Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Edjane Maria dos Santos
Entrevistada por Márcia Trezza e Anna Zidanes
Recife, 10/03/2018
Realização Museu da Pessoa
HTC_HV06_ Edjane Maria dos Santos
Transcrito por Liliane Custódio
Revisão/Edição Paulo Rodrigues Ferreira
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Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Edjane Maria dos Santos
Entrevistada por Márcia Trezza e Anna Zidanes
Recife, 10/03/2018
Realização Museu da Pessoa
HTC_HV06_ Edjane Maria dos Santos
Transcrito por Liliane Custódio
Revisão/Edição Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Edjane, nós vamos começar a entrevista. Por favor, diga o seu nome completo, o lugar em que você nasceu e a data.
R – Meu nome é Edjane Maria dos Santos, nasci em Vitória do Santo Antão, Pernambuco, em 1962.
P/1 – Em que dia e mês?
R – Mês de outubro, mês dez. Agora, o dia...
P/1 – Em que você nasceu.
R – Nove de outubro.
P/2 – Nove de outubro.
R – Nove de outubro.
P/1 –
Nove de outubro. Ela falou o dia, mês e ano?
P/2 – Falou. Ela falou primeiro o ano, depois ela falou o mês...
R – Nove de outubro de 1962.
P/1 – Está bom. Obrigada. Edjane, você vai falar sempre olhando para a gente, ok? Assim... que lembranças você tem, as primeiras lembranças da sua infância?
R – Assim... que eu lembre, minha mãe sempre trabalhou.
P/1 – Sim.
R – Minha mãe era formada também professora, mas depois fez outro curso, de enfermagem. E ela se aposentou mesmo na Saúde, certo? Meu pai viajava. Ele era... Além de professor, ele deu uma paradinha e, numa cidade maior, foi trabalhar num trem, viajava muito. Então a gente ficava mais com a minha mãe. Mas assim... foram cinco irmãos. Aliás, não eram cinco, perdão, eram seis. E nessa escola onde a gente estudava, um probleminha que a gente teve... A gente teve que se mudar de um dia para o outro, e esse lugar que a gente foi, nessa rua em que a gente foi morar, tinha que atravessar uma pista. E com, acho que uns três meses ou quatro que a gente estava morando lá nessa rua, eu perdi minha irmã mais velha na travessia, a gente vindo da escola. E, desde então, se tornou uma dificuldade, porque assim... Meu pai não bebia, passou a beber. Minha mãe achou melhor pedir transferência para um hospital em Recife para que saísse um pouquinho dali, porque ele não tinha esse vício da bebida... E a gente veio morar aqui em Recife. E quando saiu a transferência dela, foi voltando para Vitória, só que num outro hospital. Mas depois ele entrou no AA, aquela coisa toda, e foi deixando. E a minha mãe sempre trabalhou, ele também, e a gente ficava... Ela passava o dia fora, mas tinha sempre um irmão mais velho para nos ajudar na escola, porque a escola era junto do hospital em que minha mãe trabalhava, então, de vez em quando, ou a gente ia lá, ou ela, de vez em quando, vinha cá para saber como a gente estava. E o tempo foi passando.
P/1 – No primeiro lugar onde vocês moravam, você se lembra das brincadeiras, como era a convivência com os seus irmãos?
R – A gente sempre foi muito unido. Na verdade, a primeira separação da gente foi quando a gente já adulto, o meu irmão mais velho queria servir a área militar, só que a área militar, ele tinha que ir para fora. E minha mãe, como era muito apegada à gente, não quis. Falou muito com ele, ele acabou desistindo. Mas, anos depois, ela perdeu dois. Porque todos dois foram para a Marinha: o encostado mais velho e o mais novo. Primeiro foi um, no outro ano foi o outro - foram para a Marinha. Mas a gente sempre se deu bem, a gente sempre foi muito unido.
P/1 – E as brincadeiras, como eram?
R – Eu acho que assim... A minha mãe também é formada em professora, ela não exerce o cargo mas a gente sempre brincava de escola. Então, a minha avó, Marta, era professora. E era daquelas professoras antigas, onde muita gente da cidade conta para nós: “Ah, eu estudei com a sua avó. Tomara que você seja igual a ela”. Ela ensinou o prefeito da cidade, o pessoal... Então eu acho que o gosto começou daí. Depois veio a minha mãe também, aquela coisa toda, acho que é por isso que a gente tem... Mas a gente sempre brincava de escola. Eu gostava de brincar. Eu e minha mãe sempre gostávamos de brincar de escola. Muito bom.
P/1 – Você era a professora? Ou ela que era?
R – A gente trocava de vez em quando: uma hora ela era professora, outra hora ela era aluna. Mas a gente sempre gostou de brincar assim.
P/1 – E você lembra como você era como professora, na brincadeira? Que tipo de professora?
R – Ah, queria que todo mundo aprendesse rápido. Não tem que ser devagar. Eu lembro que ela falava assim: “Para escrever o nome”. “Eu não sei escrever o nome”. “Tem que saber escrever, tem que ser assim”. Ela falava: “Não pode ser. Minha mãe falou que não pode ser do dia para a noite, é devagar”. Mas eu tinha essa mania de querer que todo mundo aprendesse rápido. Até aí eu lembro. Até aí eu lembro.
P/1 – E eram mais você e sua irmã que brincavam de escolinha?
R – Éramos eu, minha irmã e meu irmão Edilson, que é o mais novo. Os outros sempre foram mais assim para o trabalho, essas coisas. E meu irmão Edson, o meu irmão do meio, ele que ficava... Quando meu irmão mais velho arrumou um emprego, então esse meu irmão do meio, o Edson, foi quem ficou tomando conta da casa. Meu pai viajava e ele que tomava conta da gente. Tanto é que a minha irmã mais nova o considera como se fosse um pai. Até hoje. Tudo dele é mais com ela, mas porque ele terminou de criá-la. Minha mãe só chegava de noite, meu pai viajava, chegava de quinze em quinze dias. Mas foi ele quem tomou conta da gente, entendeu? Porque o outro foi mais para o trabalho, o mais velho sempre trabalhou. E Edilson era assim, era que nem a gente, da idade da gente, então...
P/1 – Que idade ele tinha, mais ou menos? Você lembra?
R – Edson eu não lembro a idade, mas eu sei que eles eram bem... Como lá a família era todo mundo pequenininho, para não dizer o contrário, eu não lembro. Mas sei que ele estudava, e quando ele estudava nós ficávamos todos em casa, não podia sair. Porque se saísse, o bicho pegava.
P/1 – Teve alguma vez que vocês fugiram, escaparam?
R – Não. De fugir não, isso aí não. Mas assim... o serviço a gente deixava. Então, a gente já sabia a hora que ‘mainha’ ia chegar: cinco horas. Agora deixou, mas antigamente, na Matriz, tocava meio-dia, cinco e sete. Então, quando batiam as cinco horas a gente já sabia: todo mundo corria para lavar os pratos, fazer as coisas de casa e tomar banho, porque quando ela chegava: “Por que não tomou banho ainda?” – ela sempre falava. Aí: “Não, porque eu estava assistindo televisão, estava fazendo o dever de casa”. Sempre tinha uma desculpa. Mas era assim.
P/1 – E a escola, a primeira escola em que você foi, você lembra como era?
R – A primeira escola.
P/1 – Ou alguma coisa que te marcou, alguma pessoa?
R – Parece mentira, mas a primeira escola que eu lembro é o Dias Cardoso. Que antes não era o Dias Cardoso, era outro nome que tinha. E tem um sargento, parece que era sargento Lins, se não me engano, que tomava conta, que eu ouvia o pessoal falar muito - o sargento tomava conta. Mas não era o Dias Cardoso. E era assim uma escola que parecia mais um sítio. Eu lembro que a gente sentava, na hora do intervalo... Na hora do intervalo, a gente sentava debaixo do pé de tamarindo, ou de jambre. Era uma arenga para a gente estar embaixo, para a gente tirar. Diz minha tia, irmã do meu pai, que um daqueles pés de morango que tem lá... Não é de morango, de jambre, quem plantou foi ela. Eu nem sabia dessa história, mas ela diz: “Edjane, ainda tem?” “Tem não, tia, agora tiraram. Está tudo mudando porque agora a escola está mais chique, tiraram”. Ela: “Mas um daqueles lá fui eu quem plantou”. A minha tia ___00:09:34____, irmã do meu pai.
P/1 – E vocês ficavam lá embaixo sentados fazendo o quê?
R – Era. A maternidade onde minha mãe trabalhava era pegada com a escola, então tinha um ‘coisinho’ que o pessoal já botava quando queria fugir, para sair, a gente ia por ali. Às vezes eu não trazia o lanche, nem minha irmã, a gente ia - ou eu ia, ou ela - a gente subia lá onde estava minha mãe, ela comprava, a gente descia. Mas assim... Como era um sítio, então muita gente... Naquela época, eu lembro que se dava muito era biscoito e leite com chocolate. Quando a gente esquecia, era ‘de boa’. Quando não, quando a gente não queria, tinha um pé de jambo, tinha um pé de tamarindo, que todo mundo gostava. Ela é muito grande, essa escola. É muito bonita. Até hoje.
P/1 – Você fez até... Você lembra até que época você ficou? Até que ano lá?
R – Pronto. Sair de lá eu só saí quando a gente se mudou para outro bairro, que era um pouquinho distante, que foi uma casa que meu pai comprou, numa vila, Redenção. Meu pai comprou, a gente passou um bom tempo lá. Foi no tempo em que minha avó faleceu e meu avô chamou para esse casarão, que é no outro bairro também, quase no centro, e a gente foi todo mundo para lá. Que era um casarão mesmo, muitos quartos, aquelas casas antigas, a gente foi para lá. Mas assim... por conta de negócio de família, minha mãe disse: “Sabe de uma coisa? Eu quero ter minha casa. Eu gostaria de ir para a minha casa sozinha”. Meu pai disse: “Mas quando a gente chega de viagem é essa confusão aqui em casa, esses meninos, não sei o quê”. E eu tinha um tio que era muito bravo, que Deus o tenha, ele era daqueles que a gente apontava lá, comecinho da rua, a gente já estava procurando, porque a gente tinha mais medo dele do que de minha mãe, aquela coisa toda. Então, a gente foi para lá. A gente saiu... Meu pai saiu para procurar casa em uma folga dele e achou essa casa, onde eu estou dizendo a vocês que tinha que atravessar a pista. Foi quando a gente foi para lá. Que eu me lembro até aí, a gente foi para lá, e muito tempo depois minha mãe fez a matrícula de volta no Dias Cardoso, e a gente descia, passava na GRE Mata Centro, atravessava a pista. E um irresponsável... Eu era pequena, mas eu lembro, parece que eu tinha seis ou sete anos, mas ele saiu do posto de gasolina, bêbado, saiu e a pegou na baqueta. Aí rolou um pouquinho. Só que ela ainda chegou ao João Murilo viva. Ele abriu a porta e saiu correndo, fugiu, mas deixou lá dentro do carro tudo, tudo. Mas a pancada foi mais na cabeça. E eu lembro que minha mãe falava que ela tinha dez anos. Dez anos.
P/1 – Você estava junto?
R – Estava. Eu, ela e meu irmão. Eu fiquei apanhando o material, que ficou assim na pista. Uma mulher, do outro lado - a esposa de um barbeiro - conhecia a gente, outros foram avisar em casa. E eu não vi, mas diz que ele pediu... Ele estava embriagado, na hora, dizem que ele estava embriagado, ele pediu, à noite - ele era de Gravatá - para ir ver a família. Eu não sei quem ele era, ou naquela época se podia... Porque quando eu, saindo para a casa da minha tia, para fechar, porque ela tinha deixado a porta aberta por conta de quando ela soube da notícia, a gente foi lá. Quando a gente voltou, estava um comentário de que ele tinha ido lá olhar, falar com o pessoal. Nem sei se nessa época... Mas eu me lembro desse detalhe. Meu pai não bebia, trabalhava muito, minha mãe também. E meu pai, desde aí, por conta da minha irmã, acho que se lembrando de tudo aquilo, ele começou a beber, beber. Então minha mãe quis sair de Vitória, vir para Recife, para ver se ele melhorava, diminuir a bebida dele. Mas depois, quando saiu a transferência... Ela trabalhava, na época, na maternidade. Quando saiu, saiu para o João Murilo. A minha mãe era conhecida como Maria do Leite, porque se você chegar na cidade lá e perguntar quem é Maria do Leite, o pessoal vai falar muito dela, porque ela trabalhava com o doutor Ivo e ela entregava leite, era um saco de leite em pó, naquela época, para o pessoal do sítio. E eu lembro de que era uma fila enorme que se fazia lá. Então o pessoal a chamava de Maria do Leite. Ela trabalhou com ele vinte e cinco anos. Foi no tempo em que houve esse probleminha, ela foi para Recife. Quando a gente voltou, ela já não ficou na Pame, ela ficou no hospital João Murilo. E passou... Como ela tinha o curso de enfermagem, ficou trabalhando... Colocaram-na na farmácia. Daí ficou Maria da Farmácia. Mas era mais conhecida, antigamente, por Maria do Leite. Se você perguntar por Maria Farmácia, ninguém vai saber. Mas se você falar Maria do Leite, muita gente vai falar. E é isso.
