P/1 – Fabrício, você pode falar seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Genisson Fabrício Boliveira Pereira, nascido em Salvador, Bahia, e nasci em 26 de abril de 1982, dia da primeira missa rezada no Brasil. É porque isso me acompanha.
P/1 – Seus pais são de Salvador?
R – São de Salvador.
P/1 – Seu pai e sua mãe?
R – Meu pai e minha mãe. Minha mãe, acho que é nascida em São Félix, mas acho que vai pequena pra Salvador, que é uma região do Recôncavo da Bahia.
P/1 – E seus avós, tanto paternos quanto maternos?
R – Eu sei dos meus avós maternos. O meu avô era de Cachoeira e a minha avó de São Félix, que são duas cidades que são divididas por uma ponte. Mas eles se casam por ali e vão morar em Salvador, ou se conhecem em... Não sei. Isso também eu não sei as minúcias.
P/1 – Esses são os maternos?
R – São os maternos. Os paternos, os paternos eu acho que são de Salvador mesmo. Nós tivemos pouco contato.
P/1 – Convivência.
R – É.
P/1 – E você sabe o que eles faziam, os seus avós?
R – O meu avô era enfermeiro lá em Cachoeira. A minha avó, a minha avó foi dona de casa, eu acho, só, a minha avó Romana. O meu outro avô era militar, o paterno, e a minha avó, dona de casa, talvez costurasse um pouco, não sei.
P/1 – E você chegou a conviver com eles?
R – Mais com meus avós maternos. O meus paternos, o meu pai era brigado com meu avô, muitos anos essa história, então a gente não se viu muito, o conheci mais de foto e muito pequeno. E minha avó materna veio morar no Rio de Janeiro, então a gente teve contato até os sete anos, e depois ela veio morar no Rio de Janeiro, foi morar no Rio de Janeiro.
P/1 – É? Por que ela foi para o Rio?
R – Ela foi para o Rio... Sabe que eu não sei. Talvez uma coisa de doença e que foi se cuidar com uma irmã dela que morava no Rio de Janeiro já, que tinha saído pequena de Salvador e foi morar no Rio de Janeiro, já tinha constituído família. Então ela como ficava muito sozinha numa casa grande, que era na Caixa d’Água, meu pai trabalhava muito de turno, meu outro tio, que é irmão do meu pai, era meio confuso, então a minha avó foi morar no Rio de Janeiro com essa irmã dela.
P/1 – E seus pais, você sabe como eles se conheceram?
R – Acho que uma coisa de festa. Não sei se eles moravam muito perto, mas acho que uma coisa de bairros próximos, amigos em comum e ali acontece uma história, não teve nenhum grande encontro assim, bateu a primeira vez e falou, acho que não. Acho que é uma coisa de amigos. Minha mãe é muito pudica, pelo que ela conta, e meu pai também é um pouco. E meu pai é um cara louco, farrista total. Meu pai é bem louco. Então eu acho que foi acontecendo um pouco essa história, e meio sem permissão, mas meu pai também faz o cara gente boa, ele é um cara muito gente boa, então eu acho que ele conquistou meu avô, que era um cara difícil, eu acho, pra isso. Então acho que ele começa namorar com essa história de meu avô permitir, esse cara doido, todo mundo sabe, mas que vai se enquadrando um pouco pra ficar com a minha mãe.
P/1 – E como é o nome do seu pai?
R – Ubirajara Araújo Pereira.
P/1 – E da sua mãe?
R – Graziela Boliveira Pereira.
P/1 – E aí eles se casaram, e foram morar aonde?
R – Casaram-se e foram morar em Brotas. Itapuã. Aí eu nasci em Itapuã e fui pequeno morar em Brotas, que é um bairro enorme assim, a gente foi morando em vários pontos de Brotas. Hoje a gente continua num ponto de Brotas.
P/1 – Quantos anos eles tinham quando se casaram?
R – Minha mãe, acho que 22, faixa de 22 a 25 anos, no máximo. Eles têm uma diferença de dois anos de idade, três, e é nessa faixa, 20 e poucos anos que eles se casam.
P/1 – E o que seu pai fazia ou faz?
R – Meu pai hoje é aposentado, mas foi petroquímico a vida inteira, trabalhou no polo petroquímico lá da Petrobras, ô, Polo Petroquímico da Camaçari, que é próximo a Salvador, uma cidadezinha.
P/1 – Que é da Petrobras?
R – Não sei se é da Petrobras. Sabia? Porque são várias empresas, acho que tem uma empresa Petrobras, mas tem outras que fabricam detergente, meu pai trabalhava nessa Deten, que acho que era até de detergente assim, uma empresa grande. Mas era núcleo de várias empresas grandes que trabalhavam com coisas químicas, que existe até hoje.
P/1 – E sua mãe?
R – Minha mãe é funcionária pública, já tinha sido atriz. Minha mãe foi atriz adolescente, quer dizer, mais jovem assim, 20 e poucos anos, logo quando casou, parou porque ficou grávida do meu irmão e depois funcionária pública, aí trabalhou em teatro, trabalhou com assessoria de comunicação.
P/1 – Enquanto funcionária pública?
R – Enquanto funcionária pública. É. Ela trabalhou em teatro, trabalhou no ICEIA, no Teatro Castro Alves muitos anos, na biblioteca central. A minha história começa com teatro a partir daí um pouco, com o trabalho da minha mãe.
P/1 – Da sua mãe?
R – É. Com o trabalho da minha mãe de ir pra biblioteca central, que ela trabalhava lá, e eu ficar com ela lá à tarde ouvindo histórias, vendo coisas, lendo.
P/1 – Em quantos irmãos vocês são?
R – Somos... Hoje somos quatro.
P/1 – Hoje? Por que…?
R – É. Porque faleceu uma irmã minha há pouco tempo, recente.
P/1 – E você é qual dessa escada?
R – Eu sou o do meio.
P/1 – Fala o nome deles, dos seus irmãos.
R – Pablo, que é o mais velho, eu, tinha a Priscila, e agora os menorezinhos que são adotados, que são a Yasmin e o João. João dois anos, Yasmin de sete.
P/1 – E quando eles se casaram eles moravam em Brotas, e qual a casa que você permaneceu mais tempo na infância? Que você disse que vocês mudaram algumas vezes.
R – É. Mudamos algumas vezes. Duas casas, uma que depois a gente saiu de Brotas, a gente foi para o Recanto das Ilhas pra... São muitas coisas, eu vou falando, depois eu vou desdizendo, porque no meio da história. A gente foi morar no Recanto das Ilhas, que é na paralela. Essa eu fiquei muitos anos, até os 11 assim, fui de pequeno até os 11, dos dois anos de idade até os 11. Depois disso a gente foi pra Vila Laura, voltamos para o circuito Brotas, que é onde eles estão até hoje.
P/1 – E essa que você ficou até 11 anos de idade, como era essa casa?
R – Essa casa era uma casa legal. Era um apartamento pequeno, eu dividia quarto com meu irmão, mas era um prédio, sabe esses condomínios grandes assim? Tinham muitos prédios. E tinha muita criança. Eu não sei se coincidiu assim, então tinha muita gente da minha idade, então era tipo, a minha casa com gente batendo, eu me lembro disso de gente batendo aos sábados de manhã, tipo: “Desce pra brincar. Fabrício”. E gritando. Esse turbilhão assim. E vizinhos próximos assim, tinham uns vizinhos da mesma faixa dos meus pais, então era muito amigo, churrasco embaixo, jogo de vôlei, me lembro da minha mãe e meu pai jogando vôlei com os amigos deles, nesse que eu fiquei até os 11 anos. Lembro-me disso. Era um condomínio grande, bem arborizado, a gente brincava muito, tinha mata.
P/1 – Você dividia quarto com seu irmão e você tinha mais irmãos já?
R – Não. A minha irmã tava pra nascer nesse instante, depois a gente mudou. Ela tinha nascido há pouco tempo.
P/1 – E como era a convivência na sua casa? Quem exercia autoridade, seu pai, sua mãe?
R – Meu pai, mas uma autoridade financeira. A minha mãe mais da educação e da gestão mesmo das coisas, era minha mãe. Minha mãe é meio mãe italiana assim, meio matrona, tudo acaba voltando pra ela, as indecisões voltam pra ela. Meu pai trabalhava de turno também, muito, então a gente se via mais assim, mas em festas, ou domingo, tinham uns dias assim que a gente se via mais, mas ele trabalhava muito na madrugada. Então era sempre dormindo, ou então acordava, a gente se via rapidamente um pouco, ele já tinha que dormir pra poder trabalhar na madrugada de novo. E eu também tinha escola, essas coisas. Então a minha mãe cuidava mais da gente, da educação, e do lidar, das questões ali no bairro e tudo isso.
P/1 – E você teve algum tipo de educação religiosa?
R – Eu estudei em escola de freira, estudei em escola católica muitos anos. A minha formação foi católica, foi católica, apesar de minha não ser praticante também nessa época. Hoje ela é fervorosa, mas na época a gente não frequentava muito. Mas a minha formação era essa. Hoje eu não comungo mais.
P/1 – Com quantos anos você entrou na escola?
