
P/1 – E vocês faziam as cangaias e os cambitos?
R – As cangaias sim e os cambitos também.
Agora, pra fazer os caçuás, muita coisa de cipó, tinha as pessoas artesão, não era todo mundo que fazia, não.
P/1 – Ah, é? E que tipo de palha que era utilizada? De carnaúba?
R – Pra fazer?
P/1 – Os cambitos e as cangaias.
R – Não, é de madeira do mato.
Tirar pau no mato, aqueles que são bem feitinhos, assim, largo, a pessoa cortava ele, quando chegava aprontava ele todo prontinho, bem abertinho, pra não fazer calo, pra dar certo as palhas.
P/1 – Agora, dona Valdenice, a senhora ficou morando com a família da senhora, com o pai e com madrasta, até com qual idade, assim, mais ou menos?
R – Rapaz, eu com 14 anos eu saí de casa, eu tive o meu primeiro casamento.
Aí não deu certo.
P/1 – Como a senhora conheceu o marido da senhora?
R – O de hoje?
P/1 – O primeiro.
R – O primeiro? Rapaz, foi num forró.
P/1 – Foi o primeiro namorado da senhora?
R – Foi.
P/1 – A senhora lembra do dia quando a senhora o conheceu?
R – Lembro não.
P/1 – Mas foi num forró que a senhora conheceu?
R – Foi num forró.
P/1 – E a senhora conheceu e já falou “ah, esse eu quero casar”?
R – Foi e, aí, até meus pais não queriam de jeito nenhum, meu pai não queria e eu bem teimosa, eu digo que “sim” e, aí, não deu certo, a gente.
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Também eu não levei muito tempo com ele, com 15 anos eu já tava separada.
Aí, eu fiquei.
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P/1 – Por que não deu certo, dona Valdenice?
R – Não deu, não.
Eu era muito criança e lá ele já era maduro.
Aí, não deu certo, não.
P/1 – A senhora chegou a ter filhos com ele?
R – Tive.
Tive o meu primeiro filho.
P/1 – Qual o nome dele?
R – Sim, eu tive o meu primeiro filho mas, assim, quando ele tava com um mês ele morreu, não chegou nem a batizar.
Não registrei, não teve registro.
Nessa época era assim, né?
P/1 – A senhora sabe de quê que ele morreu, o bebê da senhora?
R – Não, não sei, porque ele não nasceu sadio, né? Veio a óbito logo porque foi um parto de risco, né, foi um parto fórceps e eu, além de ser muito novinha, né?
P/1 – Mas foi uma parteira que fez o parto da senhora?
R – Não.
P/1 – Foi no hospital, então?
R – Foi preciso levar pro hospital, que a parteira não deu.
P/1 – Não conseguiu, então, fazer o parto da senhora?
R – Não, não.
P/1 – E a senhora chegou, então, a sair da casa do pai da senhora pra morar com esse primeiro marido?
R – Sim.
P/1 – E a senhora foi morar com a família dele?
R – Sim, com a mãe dele.
P/1 – E como que foi, a senhora se daptou lá?
R – Não.
P/1 – Não? Por quê?
R – Porquê a minha vida era outra e a dele era outra diferente, uma família diferente, não era parente.
Aí, deu.
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P/1 – Aí, a senhora voltou pra casa do pai da senhora?
R – Aí eu voltei, eu voltei pra casa do meu pai e lá foi melhor.
Mas meu pai dizendo que se eu voltasse pra ele eu não entrava mais dentro de casa.
Aí, eu digo “não, prefiro ficar na casa do meu pai do que voltar” e não voltei.
Aí, por coincidência, né, chegou o primo da minha madrasta, eu conheci ele, ele simpatizou por mim.
Aí, eu fiquei assim, ainda dei um tempo, ainda foi mais de um ano pra me dar o sim, que dava certo e tudo.
Eu era também bem novinha nessa época que ele me viu, eu tinha o que? Tinha 16 anos, tava com dois anos de casamento, um ano de separada, né? Aí, ele até perguntou ao meu pai, ele disse “eu simpatizei muito da sua filha e eu queria muito viver com ela, com a continuação, com a convivência, a gente se casa”.
Meu pai falou “eu preciso de um tempo, eu vou preparar ela primeiramente”, aí, ficou naquilo.
Ele disse “tá certo”, que justamente, diretamente, eu de Caucaia vim pra cá, pra Matões.
Quando eu cheguei à Matões, aí era só mata e areia.
P/1 – Eita.
E como que foi essa mudança pra senhora? A senhora já tinha ouvido falar de Matões?
R – Eu tinha visto falar e quando eu cheguei era muito difícil, aqui era mata, não tinha transporte, os transportes era cavalo.
E eu digo.
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Quando a gente gosta, que tem amor, a gente vai longe, não quer saber que jeito é.
E quando eu cheguei aqui, enfrentei a vida.
Uma casinha de palha, só duas paredinhas de palha, tudo no aberto.
P/1 – Ele tinha construído a casa, então, pra vocês morarem?
R – Não, eu vim passar a morar com o meu sogro, porque ele não tinha esposa que morava com ele, né, só morava eles dois.
Aí foi, ele arrumou mais palha, foi na mata, tirou madeira, fez um quarto só pra nós dois e, aí, eu passei a morar com ele e, Graças a Deus, até hoje eu vivo aqui.
P/1 – A senhora tava comentando antes de gravar aqui que a família do seu esposo, do segundo casamento da senhora, era a família Moraes.
R – Exatamente.
P/1 – A senhora chegou a casar, então, no civil com ele?
R – Cheguei.
P/1 – Vocês casaram onde, então?
R – Nós casamos no Siupé, São Gonçalo.
P/1 – Vocês fizeram alguma festa?
R – Não.
Nessa época que eu me casei eu tava de resguardo de um menino, do Júnior.
P/1 – Do primeiro, então?
R – Não, do segundo.
P/1 – Por que a senhora decidiu casar, então, já que a senhora já tava morando com ele?
R – Não, é por causa que ele dizia assim “nossos filhos precisam estudar, aí, com a continuação as coisas vai mudando, vai que precise de um casamento.
E, com o tempo, Valda, quem sabe se pede o registro desse menino, constar que nós somos casados e eu pretendo muito casar com você”.
Aí, casamos.
P/1 – A iniciativa foi dele, então?
R – Foi dele.
Eu não fazia questão, não.
Eu dizia pra ele “negócio de casamento? Casamento é a união, não é a união que nós vive? Nós vive trabalhando junto, vive unido, nós não brigava, não era de confusão, não.
Vivia trabalhando e construindo a nossa família e, assim, a gente vai viver” “Não, mas a gente vai casar” “É, então pronto”.
Aí, casamos.
P/1 – Aí, chegando aqui, a senhora falou que a casa era de taipa?
R – Casinha de palha, a primeira que eu construí, que a gente invés de construir de tijolo, a gente faz de cipó, com madeira e palha.
Aí, fizemos a lá de cima, menina, mas os parentes que ia me visitar achava era bom, não tinha piso, era só areia.
P/1 – E era aqui, nesse terreno?
R – Era, lá em cima, do alto.
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P/1 – Lá em cima, ah.
R – Hoje em dia não tem uma casa lá, grande? Pois foi bem ali, ali é que era a minha casa, aquilo ali também era meu.
P/1 – E a senhora.
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Como que era o cotidiano agora, estando aqui, em Matões, morando com o sogro, num lugar bem diferente, né?
R – Bem diferente.
Lá, eu morava lá nos Matões, também em casinha de palha.
Aí, eu fui e disse “olha, quando a gente passa a viver marido e mulher e construindo família, tem que ter um canto.
Vamo sair daqui, deixe seu pai só e vamo ter o nosso canto”.
Aí, ele foi e disse assim “mas eu não tenho condições de fazer uma casa?” “Pra que? Não precisa gastar dinheiro, nós tem coqueiro e tem palha.
Nós tem as matas, nós tira pau no mato.
Tem cipó no mato, a gente vai, eu vou mais você tirar também.
E vamo fazer e vamo morar nós dois”.
E nisso nós fizemos.