P/1 – Muito bom. A gente quer perguntar muita coisa. A gente vai avançar um pouquinho. Lá em Recife, quando você chegou... Aqui, aliás, como foi para você essa mudança?
R – Ah, foi uma mudança radical, pode-se dizer. Escola nova, tudo novo. A dificuldade… Porque meu pai tinha que trabalhar e deixar a gente em casa, e minha mãe tinha que vir, praticamente todo dia, para Vitória. Foi muita dificuldade. Nessa época, eu ainda me lembro, ela falava muito que queria... Que, se pudesse, saísse logo esse negócio: “Tem hora que eu tenho vontade de ficar lá mesmo, porque gasta esse dinheiro de passagem, você precisa viajar, tem que deixar esses meninos, eu só chego de noite”. E foi uma mudança... Não foi muito boa, não. Não foi muito boa, não. O bom mesmo foi quando a gente voltou, que a gente se sentiu em casa.
P/2 – E vocês moravam perto da escola, aqui no Recife?
R – Morava perto da escola. Eu não estou lembrada do nome da escola agora, mas eu lembro que era no Coqueiral, aqui em Recife, que a gente morava. E todo mundo chegou a estudar aqui. Quando a gente voltou, meus irmãos - cada um - já estavam mais adolescentes. O Luisinho fez uma inscrição para uma área militar, mas tinha que ser fora. Aí a minha mãe fez a cabeça dele para que ele não fosse, que ela não queria perder nenhum deles, porque já tinha perdido a minha irmã mais velha. E naquela coisa toda, eu sei que Edilson se encantou pela Marinha, fez e foi embora. Edson, no outro ano, também fez, passou, foi embora. Terminou que ficamos só eu, minha irmã e meu irmão mais velho. Anos depois, depois que ele se casou, depois de, acho, uns quatro ou cinco anos, que ele se casou, ele trabalhou muito tempo lá numa fábrica, só que foi à falência. Aí o transferiram para a Paraíba, para outro pessoal lá. Como um rapaz tinha conhecimento em São Paulo, o encaminhou para São Paulo, onde ele está até hoje.
P/1 – E, Edjane, você pode dizer para a gente uma diferença forte entre a escola de Recife e a que você estudava lá na sua cidade? Tinha alguma diferença?
R – Eu acho que a escola de Recife, que a gente veio, acho que eram diferentes os professores, eu os achava... Pode ser até impressão minha, mas eu os achava muito agitados, por conta, acho, dos alunos - porque era muito menino. E a escola que eu estudava naquela época, no Coqueiral, não era uma escola assim com muita coisa para oferecer, como tinha na que eu tinha estudado antes. A diferença foi de tudo, negócio de última hora assim. Procurar escola, aquela coisa, passou a localizar. E minha mãe queria perto, então essa foi. Não estou lembrada do nome da escola, mas eu sei que foi em Coqueiral. Então, a gente foi para essa escola. E era muito menino - era diferente de lá - muito menino. As professoras pareciam agitadas, ainda me lembro disso aí, mas passou logo, espero.
P/1 – Voltaram logo.
R – Voltamos logo. A demora foi sair. Quando saiu a transferência dela, o conhecimento da simpatia dela, eles conseguiram apressar isso aí. Só que quando saiu, não saiu para Recife, saiu para o João Murilo, a gente voltou para Vitória novamente.
P/2 – Foi uma coincidência então.
R – Foi uma coincidência. Foi. Foi uma coincidência.
P/1 – Edjane, só para a gente se situar um pouquinho, você quando voltou, com a transferência da sua mãe, tudo, você tinha mais ou menos quantos anos? Você lembra?
R – Quando a gente voltou?
P/1 – Você já estava ficando adolescente?
R – Já. Assim... já tinha, acho, uns doze, treze anos, por aí.
P/1 – E vocês começaram com essa idade já a sair em grupos de amigos, ou ainda não?
R – Não. Não. A gente era assim, como eu estou dizendo a você, minha mãe era... A gente quando voltou, ela deu um jeito de conseguir uma casa em frente ao trabalho, próximo ao trabalho dela. E, por sinal, ficou de frente mesmo, entendeu? Então ali ela mantinha sempre... Vinha aqui na frente, olhava se a gente estava em casa. Meu pai viajava... É aquilo que eu disse a vocês: meu pai viajava, então meu irmão, o do meio, sempre ficava tomando conta. E era dali para a escola, não tinha... Eu acho que vim a sair mesmo, assim, de grupo de amigos, acho que eu tinha de quinze a dezesseis anos. Mesmo porque, não sei se foi por conta da criação da minha mãe, que assim... Meu irmão diz até hoje: “A senhora é muito desconfiada”. Mas assim... observando muito. E eu fiz isso com os meus dois também. Eu saía e os deixava dentro de casa, não podiam sair de jeito nenhum. Eu acho que o que a minha mãe passou para mim eu passei para eles. Meu pai falava que tinha que soltar, deixá-lo um pouquinho na rua, que era para ele aprender a se defender. Mas foi difícil. Mesmo sendo um.
P/1 – Você falava?
R – Muito difícil.
P/1 – Seu pai falava para você?
R – É. “Você tem que deixá-lo sair um pouquinho. Tem que deixá-lo andar, bater bola, correr, brigar se for preciso, com um colega, porque ele tem que saber se defender”. Eu fui deixando, fui deixando... Porque eu saía para trabalhar e eles ficavam praticamente sós. Eu saía de manhã, eles estavam dormindo; quando eu chegava à noite, eles estavam dormindo.
P/1 – Você trabalhava o dia todo?
R – O dia todo.
P/1 – Então a gente vai chegar lá. Você falou que com uns quinze anos, começou a sair. O que vocês faziam naquela época?
R – Na verdade, com quinze, dezesseis anos, por aí, eu comecei a querer as coisas. E minha mãe fazia, na medida do possível - e ele também. Então eu queria trabalhar. Com dezesseis anos eu tive meu primeiro emprego, que foi numa loja de tecidos. Aí eu achei mais interessante o trabalho. Aí faltava. Faltava para o trabalho.
P/2 – Faltava o quê?
R – Faltava à aula.
P/2 – Faltava à aula.
R – É porque às vezes, assim... Como eu era menor, então podia ficar na loja até meio-dia. Minha mãe disse: “Ela vai, só que à tarde ela tem que estar em casa”. Porque aí eu ia para a escola, largava às cinco horas, chegava em casa, ia fazer o dever de casa, ajudar minha mãe, certo?
Fazia as coisas de casa mesmo, porque minha mãe toda a vida trabalhou.
P/1 – Você faltava à escola e ficava trabalhando, ou não?
R – Eu faltava à escola assim, por conta do cansaço, mas quando ela chegava à casa, ela reclamava. Ela dizia: “Não, isso não dá certo, não. Isso não vai dar certo, não”. ‘Painho’ falava: “Deixa ver para ela ir aprendendo, para ela ver como é a vida”. Eu sei que nesse negocinho... Era conhecida nossa, eu lembro que era uma senhora evangélica, ela se dava muito bem com a gente, ela disse: “Não, vá para ficar lá na loja ajudando, aí você ganha seu trocadinho”. Mas...
P/1 – E como foi seu primeiro dia de trabalho?
R – Foi péssimo. Na verdade, era perguntar o que os clientes queriam e com medo que eles respondessem que queriam alguma coisa. É aquele negócio, bater à porta, espero que não venha ninguém. Então, quando chegava eu ficava olhando assim para as meninas mais antigas e ela: “Vai, Edjane, vai”. Eu ia, perguntava. Ela: “Você tem que ir, porque vocês ganham também por comissão”. Mas era muito... Eu sei que nesse emprego aí acho que fiquei uns seis meses, sete, por aí. Foi quando minha mãe disse: “Fique em casa, que é melhor, e vá estudar”.
P/1 – Aconteceu alguma coisa que até hoje você não esquece, nessa loja? Algum cliente? Alguma situação?
R – Não. O que aconteceu... Eu lembro uma vez que eu tirei um monte de chapéu para um senhor, coisa de chapéu, depois ele pediu bermuda, eu tirei, e ele não levou nada. A menina disse: “Olha, aqui quem tira arruma, viu?” Eu olhei assim: “Fazer o quê?” – falei.
P/2 – Aí você não se adaptou a esse trabalho.
R – Não.
P/2 – E imediatamente procurou outro?
R – Não. Não procurei outro. Que foi que eu resolvi fazer? Eu resolvi estudar numa agrotécnica, numa escola técnica, e a parte que eu queria era da avicultura. Comecei fazendo, fazendo, fazendo, mas como a escola era muito longe, tinha ônibus, eu descia no comércio e subia para ir para a escola. Mas tinha aula que era no pátio, onde a gente visitava as fazendas todinhas. Chegando lá, quem perdesse a carona tinha que ir a pé, e era muito longe. Mas eu queria porque queria. Então eu tentei, mas não tive sucesso. Eu cheguei em casa um dia, disse: “Mãe, eu não quero... Eu vou fazer agora no Amélia Coelho”. E esse Amélia Coelho, nessa escola, tinha que atravessar a pista.
P/1 – Ensino médio? Já era ensino médio?