R – Entrei na escola acho que com três anos de idade mesmo, no jardinzinho mesmo assim, com três anos de idade. Porque pela minha idade eu vou acompanhando bonitinho assim essa coisa da alfa com seis, primeira série com sete. Acho que eu entrei com três anos, certinho.
P/1 – E no primário assim, as professoras, algumas que te marcaram?
R – Ah, algumas. Tinha uma professora que eu era muito apaixonado. Eu tinha essas paixões pelas professoras. Tinha a Cristina que ela sabia que eu era apaixonado por ela, minha mãe já tinha contado, então era sempre uma cena, minha mãe ia me levar, ou então minha mãe tava perto, ficava aquele clima, minha mãe falando: “Não, vai falar com tua professora?” “Ai, mãe, ela já sabe, nã nã nã”. Aí ficava aquele climão. Eu era tímido, muito tímido, por isso Genisson. Eu era muito retraído, usava aparelho, usava óculos, era gago. Eu fui quase a minha vida inteira gago, depois de um tempo que eu fui resolvendo isso dentro da minha cabeça, mas eu era gago. Então era retraído, sentava na frente, estudioso, muito calado na escola e muito mais solto em casa. Então eu acho que na escola eu tinha esse espaço pra criar esses amores, essas paixões pelas professoras. Tinha essa Cristina, foi muito forte na minha infância, lembro muito dela, foi minha professora da segunda série. Professora da segunda série, era bonita, grandona, parece até com a Cristiane Oliveira, um pouco hoje lembrando, não sei. Era bonitona assim.
P/1 – E o que você gostava na escola assim, qual matéria?
R – Eu sempre fui muito bom em História. História e Português, essas de humanas eram as que eu mais me dedicava mesmo, tinha uma relação mais forte. Mas eu era bom assim, na escola, de nota. Mas História, Geografia, Literatura, Português, eram as matérias que eu gostava mesmo, que ia pra escola, estudava. História era o grande forte mesmo, tanto que mais pra frente eu comecei a dar aula de banca de História, História e Matemática.
P/1 – Mas aí você tinha alguma matéria ligada à religião, especificamente?
R – Tinha. Tinha. Tinha matéria de religião dentro da escola. Eu estudava numa escola religiosa, tinha matéria de religião. Tinha... Eu vou falando. Teve outra história boa dessa, que tinha uma professora... Como eu era muito tímido, então eu ficava muito no canto, isso da quinta pra sexta série, e chegou na sexta série, ela lembrava... Essa história é uma divisão assim, da minha história mesmo, porque dali eu comecei a ter outro comportamento na escola, porque ela chegou na sexta séria e ela se lembrou de todo mundo, de todo mundo da turma, ela falou : “Ah, ano passado você foi meu aluno, você foi meu aluno, você foi meu aluno”. Ela não se lembrou de mim. Caralho!. Quando eu vi aquilo eu falei: “Bicho, ela não se lembrou de mim”. Aí naquele mesmo dia eu decidi: “Ela vai se lembrar de mim”. Eu virei um demônio na escola. Um demônio. E principalmente com ela. Chegava ao ponto, ela tinha uma bunda bem grande, eu batia, eu era desse jeito, virei um demônio na escola. Essa mulher me amava, na sexta série ela me amava e eu era o demônio na escola, batia na bunda dela, fazia miséria, levantava. Fui suspenso nesse ano, eu quase fui expulso da escola nesse ano. Deu uma mudada na escola, o meu comportamento na escola. E me lembro desse instante, de eu falar: “Você vai se lembrar de mim. Você vai se lembrar de mim, gatinha. Espere aí”. Então, eu tinha educação religiosa esses anos todos. Eu sempre estudei em escola religiosa, acho que a maioria dos anos. O Assunção era uma escola religiosa, o Adventista, estudei numa escola protestante também, foi superdifícil, porque eles eram...
P/1 – Mas você trocou de escola lá?
R – Troquei de escola algumas vezes, troquei muito de escola.
P/1 – Por que você trocava de escola?
R – Porque a gente se mudava e porque, sei lá, às vezes eu também enjoava, pedia pra minha mãe. Minha mãe sempre teve uma relação muito boa comigo em relação a estudos, porque eu tinha boas notas, então era tudo do jeito que eu queria um pouco, se eu queria ir pra escola: “Ah, você não quer ir hoje, então tudo bem, fique aí, não vá hoje, não, vá no dia que você tá afim”. Então a gente tinha essa relação. Claro que eu sabia do meu compromisso e eu gostava de ir, mas a gente tinha essa liberdade. Então quando eu queria mudar de escola porque tinha um amiguinho que ia, ou tinha alguma coisa, minha mãe permitia sem problema. Então eu mudei do Assunção para o Adventista, que foi essa escola, porque eu tinha me mudado e tinha amigos próximos que estudavam lá também, aí fui mais pela farra mesmo estudar. Mas era uma escola bizarra assim, protestante, mas coisas loucas, gente cheirando éter dentro da escola, umas coisas muito loucas nessa escola. Protestante superexigente, a gente não podia andar, sei lá, com mulher...
P/1 – Mas por que você foi pra protestante?
R – Então, não foi pelo conceito da escola, não. Era só porque eu tinha amigos de bairro.
P/1 – Aí você...
R – Aí eu fui pra estar com eles, a gente já ia de carro com os pais deles também.
P/1 – Isso que eu ia perguntar. Como você ia pra escola?
R – Foram de diferentes maneiras, que eu fui pensando na minha cabeça. Eu já fui de carro com carona, já fui com transporte escolar, muitas vezes com transporte escola quando eu era menor, fui de ônibus com meu irmão mais velho e depois... Minha mãe e meu pai nunca tiveram tempo pra poder me levar na escola, minha mãe trabalhava e meu pai trabalhava de turno nesse esquema. Então ou a gente ia de transporte escolar, ou tinha o vizinho ou amigo que levava, ou a gente ia de ônibus, um pouquinho mais, eu lembro que com 11, 12 anos, eu já tava indo de transporte mesmo, de ônibus coletivo urbano pra escola. Aventurando-me. Era muita história disso, de você pegar ônibus guri, descobrindo as pessoas ali, descobrindo o que você vai fazer, sei lá. Eu não tinha isso de fugir, de matar aula, tudo isso, mas tinha possibilidade você indo sozinho. Lembro uma vez que eu fui assaltado, minha mãe ficou louca. A gente foi subindo a ladeira e tava com uns amigos, aí um cara encostou a gente num muro, com um carro, e aí já tava na hora para o cara levar, a gente não tinha mais o que fazer, uma senhora abriu uma janela, aí a gente olhou, ela falou: “O que tá fazendo com os guris aí”. Aí a gente saiu correndo, nos livramos do assalto. Perto da escola, bem próximo da escola essa época.
P/1 – Isso você já tava no ginásio?
R – Isso eu tava no ginásio já, isso já era sexta série. Antes era mais transporte escolar e carro indo assim, de amigo, de pai de amigo, revezando.
P/1 – Você falou que teve essa mudança de comportamento, que aí você passou a ser um capeta na...
R – Na escola.
P/1 – Na escola. Fora da escola o que você fazia, qual era o seu divertimento? Nessa pré-adolescência aí.
R – É. Na pré-adolescência. Eu sempre gostei de dançar, muito. Então a gente tinha uma turminha no bairro que era de dançar e jogar vôlei, que era meu vício maior, tipo, eu era o cara da rede e da bola. As pessoas me gritavam: “Fabrício”. Aí o Fabrício descia, montava a rede e a bola. Sempre fui muito brigão também, então eu briguei muito por conta dessa história de vôlei e de bola também na minha adolescência. Mas é isso que eu fazia mais, jogava vôlei, fiz natação, fiz caratê, fiz capoeira, fazia muito esporte também. O que mais, gente? É difícil trazer tudo. Com uns 15 anos eu fiz balé clássico, que a minha mãe me matriculou pra fazer balé clássico. Porque já via que eu gostava de dançar. Eu dei aula mais pra frente também. Mas dançar, dançar era uma coisa, dançar e jogar vôlei era uma coisa que eu tinha muito próxima. Até agora aqui na minissérie eu encontrei o Fly, que era do You Can Dance, eu falei: “Fly, eu usava as roupas iguais as suas, bicho. Tu era tipo uma referência estética, não no comportamento, mas estética assim”. Eu dançava as músicas do cara, usava umas roupas meio grunges assim, que o You Can Dance dançava na época assim também. Eu virei muita coisa na minha adolescência. Visitei esse espaço um pouco, que era da dança, dessa coisa meio You Can Dance, vestindo meio grunge, mas tinha a galera do vôlei, tinha uma galera da escola também, onde eu tinha outro comportamento também. Apesar da mudança, mas ainda me mantinha um garoto mais na minha assim. Conhecia todo mundo, mas um garoto mais na minha. Aí com 15 eu namorei sério assim, a primeira vez, com uma menina que era muito mais velha. Essa foi outra divisão, foi outro espaço.
P/1 – O balé clássico você começou a fazer com quantos anos?
R – Com 15 anos.
P/1 – Quinze anos. Mas você queria fazer clássico ou foi uma decisão da sua mãe?