Fomos na mata, tiramo pau; fomos nos coqueiros e tiramo palha, viramos a palha, a palha toda virada; foi no cipó, tirou cipó, muito ramo de cipó pra amarrar.
E fizemos a casinha.
P/1 – Vocês tiraram tudo aqui, da mata daqui?
R – Tudo, aqui era mata grande.
P/1 – Ah.
Tinham poucas famílias, então?
R – Bem pouquinha, bem pouquinha.
Mata grande, mata grande, você passar aqui só era vereda, aqui não tinha estrada e a gente passava pelas veredas era dessa jeito, parece um túnel, eu passava por aqui, ó.
Era, assim, como daqui aos Matões, a gente passava por baixo.
A gente olhava, assim, só via era os passarinhos.
P/1 – Qual era o nome da localidade na época, desse lugar aqui?
R – Aqui era Matão.
P/1 – Era Matão?
R – Chamado Matão.
P/1 – E vocês, então, construíram a casa de vocês?
R – Construímos.
P/1 – E os filhos? Quando a senhora teve os filhos, a senhora teve aqui também?
R – Não, aí eu fui pra casa do meu pai.
A minha madrasta disse que não era pra eu ficar aqui, porque ela já conhecia, né, ela era daqui do Matão, né? Aí, ela foi e disse “não, é muito difícil, se acontecer alguma coisa com você, na hora do seu parto, como é que vai ser? Nós vamos levar ela pra lá”.
Aí, quando eu tava já bem pertinho de ganhar, já muito pesadona, na época do inverno pesado, atravessando lagoa, porque daqui pra apanhar o carro era uma lagoa muito grande.
Eu atravessei com água nos peitos pra sair na outra vereda lá, pra apanhar, longe que só.
Mas, aí, eu fui pra casa do meu pai.
Quando eu ganhei essa minha primeira filha, eu vim com 15 dias de resguardo, atravessando a areal, mas não trazia nada.
A minha irmã veio me deixar, minha irmã mais velha, e ele ainda levou um jumento, os caçuás pra trazer as coisas, porque não dava pra trazer, né? Aí, veio no jumento e a menina veio no meio da carga.
A carga bem forradinha e as coisas da menina no outro caçuá e ela veio cobertinha.
P/1 – E era quanto tempo mais ou menos de caminhada, da casa do pai da senhora até aqui?
R – Não, da casa do meu pai pra cá, pra ir por São Pedro nessa época já tinha ônibus pra São Pedro.
Aí, de Caucaia pra ali, leva o que? Uma hora de viagem.
Era.
Quarenta minutos por aí, assim.
P/1 – Mas pra chegar até o ônibus era quanto tempo, assim?
R – Até o ônibus.
P/1 – Uma hora.
R – Lá, onde eu ia pegar.
Agora, da onde eu descia pra mim chegar na minha casa aqui, eu chegava cinco horas e vinha chegar aqui nove horas da noite, que era areia demais.
P/1 – E como vocês faziam pra caminhar no escuro, dona Valdenice?
R – Mas a gente tinha a vista boa, a gente já sabia dos piques, das veredas e não fazia medo, não.
P/1 – Vocês iam no escuro mesmo?
R – No escuro e vinha no escuro.
P/1 – E quando a senhora morava aqui, quando a senhora chegou, não tinha energia elétrica aqui?
R – Não.
P/1 – Como que vocês faziam pra à noite poder.
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R – Lamparina.
P/1 – Vocês tinham que comprar, então, o querosene?
R – O querosene a gente comprava.
Aí, o meu marido que fazia as lamparinas e eu fazia eu fazia os pavios com algodão.
P/1 – E vocês chegaram a plantar aqui? Cultivavam alguma coisa?
R – Muito, muito, muito.
P/1 – O quê que vocês plantavam aqui?
R – Nós plantava feijão, milho, plantava batata, plantava roça, plantava jerimum, plantava melancia, tudo.
Tudo tinha.
P/1 – Tinha fartura, então?
R – Uhum, tinha.
Era quiabo, era maxixe, eu tirava era de saca de maxixe.
P/1 – Vocês chegavam a vender o que sobrava?
R – Aí, nesse tempo, desses plantio grande que nós já fazia, já tava bem avançado, a gente vendia, porque ninguém podia consumir tudo e todo mundo plantava e todo mundo tinha.
Aí, levava pro Pecem, a gente trocava por peixe.
P/1 – Ah, então, vocês iam diretamente lá no.
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Vocês iam nos pescadores, então?
R – Era.
Levava goma, levava farinha, levava rapadura, levava coco, levava maxixe, levava quiabo.
P/1 – E o marido da senhora, então, era agricultor?
R – E muito! Muito, muito, muito.
P/1 – E, dona Valdenice, quando as crianças foram nascendo, né, a senhora teve quantos filhos?
R – Eu tive sete filhos, só fiquei com três.
P/1 – Os outros morreram?
R – Foi.
P/1 – Foi o que, no parto ou depois que tinham nascido?
R – Não, assim, porque eu engravidava e, aí, às vezes com quatro meses, com três mês, eu tive de perder uma menina com cinco mês.
Aí, era assim.
Aí, foram cinco parto normal, né, normal que eu digo que eu tive, né? E foram dois eu abortei, uma menina com três meses e abortei outro menino com cinco.
Agora foi de um susto.
P/1 – A senhora levou um susto?
R – Foi.
Desse de cinco mês, que era um menino, eu tava amarrando uma verdura aqui, nessa época não era essa casa, não, era uma casinha de taipa, bem humilde.
Aí, eu amarrando verdura, que quando lá chegou o meu sogro na carreira.
Eu bem ali, bem tranquila, nem esperava.
Aí, ele chegava chorando com a mão na cabeça, pedindo socorro, que uma criatura tinha matado o filho dele, lá nos Matões, tinha matado de faca.
Aquilo ali foi um susto, eu com cinco mês.
Também não demorou nada, eu já comecei a passar mal, aí meu marido tava assim, de lado, aí ele foi e disse assim “Valda, você pode ficar só? Que eu vou correr aqui mais o pai, ver o quê que a gente faz”.
Que aqui não era isso aqui, não, aqui era um rumo, uma estradinha que só passava animal.
Aqui ia até lá, hoje em dia, que tão fazendo a refinaria, isso aqui ia muito longe.
Estradinha subindo e descendo no meio da mata.
Aí, ele ajuntou na carreira e me deixou só, só me deixou uma comadre minha que tava me ajudando a amarrar verdura e mais duas pessoas, filha dela.
Aí, eu disse “sim” mas minha comadre disse assim “Comadre Valdenice, eu to notando você, assim, tão diferente” “Eu não to bem, não” “Tu tá sentindo alguma coisa?” eu digo “sim”.
Ela disse “pois então para, vai sentar ali naquele banco, que é mais largo”, que eu me sentava no banquinho baixinho, estreitinho, né? Ela foi e disse “naquele banquinho ali tu fica mais à vontade”, aí, eu digo “não, eu to com vontade é de me deitar, que eu to com uma coisa ruim”.
Aí, ele foi, entrou, fez uma garapa de rapadura e me deu (interrupção, troca da bateria).
P/1 – Dona Valdenice, a senhora tava contando, então.
R – Sim, aí eu fui, fiquei bem à vontade, né? Aí, ela foi e disse “se você tiver sentindo mais que ocê diga que a gente fica com cuidado em você.
Vou fazer um chá, aí você toma, pra ver se você melhora”.
Aí, eu digo “tá bem”, só que eu não fiquei muito bem, ela fez um chá pra mim.
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P/1 – A senhora lembra que tipo chá ela fez pra senhora?
R – Ela fez de cebola das dores com alfazema.
P/1 – Com alfazema.
R – Com alfazema, foi.
Foi o chá que ela me deu.
Aí, quando foi assim mais ou menos oito horas da noite, eu ainda não sabia notícia, se tinha mesmo morrido nem nada, aí, eu comecei a sentir mais coisas e ela não me deixou só, a minha comadre e uma filha dela.
Aí, quando foi mais ou menos nove hora da noite eu.
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P/1 – A senhora deu a luz, então? A senhora teve o bebê.