R – Já era ensino médio, porque... Foi até tranquilo. O fundamental foi até tranquilo. Mas o ensino médio, eu tive que atravessar a pista, meu pai disse: “Aquela pista de novo, não”. “Mas eu vou prestar atenção”. Só que toda vez que eu passava nessa pista, além de lembrar, eu passava correndo. E tinha medo de atravessar nessa pista. Eu sei que eu estudei, depois não deu certo, aí voltei para casa, no Dias Cardoso. Fiquei por lá, fiquei, fiquei. O que foi que aconteceu? Conheci o meu esposo. Aliás, perdão, para chegar até ele, eu fui trabalhar. Porque você perguntou, agora me lembro, do outro emprego. Eu fui trabalhar numa padaria, no balcão. Só que assim... Como eu era uma pessoa que se dava bem com todo mundo, ela foi pegando confiança, me tirou de trás do balcão e me colocou no caixa. Ela era de fora, era daqui de Recife, mas só ia fim de semana. Eu comecei trabalhando lá, foi lá que eu conheci meu esposo. Foi lá que eu conheci. O que foi que veio? Eu casei e fui deixando o estudo de lado. Foi um dia, numa dificuldade em casa mesmo, no meu casamento, que eu disse assim: “Eu não tenho não, mas...”. E minha mãe sempre falava assim: “Vá estudar, porque amanhã você vai precisar para um emprego, não vai ter. Olha, está difícil”. Eu acho que todo mundo... Acho que, desde muito cedo, já escuta isso: “Tem que estudar para ter alguma coisa. Vai ter a dificuldade mais na frente”. E a minha vida não foi diferente. Eu lembro muito bem o que minha mãe falava (choro). Para eu procurar o melhor: “Hoje, a única coisa que eu posso dar a vocês é o estudo, e que ninguém vai tirar”. Meu pai falava também: “Vá com calma. Ela vai chegar lá. Ela vai ter interesse, não é, minha filha?” Meu pai era muito carinhoso. Ela era mais durona, mas era para o meu bem, eu sei que era. Eu sei que ela sempre falava assim: “Vá estudar. Mais tarde vocês vão se lembrar do que eu estou falando”. Então eu estava... Meus irmãos todos se arrumando. E sempre estudei em escola do estado, já a minha irmã teve uma regalia, ela ainda estudou em escola particular, se formou numa escola de freira. Mas eu, sempre... Teve um dia que eu fui procurar... Eu trabalhei nessa padaria por muitos anos. Quando eu dei por conta, veio meu primeiro filho, o Bruno; depois de dois anos veio o Rafael. E foi numa crise em casa mesmo que eu disse assim: “Eu não posso estar a toda hora pedindo à minha mãe, nem a meu pai”. Eu queria fazer alguma coisa e fui procurar. Só que assim... Eu escutei aquilo que a minha mãe falava: “Você tem ensino médio? Não? Então você precisa terminar o ensino médio. Se você quiser alguma coisa, você vem aqui, mas vá estudar”. Passou. Como minha mãe já tinha trabalhado vinte e cinco anos com esse doutor Ivo, e ele era dono do hospital, eu fui lá falar com a esposa dele. Minha mãe disse: “Vá lá falar com ela, que eu disse a ela que você queria falar com ela”. Fui lá. Quando eu cheguei, ela disse: “Olha, eu poderia até te arrumar, por conta da sua mãe, mas aqui todo mundo tem estudo. Vamos fazer assim: você vai, termina o segundo grau e volta aqui”. Cheguei lá, disse a ela - a minha mãe ficou até aperreada: “Mas eu trabalhei lá tanto tempo, não sei o quê, e ela não arrumou nada?” Meu pai: “Mas nessa hora é que você sabe quando as pessoas realmente gostam de você”. Que, na verdade, meu pai ainda disse assim... “Mas eles diziam que gostavam de mim”. Meu pai falou, ainda lembro: “Ela não gostava de você, ela gostava do seu trabalho, a prova disso está aí”. Eu sei que nesse negócio todo... Eu fui para essa mesma escola, Amélia Coelho, atrás lá de uma vaga. Só que já estava completo o ensino médio, não achei vaga. Entrei no Dias Cardoso, onde eu já estudei garota. Entrei lá no Dias Cardoso e dona Ana disse: “Olha, Edjane, vai chegar um projeto aqui para a escola, está para chegar aqui - Travessia. Você já ouviu falar?” Falei: “Não”. Ela falou: “Olha, é onde estuda... Você refazer os três em um ano e meio. Mas isso aí, a secretária passa direitinho para você como é. Agora, eu não sei quando vai chegar, você tem que, de vez em quando, passar”. E nesse período, enquanto não começava, eu sempre procurando alguma coisa, mas a resposta era a mesma: “Não tem o ensino médio, não tem como”. Agora, até eu chegar aqui, nesse período procurando trabalho, eu já pensei em me acomodar de novo. Foi quando eu fui com uma colega, ela disse: “Olha, Edjane, na Faintvisa está precisando de gente para trabalhar, a gente tem que deixar o currículo lá”. Eu fui. Cheguei lá, o homem disse: “Mas tem muita gente que vem aqui, trabalha pouco, não sei o quê, gosta de se acomodar”. Eu disse: “Como é seu nome?” Ele disse: “Aldo”. Eu disse: “”Seu” Aldo, a gente só vai saber se a gente dá para o trabalho se o senhor der oportunidade”. Ele disse: “Mas, veja, ela já tem o ensino completo, você nem tem”. Ele disse: “Mas eu posso tentar. Mas. se você estiver estudando, vai atrapalhar o trabalho aqui”. “Mas e aí...”. “Não, mas deixa o currículo”. O currículo faltava alguma coisa, aí ele mandou reformar o currículo. Eu lembro que a gente marcou, ela... Faltou alguma coisa também, a gente marcou de ir juntas. Deu duas horas da tarde ela não chegou, eu ligava para ela, mandei a vizinha ligar, que nem telefone nessa época eu tinha, mas ela ligava para a casa dela e ninguém atendia. Eu disse: “Sabe de uma coisa? Quem precisa, que vá”. Aí eu fui. Quando eu cheguei no meio do caminho, ela já vinha de lá, já tinha ido entregar. Já tinha entregado. Eu perguntei, ela falou: “Menina, eu estive na tua casa, tu não estava”. Eu disse: “Menina, eu fui ao rapaz fazer o currículo”. Ela disse: “Mas a gente marcou para três horas. Eu estava até agora esperando o teu sinal”. Ela disse: “Pois deixei. Entregar o ___00:28:08___ assim mesmo”. Eu disse: “Vamos comigo”. Ela falou: “Não”. “Então eu vou só”. Aí eu fui. Cheguei lá, deixei o currículo, aí passou. Ele disse: “Se alguém se interessar, eles vão chamar você”. Eu disse: “Está bom”. Eu vim embora para casa. Eu sei que em quinze dias eu fui chamada. Uns quinze dias fui chamada para a seleção. Ela foi chamada também. Quando separaram - tem toda a seleção - ela não ficou. Eu fiquei para fazer já a segunda, ela não ficou. Eu fiquei. Ele disse: “A mulher que faz a entrevista com vocês, ela é de Recife. O seu currículo está separado, isso não quer dizer que você vai ficar, não, mas dos currículos que a gente viu aqui, você tem muita coisa”. “Ah, porque eu fiz muita coisa, “seu” Aldo. Nunca tive nada certo, mas já fiz muita coisa”. Ele disse: “E eu olhei para você, achei você muito interessada, certo? Para a vista dela, não sei o quê”. Eu disse: “Está bom”. Eu deixei, ele disse: “Então você fica aguardando”. Toda noite: “Apareça aqui”. Eu sei que eu ia toda tarde ver, porque de manhã tinha sempre algumas coisas para fazer. Toda tarde eu ia, e ia à escola. Toda tarde eu ia lá e ia lá à escola. As meninas já estavam cansadas de me ver. Eu sei que foi um dia de noite, eu fiquei besta, eu lembro como se fosse hoje, nove horas da noite, para fazer essa entrevista. Quando eu saí de casa, que eu liguei para o meu esposo, ele disse... Eu disse: “Sou eu. Vou ter que passar embaixo do viaduto, nove horas da noite. Está fazendo o quê?” Ele disse: “Jogando dominó. Ah, não vou sair daqui, não, senão eu vou perder a partida”. “Está bom. Deus vai comigo”. Eu peguei, troquei de roupa e fui. Quando eu cheguei embaixo do viaduto, nove horas da noite, embaixo do viaduto, o Cajá, quem conhece que o diga, é meio esquisito, tome chuva. Tome chuva, tome chuva. Falei: “Meu Deus, chegar lá, a mulher não está mais”. Porque ela vinha uma vez ou outra, e só vinha de noite. Quando deu uma estiadinha mais... Ainda cheguei toda molhada lá, procurei, a menina disse... Tem uma menina que sempre quando eu ia lá, perguntava a ela: “Tem alguma novidade?” Ela dizia: “Não, mas ela vai aparecer”. “Tem alguma novidade?” “Não, mas vai aparecer”. Eu me lembro dela. Então, ela sempre me dava essa força. Quando eu cheguei, toda molhada: “Veja como eu estou”. “Não tem nada, não. Ela vai conversar com você”. Está bom. Eu fiquei lá, ela disse: “Tomara que você fique. Gostei muito de você”. “Muito obrigada”. Passou. Eu fui à seleção, falou: “Se você for selecionada, então a gente daqui uns quinze dias, um mês, a gente liga. Se não for, o seu currículo fica aí quem sabe para a próxima”. “Está bom”. Mas não deu dez dias chamaram-me, eu fui trabalhar em serviços gerais. E era serviço, viu? Eu saía de casa de... Até completar os três meses a gente tem que mostrar serviço, porque três meses depois é que a gente tinha que... Eu sei que saía de casa... Eu acordava às quatro e meia, deixava o café deles pronto, deixava tudo pronto, e cinco e dez, cinco e quinze eu saía, porque lá pegava às seis horas. Porque como tinha aula de manhã, que era Aplicação, e à tarde e à noite era a faculdade, então tinha que deixar tudo pronto para quando o pessoal chegasse, tanto a coordenação, como a sala de aula. Eu chegava lá, largava ao meio-dia, voltava às duas, largava às cinco. E fui fazendo isso. Só que, nesse período, eu fui lá para a dona Ana de novo, ela disse: “Olha, parece que é para a semana”. Um dia eu disse: “Dona Ana, eu vou deixar o telefone do meu irmão, que eu não tenho telefone, mas vou deixar o telefone do meu irmão, qualquer coisa a senhora liga para lá”. Passou. Ela não ligou para o meu irmão porque ela disse, não sei, disse um telefone que tinha antigo lá da casa dos meus pais. Ela ligou, meu pai...
PAUSA
P/1 – Eu vou chegar a esse projeto que você vai falar. Só para entender: você, quando casou, estava estudando e trabalhando na padaria?
R – Estava estudando e trabalhando. Eu saía da padaria às sete horas da noite. E, quando eu saía, a escola ficava bem pertinho do trabalho, que era o Três de Agosto, que é muito antiga também a Escola Três de Agosto. E uma vez eu ia, outra não, por conta do cansaço. Porque eu passava o dia inteiro, tinha que chegar à padaria cedo, quem abria era eu. Foi quando eu casei. Quando eu casei. E depois, acho que de uns seis meses, sete, eu engravidei. Mas até aí ela disse: “Vai atrapalhar”. Eu falei: “Não vai, não”. Ela disse: “Mas, Edjane, por que você fez isso agora?” “Aconteceu”. Dona Leila disse assim: “Mas que esse menino seja bem-vindo. Então vamos fazer assim: você fica até aguentar”. Eu disse: “Dona Leila, mas e depois que eu descansar, eu posso voltar?” Ela disse: “Quando você quiser”. Tanto é que quando eu me afastei, a gente conversou com ele, ela foi madrinha do meu... Ela tinha sido madrinha do meu casamento. Ela disse assim: “Não, você pode voltar quando quiser. Ela vai voltar, não é, “seu” Antônio?” Ele: “Vai”. Só que aí veio a dificuldade. Minha mãe tinha acabado de se aposentar e eu só confiava deixar... Eu pensava assim... Das coisas que eu via, dizia: “Não, meu menino, se for ficar, vai ficar com a minha mãe, não vai ficar com mais ninguém”. Eu sei que aconteceu o seguinte: eu chegava... Virava e mexia eu chegava cansada à escola. A professora: “Edjane, Edjane”. Eu falei: “Professora, acho que eu vou parar”. “Mas, Edjane...”. “Eu acho que vou parar, não tem como”. Eu sei que deixei para lá os estudos...
PAUSA
P/1 – Edjane, vou pedir para você retomar um pouquinho. Porque você estava falando do seu trabalho na padaria, você estava estudando, apesar do cansaço, mas você ainda estava indo, aí quando você ficou grávida...
R – Foi. Quando eu fiquei grávida, já ficou mais difícil eu ir para a escola porque tinha que vir para o comércio. E deixei a escola. Aí, continuei no trabalho, mas chegou o tempo de ganhar neném, eu fui embora. Ela disse que eu poderia voltar depois. Só que depois ele não permitiu nem que eu trabalhasse, nem que estudasse, que meu lugar era em casa mesmo, aquela coisa, tinha que tomar conta de alguém, não tinha que ocupar os pais, nem os avós, nem ninguém. “Então o filho é seu, quem tem que cuidar é a gente”. Só que eu cuidava, porque ele viajava muito, e quem ficava com o Bruno era eu. Passou.
P/1 – E sua sensação, seu sentimento nessa hora?
R – Assim... Eu tinha inveja das colegas que tinham estudo porque quando fazia alguma coisa, quando tinha inscrição para alguma coisa, fazia assim: “Ah, mas tem que ter estudo. Tem que ter estudo”. Eu sei que nesse Três de Agosto, resumindo, foi terminado, mas eu saí de lá, não cheguei a concluir. E eu comecei a batalha para conseguir uma coisa melhor. Só que eu procurava... Aí eu fui ao Dias Cardoso e dona Ana falou que tinha esse curso, eu fiquei esperando. Tive sorte de ser chamada lá na faculdade, fui uma das selecionadas, fiquei assim: saía de manhã, deixava os meninos dormindo, chegava de noite, eles estavam dormindo. O sábado era a mesma coisa, o sábado era até três horas da tarde. Só tinha o resto da tarde do sábado e o domingo em casa. Segunda-feira começava tudo de novo. Isso sem falar nas vezes em que era preciso hora extra - aí ia até onze horas da noite. Então assim... Acho que os meninos passaram... Para os meus filhos serem o que eles são hoje, eu acho... Ficaram muito tempo sozinhos, eu dou graças a Deus. Aí fomos. Eu sei que quando eu estava lá, a menina que foi muito simpática comigo, que é irmã da dona, Cida, me deu muita força, que era irmã da dona da Faintvisa. Ela disse: “É bom que você estude, porque você trabalhando aqui, você vai ficar o tempo todo nisso aí?”
P/1 – Nisso?
R – Porque o serviço era muito pesado. E como ela tinha simpatia por mim, então ela dizia assim: “Eu queria muito que você terminasse seus estudos”. Eu disse assim: “Mas eu procurei, Cida. Tem no Três de Agosto, mas o Três de Agosto não é bom, é muito longe, eu chego cansada também”. Esse Dias Cardoso era perto de casa e foi onde eu estudei quando criança. Passou. Quando foi um dia, ela ligou para a casa da minha mãe, disse: “Olha, ligou uma menina para cá dizendo que o curso que você estava esperando vai começar”. Aí um dia à tarde, que eu larguei, vindo, fiz o mesmo caminho vindo do trabalho, fui lá. Ela disse: “Começa tal dia”. Aí era o Travessia. Travessia. Eu cheguei, disse assim... Levei para ela, ela ficou até contente que eu tinha voltado a estudar. A faixa etária era...
P/1 – Ela quem?