R – A minha mãe trabalhava na Fundação Cultural aí já como funcionária pública, ela tava na Fundação Cultural nessa época. Aí ela sugeriu, ela falou: “Ah, faz o balé clássico, eu acho que vai ser legal. Faz. Faz”. Eu fui, achei o máximo, foi ótimo poder fazer, eu já tava trabalhando. Era chato que tinha que ficar carregando as meninas muito. Um homem dentro, alto, com 15 anos de idade, então nas apresentações eu só carregava as meninas, era meio tipo, uma roupinha, um collant, e eu ficava carregando. Aí que eu me diverti mesmo de verdade. Mas foi ela que me matriculou. E essa história junta depois mais pra frente, porque ela pediu as sapatilhas pra um bailarino que se chamava Augusto Omolú, que era do Teatro Castro Alves, que ela conhecia, que era um puta bailarino, ele ficou superemocionado, falou: “Ah, teu filho tá fazendo balé?”. Deu-me essas sapatilhas. Cara, isso corta pra dois, três anos atrás, eu fui estudar com um grupo italiano que reside na Dinamarca, que eu tinha estudado na faculdade, que é o Odin Teatret, e fui estudar com eles lá na Dinamarca. Aí eu fui abrir... Eu recebi esse e-mail falando do curso, fui abrir, quando eu vi quem ministrava esse curso, era esse cara, que saiu da Bahia, foi descoberto por esse diretor lá do Odin, trabalhava no Odin há quase dez anos, e ele tava ministrando esse curso. Aí quando eu vi o nome, liguei pra minha mãe, falei: “Mãe, é o Augusto Omolú que me deu a sapatilha?” “É, Fabrício” “Não acredito, mãe, eu to indo fazer um curso com ele lá na Dinamarca”. Minha mãe falou: “Jura?” “Juro”. Foi um puta acontecimento, um puta cara bacana, foi ótimo ter cruzado essa história. Contei pra ele, ele não acreditou.
P/1 – Você se lembrou da história da sapatilha?
R – Lembrei-me da história da sapatilha, total. Quando eu vi o nome, eu falei: “Mãe, foi esse cara que...”.
P/1 – Não, aí você falou pra ele?
R – Falei pra ele lá. Ele não acreditou, ele falou: “Você é filho da Graziela? Eu lembro, eu dei essas sapatilhas pra ela”. Ele se lembrou de tudo da história. Foi incrível, foi incrível. E foi um puta curso bacana assim, uma experiência boa, você ficar um mês e meio viajando e fazendo curso pela Europa, foi legal.
P/1 – Com 15 anos você falou que começou a namorar. Era uma menina que você já conhecia? Foi sua primeira namorada?
R – É. Eu considero como minha primeira namorada assim, de verdade, mais séria. Tiveram algumas mais novas, outras assim mais serinhas também. Eu era aquele menino que namorava bonitinho assim, então tinha uma namoradinha na época, mas do que eu soltão na pista, tinha uma namoradinha, sempre tinha uma namoradinha que acompanhava a história.
P/1 – Quem foi a primeira?
R – Hum, namorada mesmo que eu falei “estamos namorando”, acho que foi a Ilcimara. Que eu consigo lembrar foi a Ilcimara, no Adventista mesmo, eu tinha 12 anos, pra dizer assim “a gente tá namorando mesmo”. Todos os dias a gente saía da aula, ia pra uma barraquinha que ficava atrás da escola e dava os couros lá na barraquinha, ficávamos horas ali naquele canto. Gente, como a gente ficava tanto tempo ali atrás. Era, tipo, a gente saía da escola às seis da tarde, tipo, dava 11 da noite a gente tava lá, minha mãe desesperada, ela morava longe pra caralho e a gente tinha que dar um jeito de ela voltar pra casa. A gente perdia o mundo, esquecia o mundo debaixo de uma arvorezinha, atrás de uma barraquinha, de uma banquinha dessas de revista assim, fechada, saca, do horário. Era ali que a gente namorava todos os dias, era minha colega de sala. Essa foi a namorada de um tempo, esse ano a gente namorou o ano inteiro, que foi na sétima série, foi na sétima série que a gente namorou. Depois foi a Mirela, essa que era uma mulher já, que era amiga...
P/1 – Não, eu ia falar essa quando você tinha 15 anos.
R – Que eu tinha 15 anos. É. Eu era amigo dos irmãos dela, frequentava a casa, nã nã nã, nã nã nã, e a gente era amigo, já dialogava bem, porque ela era uma mulher descolada e tudo. Eu sempre fui um pouquinho mais à frente da minha idade, dessas coisas de conhecimento mesmo, de interesse, curiosidade pelas coisas. Então eu sempre tive amigos mais velhos e ela fazia parte de um desses amigos mais velhos que a gente trocava ideia, que falava de coisas. Ela era muito apaixonada por Renato Russo, só andava de preto, de lápis preto, era uma menina superdescolada. Aí a gente fez uma viagem pra Cachoeira, que aí cola a história de novo, porque eu não tinha voltado pra Cachoeira desde então. Eu só conheci Cachoeira muito pequeno, meus avós foram embora de lá há muitos anos, eu fui já sem meus avós morar lá, e depois com essa história com ela, que eu fui revisitar minha história lá. Não tinha mais ninguém, mas tinha uma coisa energética que me compunha muito, eu percebia que aquele lugar tinha uma relação forte comigo, percebo, eu chego lá, é fortíssimo. Ali eu comecei a namorá-la, ali a gente terminou, ali a gente brigou, ali eu já saí na mão com garrafa com gente, coisas loucas já aconteceram nesse lugar.
P/1 – Não, vamos voltar que eu quero entender, espere aí que eu quero entender. Ela quantos anos mais velha era de você?
R – Eu tinha 15, Mirela tinha 20 anos. Nessa idade fica distante, porque eu já tinha perdido um filho e era um garoto, 15 anos, usava aparelho ainda, meio gago ainda.
P/1 – Onde você a conheceu e esses amigos mais velhos, eram da onde?
R – Eu tinha amigos mais velhos de coisas de bairro, de gente que a gente trocava uma ideia no bairro. Deixe-me lembrar. Eu tinha Darlan, que era um amigo que eu conheci na rua, que era um cara mais velho e a gente trocava muita ideia também. Mirela não era de um grupo fechado, era ela que era irmã dos meus amigos mais novos que eu jogava vôlei. Mas à noite a gente trocava uma ideia sentadinho ali na porta do prédio dela assim. Até que a gente viajou pra Cachoeira e rolou, e a gente começou a namorar.
P/1 – Por que vocês foram pra Cachoeira?
R – Porque era São João e é tradição a gente ir pra interior na Bahia quando é São João, a festa é muito mais rica etc. E aí a gente foi pra São João e ficamos numa casa, alugamos uma casa, foi ela e a amiga dela.
P/1 – Com 15 anos você alugou uma casa junto com ela?
R – Alugamos uma casa, mas não só nós dois, foi todo mundo.
P/1 – Uma turma.
R – Foi uma turma e uns amigos dela já de faculdade aí também. Faculdade? Acho que não. Acho que ela tava no terceiro ano nessa época. Acho que a gente... É. Terceiro ano. Aí ficamos lá. Chegou, rolou uma noite, meio deitadinho assim, foi. Eu falei: “Opa, coisa boa”. E eu fiquei tão louco, tão louco. E por isso que eu conto que eu acho que foi minha primeira namorada mesmo, porque eu acho que aí eu descobri sexo mesmo, falei: “Caralho, é assim que se faz, saca? Essa é a parada, mano. Esse é o lugar, mano”. Aí eu me senti homem pra caralho e acabei comendo as amigas dela também na casa. Foi uma coisa louca. Essa festa foi... Porque ela ficou doida, ela falou: “Caralho, que é esse menino de 15 anos, é cheio de energia”. Então eu já saí comendo uma, ia para o quarto da outra, ia para o quarto da outra, todo mundo sabendo de tudo, virou uma loucura isso. Mas quando a gente voltou, a gente começou a namorar bonitinho.
P/1 – Mas aí que foi essa briga que você disse que saiu...
R – Então, mais pra frente, a gente ficou namorando, tipo, uns três anos.
P/1 – Ah, não. Não foi nessa vez?
R – Não. Não foi dessa vez, não. Nessa vez foi maravilha, foi lindo.
P/1 – Aí quando vocês voltaram...
R – Aí a gente engrenou uma relação. Engrenou uma relação que duraram uns dois, quase três anos.
P/1 – E seus pais tudo bem pelo fato de ela ser mais velha?
R – A minha mãe tinha muito ciúme. Minha mãe tem muito ciúme de tudo que é namorada que entra em casa, depois ela fica superamiga das meninas, é uma coisa que eu não entendo. De Mirela depois ela falava, conversava, perguntava por Mirela e tudo. Eu falava: “Mãe, a senhora odiava a Mirela”. Ela ficava muito com ciúme. Eu te falei, minha mãe é muito italiana, dessas dos filhos muito aqui debaixo das asas, ela tem um controle, então quem é essa mulher que vai invadir o espaço, saca, um pouco. Então ela não tinha boa relação, não. Meu pai gostava de todo mundo, mas minha mãe tinha uma relação meio delicada, ainda tem uma relação delicada, qualquer mulher que apresente ela tem uma relação mais formal: “Oi, querida, tudo bem?”. Assim, dá uma formalizada. E com Mirela foi assim um pouco, até que a gente terminou e aí minha mãe ficou amiga dela e das irmãs dela depois, tinha uma relação melhor.