R – Foi, o bebê.
Que quando o meu marido veio pra avisar que tinha acontecido mesmo, pra eu agir, que no outro dia, né, pra trazer o corpo mas eu já tava de resguardo, quando ele chegou eu já tinha tido o filho.
Aí, ele ficou muito triste, né, porque ele toda vida quando eu saia gestante ele ficava muito satisfeito, porque ele sabia que eu era uma mãe que nunca, Graças a Deus, tomei remédio nenhum pra botar fora filho.
Eu ficava era feliz, era, que nós era muito unido, né?
P/1 – Mas existia o uso, assim, de ervas pra não ter filhos, que não se queria?
R – Existia, existia mas só que eu nunca tomei.
P/1 – A senhora queria os filhos da senhora, então?
R – Eu queria.
Que eu tanto queria hoje em dia só tenho só dois.
Que às vezes eu fico me lamentando “se eu tivesse meus sete filhos era tão bom”.
Mas, Deus sabe o quê que faz, né? Deus sabe.
P/1 – Esse foi o que? A senhora já tinha tido do Júnior?
R – Não, não.
Eu já tinha tido a minha menina mais velha e esse foi o segundo, depois veio a terceira, que foi aborto, depois veio o Júnior, depois veio o Jonas, né? Aí, vem vindo os outros, aí o derradeiro que eu tive foi um cesariano de risco, que eu dei três ataques, foi o derradeiro.
Aí.
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P/1 – O nenê vingou, então?
R – Sim, o derradeiro parto que eu tive.
Foi.
Esse foi o mais perigo aí foi preciso fazer ligação.
P/1 – Aí, a senhora fez laqueadura?
R – Foi.
Aí, pronto, já fiz mesmo.
P/1 – E, dona Valdenice, como foi criar os filhos aqui na casa? Vocês estavam ainda na casa que vocês tinham construído, então?
R – Uhum, já.
P/1 – E os meninos chegaram a estudar? Foram pra escola?
R – Meus meninos estudava.
P/1 – Ah, tinha escola aqui, então?
R – Uma casinha, lá nos Matões.
Primeiramente, eles estudavam numa casinha; não tinha colégio, tinha uma casinha e tinha um senhor, muito conhecido, que até parente mas só que ele não reconhece que é na Sé, que eles são da Japuara, né, eles não reconhecem.
Mas ele é que era o professor de muitas crianças aqui.
Ele ensinou até o quinto ano.
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P/1 – Qual era o nome dele?
R – É o Armando.
P/1 – Armando.
R – Armando ele é irmão desse senhor aqui, porque esse pessoal aqui não se reconhece e são da Japuara, e são Anacé.
P/1 – Japuara seria o que?
R – Japuara lá é outro povo.
Não, um outro povo, assim, não, não é o povo, é o mesmo nosso povo, Anacé, é o mesmo povo.
P/1 – É uma família, Japuara?
R – É.
P/1 – Agora, dona Valdenice, a Nasser, quando a senhora chegou aqui, no Matão, as pessoas já se reconheciam como Anacé?
R – Não.
P/1 – Como surgiu essa ancestralidade, Anacé?
R – Aqui os mais antigos eles sabiam que aqui era uma terra indígena, tradicionalidade, só que eles tiveram medo, porque teve uma.
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Como é que se diz? Um derrame de sangue muito grande porque eles não aceitavam o que é índio, ser índio, né? Teve uma briga muito grande.
Aí, eles foram embora, pra banda.
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Japuara não.
Ali, depois do rio, um lugar chamado Pirapora.
Aí, teve um derrame de sangue muito grande, que o povo brigava que no rio, quem dizia que era índios, né? Por isso eles ficaram calados mas na realidade é que o povo era um povo só, pegando Matão, Bolso, Japuara, Santa Rosa, Tabuleiro Grande e outros mais lá, porque agora, no momento, eu não to lembrada, mas aquele todo.
Então, o que veio fazer o povo se alevantar e se fortificar na luta foi através do porto, da portuária Pecém.
P/1 – Ah, foi o porto que fez vocês se reunirem novamente?
R – Foi.
O que fez o fortalecimento desse povo.
P/1 – Mas como que foi isso, assim? Vocês.
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R – Eles vieram, assim, de uma vez, um dragãozão, pegando os que moravam aqui, no Putiri, Brigório, por aí todo, foram os primeiros povos a sair daqui, que eles chegavam e diziam assim, ó “essa terra aqui vai ser indenizada, vocês vão sair daqui porque vocês não podem ficar aqui, vem esse porto, esse CIPE entrando, aí, de goela adentro e vocês têm que sair, vocês vão ser.
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”, inocentemente, que aqui era uma parte de sitio muito grande, muito, muito, o povo era rico pra dizer assim, se orgulhar, porque tudo tinha.
P/1 – E, dona Valdenice, a senhora falou que chegou aqui era do sogro da senhora, então, né?
R – Que já era dos bisavós, dos avós, do pai do meu marido.
P/1 – Que já vinha da família dos Moraes, então?
R – Uhum.
P/1 – E eles tinham título da terra?
R – Se eles tinham título da terra?
P/1 – É, eles tinham os papéis daqui?
R – Mas foi feito.
Foi feito o título da terra.
P/1 – Da terra?
R – Foi feito.
Foi.
P/1 – E as pessoas que moravam aqui eram todas da mesma família, todos os Moraes ou não, tinha outras famílias aqui, que não eram dos Moraes, que moravam nessas terras aqui?
R – Não, todos era família, todos eram parente.
P/1 – Todos eram os parentes?
R – Todos.
Aí, uns foram vendendo e foram indo-se embora e outros foram morrendo.
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Mas a geração mais nova foi ficando.
P/1 – E vocês, assim, naquela época já sabiam o quê que eram os Anacés? Vocês já sentiam Anacés, então, desde a época que a senhora chegou aqui?
R – Não, não.
Eu não sabia diretamente, não.
Mas sabia que o meu sogro dizia assim “meus filhos, vocês sabiam que vocês são é índio mesmo? Nós somos é índio mesmo” mas ele não dizia o nome porque tinha medo, né?
P/1 – Por causa da briga lá, né?
R – Por causa da briga.
Aí, como que ele podia dizer, porque tinha contra, né? Os parente mesmo era contra, porque não era pra dizer.
Aí, ele só fazia dizer isso.
Aí, lá se vai, foi crescendo, foi crescendo e quando veio o peso mesmo, que a gente dizia “não, aqui não pode ser do jeito que eles querem fazer”.
Aí, foi levantando, foi chegando os missionários, foi fazendo estudo, foi pesquisando, vindo, passava semana aqui nas casa, ouvindo os mais antigos, né, os mais velhos, procurando saber como era a vivência deles, tudo.
Ficava, aqui na minha casa teve que ficar dois, eles procuravam as casa, aí botava dois pra cá, dois pra acolá e era pra pesquisar bem profundo, que quando eles viam que tava tudo ok, aí alevantou, viu?
P/1 – Esses missionários a senhora lembra quem era? Era a Igreja ou eram pessoas da Funai?
R – Era Igreja.
P/1 – Era da Igreja?
R – Igreja.
P/1 – Qual igreja que era?
R – Igreja católica.
P/1 – Igreja católica mesmo?
R – Igreja católica.
Era.
Aí, eles.
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P/1 – A senhora chegou a dar entrevista pra eles?
R – Sim, que eles perguntavam, que eles viam como era o trabalho nosso aqui, quando, às vezes, eles chegavam nós tava raspando mandioca, tava na casa de farinha, eles iam lá observar como é que fazia farinhada, tudo isso.
P/1 – E, dona Valdenice, a senhora.
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R – Às vezes a gente tava até colhendo, arrancando mandioca, às vezes a gente tava raspando, às vezes tava no comboio levando os animais.
Aí, via as novenas, via os terços, até aqui mesmo eles teve de fazer celebração, tudo isso.
P/1 – E, dona Valdenice, a senhora lembra do dia que a senhora soube do porto, da construção do porto?
R – Rapaz, assim, lembrar a data, não, mas eu acho.
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P/1 – Não, o dia, a situação.