R – A Cida, que era irmã da dona e que me deu muita força. Mas quem me deu força mesmo foram meus filhos, minha mãe, meu pai, porque todo mundo... Ela dizia assim: “Todo mundo tem estudo e já não tem interesse. Começa e depois acaba desistindo”. Eu disse: “Mas agora eu não vou, não, porque aquilo que a senhora falou de bater à porta e procurar, quer dizer, tem estudo, não tem, aconteceu”. E a gente acha que só pode acontecer com os outros, não é? “Mas é bom que tenha o ensino médio completo. Mas é bom que tenha o ensino médio completo. Tu tem?” “Não”. “Então não vai conseguir nada, não.” Então foi passado para mim assim, que se eu não tivesse pelo menos o ensino médio eu não estaria no... Como eu digo? Não estaria no caminho certo. Tinha que ter estudo. Eu sei que fui fazer o Travessia. Eu saía muito cedo de casa, chegava às seis horas, tomava banho e ia. Chegava à casa cansada, muito cansada, porque quem trabalhou lá e viu meu trabalho, viu que eu fiz... Até em sala de aula a professora Josenita, ela falava... Todo mundo chegava: “Eu estou cansada”. A professora: “Duvido que esteja que nem a Edjane”. Porque às vezes, quando chegava lá, eu estava encostada assim, ela fazia: “Hoje foi pesado, Edjane”. “Hoje foi, professora. Uma sala que eu peguei para limpar hoje, professora, não sei o quê”. Eu falava a ela e ela fazia assim: “Mas estude. Estude para você sair dessa”. Então, ela dava muita força. E tinha vezes que eu chegava, ela ficava assim: “Não é, Edjane?” – e eu me despertava. Então assim... eu sei que terminei, fiz o Travessia. Fiz o Travessia e queria um lugar para fazer a formatura.
P/1 – Então agora a gente vai voltar para o começo do Travessia. Quando você chegou lá ao grupo, à turma na qual você ia estudar, você percebeu a diferença entre aqueles alunos e os da escola de que você tinha saído?
R – Sim. Porque a maioria, segundo eu percebi, era gente assim já... Como eu vou dizer? De idade já. E tinha alguns jovens no meio. Mas os jovens, o interesse deles era para que terminasse logo. Já os outros, como eu, foi porque não tiveram oportunidade. Uns realmente não tiveram oportunidade, que deixou porque o pai não deixou estudar, que foi o meu caso com o meu marido: “Estudar para quê?”. Ele botou aquilo na cabeça. Eu já estava cansada e ele ainda falou isso. Então: “Estudar? Não, não precisa, não. Já está casada, não vai precisar trabalhar fora, nem nada, não, então fica aqui mesmo”. Então eu sei que a faixa etária era essa, os jovens que tinha - pelo menos na minha turma era assim - eles queriam para terminar: “Ah, Edjane, quando eu pegar o certificado, eu vou botar na gaveta, acabou”. Não, eu queria crescer. E eu botei aquilo na cabeça.
P/1 – E na outra escola, a antiga, como era a turma, os alunos? Como eles eram? A última escola em que você tinha estudado?
R – Era tudo jovem. E eles viviam mais na frente da escola do que dentro da escola. Então quando chegava, tinha um que já se encontrava por ali, até desmotivava. Mas o pouquinho que eu ia, quando eu entrava, a gente falava, a professora: “Gente, vocês vão sentir mais tarde”. E eu senti. E eu senti. Eu sei que só deixei a escola quando casei.
P/1 – Lá no Travessia, conta o primeiro dia de aula.
R – Ah, foi muito bom. Porque esse professor, um dos professores responsáveis - porque eram dois professores - ele começou, foi quem deu uma forcinha também, o professor Argeu, ele era muito conhecido na cidade, foi quem separou a súmula do Travessia, foi o responsável, na época, pelo Travessia. Eu fiquei contente. Ele: “Ah, Edjane, que bom”. Porque eu já tinha sido aluna dele na Escola Dias Cardoso, quando garota, e ele estava lá. “Então vai ser muito bom esse projeto.” Começou falando do projeto e eu me interessei.
P/2 – Em que ano? Desculpa.
R – Eita, agora você me pegou, mas eu acho que foi 2000 e... Ou foi sete, ou foi oito, um negócio assim.
P/1 – Seus filhos já tinham crescido um pouquinho?
R – Ainda pequenos, ainda pequenos. Eu os deixava em casa, aquilo que eu disse a vocês, eu deixava. Aí, quando o pai chegava, meio-dia, dava comida para eles, ia buscá-los na escola de manhã, dava comida a eles e ficava um tempinho ali. Eles iam fazer as atividades, ficavam em casa todos os dois, um tomando... Eu sei que uma pessoa me ajudou até o Bruno fazer dez anos. Depois eu vi que Bruno era daqueles... Porque ele, até hoje, é daqueles que, se ele vir aquele papelzinho ali ele já vai, limpa, vai, ele só não faz cozinha, o Bruno, mas ele limpa a casa, ele lava a roupa, faz as coisas dele todas. E Rafael era menor, então ele tomava conta de Rafael. Eu disse: “Então eu não quero mais ninguém dentro de casa. Acabou!” Os pais indo trabalhar. E eu sei que assim... A turma, ela perguntou, a turma era do _____00:42:37___. Então, esse professor Argeu era professor lá, só que ele não ia ficar, estava só no começo. Aí foi quando entrou a professora Josenita. A professora Josenita era responsável pela turma; era só uma professora. Quando começaram as primeiras turmas, era só uma professora - era a Josenita. E ela deu muita força também, eu sei que foi muito sacrifício para terminar.
P/1 – É que a gente... Ela perguntou que ano era e eu perguntei dos seus filhos, para ver se ajudava você a lembrar a data. Você lembra? Consegue lembrar o ano em que você entrou no Travessia?
R – Acho que foi ou 2007 ou 2008, um negócio assim. Eu fui da primeira turma.
P/2 – Deve ter sido sete. Se foi da primeira turma, foi sete.
R – É. Foi sete.
P/1 – Como foi o primeiro dia de aula? Que você ia contar.
R – Foi muito bom. Muito bom.
P/1 – Mas fala assim, descreve.
P/2 – Detalhes. Detalhes.
R – Primeiro, para começar, eu, quando entrei, estava com vergonha. Por quê? Eu digo: “Meu Deus, sala de aula agora, esse tempo todinho no meio desse pessoal”. Porque eu pensava que ia encontrar jovem, mas eu encontrei muita gente da minha idade, e a gente acabou se enturmando, foi muito bom. Foi quando a professora começou falando, falando, ela disse: “E no Travessia, a gente acaba descobrindo quem tem dom para quê”. E a gente lá, eu inventava desfile de moda, fazia muita coisa. E foi uma turma que teve colegas que se tornaram professores, porque tem outros colegas que são professoras do Travessia, outros que seguiram outra carreira, militar, tem gente trabalhando na Federal. E a maioria da turma era gente da minha idade.
P/1 – O primeiro dia de aula. Ela falou isso e o quê mais? O que aconteceu? Descreve um pouco como foi.
R – Falou do projeto, como funcionava. Foi quando eu disse a ela: “Professora, parece... Por incrível que pareça, eu procurei tanto estudar, eu queria estudar, mas aí apareceu o trabalho, eu comecei a deixar o estudo de lado”. E contei por que foi mesmo, porque ela perguntou por que eu tinha deixado, eu contei para ela: “Ele proibiu”. Só que agora, depois desses anos todos, Bruno já está bem sabidinho, Rafael também, eu acho que eles já estão ficando em casa para ir trabalhar, então eles vão ficar de noite em casa também para eu estudar. E ela disse: “Eles são contra?” “Nada, pelo contrário”. Tem dia em que eu chego, aí Rafael: “Mãe, a senhora não vai hoje, não? Ah, hoje a senhora vai sim, porque todo dia a senhora vai estar cansada, mãe, porque seu serviço não é fácil”. Então todo mundo falava, porque não era fácil mesmo, não. A Faintvisa era bem grande, era uma faculdade e era o dia todo. E assim... O primeiro dia de aula foi muito bom, tinha gente no curso que tinha tempo que eu não via, certo? E via o interesse das pessoas. Eu falava assim: “Se ele está aqui e quer, por que eu não?” E comecei nisso aí. Foi aí que eu disse... Desde o dia em que eu entrei no Travessia, eu disse: “O Travessia...”. Eu disse à professora Josenita. Ela disse: “Quando eu olho para você, eu me lembro de toda a sua história”. “O Travessia vai mudar a minha vida, porque eu não vou deixar mais a escola, e vou querer muito mais”. Ela: “Quero ver, viu?” E mudou. Mudou.
P/1 – Você falou no primeiro dia isso?
R – No primeiro dia. A gente conversou muito, porque era mais para conhecer de onde vem, qual foi a escola. E eu disse a ela que estava sentindo que o Travessia ia mudar a minha vida ali. Ela disse que, da turma, do pessoal todo, ela disse que se lembra de mim e de um rapaz, não lembro o nome dele, que ele tinha um sonho de entrar para a Polícia Federal e ela disse que ele queria estudar para isso. E quando conseguiu, ele disse que não era o que ele queria. Ele hoje está na polícia, mas está na Rocam, não na Polícia Rodoviária, lembro bem, Rodoviária. Ela disse que perdeu o contato, não sabe se todo mundo se fez. Mas o primeiro dia de aula foi isso, foi conhecer de onde você veio, por que você está aqui, o que você espera do Travessia. Então eu lembro... E foi melhorando, foi melhorando, e de lá para cá eu não... Foi quando passou isso tudo, teve colega nosso que começou a ficar em casa, e que a gente combinou que quem trouxesse aquele colega de volta, que tivesse dificuldade, ela ajudava. Porque já entrou. E no Travessia é como o outro: ele reprova. Ele reprova. Então, quem conseguisse trazer o colega de volta, ela ia ajudar: “Eu vou dar uma forcinha. Quando precisar, conte comigo, não sei o quê”. E a gente começou a procurar os alunos, os colegas, procurar saber por que eles estavam faltando. E tinha gente que era problema de família, gente por causa de doença, era gente que tinha dificuldade de chegar a tempo à escola. E o Travessia foi isso. Foi o que eu aprendi lá.
P/1 – Você disse que, de algum jeito, essa maneira de eles trabalharem, essa metodologia, você começou a fazer muitas coisas. Eles disseram que o projeto ajudava a descobrir o dom das pessoas.
R – Os dons.
P/1 – Conta um pouco o que você fazia lá que lhe marcou, que você lembra até hoje, coisas que você fez lá.
R – O que eu gostava muito, sempre que a professora apresentava, eu gostava muito de fazer teatro. Na época, não era percurso livre, tinha outro nomezinho, não estou lembrada, não. Mas toda vez que ela falava: “Tem isso”. “Professora, pode ser em forma de teatro?” “Pode. Você tem só que mostrar o trabalho”. Então eu me destacava muito nisso aí. Eu gostava muito. Acho que não é à toa que Rafael está lá.
P/1 – Porque cada um podia escolher o que queria fazer?
R – Era.
P/1 – Nesse momento.
R – Tinha que ser em grupo. Não podia ficar ninguém de fora, ninguém podia fazer nada só. Josenita não deixava. Tinha aquele pessoal que ficava tímido, a gente tentava engajar. Mesmo que o tímido não participasse, mas ele tinha que estar no grupo, então, todo mundo que estava ali participava.
P/1 – E cada grupo escolhia?
R – Escolhia o que queria fazer. Ela disse: “O que você sabe fazer?” “Isso”. “Então é isso que você vai fazer”. “O que você sabe fazer?” “É isso”. “Então é isso que você vai fazer”. “Então, Edjane, o que você vai fazer?” “Ah, eu gostaria de fazer como se fosse um teatro” “Então é isso que você vai fazer”. E eu ainda lembro que eu era muito tímida, sempre fui. Meu defeito sempre foi esse. Eu fazia muita amizade, mas ao mesmo tempo eu era tímida. Então eu ficava muito calada. Às vezes, eu: “Professora, eu não posso fazer o trabalho sozinha?” “Não. Tem que fazer com todo mundo”. Aí eu tentei fazer. Depois, com o tempo, aí tinha aqueles colegas que chegavam mais cansados, que a gente ajudava, passava a atividade para eles. Às vezes, tinha um trabalho que o colega não podia vir mas a gente colocava o nome dele, dizia que ele participou. A gente sempre estava dando uma ajuda. Quer dizer, muita coisa que eu não conhecia, que eu não conhecia no regular, eu conheci no Travessia.
P/3 – Como assim?
R –
Eu sei que todo professor se preocupa com o aluno, mas chegar a ponto de buscar o aluno em casa, buscá-lo em casa, de se preocupar porque ele não quer falar do que está passando... Porque, às vezes, você está sozinho, você diz: “Não, a minha vida não interessa, por que eu vou à Ana?” Não, mas quer desabafar. Então ele chegava, conversava com a gente, aí a gente ia até lá. Eu via essa preocupação, entendeu? É muito diferente, de se preocupar mesmo. Eu acho que, até hoje, não tem nenhuma escola. É assim: “Ah, o aluno não veio”. Não veio? Foi reprovado. Acabou. Mas lá não. O Travessia ainda tem uma dificuldade? Tem. Mas vai buscar lá. Vai buscar lá, saber o que foi, tudo. Então, Josenita, como era... E a escola, eu lembro, era anexo do Dias Cardoso, onde eu já estudei, só que era por trás da minha rua, que era num cursinho. Porque essa Josenita tinha um cursinho que era só para a área de quem ia fazer concurso federal, que o marido dela era da Federal. Então, era uma área que ela tinha na garagem, que podia antigamente... Era uma escola, mas era uma garagem que ela tinha, que ela fazia um cursinho lá do pessoal dela.