P/1 – E essa briga que você disse que vocês tiveram?
R – É. Foi mais pra frente. Eu era muito brigão, muito brigão. O meu pai também era muito brigão, muito. Eu vi meu pai brigando muito quando eu era pequeno assim, na rua, sair na mão com gente, saca. Muito louco isso, era meio meu herói assim. Lembro-me de uma vez a gente tava num... Eu guri, uns sete, oito anos, todo mundo num bar, nesse mesmo condomínio que eu morava, e tava minha mãe, todo mundo tomando, bebendo, e minha mãe foi ao banheiro com as amigas. Aí eu vejo meu pai saindo, eu meio que fui atrás, quando eu vi, meu pai pegou um cara pulando o negócio pra ver as mulheres mijando. Bicho, meu pai foi assim, deu um soco no cara, meu pai batendo em todo mundo, vieram os amigos dele, e eu, tipo: “Eu quero brigar”. E eu atrás assim, meio... Foi tipo briga assim, eu falei: “Caralho, que doido”. Já vi meu pai brigando muito, meu pai era um cara esquentado, hoje tá muito mais tranquilo. E acho que isso foi acontecendo comigo também, a gente se parece muito no gênio, eu e o meu pai. Então acho que isso eu fui amenizando um pouco, mas eu era muito brigão. Então uma dessas histórias foi ciúme lá em Cachoeira. Ela tava conversando, ela descolada conversando com todo mundo e eu do lado, aqui parado, meio parado, meio puto, ficando meio puto, meio puto, meio puto, aí o cara pegou ela assim... Ela já tava na faculdade, todo mundo tinha uma relação, e eu era um garoto e uma mulher da faculdade lidando com o mundo já, então um amigo foi lá e deu um pitoquinho, ah, aí foi doidera, doidera total, de garrafa quebrada no meio e em cima, querendo meter em todo mundo. Loucura. Loucura. Foi uma brigona. Daí a gente ainda ficou junto um pouco mais, depois a gente terminou, numa outra briga também em Cachoeira.
P/1 – E aí você fez quanto tempo aula de balé clássico?
R – Balé clássico eu fiz um ano só. Fiz essa temporada só, de um ano. Mas aí eu comecei a dançar, em casa tinha o pessoal da turma, e tinha um amigo do meu pai que tocava numa banda, na Banda Mel, então eu comecei a... Dancei no clipe da Banda Mel uma vez e ia para o show a gente ficava dançando ali. Então às vezes... A bailarina me conhecia, falou: “Ah, chama o Fabrício”. Eu ia para o palco e dançava um pouco, sabia as coreografias todas, então... A dança sempre me acompanhou na minha história, sempre me acompanhou. Mais pra frente eu comecei a dar aula mesmo, dancei num grupo de depois comecei a dar aula em academia, de dança, com 18, 19 anos, viajava os interiores da Bahia dando aula de swing baiano. . Eu tenho esse passado. Tinha turminhas infantis, turminha mais velha, era incrível, era muito bacana isso. Que era a mãe de uma dessas meninas que dançava comigo no prédio que não podia dar aula, ela começou a pedir pra eu substituí-la, aí eu comecei a substituir, só que ela dava aula de academia mesmo, de step, essas coisas, e falou: “Ah, então quando tiver sua aula, vai ser uma aula diferente das minhas”. Aí ela começou a faltar, faltar, eu ia, ela falou: “Fabrício, assume essa turma aí”. Eu falei: “Jura, tia?” “Vai, assume”. Eu falei: “Jura?”. E fui assumindo. Foi incrível.
P/1 – Foi um dos seus primeiros trabalhos?
R – É. Esse foi o meu primeiro trabalho assim...
P/1 – Remunerado.
R – Remunerado.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Tinha 18. Antes disso eu tinha trabalhado no IBGE, eu fiz aquele concurso do censo e fui recenseador de casa. Aff, foi incrível isso. Isso foi incrível na minha vida, porque aí era uma puta responsabilidade, porque tava lidando com papeis, com gente, com informação. E bacana pra caralho você lidar com aquelas pessoas inteiras, você entrar na casa de cada pessoa e fazer questionários menores, e questionários enormes, então eu ficava às vezes horas na casa de alguém, perguntando. Conheci muita gente, fui pra batizado, pra aniversário, pra uma série de coisas. Tomava café, almoçava em casa de gente. Foi incrível. Foi incrível.
P/1 – Teve o concurso, você prestou, quantos anos você tinha?
R – Eu tinha 17, 17 pra 18. Saí da escola, aí foi o ano que eu prestei vestibular, não passei de primeira, eu tentei pra Direito. Eu achava que seria advogado, meu nome era Genisson na escola, então eu jurava que ia ser advogado. Aí eu prestei esse concurso, passei, aí comecei a trabalhar como recenseador.
P/1 – O que você tinha que fazer? Preencher aquele...
R – Eu tinha dois formulários enormes assim, quer dizer, um menor e outro grandão. Eu me lembro desse que tinha muita informação, com todo mundo da família, e era o que a gente ganhava mais. Então a gente rezava pra chegar a uma casa, porque tinha uma contagem, acho que era de sete em sete, ou dez em dez casas, tipo, a gente ia contando as casas que a gente ia visitando, esse é o questionário maior. Então se esse maior tem muita gente, você vai ganhar mais ainda por isso, era bacana. Aí eu prestei esse concurso e fui fazer. Tinham dois... Eu entrevistei três setores, a gente dividia em setores que você era responsável em passar. Aí passava de casa em casa, isso duravam duas semanas, mais ou menos, porque você não encontrava as pessoas, tinha que voltar, nã nã nã.
P/1 – E você ficava amigo das pessoas?
R – Muito. Pra caramba.
P/1 – Você se lembra de alguma situação?
R – Ah, me lembro de uma senhora que ficava se insinuando pra mim, mas eu sempre tomava café na casa dela, me atendeu um pouco de toalha assim, era uma coisa, ficava um clima, ficava um clima, era “engraçadézimo” isso.
P/1 –
R – Amigo, amigo assim pra vida, ninguém ficou. Mas muita gente assim, eu me lembro de gente que eu já chegava ao bairro, falava: “E aí, Fabrício? E aí, Fabrício?”. Eu falava; “Olha, a tua casa. Sua tia tá aí hoje?”. Aí já dizia. “Ah, sua tia tá aí?” “Ah, minha tia tá aí, pode fazer com ela hoje”. Então tinha coisa... Teve uma casa muito estranha, isso eu lembro, uma casa muito estranha, que era uma casinha muito pequena, não tinha sala, era só um cômodo, hoje eu acho que era uma coisa de... Não sei também se eu não to sendo... Mas acho que era uma coisa de prostituição, saca, porque eram umas mulheres que ficavam ali naquela cama, não tinha cozinha, aí lembro que eles ficam rindo muito, eu fazia umas perguntas, eles riam, riam muito assim, era um riso estranho, eu falava: “Será que eles estão mentindo pra mim?”. Eu ficava meio desconfiado assim. E cada uma tinha um cara, tinha um cara do lado. Eu lembro que a primeira que eu fui tinha uma e um cara, aí eles não quiseram me receber. Aí eu voltei de novo já eram três mulheres, cada um com um cara. Eles me ofereceram água, ficavam meio sentados assim, tinha uma cama, eles riam, tinha um clima meio solto, elas supercurtas assim. Fiz um questionário grande com eles ainda, aproveitei, todos eles disseram que eles moravam aqui. E tudo que eu falava, eu falava assim: “Tem mais gente?” “Hahahahaha” “To perguntando se tem mais gente” “Haha”. Eu falava: “Não, gente, eu to perguntando sério”. Eu falei: “Cara, o que é isso aqui, saca?”. Era muito insólito esse lugar.
P/1 – Que região da cidade era?
R – Era Engenho Velho de Brotas, que era uma área de Brotas, o grande Brotas.
P/1 – Qual é a característica do lugar?
R – Um lugar simples. Um lugar simples, humilde assim, que na parte superior tinha prédios, ia descendo, era quase uma comunidade grande. Lidava muito com pessoas que não... Isso foi muito forte pra mim, de ver que as pessoas não se reconheciam como negras. Nunca. Nunca assim, pouquíssimas. E você via. E eu claro que mudava, claro que mudava. Você tem a instrução de não mudar, você vai pela informação que a pessoa te dá. Mas eu via uma senhora, eu me lembro dessa senhora claramente, então ela dizia, ela falou: “Quais são as opções?”. Eu falava: “Parda, amarela...” “Bota aí amarela”. Eu falava: “Não, senhora, amarela é quando as pessoas são de origem...”. Aí tentava explicar pra ela. Ela falava: “Tá. Tá. Então fala outro”. Eu falava: “Parda, negra”. Dava um tempo, falava: “Branca”. Ela falava: “Tá. Bota parda”. Aí eu fui ao meu limite com ela, eu fui ao meu limite. No final eu falei: “Tá certo. Negra”. Botei assim sem ela dizer, saca. Foi muito forte pra mim, pra ver que as pessoas tinham vergonha, saca. Eu me lembro disso, ter ficado com isso: “Cara, como as pessoas têm vergonha, como elas não se reconhecem como negras?”. E claramente negras. Essa senhora era um tição, era uma negona como eu, não era nem essa misturinha que a gente fica aqui no Brasil, fala: “Ah, não sei, meu avô...”. Não, ela claramente assim, saca. Não se reconhecem, não se viam, não tinham prazer, sempre era a última opção, sempre: “Ah, bota aí preto. Bota aí”. Era sempre num lugar meio estranho. Pra mim isso foi forte, foi marcante.