A senhora lembra quando.
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R – Ixi, foi muito ruim, muito ruim, porque até eu falei, eu disse assim, pra uma parenta minha “mulher, pelo amor de Deus, quando se fala num negócio desse, como é que vai ser? Isso não vai ficar só lá no mar, isso vai se estender e pra qual lado?”, que eu nem sabia pra qual lado.
Depois foi que eu soube que tavam medindo pra passar uma via férrea, pra passar outra estrada pelo outro lado, que ia passar uma encanação, que vinha muitas máquinas, vinha muitos caminhão, que iam fazer a outra estrada do porto.
Aí, eu dizia assim “pronto, vai tomar isso aqui tudo” e é isso que tá acontecendo, foi isso aí que fez nós ter força.
Foi isso aí que fez nós garantir, nós somos e nós somos.
P/1 – E como que a senhora soube da história do porto, da construção? Quem é veio aqui, quem disse pra senhora?
R – Veio os geólogos, veio consular primeiro, ver, estudar, teve muitos estudos, né? Não foi, assim, dentro de dois dias, foi muitas coisas chegar aqui pra fazer pesquisa, pra fazer entrevistas, pra ter uma semana vendo, estudando, conversando, vendo aonde esses trabalho todo, escavação pra ver se encontrava alguma coisa indígena, que na realidade encontraram muita coisa.
P/1 – Ah, eles fizeram escavação aqui, no terreno da senhora?
R – Aqui não mas foi encontrado bem ali, assim.
P/1 – O quê que eles encontraram?
R – Eles encontraram foi urna, umas pá de urna de barro, de barro dessa largura.
Eu mesma não fui olhar, não.
Eu digo “não, não vou olhar, não, porque isso aí eu sei que foram descobrindo muita coisa”.
E foi.
Foi descoberto aqui, foi descoberto nos Matões, que essa dos Matões veio uma pesquisadora do museu de Fortaleza e veio até e me convidou, pra mim ir lá mais ela, saber aonde era.
Aí, eu conheci a família lá e, aí, eu fui.
P/1 – A família era dos Moraes também ou não? Outra família?
R – Rapaz, no fundo, no fundo eles também são, viu? Mas não se reconhecem, não.
é uma família muito grande, muito grande, é muito grande a1qiu.
P/1 – E, dona Valdenice, o quê que mudou, assim, depois do início da c9onstrução do porto? O quê que mudou, o que não.
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R – Avançou muita coisa, muita coisa.
Avançou muita coisa, muita gente que ninguém conhece, o perigo da estrada, acidente, né? Prostituição, muitas drogas porque aqui não existia nem ninguém que falava.
Muitas mortes aqui devido às caçambas.
Ave Maria, aqui eu vivia assustada.
Vivia não: vivo.
P/1 – Porque antes da construção não existia?
R – Não, não, não existia perigo aqui.
Perigo de nada.
P/1 – Então, houve um crescimento muito grande aqui dessa região?
R – Muito, muito, muito grande.
Muito grande mesmo.
Pra melhor dizer, ó, tá aqui, ó, tem um hotel bem aqui, uma pizzaria muito grande.
Aqui não existia isso, quem era que ia pensar no mundo que aqui ia passar trem? (Interrupção, problema com o microfone) Sim, aí, hoje em dia tem essa pizzaria, ninguém esperava; tem o trem passando aí que ninguém nunca esperou; tem a outra estrada, que é carro um atrás do outro, as carretas.
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P/1 – Que é a BR?
R – Sim.
Saindo os containers do porto pra BR (interrupção).
Pois é, aí tem essas carretas, eu nunca pensei porque aqui era umas matas, uns morros muito grande, era aonde caçava, era aonde pescava, que tinha as lagoas, era aonde a gente ia caçar castanha.
P/1 – Castanha do caju?
R – Sim, nos morros, subia e descia pra caçar castanha.
A gente ia pra caçar, caçava nas matas.
P/1 – O quê que vocês caçavam aqui?
R – Rapaz, aí tinha pereba, tinha tatu, tinha todo tipo.
Tinha preá, tinha tejo, tinha tudo.
P/1 – Mas, depois que chegou o porto, acabou?
R – Não, Ave Maria! Dá dó, eu não sei pra onde eles se espalharam.
Eu acho que foi pra essa outra mata, né, que até mesmo as cobras que tinha, as cobras grande, pra melhor lhe dizer, já veio até uma pra cá, dessa grossurona, ela dava mais de dois metros.
P/1 – Que antes não tinha cobra aqui na casa da senhora?
R – Não, que tinha as matas onde ficar, onde elas comer, né? Tinha passáro, tinha tudo e agora não existe mais, por causa dos barulhos das empresas, os caminhões, né, também.
Aí, as bichinhas vão procurando aonde pode ficar, elas não têm inteligência, a inteligência é ir pra mata e, ao invés de ir pras matas, elas vem pra banda das casas, ali, na mata.
Ali eu acho que o espaço ainda é pequeno, até nas travessias mesmo, dela atravessar daqui pra cá, os carros mata.
Às vezes a gente encontra duas, três cobrona morta na estrada, os caminhão mata.
É porque procura, até mesmo tejo, a gente vê morto na estrada; até mesmo aqueles pássaros das caças da madruga também.
P/1 – O quê que é o tejo, dona Valdenice?
R – O tejo ele é um animal réptil que ele é tipo uma lagarta, ele é grande, ele é pequeno.
O grandão é bom que a gente tira o couro e come.
P/1 – Ah, se come, então, o tejo?
R – Come.
P/1 – E é gostosa a carne?
R – É gostosa.
Se a gente fizer bem feita por gosto a gente enche a barriga.
Antigamente eu comia muito, agora porque não tem.
P/1 – Dona Valdenice, vocês vão ter que deixar esse lugar onde vocês estão?
R – Sim, a gente vai ser.
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P/1 – Removido.
R – Removido.
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Realocado daqui pra uma reserva.
P/1 – Onde que é essa reserva?
R – Vai ser lá no alto do Garrote, fica perto do cipó, aonde é o cemitério do Caranguejo, naquela região.
P/1 – Cemitério do Caranguejo?
R – Sim.
P/1 – É o cemitério, assim, da região, então?
R – É.
P/1 – E, dona, Valdenice, vocês conhecem esse terreno? A senhora já foi lá ver?
R – Eu nunca fui mas meu filho já.
P/1 – E a senhora quer ir pra lá?
R – No inicio, eu dizia que não ia, não.
Eu fiquei, assim, quase doida, eu digo logo assim, quase doida, que eu vivia era só chorando e pensando, pensando “meu Deus, como é que eu vou sair daqui? Como é que eu vou deixar isso aqui pra ir embora pra um canto que eu não conheço? Eu não conheço ninguém, só os parentes que mora um pouquinho distante, que os parentes da Santa Rosa, Japuara, Tabuleiro Grande, etc, eu não tenho conhecimento com todos, né? Aí, pra ir pra um canto, será que tem as plantas que eu tenho, que eu tenho conhecimento? Aí, vamo fazer tudo aquilo que já foi feito aqui e fazer lá? Será que eu ainda tenho direito de alcançar, de comer uma fruta que eu plantei aqui.
É necessário, né? Os jovens, sim, mas os idoso não.
E será que ele vai aguentar? Será que ele vai aguentar? Será que ele vai suportar?
P/1 – E quando que tá prevista essa mudança, essa realocação de vocês? Já tem data?
R – Eu ainda não sei, não.
P/1 – Vocês vão ser indenizados?
R – Não.
O que eles fizeram, que a gente vai ter direito a casa lá mas a minha casa aqui eu posso alugar, eu posso vender.
P/1 – Ah, porque vocês vão pra reserva, não é que eles vão usar esse terreno de vocês, aqui?
R – Eu acho que já já, não.
R (voz ao fundo) – O projeto do Governo é pra desapropriar aqui também.
P/1 – A ideia, então, é tirar todas as pessoas daqui, então?
R – Uhum.
P/1 – Vocês sabem o quê que vai ser feito aqui nesse lugar?
R – Rapaz, eu não sei, não.