P/1 – Quem foi sua professora também? Além dessa, teve outra?
R – Não. Do Travessia, na época, era só a Josenita. Porque, na época, quando começou o Travessia, era um professor. Pelo menos em Vitória era um professor.
P/1 – Mesmo no ensino médio?
R – Ensino médio. No ensino médio. Mas das outras teve várias. Mas assim... do Travessia, quando eu entrei no projeto, era só um professor. Em Vitória era só um. Depois é que passaram a ser dois -
Humanas e Exatas.
P/1 – E sendo numa garagem?
R – Era uma garagem que ela reformou toda, ajeitou toda para que os meninos dela... Porque ela dava cursinho para... A escola só era à noite, mas durante o dia era um cursinho para concurso federal, aí a gente ocupava esse espaço lá à noite.
P/1 – Você queria perguntar?
P/2 – Eu ia voltar um pouquinho só para quando você dizia assim: “Ah, eu escolhi teatro. Eu queria fazer teatro”. Que momento era esse? Era o momento em que a professora pedia para vocês apresentarem algo?
R – Eu apresentava. Era. Pois é, eu estava dizendo a ela: eu tenho meu filho, Rafael, ele fez Assistente Social na Federal, terminou. Ele, um dia, chegou para mim, para o pai dele - até contei para ela - ele chegou para mim e para o pai dele, disse: “Olha, eu fiz o que vocês queriam”. Eu falei: “Não, o que a gente queria não, o que você queria, porque você se identificou com isso aí”. Mas ele disse: “Agora eu vou fazer o que eu mais quero: teatro”. Ele disse: “Vou tentar, mãe. Vou fazer outro Enem. Se eu fizer, passar, eu vou fazer isso”. Eu sei que ele fez o Enem, conseguiu, aí foi tentar de novo na Federal. Passou, está na Federal. Está no quarto período de teatro.
P/1 – Agora, no Travessia, você disse que apresentava trabalho assim com teatro, mas tinha outro momento do curso que era percurso livre.
R – Que é percurso livre, justamente. Que é isso que eu estou dizendo a você, que na época, eu lembro que não era percurso livre, tinha outro nomezinho. Que assim... Cada módulo então... Agora é Geografia e História, mas no final de cada módulo, pronto, no final de História e de Geografia tinha um projeto.
P/2 – Uma culminância.
R – Uma culminância. Um projeto que, digamos, que foi: O Auto da Compadecida. Aí tinha, que você vai ver, tinha as peças todas que a gente tinha que apresentar e falar sobre o filme. O Auto da Compadecida, tinha...
P/1 – Mas, de qualquer forma, cada grupo escolhia o jeito de fazer?
R – Sim. Tinha uns que não tinham jeito para teatro, mas aí ele tinha jeito para fazer um jogral, outro queria falar sobre a história, como foi, entendeu? Ficava entre duas pessoas. Todo mundo tinha um jeitinho, mas todo mundo tinha que passar. Porque o percurso livre também é uma nota, entendeu? Então, tinha que participar.
P/2 – Era o percurso.
R – Era o percurso livre.
P/1 – E você... Conte como foi assim para conclusão. O que você aprendeu?
R – Ah, aprendi muita coisa. Aprendo até hoje. Porque, no momento em que eu entro na sala, eu não estou só ensinando a ele, eu estou aprendendo também.
P/1 – Mas ainda enquanto aluna.
R – Enquanto aluna?
P/1 – O que você acha que mais aprendeu nesse momento de aluno do Travessia, no caso, aluna?
R – Eu acho que valores. A dar valor maior às coisas.
P/1 – Explique. Conte um momento em que isso aconteceu.
R – Como eu vou dizer? O estudo. Minha mãe, como professora, ela sempre se preocupou com a gente, mas tem aqueles filhos que dão mais dificuldade. Então assim... Eu queria fazer o técnico, como eu disse a vocês, queria fazer o técnico, mas eu fui e não me identifiquei. Fui fazer o Magistério, também não fiquei. Então fiquei perdida. Então, acho que dar valor... Era uma palavrinha que fugiu agora da memória.
P/1 – Mas, no Travessia que eu gostaria de saber.
R – Sim. Mas é isso que eu estou dizendo. Então, nesses aí, eu não me identifiquei. Quando eu vim para o Travessia, aprendi a dar valor às coisas, que eu até então não dava ao estudo. Então, foi do Travessia que eu puxei onde eu estou hoje. Foi do Travessia, pelas coisas que eu aprendi no Travessia, pelas histórias que eu vivi. O valor que eu dou é esse. Ao estudo, por conta disso; ao Travessia, por conta disso. Porque respeitar um ao outro, se preocupar um com o outro, tudo isso no Travessia tem. Tudo isso no Travessia tem. Então eu acho que foi por aí que eu me encantei pelo Travessia. Foi quando eu disse a ela que não ia mais deixar de... Não ia deixar mais o Travessia por conta disso. Chegou a época da conclusão e ele: “Edjane, como você trabalha lá na Faintvisa, não tem como você falar para ser a formatura lá, não?”
PAUSA
P/1 – Edjane, você estava dizendo o que você aprendeu com o Travessia. O valor pelos... Assim, a valorizar o estudo, você já falou. Você ia dizer mais alguma coisa, começou a falar, além de valorizar os estudos. O que mais?
R – Não, eu estava falando da formatura. Chegou o dia.
P/1 – Tá.
R – Chegou o dia da formatura. Os meninos queriam: “Já que você trabalha lá na Faintvisa, fala para o pessoal lá para ver se eles deixam você fazer sua formatura lá”.
P/1 – Que pessoal falou?
R – O professor mesmo, os colegas e o coordenador Argeu, que eu falei para você: “Já que você trabalha lá, pode ser que eles deixem fazer lá”. Então, teve só a minha turma lá. A gente conseguiu, parece que foram três ou quatro turmas, a gente fez a formatura lá no auditório da Faintvisa. A formatura foi lá.
P/1 – Como foi o seu sentimento na hora?
R – Ah, de vitória.
P/1 – Descreve o momento.
R – Uma sensação muito boa, uma sensação muito boa. Assim... de que ali eu vi que estava só começando. Lembro-me, como se fosse hoje, muito bom. Estava meu pai, estava a minha mãe, meus filhos, que deram muita força. Na verdade, é como Josenita falou: quem acreditou, chegou; quem não acreditou, ficou no caminho. Eu sentia até pelos colegas, quando a gente encontra assim e a gente os encontra depois, diz: “Você conseguiu. Você está onde?” “Eu sou uma professora, mas eu estou fazendo faculdade”. Terminou. Eu disse assim... Foi aquilo que eu já tinha dito, no início, a vocês: “Daqui por diante, eu não vou mais parar”. Vou ter dificuldade? Vou. Porque nada vem fácil. Mas eu tive o interesse. Sei que quando foi com... Eu lembro que foi em outubro, parece, finalzinho de outubro para novembro, a formatura. Que quando foi no mesmo ano ainda dava tempo para se inscrever para o Enem. Acho que foi outubro.
P/1 – Um pouco antes, você falou da formatura. Que foi um momento tão importante, você disse que estavam o seu pai, sua mãe, seus filhos. Descreve um pouco esse momento assim, como foi quando você foi receber, não sei se tinha que receber...
R – Ah, eu me senti grande. Uma formatura que eu não tinha...
P/1 – Mas assim... Como foi quando você subiu? Descreve um pouquinho esse momento.
R – Ah, foi muito bonito. Eu lembro que quando eu falei lá na frente, a minha mãe ficou muito emocionada, eu me lembro dela chorando. Que é um ensino médio, mas para mim, para eles, estava sendo uma grande coisa. Para quem foi para ali, passou esse tempo todo sem estudar, então para eles estava sendo... E vi também de outras pessoas quando chegavam, diziam assim: “Você está aqui, trabalhando aqui, quem sabe você não acaba ficando por aqui mesmo?” Aquilo... Eu sei que a vontade de estudar era maior. Mas eu lembro que quando eu subi lá para receber do doutor Jarinha, que é o dono da Faintvisa, até hoje, o que ele disse: “É um orgulho para mim ver uma pessoa trabalhar como você, Edjane, o trabalho que vocês têm, que não é fácil, que não é fácil, e se interessar pelos estudos. Em vez de largar e ir para casa, não, tomava banho aqui mesmo”. Eu fiz muitas vezes isso, largava cinco horas, aí tinha algum trabalho para fazer, então eu ficava lá. Muitas vezes fiz isso: “Cida, hoje eu posso largar mais cedo? Eu não vou para casa”. Tinha que pedir autorização para poder ficar na empresa na hora de... Para levar os trabalhos. Então era um orgulho para ele quando ele soube que eu estava terminando os estudos. E ele falou para mim que ali eu estava só começando. Quando eu subi lá, eu lembro que o Bruno gritava: “Mainha, mainha” – batendo palma. Aí Rafael batia também. Eu lembro, todo mundo teve oportunidade de falar e eu dediquei para eles. Eu disse: “‘Mainha’, não é para mim, é para a senhora”. Ainda lembro que eu dediquei para eles. As colegas estavam lá muito felizes da vida, porque estavam sentindo a mesma sensação que eu. Mas o que me deixava triste - ainda lembro que eu disse até para a professora Josenita - é quando elas falavam assim: “Eu não sei, Edjane, se vou estar disposta ao que você está, se eu vou conseguir mais na frente fazer outra coisa, que eu acho que eu só queria terminar”. Eu não. Eu disse: “Não. Eu acho que o meu está só começando”. E estava só começando, realmente. Então eu lembro que, quando terminou a formatura, teve tudo, aí já comecei a pensar como eu iria falar com o pessoal da casa que eu queria fazer uma faculdade. Falei para o seu Guido, que Deus o tenha, ele falou: “Não, agora você vai... Não, faça a faculdade. Você, como funcionária, tem direito a fazer. Você tem direito a fazer uma faculdade”. Fui, falei com ele, ele disse: “Fale com a Graça”. Eu falei, ela disse: “Está, depois a gente vê isso”. Aí, a gente: “Ah, não vai vingar, não”. Um dia, eu falando com a irmã dela assim, ela: “Ela disse o quê a você?” Eu falei: “Não, ela disse que depois ia ver. Só que o Enem está aí na porta. Mas eu vou fazer o Enem assim mesmo, se eu tiver oportunidade. Bom, se não tiver, fica para a próxima”. Ela: “Está certo”. Eu sei que eu fiz o Enem e passei. Ele disse: “Já que ela passou no Enem, então ela vai fazer faculdade, sim”. Eles autorizaram a minha faculdade, eu passava o dia todo trabalhando. Passava o dia todo trabalhando, quando dava para ir para casa eu ia, quando não dava eu ficava lá; então chegava dez e meia, onze horas. Por isso que eu falei: deixava os meninos dormindo...
P/1 – No mesmo trabalho, não é?
R – No mesmo trabalho. No mesmo trabalho. Eu deixava os meninos dormindo, encontrava dormindo. Eu sei que... Acho que uns dois anos que eu estava lá, já na Faintvisa, fazendo já faculdade, aí meus filhos tinham direito de ir para lá, Colégio de Aplicação, que era de manhã. O Rafael queria, porque Rafael sempre foi interessado. Já Bruno disse: “Não, mainha”. “Mainha, mas não é justo eu ficar esperando por Bruno. Não, eu quero ir para lá, mãe”. Eu sei que acabei trazendo os dois. Ficou melhor para mim, porque estava vendo-os. E terminei a faculdade. Terminei a faculdade.
P/1 – Que curso?
R – Eu fiz Estudos Sociais, que dava direito a fazer História e Geografia, mas no quarto período você podia optar: História ou Geografia. Aí eu optei por Geografia. Terminou. E assim... todos os cursos que tinha lá, eles diziam: “Edjane, se quiser fazer, está autorizado”. Então, sempre que tinha alguma coisa lá, eu participava. Eu fiz. Quando terminou a faculdade, ela disse: “Não vai fazer mais nada não, é?”
P/1 – Ela quem?
R – Cida. “O estudo não para na faculdade não, viu, Edjane?” Eu disse: “Mas eu posso fazer a especialização?” “Pode. Já sabe o que quer?”. Eu disse: “Sei”. Ela falou: “O que você vai fazer?” Falei: “Ensino da Geografia”. “Ótimo. Vá falar com Graça. Se não conseguir falar com ela, pode deixar que eu tento falar”. Eu sei que pelo corredor... Eu tinha vergonha de ir até a sala dela, mas encontrei o seu Jarinha, eu disse a ele. Ele disse assim: “Você tem tempo?” Eu falei: “Eu não estou aqui, doutor?” Mas ele disse assim: “Mas eu quero saber, porque o seu trabalho aqui, o de vocês, não é fácil, não. Você vai conseguir estar a noite todinha na sala?” “Consigo”. Eu sei que eu fiz, ainda fiz a outra especialização, que era... Então eu trabalhava no sábado, pegava o mesmo horário de cinco e meia, tinha que deixar tudo pronto, mas ia para a sala de aula para fazer a pós às oito, oito e pouco. Quando eu terminava o serviço, tomava banho e ia para a sala. Chegava atrasada, mas o professor já sabia que eu estava lá mesmo, trabalhando, porque eu já conhecia todo mundo e eles deixavam.