P/1 – Esse teu bairro da infância era que tipo de bairro? Qual era característica dele?
R – Esse até 11 anos era desses popularzões, esses bairros populares meio Urbis assim, saca? Era bem simplório, mas eram esses primeiros emergentes assim, saca, quando vão ganhando as primeiras granas. Meus pais são de origem simples, bem humildes assim. Não digo humilde de... Porque aqui no Brasil a gente tem quase... Não é gente que passa fome, tudo isso. Meus pais não chegavam a ter uma situação assim de risco. Mas eram pessoas humildes. E aí o meu pai como petroquímico, o petroquímico deu ascendida social, então esse eram aqueles bairros mais Urbis assim, daqueles que ascendem primeiramente, uma casa, um carro, os vizinhos, esse era... Aí o outro já era um pouquinho mais sofisticadinho, já tinha elevador, já era uma coisa maior, que é de quando eu me mudo de 11 anos pra frente, que é onde eles moram até hoje.
P/1 – Quando você fez o censo, você prestou vestibular pra Direito e não entrou?
R – Não entrei.
P/1 – Mas você tirou fazer Direito de onde? Tinha alguma expectativa da minha família?
R – Então, meus pais sempre foram muito relaxados mesmo. A questão do meu estudo, muito relaxados. Minha mãe dizia: “Quer fazer o quê”. Se quiser fazer Biblioteconomia, ela falava: “Isso mesmo, faz Biblioteconomia, faz o que você quiser”. Mas como eu gostava muito de História, eu achava que Direito eu ia estudar História dentro da faculdade. Então eu achava. E até por eu ser um aluno estudioso, de ter notas boas, então eu achava que eu deveria ter uma profissão que eu ganhasse uma grana. Achava que Direito eu teria uma estabilidade financeira. Aí prestei o primeiro ano pra Direito, aí tomei pau nas duas universidades públicas que eu fiz. Eu falei: “Ah, então espera o próximo ano”. Eu fiquei burilando. Essa namorada Mirela já tinha me falado várias vezes, falou: “Fabrício, tu é ator, garoto, sai dessa, a sua é arte”. Ela sopra muito isso no meu ouvido, muito: “A tua é arte. A tua é ator”. E eu fiquei com isso na cabeça. Como eu perdi o vestibular, trabalhei no censo, então já tava meio circulando, já dando aula, eu saquei que essa podia ser a minha, aí eu resolvi prestar vestibular de novo no ano seguinte pra Teatro como primeira opção, Artes Cênicas, na federal de lá, e Dança como segunda opção. Aí passei. Passei pra Artes Cênicas bem colocado.
P/1 – Na federal?
R – Na federal. Foi ótimo. Lembro-me do momento que eu falei isso pra mãe de um amigo meu, a gente tava na cozinha dela almoçando e ela tava servindo a lasanha, aí a gente conversando sobre vestibular, ela falou: “E você se inscreveu pra quê?” “Ah, tia, eu me inscrevi pra Teatro, segunda opção, Dança”. Puff, caiu a lasanha no chão, inteira, ela falou: “Você vai fazer Teatro com Dança? E a tua mãe?”. Eu falei: “Não, tia, minha mãe achou ótimo”. Eu lembro que ficou um clima dentro da casa dela um tempo. Falou: “Caralho, que ele tá pensando, que pais são esse?”. Sabe? Que tinha um clima assim, tipo: “E a tua mãe não vai te falar nada? Vai fazer Teatro?”. Lembro-me dessa situação com ela. Foi ótimo, passei bem, passei em quarto lugar. Quando é coisa que você quer mesmo, você vai mesmo... Sei lá, tem outros lugares aí que você aciona, sei lá, do destino, sei lá, de opção tua também, você tá mais integrado, mais focado do que você deseja mesmo, mais reconhecendo isso dentro de você. Foi incrível. A faculdade pra mim foi outro passo de mudança.
P/1 – Você já tinha atuado antes?
R – Já tinha atuado antes. Com 15 anos também, quando eu fiz balé clássico, uma prima minha me levou pra fazer um curso no Solar Boa Vista, um curso de teatro amador. Aí eu fui e foi bacana, foi legal. Fiquei, fiz dois anos de curso lá com ela, com a professora Ana Grimaldi o nome dele. E essa foi a minha experiência com teatro, forte.
P/1 – Qual foi a primeira peça que você atuou?
R – A primeira foi uma colagem de cena de coisas que a gente tinha ensaiado, era uma coisa meio adolescente. Mas eu considero que a primeira vez que eu atuei mesmo foi na escola numa coisa de São João. Como eu era muito tímido, eu nunca fazia nada na escola de apresentação, nada, era sempre no cantinho, na filinha. Aí o garoto que ia ser o noivo da quadrilha, que tinha uma cena lá do casamento, não queria fazer. Eu me lembro da professora falar: “Edésio, você não vai fazer, nã nã nã”. Ele falou: “Ai, professora, posso te falar a verdade?”. Aí ela falou: “Fala” “Eu não quero fazer”. Aí ficou aquele clima inteiro, já perto de estrear, ela falou: “E aí, gente, o que a gente faz? Alguém quer fazer no lugar?”. Dia de mudança, eu me lembro da minha cabeça assim falando: “Fala que eu quero, fala que eu quero, fala que eu quero. Ai, não, não vou falar. Fala que eu quero”. Sabe aquele segundinho que parece uma eternidade: “Faz. Faz. Faz”. Então saiu uma coisa tipo: “EU”. Foi uma coisa bem enorme assim, grande, aí todo mundo meio que olhou pra mim, tipo: “Genisson”. Foi tipo um: “Genisson”. A professora olhou pra mim meio desconfiada: “Você quer mesmo, Genisson?”. Falei: “Quero”. Ela falou: “Quer mesmo? Tá legal, Genisson, vai lá, pega o chapéu dele e entra”. Aí quando eu fiz todo mundo ficou meio assim: “Caralho, ele sabe fazer”. Essa é uma história que meu pai conta muito, porque quando ele viu essa apresentação, meu pai chorou muito. Então é um fato marcante na minha história profissional. Meu pai conta disso, que ele me viu lá bêbado, fingindo bêbado e tudo, que ele se emocionou e falou: “Meu filho”. Gritar lá, falar: “Meu filho”.
P/1 – Você falou essa sua vontade veio muito da vivência que você teve com a sua mãe.
R – Isso.
P/1 – Que ela te levava e você viu algumas coisas. Que teatrinho você a primeira vez, ou atuação que te marcou assim?
R – Eu vi na Biblioteca Central onde minha mãe trabalhava, uma menina fazendo um relógio, isso minha mãe conta também, que eu fiquei falando muito desse relógio, e eu me lembro disso. Era uma menina que saía com uma roupa inteira assim meio lilás, aparecia e fazia um tique-taque. Eu achei aquilo tão máximo, tão máximo. Eu lembro, era uma menininha com olhinho puxado. Eu achei aquilo tão máximo, eu falei: “Caralho, que incrível isso”. E era no meio da biblioteca, era no chão, não tinha nada assim de mais, não tinha nem luz, nada. Era ela com a roupinha roxa assim, eu lembro que o rostinho dela ficava de fora e tinha alguma coisa aqui que eu não lembro, se era o relógio que ficava aqui, eu me lembro de uma coisa assim forte no peito, e ela com a mãozinha entrando assim. E eu achei aquilo incrível. Isso foi uma coisa que marcou muito assim, de falar: “Opa, olha que coisa legal isso”. Pequeno. De lembrar-me disso depois.
P/1 – E a faculdade de Teatro, pra entrar na faculdade tinha alguma específica?
R – Teste de aptidão. Tinha o teste de aptidão.
P/1 – Teste de aptidão.
R – Eu já tinha feio esse curso quanto eu tinha 15 anos, fiz dos 15 aos 17 esse curso, tinha feito balé também. No meu terceiro ano de escola a gente tinha que fazer um filme, produzir um filme, e aí eu acabei dirigindo, atuando, fazendo tudo, falei: “Opa, eu acho que eu to no embalo”.
P/1 – No terceiro colegial?
R – No terceiro colegial. Falei: “Opa, acho que tem coisa aí”. Por uma coisa louca a Ciça Castello, produtora da Globo, passou, deixou um cartaz no TCA, minha mãe trabalhava no Teatro Castro Alves nessa época, e eu passei e vi, eu tinha 17, tava no terceiro ano. Eu passei e vi que era um cadastro pra Globo. Aí eu to saindo de lá, ela aparece e falou: “Ei, você viu o cartaz que eu deixei?”. Falou comigo. Eu fiz um teste pra Globo. A Ciça se lembra disso até hoje, ela se lembra de tudo, se lembra de me encontrar e tudo. Fiz um teste pra Globo com 17 anos de idade, fui, tipo, não tinha experiência nenhuma.