O Júnior sabe, eu não sei, não, porque eu não fico muito (Voz ao fundo, incompreensível).
Mas eu acho que é tudo isso, né? Tudo isso.
P/1 – Que vai desocupar.
A senhora tava falando que a senhora vai deixar de ter esse contato com as ervas que a senhora conhece.
Que ervas que tem aqui que são típicas dessa região?
R – Rapaz, aqui tem tanto tipo de erva.
P/1 – Ah, é? São ervas medicinais?
R – São.
P/1 – A senhora lembra de alguma que a senhora possa dizer, assim, o quê que é e pra que serve?
R – Rapaz, tem a janaguaba.
O leite da janaguba ele é ótimo pra gastrite, pra inflamação.
Ele é medicinal.
P/1 – E qual mais que tem, que a senhora se lembra?
R – Aí, tem a embiriba.
P/1 – Embiriba.
R – A embiriba ele serve muito pra dor de cólica, pras mulher, né? Ele é muito bom.
Você toma um chazinho e alivia as dores, né?
P/1 – Alivia TPM também?
R – É, com certeza.
P/1 – E que mais que a senhora lembra de erva, assim, que no cotidiano a senhora utiliza? Se a senhora tá com alguma coisa, a senhora já lembra dessa erva? A senhora falou da embiriba, né, dessa primeira.
Tem mais alguma, assim?
R – Tem o mastruz, tem o hortelã, tem a.
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Tem a malva, tem boldo, tem a erva mijona.
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P/1 – Que erva é essa, erva mijona?
R – Erva mijona é uma planta que ela dá rasteirinha.
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P/1 – E ela serve pra que?
R – A erva mijona? Ela serve pra quentura nas urina, junto com a vassourinha, tem a vassourinha também.
P/1 – Agora, dona Valdenice, aqui na região tem uma tradição de fazer o lambedor.
Vocês fazem, também, o lambedor?
R – Faço.
P/1 – Como que é feito o lambedor, pra gente registrar para as pessoas que não conhecem aqui?
R – O lambedor você faz com a malva, a corama, a raiz da pepaconha, a cebola branca, ixi Maria, e.
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Pera aí.
Bota umas duas folhinhas de mastruz também (pessoa falando ao fundo).
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Já disse.
P/1 – A senhora coloca o melaço da rapadura também no lambedor ou não?
R – Não, não.
P/1 – Como a senhora faz o lambedor? A senhora ferve essas ervas, então?
R – É.
Pegue todas essas raiz, lava bem lavada, escova elas pra tirar bastante aquela areia das raiz e daquelas cascas, aí, você pisar ela bem pisadinha, bota ela pra ferver, pra ferver.
Você põe o que? Dois litros d’água pra ela ficar forte mesmo, pra ficar num litro ou menos de um litro, né, com todas essas ervas.
Aí, você deixa esfriar, você coa bem coadazinha num pano, aí, depois, você bota pra ferver e põe o açúcar.
Se você não quiser fazer só com açúcar, você pode colocar um pouquinho de mel, mel de abelha também, né?
P/1 – Aqui se encontra mel, se produz mel por aqui?
R – Antigamente eu ia tirar mais meu marido.
P/1 – Ah, antigamente vocês tiravam mel?
R – Eu tirava o que tinha nas matas, hoje em dia nem isso tem mais.
Que tinha dia de eu tirar três abelhas mais meu marido, é perigoso mas a gente ia.
P/1 – Vocês iam direto na colmeia dela?
R – Ia, eu ficava em baixo e ele subia em cima.
Mas, Ave Maria, não gosto nem de imaginar.
P/1 – Perigoso, hein?
R – Perigoso, tinha delas desse tamanho, que chega ela zuni e fica em cima da gente todo o tempo.
Só entra quem tem coragem, não é todo mundo que entra pra tirar.
P/1 – Agora, dona Valdenice, o marido da senhora ele é falecido?
R – Tá com oito anos, completou agora, em Abril, no dia 21 de Abril completou oito anos.
P/1 – A chegada do porto, então, veio mais ou menos nesse período?
R – Foi.
Antes um pouco, né?
P/1 – Então ele já sabia?
R – Já sabia.
P/1 – E o quê que o marido da senhora pensava, assim, sobre o porto?
R – Ele dizia que aqui não ia prestar mais, não.
Ele sempre dizia, antes dele morrer, ele dizia “tu sabia, Valda, que aqui já prestou? Aqui vai ser muito é perigoso”.
P/1 – E de quê que ele faleceu?
R – Ele começou a se sentir devido a perca do meu filho, né? Ele queria muito bem os filhos, principalmente esse, e ter morrido uma morte tão trágica, que ele disse que foi uma coisa que ele nunca na vida dele pensou.
P/1 – A morte do Jonas?
R – Sim.
Aí, ele ficou em depressão, tinha dias que ele tava mais alegre, tinha dias que ele tava mais triste, até que chegou o ponto dele mesmo se matar.
P/1 – Ele se matou, então?
R – Ele se matou envenenado, lá na catatumba do meu filho.
Ele mesmo se engavetou lá dentro, ele mesmo se matou lá.
P/1 – Se envenenou e lá ficou.
R – E lá ficou.
Mas, ele saiu daqui falando que ia fazer um trabalho e eu fiquei em casa, cuidando do almoço, esperando que ele voltasse.
Aí, meu filho, esse aí, tava fazendo serviço nos Matões, na terra lá, do sogro dele, e lá ele teve, assim, foi um tempo muito bonito de chuva e ele teve, assim, um pressentimento que o tempo mudando, que era ele e outro rapaz que mora aqui próximo, ele disse assim “rapaz, o tempo tá tão mudado, parece que vai morrer gente conhecido”.
Aí, tudo bem, ele disse “tire isso da cabeça, Júnior, isso não é coisa que tu pense”.
Ele disse “rapaz, porque é que nesse lugar quando o tempo fica desse jeito é que vai morrer gente conhecido”.
E, na realidade, o que a gente tem, assim, um pouco de experiência do tempo passado, era assim.
A gente sabia que ir morrer um conhecido, ia acontecer alguma coisa se o tempo mudasse, o tempo fica triste, os galo fica cantando, dois dia diferente e acontece as tragédias.
P/1 – Dona Valdenice, o filho da senhora ele foi atropelado, então?
R – Foi.
P/1 – Foi aqui, na rodovia?
R – Foi bem aqui próximo, bem aqui mesmo.
P/1 – Ah.
Ele tava o que, andando de bicicleta ou tava andando?
R – Era, era.
P/1 – Ele tinha quantos anos?
R – Ele tinha 15 anos.
Faltava sete dias pra ele completar 16 anos, que ele ia completar 16 anos no dia 17 de Junho e ele morreu no dia dez.
P/1 – Aí, a senhora depois entrou na Justiça.
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R – Foi.
P/1 – Pra ter uma indenização?
R – Foi.
P/1 – Quem que atropelou ele? Foi algum caminhão? Foi um carro?
R – Foi um carro pequeno.
P/1 – Foi um carro pequeno?
R – Foi.
P/1 – E esse carro pequeno era de alguém ligado ao porto ou não?
R – Não, não.
Era um bacharelado, ele tava se formando em Medicina.
Era.
Aí, vinha ela, nesse dia era um jogo da Copa.
Aí, então, ele vinha mais a noiva dele, fazia o que? Quinze dias que ele tinha comprado esse carro.
Aí, eles vinha eles dois, ali, conversando e aconteceu, né?
P/1 – Aí, a senhora recebeu indenização dele, então?
R – Foi.
P/1 – Aí, com a indenização a senhora falou que construiu aqui, fez uma reforma na casa.
R – Foi, foi.
P/1 – Que é como ela hoje está aqui, né?
R – Que é como ela hoje está.
E, também, sobrou um pouco, aí, meu esposo disse assim “olha, a vista ter sobrado ninguém quer esse dinheiro pra gente se alimentar, não, que Graças a Deus nós planta, nós tem.
Eu mesmo vou construir ali” e construiu essa casa, só mesmo construímos, cobrimos, colequemo umas portinhas simples, nem rebocar ninguém terminou, porque o dinheiro não deu, né? Aí, foi o tempo que o Juninho noivou, o Júnior casou, ele mesmo tomou de conta o resto.