P/1 – Toda noite?
R – Isso já na pós. Eu terminei a faculdade.
P/1 – Sim, mas também era à noite? Toda noite?
R – Não, eu trabalhava...
P/1 – A pós não era todo dia?
R – Não. A pós era todo sábado. Só que, no sábado, eu pegava também às cinco e pouco e a pós começava às oito horas. Mas eu sempre chegava oito e meia, nove horas, porque antes de ir... Ela disse que autorizava, mas para isso eu tinha que deixar meu setor já pronto. Então eu terminava tudo, depois que eu ia tomar banho e ia para lá. Então, passava o dia inteiro, no sábado, na pós. Terminou. Quando terminou, o professor Guido chamou, falou: “Edjane, já está na hora da empresa, da Faintvisa, ver você com outros olhos, porque você já tem uma faculdade, você já tem uma pós, e continua na limpeza”. Eu disse: “Mas está bom. Eu tenho estudo. Eu sei que eu estou aqui, mas eu tenho estudo. Agora eu posso dizer aos colegas que eu tenho”. Aquilo, para mim, eu estava sentindo... Mas, para a vista de outras pessoas, era pouco. Então o professor Guido era muito atencioso com as pessoas, ele disse: “Não, eu vou falar com Graça”. Eu sei que ele falou com ela. O lugar que tinha no momento era a biblioteca. Ela disse: “Você não vai sair do seu trabalho, mas você vai fazer um estágio na biblioteca”. Eu disse: “Está bom”. Então trabalhava a manhã inteira. Na hora de largar, em vez de ir para casa almoçar, eu ia para o estágio, que era na biblioteca, para conseguir ficar lá. Passou e nada, nada mudou. O pessoal da gerência, aquela coisa toda, e eu fui ficando. E ele sempre falava. E aconteceu de ele adoecer e se afastar. Eu disse: “Pronto, acabou minha sorte”. Eu sei que a gente passou. Tempos depois, aí a primeira especialização que eu fiz foi Gestão Ambiental. Depois, a segunda, já foi Ensino da Geografia, porque estava no auge, todo mundo estava falando da Gestão Ambiental, e uma pessoa também tinha me prometido um trabalho, eu fiquei e fui fazer, não deu nada. Aí eu fiz a segunda. Eu sei que na segunda, quando eu terminei - eu já estava terminando a segunda especialização - eu fui chamada. Lembro-me como se fosse hoje, sentada, meio-dia, tinha acabado de almoçar, estava sentada no corredor, no chão, com as colegas, a gente estava terminando um setor lá, e o telefone tocou: “Edjane, olha, aqui é da GRE de Vitória, assim, assim, assim”. “Diga”. “É que você foi convocada para uma turma” – e contou: “É para você vir aqui dia primeiro de abril”. Dia da mentira. Mas, para mim, naquele dia foi verdade. Toda vez eu me lembro desse detalhe. Eu fui... De início, eu contei à Cida, porque ela tinha me dado muita força, que ela é irmã da dona lá da faculdade: “Vá-se embora. Eu dei asa a você foi para voar mesmo”. Eu fui lá falar com eles, ela disse: “Olha, mas é à noite, é uma turma do Travessia”. Aí já deu...
P/1 – Você não sabia que era isso?
R – Não. Que era Travessia, não. Eu disse a ela... Eu disse: “O meu primeiro emprego, o Travessia”. Dona Ana disse assim: “Mas por que você ficou tão surpresa assim? Porque é o Travessia?” “Não, porque eu fui aluna do Travessia, então eu acho que vou estar em casa”. Ela falou: “Que bom. Então vai poder ajudar muita gente”. Então naquele negócio todo, eu sei que eu... O que eu fazia? À noite era o Travessia, mas eu continuava trabalhando na Faintvisa, na limpeza. Tinha um colega lá que falava: “Edjane, aqui é uma coisa, lá fora tu vê outro mundo, não é?”. Aí começaram as formações. Quando começaram as formações, eu disse assim: “Não, então acabou. Não vou parar por aqui”. Então começou na formação, aí sempre que eu dava meu depoimento, todo mundo falava: “Menina, como você conseguiu?” – aquela coisa toda. Então, quando eu falava que eu conseguia: “Mas, professora, como o pessoal está no Travessia, que é uma coisa para ser três anos e terminar em dois?”. Quando eu começava a falar do projeto ___01:07:17___. Eu sei que, da minha turma, só teve um que teve que ir para São Paulo, mas a minha turma toda terminou. E assim... Eu chegava em casa, tomava banho, nem tomava café, já estava perto de pegar o ônibus. Que era em Bonança, tinha que pegar o ônibus e eu descia na porta da escola, subia uma ladeirinha, estava lá. E foi isso. Travessia.
P/1 – Edjane, só porque aí é um detalhe mesmo, mas é importante. O pessoal te chamou? Te ligou e te chamou? Como...
R – Foi seleção que eu fiz. Eu me inscrevi. Eu já tinha me inscrito umas duas vezes, mas eu achava que era porque eu não tinha terminado. O pessoal: “Ah, tem essa dificuldade por que tu não terminaste ainda. Pode ser isso”. Eu sei que terminei a faculdade. Depois, quando eu comecei a primeira pós, já no finalzinho, para começar a outra, que eu me interessei, ela disse que eu podia fazer outra, aí ela falou: “Mas em vez de você fazer outra pós, por que você não faz outra faculdade?” “Não, Cida”. “Mas, menina, faz Pedagogia agora”. Falei: “Não, Cida. Não, não quero, não. Então vou fazer outra pós”. Aí fiz outra pós. Então, quando eu estava começando a outra saiu o resultado da seleção, eu já tinha feito umas três seleções, eu acho. Foi. Foi quando saiu essa outra. Eu fui para lá e estou lá até hoje.
P/1 – Nunca mais? Não saiu nem...
R – Não, eu só trabalhei com uma turma só de regular, que foi numa escola em Pacas, mas não foi lá na Funase, não, foi numa outra escola regular. Que até quando eu peguei, eu disse: “Meu Deus, não sei nem trabalhar isso aí”. E ainda mais Fundamental. Eu fiquei toda enrolada. Quando terminou lá, que eu voltei... Porque eu pertencia à Escola Dias Cardoso, então eu voltei para lá para ficar à disposição da GRE. Quando eu estava lá, estava se formando a turma do Travessia. A Raíza ligou para mim, perguntou se eu queria ficar com essa turma. Eu disse: “Quero”. Ela falou: “Então, a senhora vai ficar nessa turma”. Eu estava numa turma à tarde. Numa turma que, desses cinquenta alunos, a gente terminou com quarenta e oito. É a maior turma que eu já vi em todo o meu Travessia, assim, que eu trabalhei, que terminou tudo. Entendeu? Era à tarde.
P/1 – Eu vou pegar só um gancho. Depois a gente vai falar bastante do Travessia, está bem? E você, como professora, você disse que, por um momento, você precisou pegar o regular, acho que o intervalo assim antes de formar outra turma. Aí você falou: “Nossa!”. Você fez um jeito assim, como via... Fala da diferença que você sentia como professora do Travessia...
R – É porque a diferença que eu senti... O regular é diferente. Os alunos do Travessia, não sei se você pensa assim, mas eu acho o aluno do Travessia mais interessado. Interessado não só em terminar, mas eles sabem também que as do Travessia vão atrás, que a gente quer ajudar, eles aceitam. E no regular: “Eu estou aqui por causa da minha mãe”. Para mim, foi difícil. Foi a primeira turma que eu peguei do regular, eu não achei essas coisas. Então, quando eu estava lá, eu disse assim... Tinha falado para ela: “Quando formar uma turma do Travessia lá, se puder me encaixar eu quero, viu?” Ela olhava para mim: “Travessia é a sua cara. Travessia é a sua cara”. E eu fiquei lá. Mas o interesse, até da escola mesmo, interesse, eu não achei essas coisas, não.
P/1 – Além do interesse, que você já falou, dos alunos, e também da escola, quando você estava lá na sala de aula, como você se sentia, inclusive em relação à…?
R – À diferença?
P/1 – Inclusive, assim, à organização das aulas, do trabalho, porque cada professor era uma disciplina.
R – Ah, nem se compara. A diferença de você chegar à sala, os alunos estarem sentados. De você chegar e falar e eles tentarem, pelo menos, lhe atender um pouquinho. De ter interesse de fazer alguma coisa. A diferença eu senti muito nisso. Porque como eu já estava acostumado com o Travessia... Porque eu acho que Josenita nunca teve nada a dizer, eu como aluna. Eu sabia da dificuldade dos meninos porque eu passei por isso, então eu sabia. Quando eu cobrava deles, eu até, às vezes, falava com as mães: “Ele não quer, não, mas mais tarde ele vai sentir”. Digo: “Já escutei isso antes”. “Ele não quer nada, não”. “Meu pai não tem estudo. Meu pai não tem estudo” – um garoto falou isso lá – “Meu pai não tem estudo e tem dinheiro; então, o estudo tanto faz”. O aluno, quando chega ao Travessia, ele não tem essa visão, o interesse dele é mudar.
P/1 – E a relação com seus colegas professores no regular, a organização do trabalho?
R – Não eram essas coisas todas, porque a gente do Travessia - eu não sei se vocês já tiveram essa impressão - a gente é visto com outros olhos. Assim... A impressão que eles têm é que a gente está tirando um aluno deles. Então, quando diz que vai formar Travessia, os professores olham com outros olhos, porque eles acham que a gente está tirando aluno deles. Mas eles estão em idade maior, então a tendência, o interesse do diretor... Ele vai à sala tirando aqueles meninos, ele vai tirando. Mas eles acham que a gente ainda está... O Travessia é para atrapalhar. Mas não, tanto é que depois tem professores que hoje, lá mesmo tem professores que estão no Travessia, uns dizem porque não tiveram opção, mas outros dizem assim: “Mas, menina, eu pensava uma coisa do Travessia, é outra”. Que está hoje lá porque os efetivos estão chegando. Os efetivos estão chegando para o Travessia. Parece mentira, mas estão... Eu acho que tem muitas escolas aí, parece que duas ou três escolas - não são da minha área - que o supervisor disse que, de contrato mesmo, só tem ele como supervisor. Mas os professores dele são todos efetivos.
P/1 – E o que leva esses professores efetivos a virem? O que você ouve ou observa?
R – Olha, ela disse um nomezinho de um departamento, que eu esqueci o nome agora, numa reunião, Joseane, mas eu acho assim: professor que devia estar em sala de aula está na secretaria; professor que estava afastado, não sei o quê, e voltou mas está sem fazer nada;
mais um de lá que fica sentado no meu sofá, assistindo televisão. Isso é devolvido para GRE e a GRE tem que localizar. Então eu estou lá sob contrato, um ano, eu saio e dou o lugar ao colega. Está sendo isso.
P/1 – E você não tem nenhuma experiência de professor no seu grupo que veio efetivo, que tem esse perfil?
R – Não. Na verdade, não. Eu não acho. Mesmo porque eu já observei que eles não trabalham. Assim... Como eu vou te dizer? Eles não têm aquele gosto de trabalhar no Travessia. Eu acho que eles queriam outra coisa. Porque eu não sei se você sabe, eu tenho que dar conta de História, Geografia, Espanhol, Inglês, Arte, Música, e aí vai. A de Exatas: Química, Matemática... E eles lá só tomam conta de uma matéria. Então, no momento em que ele vai passar para o Travessia, ele tem que colocar aquelas de Exatas, tem que ficar com todas as de Exatas. De Humanas, com todas de Humanas. E sem falar que ele disse: “Eu não acho graça no Travessia. Só para tirar os alunos, não sei o quê”. Eles sempre olham com essa visão. Então, aqueles que estão lá... Até um aluno veio falar assim, que está tendo dificuldade em sala de aula porque a professora está ensinando-o como se estivesse no regular, a professora. E aqui a gente é diferente, ela tem que ver que aqui eu não tive a base. Eles não tiveram a base, então é uma dificuldade para eles. Então, quando eu chego na sala, que eu falo com eles, eles: “Então, professora, quer dizer que a senhora fez...”. Olha, e tem mais: o meu primeiro concurso, que eu me esqueci de contar esse detalhe, o meu primeiro concurso que eu fiz foi para professor, ainda lembro que foram oitenta perguntas, todo mundo se queixou. Eu falei: “Meu Deus, eu nunca vou conseguir. Oitenta perguntas”. O meu segundo concurso foi para a polícia. Aí fiquei entre as vagas, só que foi anulada porque teve fraude. Aí no segundo... Pois é. Mas eu estava lá. Eu estava lá. Eu digo com muito orgulho. “O que eu estou dizendo a vocês, eu tenho prova, não é conversa não é para enrolar vocês porque vocês estão aqui”. “Ah, a professora está dizendo... Isso acontece com os outros”. “Não, acontece com vocês também”. Muita gente não dá valor, mas o Travessia sim. Eu tenho lá aluno fisioterapeuta, eu tenho professor, eu tenho engenheiro, eu tenho menina também engenheira, todos foram do Travessia. Então, é aquilo que eu queria dizer a vocês: eu tenho vontade de fazer aquele trabalho, que é assim, trazer todos os ex-alunos do Travessia, se possível, seria até no Colégio Dias Cardoso, todos os ex-alunos, e ver também o que eles estão fazendo. Eles que foram do Travessia.