P/1 – Fez lá em Salvador?
R – Lá em Salvador. Foi na TV Bahia. Fiz esse teste, foi o máximo, foi bem legal e não gerou nada dali. Aí eu continuei, fiz vestibular pra Direito, mas aquilo tava em mim, claro, eu já sabia que tinha coisa ali pra poder vasculhar, que tinha um desejo, aptidão, já tinha visto que dava certo, funcionava, eu fiz o filme na escola, tinha recebido elogios, as pessoas viam, estranhavam.
P/1 – Como era o filme?
R – Era uma história de um fotógrafo que ia pra uma cidade do interior, que a gente foi no meio da Chapada Diamantina, no início da Chapada Diamantina. E a gente viajou a turma inteira, fomos pra lá. E era um filme de um fotógrafo que chegava a essa cidade do interior, uma cidade chamada Ventura, olha o nome que lindo, que só tinha oito habitantes, que foi uma cidade que viveu da descoberta do minério. Só que chegaram, descobriram tudo e deixaram a cidade vazia, era uma cidade fantasma, eram ruínas, ruínas, casas velhas, você entrava nas casas ainda tinham as coisas como se as pessoas estivessem morando, mas tudo envelhecido, tudo envelhecido, ninguém entrou pra mexer, nada, era uma coisa louca. E aí o filme era dessa época do minério. Então era a gente chegando, eu lá pra poder investigar essa coisa do minério, esse fotógrafo. E lá ele se apaixona pela esposa de um fazendeiro rico, e tem uma coisa de tiro, nã nã nã, a gente o matava e eu ia embora com ela a uma cachoeira com ela vestida de noiva e a gente em cima da cachoeira jogando todas as pedras. Eu lembro que a gente jogava as pedras na cachoeira assim. Mas foi legal. Foi ótimo. A turma inteira produzindo, a gente teve que meter a mão na massa mesmo, fazer, segurar boom, segurar, escrever, fazer tudo. Não ganhei prêmio como melhor ator. Porque ainda tinha o festival, a gente produzia e depois toda a escola ia pra um cinema ou então pra um teatro grande, exibia todos os filmes, e tinham as pessoas que votavam. E eu não ganhei como melhor ator, fiquei passado, falei: “Caralho, eu mandei pra caralho, ganhei o cara”. Só porque o cara fez uma bicha e era engraçado, eu falei: “Porra. Porra. Porra, só por causa disso, eu também faço. Vou fazer uma bicha agora também”. Mas foi legal essa experiência, foi muito legal. Foi uma entrada já no semiprofissional, apesar do curso amador e tudo, mas com a coisa da câmera, de lidar com isso, com set um pouco, era disciplinado, sempre fui disciplinado para as coisas que eu gosto. Então eu tinha disciplina, não saía à noite, todo mundo fazendo farra, eu falava: “Não, eu preciso me cuidar”. Todo mundo falava: “Você tá louco, bicho. Você tá louco, se cuidar”. Eu falei: “Os atores são assim, bicho, a gente se cuida pra poder ir trabalhar no outro dia”.
P/1 – E na faculdade você teve esse teste de aptidão.
R – Tive teste de aptidão.
P/1 – Você passou em quarto lugar?
R – É. Eu pedi pra um amigo meu, que era dessa turma de amigos mais velhos, que é meu amigo até hoje, Marcos Bokapiu, que era um estilista de lá, que é um estilista de lá de Salvador. E aí eu comentando com ele que tinha que fazer o vestibular, aí ele falou: “Ah, tem uma amiga minha chamada Maria Souza, que ela pode te dar um toque”. Aí eu cheguei lá, aí marcamos, falei: “Oi, Maria, tudo bem?” “Tudo bem” “Então, vou fazer o teste”. Aí ela falou: “Faz aí o que você pensou”. Aí eu fiz, ela falou: “Olha, não”. Já foi me corrigindo umas coisas, falei: “Tá e aí, como eu faço pra trabalhar?”. Superansioso, falei: “Beleza, to aqui, mas eu vou precisar viver disso. Como eu faço pra trabalhar?”. Ela falou: “Fabrício, não sei. Você vai fazer e as pessoas vão te conhecer” “Ah é? Mas isso demora?”. Tipo: “Pô, eu to saindo do meu emprego agora, eu preciso trabalhar e ganhar minha grana, preciso viver disso”. Ela falou: “É, Fabrício...”.
P/1 – Você tava saindo do censo?
R – Saí do censo dando aula na academia.
P/1 – Ah, dando aula, aquela aula lá.
R – É. Como eu ia fazer faculdade pública, então era nã nã nã, aí ela falou: “Olha, então acho que tu vai ter que largar as tuas aulas”. Eu sabia que ia largar, falei: “Caralho, como eu vou trabalhar, como vou conseguir me manter disso?”. E foi ótimo com ela, ela me deu vários toques legais. Depois foi a minha professora, depois da universidade, ela fez concurso e entrou. E foi ótimo, foi bom, foi um teste legal. Eu fiz “O diário de um louco” do Gogol. E era uma semana da gente dentro de uma sala, e alguns professores avaliando. Foi, tipo, incrível, gente de toda a cidade assim.
P/1 – Mas como era? Eles davam o tema antes…?
R – Eles davam os monólogos, que você escolhia, mas antes disso você ficava...
P/1 – Tinha opção?
R – Tinham umas cinco, seis opções. Mas antes disso você ficava uma semana dentro de uma sala, indo todos os dias, duas, três horas, e eles te avaliando, dando exercício e te avaliando.
P/1 – Mas eles davam previamente pra você preparar os cinco e sorteavam na hora? Como era?
R – Não, então, aí antes eles já te davam as opções do monólogo e você escolhia o teu. E era escrito a que você ia apresentar no último dia.
P/1 – Por que você escolheu esse monólogo?
R – Hoje, pensando, acho que pela força do texto, porque era um texto forte, era um cara pirando, vislumbrando coisas dentro, ele achava que ele era o rei do Brasil e ele ia proclamando coisas. Acho que pela força do texto, achava que tinha um pouco a ver comigo. No instante, intuitivamente. Hoje eu consigo ver que tinha total a ver com as coisas que eu escolho hoje pra trabalhar. Por isso. Por isso. Eu nunca tinha lido nada do Gogol também, conhecia poucas obras de teatro, foi mais intuitivo mesmo em achar que aquele texto tinha a ver um pouco com a minha persona, com meu jeito. Foi bonito, foi bonito o teste, foi bonito.
P/1 – E esse período da faculdade, como foi, quais eram as matérias, as disciplinas?
R – Eram muitas matérias de corpo, matérias de voz. Mas a grande parada da faculdade pra mim foram os amigos que eu fiz. Eu fiz um grupo de amigos, éramos seis, que a gente se conheceu já nesses primeiros testes e ficamos muito próximos. A faculdade foi maravilhosa, mas eles foram incríveis. Eu hoje sou ator que eu consigo ver coisas minhas em cada um deles, da troca, vejo coisas que eu faço hoje que são eles, coisas que eu aprendi com eles, o jeitinho de cada um assim, até eu falar uma coisa, eu falo: “Eita, isso é Nilson. Eita, essa coisa do corpo é Márcio”. Saca? E muitos já estavam no mercado trabalhando, então eu pude beber muito, saca, deles, frequentar. O Márcio fazia parte de um grupo que existe até hoje, que é o Dimenti, que é um grupo que trabalhava com dança teatro. Opa, eu já trabalhava com dança, junto com esse grupo, então eu vi tudo desse grupo, eu fazia oficina desse grupo. Então hoje o meu trabalho com teatro é total dança e teatro, total, meu corpo é vivo pra caramba, dentro dessa brincadeira do teatro e tudo, tem a dança, sempre. Que eu aprendi muito com o Dimenti, a transformar a dança puramente em arte cênica mesmo, nessa mescla com o teatro um pouco. Eu acho que hoje é tudo a mesma coisa, são formas de comunicação e tá tudo dentro. Hoje eu não consigo diferenciar muito o que é dança, o que é teatro, pra mim é espetáculo e é comunicação. Hoje teatro sem texto e parece dança. Tá tudo meio confuso. Mas essa mescla eu peguei com o Dimenti, com o Márcio. Nilson era um cara da comédia, tipo, um mega, puta, Deus do céu, o Nilson era uma coisa... A gente ria muito, não parava, o cara fazia paródia de tudo, sátira de tudo. Lembro-me de uma sátira que ele fazia do “Chicago”, daquele filme “Chicago”, bicho, a gente mijava de rir. O cara é incrível. Então tudo que eu faço hoje engraçadinho assim, de brincadeira, eu saco que tem coisa dele, que eu bebi dele, saca. Nanda superséria assim, a interpretação dela é supernatural, uma menina densa, uma cara de nada, todas as vezes que eu preciso fazer uma coisa assim eu penso em Nanda, saca, eu penso em Nanda, tento trazer pra coisa mais emocional, tá em Nanda. Taís uma atriz superinteligente, rápida, constrói fisicamente muito bem, saca. Bebi claramente dela também. E Isabela bailarina, dançarina, bailarina, inteligente, estudiosa pra caralho. São meus amigos até hoje. A gente morou junto pra frente assim também.