P/1 – Ficou morando lá, então?
R – Foi.
P/1 – Agora, com essa transferência de vocês pra essa reserva, vaio toda a família de vocês pra essa reserva?
R – A minha vai; não fica, não.
P/1 – A senhora comentou que não visitou, né, o lugar que vai ser a reserva.
R – Não mas eles, o pessoal da Funai foi, disse que a gente tinha a oportunidade de ver, antes de começar a construir, né? Mas que os liderança, que tomam mais a frente, eles já foram olhar, ele disse que muito bom.
P/1 – E quem é liderança aqui, dos Anacés?
R – Aqui mesmo são os mesmo da frente é o Júnior, é a Ângela e o Tiago.
P/1 – Quem é a Ângela? E o Tiago? Quem são?
R – É a cunhada do Júnior, que mora nos Matões.
P/1 – Eles são os representantes, então?
R – São.
Daqui.
P/1 – Vocês se reúnem, assim, com frequência?
R – Se reúne, nós se reúne, quando a gente convida pra reunião interna do nosso povo, nós se reúne.
Nós temos reunião do conselho, né? Nós temos reunião da Educação; eu faço parte do Conselho de Saúde também, nós tem também o Conselho de Saúde.
Nós, Graças a Deus, tamo bem avançado.
P/1 – Ah, é? Quantos Anacés estão aqui, no Matão?
R – Ao todo? O Júnior sabe, que ele tem tudo, né?
P/1 – Sim, mais ou menos tem muitas famílias? Quantas famílias, mais ou menos?
R – Tem umas cinquenta e poucas.
É.
P/1 – E essas famílias, a senhora tava comentando antes, que começaram a buscar essa história dos Anacés depois da construção do porto.
R – Foi, foi.
P/1 – E, a partir desse conhecimento, dessa busca, né, dessa história de vocês, vocês fizeram algum tipo de pesquisa?
R – Sim, através da dança do São Gonçalo, foi quem trouxe a nossa história.
P/1 – O quê que é a dança do São Gonçalo?
R – A dança do São Gonçalo era uma dança tradicional do povo, né?
P/1 – E como se faz essa dança, assim, como que ela é? Mas, a senhora, assim, que já presenciou, então, a dança, como que é?
R – Eu danço.
P/1 – A senhora dança?
R – Danço, faço parte.
P/1 – E como que é? É em círculo, é uma ciranda? Tem alguma música de vocês?
R – Tem, tem.
E é um santo e esse santo daqui, da nossa dança.
P/1 – Ah, é? Qual o nome do santo?
R – São Gonçalo.
P/1 – São Gonçalo, ah.
Aí, vocês, descreve um pouquinho pra gente, assim, como seria a dança.
R – A dança é assim, porque tem os tirador, tem o grupo que toca, né, o que tira é o Júnior e outro compadre dele, são os tirador, né?
P/1 – O quê que são os tiradores, assim?
R – É o que inicia a dança e o ritual, que é um ritual, né, que é a música.
Inicia com a música e tem os tocador e tem os que dançam, que são de par em par, são tudo par mulher e par homem.
É homem é homem; mulher é mulher.
São quantos par, Júnior, nós temos?
R/2 (voz ao fundo) – Doze.
R – Doze.
Mas junto com os tirador? Não?
R – Mais os dois mestre.
São os mestres, né? Ele e o compadre dele.
P/1 – A senhora sabe, assim, a música? Sabe dizer pra gente como que é?
R – Rapaz, eu só sei.
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Como é, meu Deus do Céu?
P/1 – A senhora pode cantar um pouquinho pra gente? Pode ser só o começo;
R – Rapaz, quê que eu faço, agora eu não alembro.
P/1 – Não tem problema, depois a gente vê o que faz se a senhora não se lembrar.
Aí, a senhora veste alguma roupa?
R – Nós temos a farda.
R/2 – Não é uma farda, não; é uma roupa.
P/1 – Como que é?
R – Pois sim, é as blusas e as saias.
P/1 – Essa saia é feita de que?
R – Ela é feita daquele chitão, de chita, e umas blusinhas com o nome da dança, de São Gonçalo.
P/1 – E vocês que construíram, então, que costuram a roupa de vocês?
R – Sim, é.
P/1 – E desde quando que tem a dança de São Gonçalo?
R – Desde o inicio da nossa luta que nós tem a nossa dança mas ela já existia há muitos anos mas só que muitos anos que ela tinha sido.
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Como é que se diz? Acabaram, né? Acabaram porque os que tiravam adoeceram, uns morreram e deixaram, não continuaram, né? Eles parecem que tiveram medo, mais por causa da história, né? Aí, depois, devagarzinho, foi vendo a história, foi resgatando, o Júnior e seu Antônio Idelino e outros mais do grupo foi resgatando toda a historia, toda a música, tudinho, e completaram tudo pra gente iniciar a dança.
P/1 – Ah.
E quando vocês dançam tem um pessoal com instrumento que toca?
R – Tem.
P/1 – Quais são os instrumentos?
R – Os instrumentos são o violão, a gaita, que no início nós começamos com a gaita.
R/2 – É harmônica, mãe.
R – Antigamente era tocado harmônica mas não foi possível a gente conseguir essa harmônica pra ser tocado; era tocado com a gaita.
R/2 – Era tocado com a concertina.
R – Sim.
Aí, então, tem o triangulo, tem o violão, tem a concertina, né, aí.
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Só.
P/1 – Tem sanfona.
R/2 – É a concertina.
R – A concertina é a sanfona.
R/2 – E hoje é a harmônica.
R – Hoje em dia é a harmônica, que agora nós conseguimos.
Graças a Deus, nós vamos fazer uma apresentação só que pena que eu não to presente.
P/1 – Por quê?
R – Porquê eu vou viajar pra serra, num encontro que vai ter lá.
P/1 – Que encontro que a senhora vai?
R – De pajés e caciques e benzedeira, lá na Iporanga.
Você conhece?
P/1 – Não, eu não conheço.
R – Pois é.
P/1 – Agora, dona Valdenice, os Anacés têm um cacique?
R – Cacique Jonas, na Santa Rosa.
P/1 – Ah, ele não tá aqui, então?
R – Tá não, ele tá na Santa Rosa.
P/1 – Na Santa Rosa.
E tem pajé? Vocês têm algum pajé?
R – Não, aqui não tem.
P/1 – Agora, voltando à dança de São Gonçalo, vocês se apresentam em determinadas épocas ou vocês fazem mesmo apresentações?
R – Nós faz através de promessa.
E nós temos o nosso ensaio.
Nós ensaia e anos apresenta, nós tem chamado também pelo SESC.
P/1 – Ah, o SESC também entra em contato com vocês pra vocês fazerem apresentações?
R – É.
Aí, ele manda buscar, a gente passa cinco dias lá.
P/1 – E no dia de São Gonçalo vocês também fazem o ritual?
R – Sim, fazemos.
P/1 – Quando que é o dia de São Gonçalo, dona Valdenice?
R – Qual é o dia Júnior, que nós?
R/2 – O dia de São Gonçalo é 14 de Novembro mas o nosso aqui é cinco de Novembro que a gente faz.
R – Nós já dançemos São Gonçalo do Amarante e aqui também a gente apresenta.
As pessoas que faz a promessa com São Gonçalo, aí, se eles faz a promessa e Graças a Deus foi valido por aquele que pediu, aí eles marca a data, avisa, a gente se prepara, se organiza, né, aí nós vamos e dança.
Dependendo da jornada, é por jornada.
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Dependendo da jornada, é uma, é duas, é três, é cansado, é muito cansado.
Só vocês vendo pra dizer é cansativo, viu?
P/1 – E, além da dança de São Gonçalo, vocês têm mais algum tipo de dança? Algum tipo de ritual?
R – Rapaz, os meninos estão ensaiando e já estão bem organizadozinho a dança do coco.
P/1 – Ah, a dança do coco?
R – Junto com a dança do coco que existe em Pecem.