P/1 – Então agora vamos voltar um pouquinho para você professora no Travessia. Você falou que dava aula de tudo isso.
R – É.
P/1 – E aí, como fazia? Como era? Era difícil? Não? Como vocês davam conta? Fale dessa experiência.
R – Não, porque... Como professora, não, não foi difícil. Porque eu lembrava muito, eu me inspirei muito na minha professora Josenita. E eu lembro muita coisa do que ela fazia lá, eu podia fazer cá. Que eu lembro... Ela ia encontrar a gente na porta e dava boa noite: “Está cansadinha hoje, não é? Mas seja bem-vinda, daqui a pouco esse sono passa, vai sentar”. E falava ali, não deixava ninguém desistir. Então eu digo sempre para eles: “Tudo que vocês estão passando aí...”. “Ah, professora, hoje a aula está meio assim”. A gente escuta muito aquele barulhinho da mídia, às vezes em casa, tudo. “Então, vamos mudar um pouquinho. Hoje a gente não vai dar mídia. A gente vai dar aula daquele assunto, mas não precisa colocar mídia, não”. Aula de campo, certo? Então, tudo o que Josenita me passou, que eu aprendi, que ela me deu, eu passei para eles. Por isso que eu disse a eles que eu sabia o que eles estavam passando, porque eu passei. Eu disse a eles: “Eu saía cinco horas da manhã, chegava dez e meia da noite, eu trabalhei... Gente, eu só tinha o domingo em casa, certo? E cheguei até aqui. Por que você não pode chegar? Quer dizer, eu escolhi ser professora, mas você pode escolher o que quiser ser”. Então, para mim, não teve dificuldade, entendeste? Quando me disse assim - o Travessia - eu fiquei muito contente. Parece mentira, mas quando eu cheguei lá na GRE, as minhas histórias, uma formação que a gente teve quando... Esqueci o nome dela. Uma de vocês falou nela hoje, que ela escreveu um livro para o Travessia. Esqueci o nome dela. É colega de vocês. Isaura...
P/1 – Sandra Portugal.
R – Não.
P/1 – Madza.
R – Não, é uma senhora já. Esqueci o nome dela. Eu não sei se foi o livro do percurso livre, foi um livro que ela escreveu para o Travessia.
P/3 – Sandra Portugal escreveu para o Travessia. E Madza foi quem ajudou a fazer aquele livro vermelho, Incluir para Transformar, que ela saiu sistematizando, fazendo esse trabalho.
R – Pronto. Eu sei que tem uma formação, que aí a gente acabou conversando, eu falava tudo, a gente falava da experiência, ela disse: “Menina, como é...”. Eu sei que nesse negócio, ela disse: “Edjane, eu queria que você fosse lá na minha escola dar uma palavrinha. Edjane, eu queria que você fosse na minha escola dar uma palavrinha”. Então eu comecei, entendeu? Mas é muito bom. Muito bom. Assim... eu não tive dificuldade. E quando as meninas chegam lá, essas três professoras que chegaram este ano mesmo: “Eu queria que a senhora passasse tudo do Travessia para mim”. Disse: “Não tem bicho, não. Não tem bicho, não”. “Mas, Edjane, é muita matéria que eu vou dar. Eu só dava a minha lá no outro”. Eu conversei tudo, queriam desistir, aí coloca para lá, coloca para cá...
P/1 – E o que você falou para elas?
R – Falei que não tem... Falei para elas que não tem dificuldade. Qual a dificuldade que tem? A dificuldade que eles acham, porque é muita matéria para uma pessoa só.
P/1 – E o que você responde para elas?
R – Eu respondi que mesmo sendo muita matéria você não vai dar todas na noite, não. Você vai fazer primeiro a formação. Não tem dificuldade, porque você vai ter a formação, e na formação você vai ter tudo que você tiver dificuldade. Eu estou só dando um paliativo, mas lá na formação você vai ver que não é nada daquilo. Você vai ver que, quando receber a formação, você vai dizer: “Menina, eu pensei uma coisa do Travessia, é outra”. Tanto é que Iva está lá... A Adriana - ela é de Gravatá - ela disse: “Travessia? O que é isso?” Ela disse que chegou lá: “Você vai ficar no Travessia”. “Não. O que é isso?” “Mas você vai para uma escola boa, Antônio Dias Cardoso, a supervisora de lá é a Edjane, você vai se dar bem”. Quando eu passei para ela: “Edjane, eu estou encantada”. E eu gosto muito de fazer isso, porque a aula da Travessia é isso, é a data comemorativa, é você fazer cartaz, é você botar para fora o que você está sentindo, entendeu? É muito bom o Travessia. Foi isso que eu passei para ela. E ela, se você chegar lá hoje, ela vai dizer: eu pensei uma coisa, quando cheguei aqui, é outra.
P/1 – E você estava falando da sua primeira turma.
R – Ah, minha primeira turma.
P/1 – Fale um pouco.
R – A minha primeira turma, quando ela me chamou, estava certo para ir para essa escola, que era em Bonança. Só que a turma estava para se formar, uma turma do Travessia lá, mas não tinha ainda autorização para começar. Então, de vez em quando, a comunidade se juntava, ia bater lá na GRE para fazer a cobrança: “É hoje, é amanhã, vocês estão enrolando a gente, não sei o quê”. “Vai começar. Vai começar”. Então, quando começou parece que tinha quinze. E, naquela época, parece que a gente podia fazer até vinte e cinco alunos, e tinha que ser de dezoito, não podia ter menos de dezoito, tinha que ser acima de dezoito anos. Então, a supervisora, Carmem, me chamou, e mais a Bel, professora, e a gente ia, num domingo, para o Centro Social, onde a gente fazia um bingo e aproveitava e chamava a comunidade: “Olha, o Travessia...”. Começou falando do projeto. Eu sei que nesse negócio foram chegando, foram chegando, chegando e se formou nos cinquenta, que ficaram os quarenta e oito. E foi muito bom como professora porque, para mim, não teve dificuldade. Mas assim... Eram pessoas humildes. A maioria naquele bairro ali, para quem conhece, é evangélico. Mas aí você viu, mais à frente vocês vão ver que os homens são mais calados, mas as meninas se vestiam de homem. Elas apresentavam trabalho, elas faziam tudo. Falavam alguma coisa, fazer atividade na sala: “Professora, isso não pode ser em ritmo de música, não? Professora, isso não pode ser...”. Era muito bom, muito bom. Era uma dificuldade, porque a gente descia na pista, desceu aqui na pista, subiu, estava na escola. Mas quando era para vir, dez horas, tinha que atravessar um viaduto para ir para o outro lado, para esperar o ônibus. E o que a gente achava de dificuldade, de ruim, de noite, era isso. Mas eles... A experiência de professora foi muito boa. E minha turma foi muito boa. Aquela primeira turma marcou.
P/1 – E você se lembra de uma... Acho que vai se lembrar de muitas histórias, mas um momento de aula assim que foi muito marcante para você, ou com aluno. Você e eles ali.Que aconteceu. Uma aula mesmo, um momento do seu... É um ano e três meses, não é?
P/3 – Essas aulas de teatro que você mostrou.
R – É um ano e seis meses, mas a gente nunca termina com um ano e seis meses. Por conta do feriado, aí completa sempre os dois anos.
P/1 – Sim. Mas você falou que gostava muito de fazer o teatro. Seus alunos, pelo jeito, também gostavam muito. Em alguma aula dessas assim.
R – Eu acho que na aula de percurso livre. A aula de percurso livre. O percurso livre é um livro que vem para os alunos, todos eles recebem esse livrinho, eles vão ler, vão falar, se expressar como acharem melhor, mas aí que tem que pode ser também teatro, pode ser em música, pode ser um poema, entendeu? Mas acho que me identifiquei... A melhor parte, quando chegava para mim, era essa. Que eles gostavam, que era onde eles se mostravam. Aquele caladinho... No Travessia não tem ninguém tímido. O aluno chega caladinho, ele acaba se envolvendo com o outro, não tem como. De vez em quando a gente vê nas outras escolas o aluno caladinho lá, tendo dificuldade. Lá não. Você está caladinho, em algum momento vai se enturmar. Então, era na aula de percurso livre onde eles... Parece que era um... Colocava tudo para fora. As aulas de percurso livre eu sempre gostei. E as datas comemorativas. Porque, como eu disse a vocês, hoje é dia do telefone, hoje a gente já tinha algo para apresentar. Tem. Aí achei, eu estava até falando às meninas que eu estou achando que, por conta dos corre-corres, de a pessoa chegar cansada, talvez, do trabalho para a escola, às vezes: “Eita, ontem foi dia de tal coisa, eu esqueci. Eita...”. Minha gente, eu sempre falo: “Vamos trazer de volta”. Porque o Travessia é isso, eu estou aqui com vocês, eu podia levar esse copinho, “foi o dia em que eu estava lá com o pessoal fazendo a entrevista”, e colar num caderno, no memorial.
P/1 – Fala do memorial para a gente.
R – Memorial. O memorial é um diário. Quando a gente fala do memorial: “Ah, não vou fazer isso, não, que eu não gosto de escrever”. “Gente, não precisa você escrever a folha toda, não”. Todos eles, quando chegam lá dentro, quando fala do memorial, já começam a fazer bicho: “Ah, não gosto de escrever, não vou fazer isso, não. Minha gente, não precisa você escrever a página toda, não. Só: ‘Hoje a aula foi de professora Edjane, foi sobre adjetivos’ – então botou lá – ‘Quem trouxe a mensagem foi Ana, sobre um dia de sol. Foi Ana quem trouxe, mas quem leu foi Tereza. Quem leu foi Tereza’”. Certo? E foi debatido na sala, porque a gente lia a mensagem. Tudo o que se passa na sala está lá no memorial. É toda a vida dele, então, de repente, no meio do ano, digamos que um aluno parou, ou ele saiu da escola, aí: “Mas eu faltei. Mas fulano faltou muito”. Eu falo: “Gente, o memorial ainda é melhor do que a caderneta, porque eu posso chegar lá, colocar um... Vocês contam sua história, eu vou lá e coloco. Mas se você não tem registrado, então você não estava. Se você não tem o dia registrado, você não estava”. Porque ele podia chegar, dizer assim: “Então eu vou colocar, porque ele me deu uma falta...”. Não, mas o memorial, eu acho que o memorial é o cartão de visita, o memorial é tudo do aluno ali. No momento em que ele entra na sala, eu acho que o memorial é isso, é um registro, é um diário dele. Ele diz: “Mas, professora, isso aí vai ser mostrado para todo mundo?” Digo: “Não”. A gente tem o dia do memorial. A gente tem o dia do memorial, onde a gente faz, coloca todo o memorial, a gente coloca todo o memorial, e assim... Você vai escolher qual foi a aula que marcou para você no começo, quando você entrou, no primeiro dia de aula, um ano depois, entendeu? Cada um pode escolher. Às vezes, eles escolhem a aula, porque ele fala um pouquinho sobre ela: “Foi da professora fulana, que foi boa, aconteceu isso nesse dia”. Tem uma até engraçada, que o menino não estava conseguindo mexer no ventilador e eu fui subir para mexer. E na hora em que eu estava mexendo lá com a vassoura, o menino bateu à porta, eu me assustei e saí correndo. Ele colocou lá: “A professora Edjane estava tentando ajeitar o ventilador com a vassoura e um colega chegou, deu um tapa na porta, a professora soltou tudo, parecia que estava pegando fogo em tudo e saiu na carreira”. Então aquilo ficou registrado. As histórias são contadas no memorial, o memorial é todo a vida dele na escola. Se ele estava lá frequente, ele vai estar lá.
P/1 – E você se lembra de algum dia, o dia do memorial, que alguém escolheu um momento assim, sabe: “Vou escolher esse dia” – que foi marcante? Você se lembra de aluno assim que falou alguma coisa que você até hoje lembra?