P/1 – Esse período da faculdade você morava com os seus pais?
R – Comecei morando com os meus pais. Só que aí toda a minha ansiedade profissional de ganhar dinheiro me levou a trabalhar no meu primeiro ano da faculdade. Eu entrei pra um grupo de teatro de lá que era a Companhia Baiana de Patifaria, não sei se você já ouviu falar da Companhia Baiana de Patifaria. Então, entrei pra Companhia Baiana de Patifaria, comecei a fazer “Capitães da Areia” com eles e, tipo, eu com 19 anos, acabado de entrar na faculdade, 19, 20 anos, ganhando mil reais por semana naquela época, bicho, tipo: “Caralho”. Era, tipo, cambista na porta. Foi um espetáculo que durou um ano, era sucesso em Salvador.
P/1 – Com você entrou lá?
R – Ah, essa história é ótima. Eu tava no feijão da escola, que a gente chamava a pracinha que fica na frente, e a gente tava jogando um jogo que chama “Apertadinho”, se você ficar apertado no número, você paga uma prenda. Então quem chegasse ao número, ficasse apertado, pagava uma prenda, eu paguei a prenda. Passou a diretora do espetáculo e outra menina, aí esse meu amigo falou: “Olha, você vai ter que cantá-la”. Quando eu vi era outra gatíssima. Mirela até, por sinal, o nome dela. Aí eu olhei pra menina, falei: “Ótimo. Fechado”. Aí ele falou: “Não, não, é aquela ali”. Aí passa pra aquela seriíssima, compenetrada, com os livros assim na mão, sentando, senta, bota um café do lado. Aí eu falei: “Me fudi. Vou ter que pagar essa prenda”. Cheguei pra Fernanda Paquele e falei: “Oi, tudo bem” “Tudo bem”. Aí eu: “Estudo aqui na escola, você já percebeu?”. Ela falou: “Já. Já percebi. E eu também percebi que você fica me olhando muito”. E eu: “Ah, queria falar sobre isso, queria saber de você o que tá acontecendo, o que tá rolando. Eu comecei a ficar interessado também”. E ela ficou parada. Lívida, parada olhando pra minha cara, pensou: “Eu não acredito que esse garoto tá fazendo isso comigo”. Parada assim me olhando de cima a baixo. Aí falei, falei, falei, cantei, aí no meio eu comecei a rir, falei pra ela: “Não, não, é brincadeira isso”. Ela falou: “Eu já tinha sacado que era uma brincadeira”. E os caras rindo assim atrás. Voltei para o meu grupo. Falei: “Ah, desculpa, nã nã nã”. Voltei. Daqui a pouco ela volta lá, falou: “Você tira esse aparelho quando?”. Aí eu olhei pra ela, ela falou: “Não estou te cantando. É só pra saber, porque eu vou fazer um espetáculo, eu queria que você fizesse esse espetáculo”. Eu falei: “Jura?”. Ela falou: “É. ‘Capitães da Areia’. Quero que você vá fazer teste amanhã tal hora, tal hora, tal hora”. E foi assim que eu entrei pra peça.
P/1 – Que ótimo.
R – Foi muito legal isso. Foi muito legal. Com ela, que virou uma puta diretora depois. A gente trabalhou junto de novo? Acho que não. Mas foi assim que eu entrei pra esse grupo, fiquei com eles um ano...
P/1 – Aí você começou a ganhar dinheiro?
R – Aí comecei a ganhar dinheiro. Falei: “Opa. Então daqui tá funcionando”. Aí aconteceu uma coisa louca, daí eu não parei mais de trabalhar, daí não parei mais de trabalhar com o teatro. Desde então eu vivo até hoje só fazendo teatro como ator e me sustentando. Eu comecei a ganhar dinheiro, comprei um carro, já tinha avisado meio pra casa que eu tava já de saída, eles não acreditavam muito.
P/1 – Aí você tá com...
R – Tava com 21 anos. Um dia eu pirei em casa por coisas bobas, um xampu, alguma coisa assim, mas sabe quando é o estopim? Eu não aguentava mais morar em casa, tava querendo sair de casa, liberdade, poder fazer as coisas do meu jeito. Meus pais eram ótimos, mas eu queria viver o mundo no meu recorte. Aí eu lembro que um dia eu falei: “CHEGA! CHEGA! To saindo de casa agora”. E eu já tinha combinado com um brother que tinha um apartamento, que tinha um quarto vazio, de morar com ele, com o Igor, com ele e com Patrícia. Aí eu falei: “To saindo de casa agora”. Meu pai ligou correndo pra minha mãe, falou: “O Fabrício tá saindo de casa agora. Vem”. Minha mãe saiu do trabalho, saiu correndo pra casa, quando chegou, eu já tava com as coisas meio prontas pra sair, ela falou: “Que história é essa que você vai sair de casa?”. Eu falei: “Acho que já deu gata?”. Aí ela falou: “O que é isso, Fabrício?”. Eu falei: “Mãe...”. Ela ficou meio assim, meio assim, me chamou no quarto, aí eu dei o papo reto, falei: “Mãe, a senhora não sempre falou que a senhora se arrepende de ter se casado antes de ter morado só?”. Aí bateu na minha mãe. Aí ela falou: “Vai. Vai”. E fui. Dali eu nunca mais voltei pra casa, pra morar em casa não. Fui morar com o Igor, de lá fui dividir apartamento com outro amigo, depois comecei a morar só. Aí dividi com outro amigo mais pra frente, e só depois, muito tempo.
P/1 – Aí você ficou um ano fazendo “Capitães”?
R – Um ano fazendo “Capitães da Areia”.
P/1 – Tava na faculdade?
R – Tava na faculdade. Depois daí eu fiz um teste, fiz uma campanha, uma coisa bizarra que eu fiz, mas foi ótima essa época, porque foi o meu sustento e, tipo, grana que se vacilar eu tenho até hoje. Eu fiz uma campanha eleitoral dessas... E tinha teste pra todo mundo, eu fui fazer e eu lembro que eu passei porque eu tava com um problema no olho assim, acho que era conjuntivite, alguma coisa que meu olho tava assim. Aí eu parei no meio do teste e comecei a falar do meu olho, eu lembro que os caras ficaram loucos, não acreditavam que eu tava fazendo aquilo. Eu falava: “Olha, meu olho não é desse jeito, não. Vocês ficam pensando...”. Comecei a improvisar um monte de coisa no meio do teste. Pimba, passei no teste, fiz uma campanha lá, foi um estrondo, uma coisa...
P/1 – Mas campanha eleitoral?
R – Eleitoral.
P/1 – Pra qual partido?
R – Era o PFL. E era um candidato chamado Paulo Souto. E eu recém-entrado na faculdade. Isso foi uma loucura na minha vida, porque era a primeira... Não sei se era a primeira vez, mas em Salvador, que é um lugar de 80% negro assim, as pessoas não se veem muito na televisão, não tem, como no Brasil inteiro, mas em Salvador isso é mais grave, porque a gente tem 80% da população negra. E tinha um negro de cabelo de dread, que nessa época meu cabelo tinha dread, fazendo campanha para o PFL e fazendo direito. Bicho, isso foi um estrondo na cidade, a ponto de eu estar num shopping center um dia com umas amigas almoçando, uma mulher pegou a cadeira e ficou sentada assim do meu lado me encarando, horas parada me olhando. E eu olhando pra cara dela, olhando pra cara dela, olhando pra cara dela, aí eu uma hora falei: “E aí? O que você quer?”. Aí ela falou: “Você, você é um escroto”. Pegou tudo que tava na minha mesa, jogou assim, aí foram todos os seguranças em cima, ela: “Você...”. Começou a me xingar no meio do shopping, a praça de alimentação oito horas da noite assim, uma coisa absurda. Aí os seguranças me tiraram, me levaram pra uma loja e eu fiquei o resto da campanha inteira andando de motorista, ia pra faculdade de motorista deles, ia malhar de motorista. Porque as pessoas não conseguiam lidar comigo na rua, ou era pedindo autógrafo exageradamente, aquela coisa meio over se eu tivesse no ônibus, ou eram as pessoas me agredindo na rua. Foi uma loucura isso, foi uma loucura a minha vida. Depois dessa campanha, matamos a campanha e rolamos, eu virei garoto propaganda do cara que ganhou, que foi o Paulo Souto. Aí eu viajava, isso foi uma experiência linda na minha vida, que aí a gente viajava de 15 em 15 dias no mês pelo interior da Bahia, isso o interior quase inteiro da Bahia eu conheço por conta disso, apresentando coisas do governo. E foi ótimo, que eu comecei a lidar de verdade, porque ali ainda tinha uma coisa de jovem precisando de grana, querendo viver, nã nã nã. Mas ali, vendo as coisas ali, eu já comecei a entender que nem tudo funcionava, então eu já comecei a entender até o grau de animação que eu tinha na apresentação, porque eram uns comerciais que eu fazia pra televisão, apresentando, tipo: Ah, eles agora estão estreando essa casa nova, olha o que o governo do estado acabou de fazer”. Daí eu sacava se de verdade tava construído mesmo, se não era uma história, a gente já chegava antes, que o diretor era um cara também assim mais politizado, então a gente sacava, via se era verdade mesmo. Se era a gente fazia, se não era a gente boicotava ou fazia mais ou menos, que era: “Estamos aqui numa casa, que o governo do estado fez...”. Então eu ia dosando se eu era sedutor pra parada ou não, ou se eu dava uma amenizada, porque a história tava meio estranha, saca. Foi ótimo poder jogar com isso e poder conhecer gente pra caralho, o interior da Bahia inteiro, histórias que... Muita história, muita história, muita gente.