A gente tá ensaiando e eles tão ficando, mas mais é as turmas de jovem.
P/1 – São mais os jovens, então, que estão buscando essa história, então?
R – Uhum, mais é os jovens.
P/1 – E fala do coco, dona Valdenice, vocês, assim, na época da senhora, com a senhora mais jovem, vocês brincavam e cantavam o coco ou outro tipo de ciranda que não fosse, por exemplo, outro tipo de brincadeira que não fosse o forró?
R – Sim, a gente participava, muita coisas boa, era, uhum.
P/1 – Mas tinha outros tipos, assim, de brincadeira além do forro?
R – Rapaz, não, a não ser as rezas, né? É.
P/1 – E como eram as rezas, assim? Eram mais as novenas?
R – As novenas, tinha o terço, eles chegavam na casa, tinha um senhor que vinha fazer as novenas nas casas, visitando, cada casa ele chegava, ali fazia uma procissão acompanhando, tocando.
P/1 – Esse senhor, qual é o nome dele?
R – Rapaz, no momento eu não me lembro.
R/2 – Era o Bito.
R – Ele, finado Bita, ele vinha da Serra da Rajada pra cá.
Corrigia muitos cantos, era uma promessa que ele tinha, né? Corrigir.
P/1 – Aí, ele vinha aqui e era muito longe de onde ele morava?
R – Virge Maria, depois de Caucaia muito.
Muito, muito, muito e ele vinha e vinha à pé, de cidade em cidade que ele chegava era aquela procissão e tocando e rezando e a Santa.
P/1 – Qual era a Santa?
R/2 – Nossa Senhora da Conceição.
R – Era.
Nossa Senhora da Conceição, que aqui também é a padroeira da igreja aqui, de Matões, é Nossa Senhora da Conceição.
P/1 – E continuam ainda essas festas?
R – Não.
Com ele, não.
P/1 – As procissões.
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R – Com ele, não, mas com a santa da igreja, Nossa Senhora da Conceição, sim.
P/1 – Continua e a senhora participa também, a comunidade participa?
R – Participa.
P/1 – E, dona Valdenice, assim, pensando nas transformações, com o impacto aí do porto, da rodovia também, o quê que mudou, assim, na rotina da senhora e daqui da comunidade?
R – O que mudou foi a parte de Educação, né, que os filhos se educaram mais, terminaram os estudos, desenvolveram mais, uns faz curso, uns faz faculdade, já tem um trabalho e antigamente não tinha.
Por esse ponto aí é o crescimento, né? Aí, desenvolveu muito em termos de Educação, que já tem o Ensino Médio, terminou o Ensino Médio, que antigamente não tinha, não tinha nem pra terminar o primeiro, que dirá o Ensino Médio.
E hoje em dia a gente vê aqui, bem próximo, já tem faculdade, várias faculdade aí, no Pecem.
É bem próximo aqui, né? E é isso aí, o desenvolvimento dos filhos e abandonaram a roça, que eles não querem.
As empresas pra eles trabalharem.
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P/1 – A senhora continua trabalhando na roça?
R – Trabalho.
Eu tenho aí planta que eu mesma plantei.
P/1 – Mas a senhora ainda colhe e consome isso que a senhora planta?
R – Com certeza.
Com certeza.
P/1 – Então, a rotina da senhora do trabalho não mudou, então?
R – Meu não.
Aí, eu faço meus lambedor, eu faço óleo de cura, eu sei que aqui eu vivo assim.
Eu vou tirar semente, eu faço meus colarzinho.
P/1 – A senhora faz cura? A senhora benze?
R – Não, não benzo, não.
Eu faço óleo, do angico, eu faço óleo de mastruz e tudo isso.
P/1 – E pra que serve o óleo do angico?
R – O óleo do angico? O óleo do angico ele serve pra inflamação.
Você tem, digamos, um ferimento.
Aí, arrancou isso aqui, o pelo, digamos, um acidente, arrancou tudo.
Aí, você continua passando o óleo, ele renova aquela carne, aqueles pelos, desinflama.
Ele serve pra dor muscular, pra varias.
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Pra garganta, pra tudo.
P/1 – Tá.
E o óleo do mastruz?
R – O óleo do mastruz esse é que bom.
Esse é bom pra garganta; ele bom pro tórax; pra quem tem problema de cansaço; pneumonia; ele serve pra você se estar com ferida, um ferimento, ele serve pra passar; vou pode tomar um pouquinho; se você tá tossindo muito ele serve muito.
P/1 – Uhum.
A senhora tem mastruz aqui, então?
R – Eu tinha muito mas devido, assim, quase oi tempo muito corrido.
Mas eu tenho um vizinho aqui que ele planta muito e ele cede pra mim.
Ele diz “ó, não vai plantar porque eu planto.
Na hora que a senhora precisar, eu tenho”.
Aí, eu digo “tá bem” e quando ele não plantar eu vou plantar pra colher.
O angico eu já tenho um pé já grande, Graças a Deus, consegui um pé, que eu mandava buscar casca de angico na Serra, depois de Sítios Novos, pra eu pode fazer o óleo, agora eu já tenho, se eu precisar eu vou tirar.
E é assim.
P/1 – E como a senhora faz o óleo do mastruz, assim? A senhora pega o mastruz.
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R – Pego o mastruz, aí eu tiro o mastruz assim, né, de manhãzinha, cedinho, eu me alevanto, aí eu rezo e me alevanto e vou buscar.
Quando eu chego lá, aí eu pego.
P/1 – Aí, como que a senhora faz? A senhora pega o mastruz, coloca em algum lugar? Como que a senhora faz a senhora bate o mastruz?
R – Não, só faço pegar ele, lavo ele bem lavado, ponho num pano bem limpinho – porque uma coisa que é medicinal, né? – e deixo ele enxugar naquele pano, na sombra.
Aí, depois, eu pego, conhece o óleo mineral tradicional medicinal? Pego o óleo medicinal e tem aquela quantidade de grama, de folha, com a quantidade de óleo.
Eu ponho no banho Maria, numa vasilha, as folhas e o óleo no banho Maria, por três horas cozinhando direto.
É uma fervendo lá e outra fervendo cá pra não deixar perder a fervura.
P/1 – E onde a senhora compra o óleo mineral pra fazer?
R – Eu compro em Fortaleza.
P/1 – Em Fortaleza?
R – É.
Aí, eu preparo tudinho isso aí e eu passo.
No dia que é pra eu fazer isso aqui eu não saio de casa e nem deixo ninguém estar olhando.
P/1 – A senhora gosta de cuidar, então? Só a senhora fazer?
R – Eu não deixo ninguém mexer, não deixo ninguém olhar e nem estar me perguntando.
P/1 – Dona Valdenice, depois que a senhora passou a se conhecer como Anacé, de buscar também essa história, junto com a comunidade, com os filhos da senhora, de participar, né, da dança.
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R – Dos rituais.
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P/1 – Dos rituais.
O quê que mudou pra senhora, assim?
R – Pra mim foi bom, muito bom mesmo.
Fortaleceu muito pra nós, viu? Muito, muito mesmo.
Mais conhecimento, é.
P/1 – A senhora tava com um colar aí, que a senhora fez, né?
R – Foi.
P/1 – Com quem a senhora aprendeu a fazer esse colar?
R – Com quem?
P/1 – É.
R – Não, isso aqui foi de mim mesma.
P/1 – Ah, a senhora já sabia, então, fazer os colares?
R – Sim.
P/1 – A senhora fazia quando a senhora chegou aqui, então?
R – Não, lá em casa a gente fazia, eu achava era bom no tempo de menina, aí eu dizia assim “é bom, assim, um colar”, porque o sonho de criança é ver uma cor no pescoço, né, pra mostrar.
Aí, eu.
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P/1 – Uhum.
E que sementes são essas que a senhora utiliza?
R – Isso aqui é semente de.
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R/2 – Giriquiti.
R – Giriquiti linhaça.
P/1 – Bonito esse colar da senhora.
R – Agora, esse giriquiti a gente pega no mato e esse aqui também, que isso aqui eu ia pegar hoje, todos os dois na mata.