R – Deixe-me lembrar. É porque tem muito. É que na hora que a gente precisa... Deixe-me lembrar. Eu acho que de uma aluna que começou a sentir... Ela estava grávida e começou a sentir dores. Estava todo mundo na sala preocupado, ela disse: “Gente, mas não é para nascer, não, que não está no tempo, não”. A gente achou que era aquilo. Quando foi depois, no dia do memorial, ela já estava em sala, ela lembrou: “Lembro-me que eu disse: ‘Meu Deus, está acontecendo alguma coisa. O que foi que eu fiz? Eu estou me sentindo molhada, tem alguma coisa errada. Professora, venha cá’”. Todo mundo ficou desconfiado, sem saber o que era. E ela não tinha experiência. E saiu. Ela mesmo lembrou aquele dia: “Eu me lembro desse dia, meu primeiro filho no Travessia”. E depois, para trazer esse menino para a escola... Passado o tempo, de vez em quando ela trazia, então a gente revezava, cada um ficava. Eu sei que nesse negocinho, todo mundo foi tomando gosto e todo mundo, de vez em quando, queria trazer o pequeno, outro queria trazer. Só que o diretor da escola achou que isso atrapalhava, mesmo porque, assim... Se acontecesse alguma coisa na escola, a escola seria responsável. E a gente foi deixando de lado. Mas, isso tudo a gente fazia para que elas não deixassem de ir à escola. “Professora, hoje eu não tenho com quem deixar, então hoje eu não vou”. “Não, venha, aqui a gente reveza, cada um segura um pouquinho”. Era assim que funcionava.
P/1 – Muito bom. Então eu só vou perguntar a última coisa, porque não vai ter como perguntar mais (risos). Como você passou de professora para supervisora? Porque agora você é supervisora.
R – Pois é. Eu ainda lá... Eu estava à tarde e Raíza disse que tinha outra turma. Aí eu perguntei a ela: “E eu posso ficar? Porque eu soube que professor que está em discussão é você”. Eu disse: “É, porque eu já tenho uma turma à tarde”. Ela disse: “Pode. Então eu vou me informar direitinho, Edjane, e ligo para você”. Isso foi de tarde. Quando foi de noite, ela deixou um recado na secretária, queria falar comigo. No outro dia de manhã eu liguei, ela disse: “Essa outra turma é sua”. A segunda turma. E era uma turma de... Tinha cinquenta e três. Mas não ficou, era para dividir. E eu fiquei... Enquanto a Secretaria não liberou para começar a aula, eu fiquei com eles durante... Porque eles agora estão deixando assim, as aulas começaram agora em fevereiro, começou todo mundo, então o Travessia começou também. Só que a aula não está valendo, vai valer quando a Secretaria de Educação liberar. Eles pensam que está valendo, mas eles estão no período de integração ainda. Mas, antigamente, o período de integração se reduzia a quê? Mensagem, brincadeira, dinâmica, essas coisas. Mas depois, a gente foi pensando em quê? Que eles tinham uma dificuldade. Então, para o pessoal que parou o estudo há muito tempo a gente fazia uma revisão de Matemática, uma revisão de Português. E ia fazendo isso para que os trouxesse de volta, aquela coisa para eles gostarem.
P/1 – Você estava com cinquenta alunos numa turma.
R – Cinquenta alunos. Foi quando eu fiquei... Na sala, eu fiquei durante acho que três meses ou quatro esperando começar. Aí, a Abigail ia sair - que era a supervisora - ela ia sair porque ia ser candidata a vereadora, e o diretor lá é um pouquinho exigente. Ele se reuniu com o pessoal da Secretaria e disse: “Tem uma pessoa que vai ficar... Você indica quem?” Disse: “Eu indico a Edjane”. “Mas tirar a Edjane da sala de aula agora?” Falou: “Mas é sim, porque eu acho que a Edjane tem jeito para essas coisas”. Então se juntou Zoraide, que era muito conhecida, que é uma pessoa também que dá o sangue pelo Travessia, então Zoraide, o pessoal lá se juntou com o diretor, o diretor disse: “Eu não quero outra pessoa, eu quero Edjane que fique”. Aí me indicou e eu fiquei. Olha que deu trabalho para eu sair da turma, viu? Olha, fizeram greve na sala, foram bater na greve, porque queriam que eu ficasse. Mas depois, Abigail foi lá e disse: “Gente, é o melhor para a Edjane. Ela vai ficar tomando conta de vocês. Ela não vai estar em sala de aula, mas vai ficar tomando conta de vocês”. Então foi assim que eu fiquei. Quando separou a turma, eles chiaram muito. Primeiro chiaram porque eu ia sair, e depois por ter que separar as duas turmas. Mas deu tudo certo, graças a Deus.
P/1 – E agora, como supervisora, em pouco tempo, sintetiza assim como está sendo para você.
R – É uma responsabilidade a mais. Porque eu não tenho dificuldade. Como eu já passei por todas as etapas, acho que tenho um... Eu acho - não estou me achando, não - eu quero dizer que posso dar informação para ela. Quando chega lá, que eu faço a reunião, quando tem dinâmica, quando tem isso, a gente: “Tudo que a gente fez aqui você pode fazer na sala, com os meninos. Não foi assim na formação?” Aí tem aquelas: “Mas eu não tive a formação”. Eu digo: “Mas você vai ter. E, na formação, o que você vai aprender lá, você pode usar lá”. Então, tudo eu pegava. Eu peguei do primeiro filme - quando era na escola, quando eu entrei lá - que eu ainda me... Aquele Escritor da Liberdade, menina, aquilo ali me encantou, aquele da música, aquilo tudo. Então, do primeiro filme lá, de quando eu estudei, eu anotava, eu tinha um caderninho que tinha os filmes, as dinâmicas, então passou de aluna, depois para professora, e agora eu falo assim: “Olha, gente, faça desse jeito que dá certo”. O qualifica está sendo uma bênção. Então a gente está fazendo assim, não tem dificuldade, não. Quando eu falo para ela assim, diz: “Edjane, é demais!” A reunião é bem dinâmica, dá para todo mundo trabalhar, e está dando certo. É uma responsabilidade, viu? Porque uns seguem as regras, outras tentam fugir porque estão acostumados daquele jeito. Então, de vez em quando, o povo: “Oh, professora, mas a senhora não disse que ia ser assim? Como aqui na escola está sendo assim?” Chegou um professor lá, que era efetivo, e tentou mudar. A oração já não tinha mais. Porque a gente faz a oração para poder começar a aula. Depois vem a mensagem, que a gente lê e vai debater. Então: “Não, vamos começar a aula, porque de noite passa rápido. Não, vamos direto”. Então tirou. Quando ele fez isso, mexeu com todo mundo: “O professor não está fazendo a dinâmica, o professor não está fazendo a oração.” Terminou Marinho devolvendo até ele mesmo, porque era muita queixa, entendeste? Ele não se identificou com o Travessia. O problema foi esse. Não é que ele não seja um bom professor, mas ele não se identificou com o Travessia, então teve que devolver.
P/1 – Muito bom. Quer perguntar alguma coisa nesse um minuto?
P/3 – Só tem um minuto? Então eu quero aproveitar. O que eu queria ver era justamente isso: o que ela trouxe de aluna Edjane para a supervisora Edjane. O que o Travessia, essa caminhada com o Travessia, mudou na sua vida?
R – Ah, mudou muito. Mudou muito. Na verdade, eu estou como supervisora, mas eu sou professora.
P/3 – Sim.
R – Mas assim... o que mudou, na verdade, foi a responsabilidade. A professora, eu estava a serviço de outra pessoa. Porque eu aprendi lá, estava sendo bom. O que eu aprendi com Josenita, eu conseguindo passar para os meninos, porque eu aprendi lá, que era assim. Então foi assim. Já como supervisora a demanda é maior, entendeu? Mas as experiências que eu tenho, como professora, estão servindo na supervisão em tomar conta dos professores. Porque é aquilo que eu disse a você: a dificuldade que eu sinto como supervisora, certo, é somente porque tem uns professores que seguem a regra, outros não.
P/1 – Seguem a proposta. E para fechar então...
R – O Travessia, em meu ponto de vista, não tem que mudar. Desde que eu conheço o Travessia ele teve a oração antes da aula, ele tem a dinâmica, ele tem o memorial.Porque a gente... já houve aluno que chegou a querer desistir porque tinha que fazer esse memorial. “Mas não precisa...”. “Mas a professora disse que eu tenho que escrever uma folha inteira”. “Não. É somente ir lá, vai lá uma horinha. Em vez de estar conversando com o colega e estar andando no corredor, vai lá e faz um pouquinho. Porque, no dia do memorial, você vai ser cobrado; se não tiver memorial, não tem nota.” A gente diz que é uma nota porque não deixa de ser. Então eu acho que é isso aí.
P/3 – Essa oração que você faz é atividade integradora?
R – Sim.
P/3 – O que é essa oração?
R – É o acolher.
P/3 – É um acolher.
R – É uma acolhida.
P/3 – Então essa acolhida que você faz...
R – É uma acolhida. A gente faz a oração, onde a gente respeita... Como o católico, que reza o Pai Nosso, e tem o outro - a oração do outro também - que é o evangélico. Aí, eles se juntam, cada um faz a sua parte, mas juntos. Eu participo do seu, você participa do meu. Isso já em combinação, que é um pacto que tem, que a gente faz. É o pacto da convivência, que é o respeito da aula, é a entrada, é a saída, e a religião do outro. Então, a gente tem essa oraçãozinha que é antes de começarem as aulas, depois vai para a mensagem, que é a acolhida.
P/3 – Vocês incluíram isso aí. Porque na metodologia não fala nessa oração.
R – Não fala, mas desde que eu conheço o Travessia que tem.
P/3 – Você faz? A Josenita fazia com você?
R – Já fazia. Já.
P/3 – Ah, entendi.
R – Já fazia. Já fazia. A diferença agora é que, na época, quando eu entrei, com Josenita, que eu era aluna, era uma professora só - e hoje são duas. Hoje tem de Exatas e de Humanas. Mas sempre foi só uma professora.
P/3 – Está certo.
R – Então Josenita passou tudo direitinho. Eu aprendi com ela.
P/1 – A gente vai terminar.
P/3 – Certo.
P/1 – Você quer falar alguma coisa que eu não perguntei? Que nós não perguntamos?
R – Não. Dizer que eu estou muito feliz no Travessia, que eu queria que o Travessia não acabasse, que eu gostaria de ajudar mais alunos, que eu estou vendo gente com muita dificuldade. Que o Travessia é isso... Para ajudar. Às vezes, eu passo pelas meninas: “Mas, professora...”. “Gente, o Travessia é para ajudar”. Aí tem aqueles jovenzinhos lá que, às vezes, não querem nada: “Professora, não pode fazer o Travessia só de pessoas acima de dezenove, vinte anos, não?” Eu falei: “Não, tem que ser...”. E agora está liberado para receber dezesseis, que vai fazer dezessete. Mas era sempre dezoito. Então eu digo: o Travessia é para todos.
P/1 – E você acha bom que liberou para quinze, dezesseis, dezessete?
R – Não. Porque eu acho que assim... Digamos que tenha cinco jovens com quinze, dezesseis anos... Aliás, quinze não, de dezesseis para cima. Dois ou três ficam, os outros não ficam. Então, de maior idade, que tem de dezoito a mais, eles têm mais interesse. Eu os acho mais interessados.
P/1 – Bom, mas aí eu perguntei uma opinião, foi mais uma curiosidade. Mas vamos fechar então. O que você achou de contar a sua história aqui para a gente?
R – Ah, eu amei. Saber que alguém está interessada em minha história é sinal de que eu marquei. Se eu estou aqui, eu acho que marquei. E se teve alguém interessado é porque chamou a atenção. E isso é bom. Isso é bom. Eu estou muito bem no Travessia e eu queria que não acabasse. Eu queria poder fazer mais. Eu queria poder ajudar mais. Então, quando eu... Sempre: “Você está estudando?” “Não”. “Olha, menino, tem um projeto do Travessia assim, assim, assim”. “É mesmo, professora? Como a gente faz?” “É assim, assim. Vá lá. Se você não gostar, vem falar comigo que eu vou dizer a você...”. “Ah, professora, mas tem aquele tal de memorial, tem aquele diretor na chegada, tem muita coisa para fazer”. “E no outro, você não ia ter, não? Ninguém vai concluir sem nada, não. Tem que ter dificuldade”. “É. Está bom então lá”. Então é muito bom quando eu chego a um canto, a pessoa: “Minha professora querida. Olha, eu devo tudo a essa mulher”. E fizeram um trabalho agora, do dia do estudante, onde um estudante deu uma declaração e pediu ao Marinho para dizer assim: “Não, porque eu desisti em 2015 e voltei no ano passado, mas professora Edjane... Eu a tinha no Face, ela disse: ‘Olha, vai começar uma turma nova. Venha!’ E eu voltei e eu só tenho a agradecê-la, assim, assim...”. Ele começou falando, aí todo mundo acabou chorando. É muito bom para resgatar o pessoal. Muito bom. Eu só tenho a agradecer. Estou muito feliz no Travessia. Eu queria que não acabasse nunca.
P/1 – Muito bom. Muito obrigada, viu? Parabéns pela sua história.
R – Obrigada. Obrigada. Espero que tenha colaborado com vocês.
P/1 – Inspiradora, como a gente fala, viu? Muito.
R – Espero que tenha chegado ao alcance de vocês.
FINAL DA ENTREVISTARecolher