Mas, como não deu oportunidade pra gente ir, né, que hoje nós tamos nesse trabalho.
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Eu ia com a minha cunhada, pra gente buscar.
Mas, também, não ia dar certo, não é porque vocês vieram, era porque também a minha neta queria que eu ficasse com o filho dela.
Aí, eu disse “não, Maria, hoje não dá certo.
Mas, amanhã vai dar.
Tu convida aí teu neto pra ir mais nós?”.
Ela disse “tá bom”.
É isso, não tem problema, não, tá tudo ok, tá tudo bem.
P/1 – E, dona Valdenice, a senhora, depois de conhecer essa identidade dos Anacés, de se organizar, a senhora chegou a viajar, sair daqui, pra encontrar outros povos indígenas?
R – Ah, demais.
P/1 – Ah, é? A senhora lembra da primeira viagem que a senhora fez, que a senhora conheceu outros povos indígenas?
R – A primeira viagem que eu fiz foi em Brasília.
P/1 – Foi a primeira vez que a senhora saiu daqui?
R – Foi.
P/1 – E a senhora foi de avião?
R – Fui.
P/1 – Como foi essa experiência?
R – Foi muito boa.
Muito boa, muito boa, conheci os parentes, né, das outras etnias do Sul, são pessoas boas, eles não têm diferença; a diferença é só as lutas.
Assim, diferentes, assim, de lutas mas lutando pela mesma coisa, pela terra.
Mas as diferenças do que vem acontecendo, né? Se a luta deles, do Sul, é pela terra, a nossa é um pouco diferente que nós lutamos pela nossa terra mas é com o pessoal do porto, né? Assim, mas as lutas são as mesmas, as buscas são a terra e a busca por uma educação diferenciada, pela saúde, né, também, isso aí aonde nós vamos nós vamos buscando pro nosso povo.
Nós pede ajuda deles porque.
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P/1 – Hoje, atualmente, os filhos da senhora estão trabalhando em que?
R – O Júnior trabalha de técnico em Enfermagem com a equipe indígena, né? Com o nosso povo, Graças a Deus, que ele conseguiu pra trabalhar com o nosso povo mesmo, Anacé, na área toda dos Anacés e a minha família, a minha filha, a Maria, né, ela tá com dois anos que ela conseguiu outra pessoa e foi morar no Sul.
Ela tá em Minas.
P/1 – Ela tá trabalhando com que? Ela tá cuidando dos filhos?
R – Não, lá ela não tem filhos; os filhos dela são esses que estão comigo.
P/1 – Então, os filhos dela estão com a senhora.
R – É, três, né? Agora, tem a minha mais velha, a minha neta mais velha, filha dela, também através dessas grandes empresas, começou uma amizade com um rapaz, que é paulista, ele trabalhou aqui e foi pra São Paulo, mandou buscar e ela foi, tá num três anos que ela foi pra lá.
E já tem filho lá, paulista.
P/1 – Uhum.
Agora, quando a senhora for sair daqui, quando vocês forem pra reserva, vai o Júnior com a senhora?
R – Minha filha vem.
P/1 – A filha vem também?
R – Vem, vem.
Mês passado ela já teve comigo e as filhas dela vai comigo também.
Não fica, minha família vai ficar tudo juntinho comigo.
P/1 – Juntinho com a senhora.
R – Graças a Deus.
P/1 – Dona Valdenice, a gente já tá encerrando aqui a entrevista.
R – Uhum, ótimo.
P/1 – Foi longa, né (risos)?
R – Mas é assim mesmo.
Deu pra perceber alguma coisa.
P/1 – Agora, dona Valdenice, a senhora consegue imaginar como que vai ser esse lugar daqui a vinte anos?
R – Rapaz, vai ser um revirado muito grande.
Aqui a gente vai chegar não vai saber nem onde era que eu morava.
Em primeiro lugar, as derrubas das plantas, as derrubas das casas, a gente sabe porque a gente conhece, né, aqueles pontos onde a gente morava.
Mas, dizer assim “vou ver do mesmo jeito”, nunca mais.
Só lembrança, tristeza, só isso.
Muito, muito, muito.
P/1 – E qual o sonho da senhora hoje, dona Valdenice?
R – Não sei (emocionada, chorando).
Não sei, não sei como é que vai ser, não.
P/1 – A senhora quer tomar uma água, dona Valdenice?
R – Não, não quero, não.
É difícil, viu? Quando eu imagino ter chegado aqui, construído tudo, construído minha família e deixar tudo, é muito triste.
Pra ir pra um canto, pra gente começar do mesmo jeito, da onde quando eu comecei eu era nova e, hoje em dia, na idade, to bem pertinho de completar 60 anos.
Cheguei aqui com 19 anos, né? E pra mim ir pra outro lugar sem nunca ter saído, construí tudo, minha família, tudo e hoje em dia tá vendo nascendo os meus netos aqui (emocionada).
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Deixar o que eu tenho? Eu acho que eu não sei.
Deus sabe o quê que vai ser, não é só de mim, é do nosso povo mais antigo.
O mais novo não, os mais novo suporta mas os mais velho sente muito.
Mas, mesmo assim, eu choro e choro também a perca e choro também de alegria porque vai todos os parentes ficar junto, é isso aí.
Mas, se fosse pra não ir, os que a gente tem mais, assim, conhecimento de estar junto mas dói muito dentro da gente, é muito peso, né? É tanto que eu às vezes fico só, aí fico me perguntando “meu Deus, será que lá é bom? Meu Deus, será que vai ser a mesma coisa? Será que nós vamos demorar muito tempo? Será que essa união, esse vai ser a união, vai ser o fortalecimento desse povo, com essa saída aqui pra outro lugar? Será que eles não vai querer se misturar com outras pessoas?”.
É isso aí também, né, a gente tem que pensar, analisar tudo.
P/1 – Já tem um nome a reserva que vocês vão?
R – Tem, o nome lá é Anacetaba.
R/2 (ao fundo) – Taba dos Anacés.
P/1 – É Reserva Indígena Anacetaba?
R – Taba dos Anacés.
P/1 – Taba dos Anacés.
Quantas famílias estão previstas pra ir pra lá, a senhora sabe?
R – Cento e cinquenta três, Júnior?
R/2 – E oito.
R – Cento e cinquenta e oito famílias.
P/1 – A senhora sabe mais ou menos o tamanho desse território, dessa reserva?
R – Quinhentos e quarenta e três hectares.
Ei, sai daqui.
P/1 – E vai ser uma reserva indígena, vai ser uma terra indígena reconhecida, então, pela Funai, vai ser homologada?
R – É, acho que sim, né, Júnior? É.
É, que vai ser da União, né? Quando faz parte da União é porque é seguro, não tem vínculo com negócio de.
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P/1 – E vai ficar ali no Garrote, então? Na região do Garrote.
R – É, é.
Chamado Cipó, né?
R/2 – Alto do Garrote.
R – Alto do Garrote.
P/1 – Tá certo.
Bom, dona Valdenice, o quê que a senhora sentiu contando a história da senhora?
R – É muito difícil, é muito duro, viu (emocionada)? Não é com todo mundo que a gente conversa.
Pra quem conheceu do início sabe mas pra hoje é muito tempo, né? É muito tempo, a gente lembrar o que a gente passou até agora, né? E, também, mostrar aquela luta, coisas boas, coisas más que passou pelo meio de toda história e de toda vida, né? Porque passei muita coisa boa mas também passei muita coisa difícil dentro desse tempo, né, desse longo tempo, porque quase 40 anos, falta pouco tempo pra mim completar os 40 anos que moro aqui.
É muito tempo.
É muita coisa, né? Mas to contente que ainda to contando a história, né?
P/1 – É isso aí.
E nós agradecemos, aqui, o registro e essa disponibilidade de tempo de a senhora conversar com a gente.
R – Pois é.
P/1 – Obrigada.
R – Desculpa aí se não foi bem proveitoso mas eu conto o que passou, o que aconteceu e até o presente, né?
P/1 – Certo e é isso que a gente quer.
R – Pois é.
P/1 – Obrigada, dona Valdenice.
R – Nada, que isso.
Foi bom, muito bom.
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