P/1 – Que tipo de história?
R – Olha, muita gente legal, muito senhorzinho, muita senhoria, história de pobreza, histórias peculiares. Tinha um cara que tinha relação com as filhas, a gente descobriu isso no meio, foi dolorido.
P/1 – História de transar com as filhas?
R – Ele lida com as filhas, tinha filha grávida, isso meio...
P/1 – Grávida dele?
R – Dele. Isso num lugar inóspito assim. Hoje muito difícil, mas julgar, a gente tem até esse “arrrg”, mas de verdade o cara morava num lugarzinho, no canto assim, era Chapada Diamantina? Não vou lembrar onde esse cara morava, um lugar… uma coisa assim. Mas era um casebre, um casebrinho assim, no meio de um lugar inóspito, não tinha ninguém, o cara morava sozinho quase assim, no meio desse lugar, e tinha o jeito dele de viver, ele criou um jeito dele de viver. Só que quando as pessoas da cidade souberam que a gente tava indo para o lugar, as histórias rendem, contaram pra gente, então a gente chegou meio... E a gente ia trabalhar com a família dele, acabamos não trabalhando com a família dele, não tinha o que fazer. Porque eles moravam próximo ao rio onde a barragem que tinha sido construída passava, então ele era uma família beneficiada, então a gente ia trabalhar com isso. Que mais de história eu conheci daí? Pô, tanta gente. Eu trabalhei com um cara incrível, que era outro diretor, chama Jorge Alfredo, porra foi um cara que me ensinou a calma no set, de dizer: “Fabrício, fica calmo. Fica calmo. Tá tranquilo. Fica calmo, vai dar tudo certo”. Eram uns textos enormes que eu precisava decorar, todo mundo louco dentro da van, aquela fumaceira inteira dentro da van, a gente viajando e eu...
P/1 – Para o candidato?
R – O quê?
P/1 – Não, essa viagem...
R – Sem candidato.
P/1 – Ele não... Vocês que iam. Era só a galera. Tá. Entendi.
R – Não. Não. Nada. Nada. Não tinha nada a ver, a gente que ia junto com uma equipe de publicidade. Não, era a gente, nossa equipezinha maravilhosa, a gente se amava. Puta, 15 dias viajando o interior da Bahia, a gente vendo coisinhas, passando fome às vezes de uma cidade pra outra, a gente não tinha o que comer, então a gente ficava parando em rodoviária, quatro horas da tarde, não tem mais comida, eu desesperado, que uma hora eu falei: “Cara, eu preciso comer. Não tem uma senhorazinha que frita um ovo pra gente comer?”. Os caras enormes assim, todo mundo morrendo de fome. Era uma família. Conheci vinho a partir desse cara também, do Jorge, a gente viajava com uma caixa enorme assim de vinho, ele ia apresentando vinho pra gente, saca. E por coincidência esse cara morava no prédio que a minha avó materna morava, morou a vida inteira. Então ele me conhece e não se lembrava de mim, eu que o lembrei. Um dia a gente andando, eu falei: “Jorginho, eu tenho uma impressão que eu te conheço, sabia?”. Aí ficamos, ficamos, ficamos, eu falei: “Caralho, eu sou amigo dos teus filhos, você morava no prédio de Romana”. Ele falou: “Romana? Você é neto...”. Ah, loucura. Com esse cara, com o Jorge Alfredo, que é um cineasta de lá de Salvador, que foi uma figura muito marcante na minha vida.
P/1 – E você ganhou bastante dinheiro nessa época?
R – Ganhei uma grana com essa época. Nessa época eu gastava pouco e tinha um salário bom, porque eu trabalhava com televisão, com publicidade. Não me pagavam o justo, evidente, pra um garoto começando e tudo, mas foi uma grana que consegui juntar por muito tempo. Então isso me deu uma independência profissional também, que eu tento conservar até hoje, que é de eu poder escolher o que eu quero fazer profissionalmente, não ir muito pela necessidade, ir muito mais pela empatia, por tudo, pelo desejo de contar aquela história, por tudo, por coisas minhas pessoais, não pela necessidade. Então isso foi muito importante pra mim, esse trampo, por conta disso, porque até vindo para o Rio de Janeiro, até lá em Salvador, eu trabalhava só com o que eu quisesse: “Ah, não quero fazer, não. Ah, obrigado, não quero, não. Não quero não porque eu to bem, não há necessidade não, quero escolher”. Isso foi ótimo na minha história profissional, das coisas que eu consegui acumular de experiência.
P/1 – Mas quando você foi fazer essa campanha, você tava fazendo faculdade?
R – Tava fazendo faculdade.
P/1 – Aí você fazia os dois?
R – Fazia os dois, era uma loucura. O professor tentando segurar a onda, e por causa desse trabalho que eu larguei a faculdade. Eu já tinha feito quatro anos já de faculdade, mas teve muita greve, porque era federal. Aí eu já não tava aguentando, tava de saco cheio lá de uma professora que eu tava pegando também, de voz, porque ela ia pra aula e ficava falando dela, das experiências dela profissional, então ela ficava: “Ah, você lembra quando eu fazia tal espetáculo, que a minha voz ia”. Aí ficava fazendo as vozes que ela fazia. Porra, eu fui ficando tão puto com aquilo, aí um dia eu levantei a mão, eu falei: “Eu adoro você, acho você uma puta atriz, mas eu não aguento mais falar desse espetáculo”. Era só um espetáculo, que era uma coletânea de coisas que ela tinha feito. Era aquilo o tempo inteiro, eu falei: “Mas eu não aguento mais, você pode dar outros exemplos?”. Próxima aula: “Porque minha voz...”. Eu falei: “Não. Não dá mais. Não dá mais”. Aí eu fui embora. Fui embora, larguei a faculdade aí. Esse dia eu falei chega, eu não aguento mais essa mulher, gente, não aguento mais. E fui embora da faculdade, não me formei. Já tinha a coisa do trabalho também, ganhando grana, vivendo sozinho e tudo.
P/1 – Depois dessa campanha, qual foi seu outro trabalho?
R – Aí fiz campanha, aí fiquei trabalhando quatro anos, que foi o...
P/1 – Ficou quatro anos?
R – É. Que foi o tempo de governo do cara. Daí eu já emendei com “A máquina”, que foi o filme do João Falcão, aí fiz uma peça em Salvador, duas.
P/1 – O filme foi o primeiro cinema que você fez?
R – Foi o primeiro. Foi esse “A máquina”.
P/1 – Como foi? Como você foi parar lá?
R – Ah, foi muito bacana, foi um teste que o João fez em Salvador, fez, enfim, em vários lugares, eu fiz em Salvador. E era uma participação no filme, é o menino que vai embora da cidade, não sei se você viu esse filme, “A máquina”. Você viu a máquina?
P/1 – Vi.
R – Então, eu faço o Valdene, o menino que vai embora primeiro, que fica esperando, passa um tempo meu cabelo cresce, meu cabelo vira... É um filme sequência lindo nesse filme. Aí o João me escolheu e escolheu outro ator de Salvador, porque a gente se parecia, que depois eu volto na história, na frente do shopping, que é o outro ator que faz, que é o Val Perré. Foi ótimo. Foi ótima a experiência. Rápida também. Quando eu cheguei já tava acontecendo o filme, o João já tava no embalo, então eu lembro que cheguei no set, quem me chamou na verdade, pra esse filme, foi a Cris da Mata, que botou pilha, que eu já tinha feito teste pra ela quando eu tava na faculdade, foi incrível com a Cris, é muito bacana a Cris da Mata. E ela que botou pilha para o João, ela foi assistente dele, botou pilha: “Não, é esse garoto, esse garoto, esse garoto”. Foi massa. Cheguei e fiz. Foi rápido, porque fiquei dois dias gravando só. O João também não tinha muito tempo pra explicar, então foi uma coisa meio intuitiva, não época eu lembro que eu não gostei muito. Hoje eu vejo e gosto do trabalho, acho legal, tem uma inocência interessante, tem um frescor de quem não domina ainda, o jeito, é bom isso. Foi ótima essa experiência. Voltei pra Salvador e fui apresentar... Esses projetos que eu faço, quer dizer, que eu fazia do governo do estado, um deles era em Portugal. Aí eu fui pra Portugal pra gravar na fábrica da Michelin, sozinho, me deram...
P/1 – Em Portugal? Por que Portugal?
R – Porque tinha um projeto do governo do estado que era pra mandar garotos de lá pra fazer intercâmbio com fábricas, estudante de uma área fazer intercâmbio em fábricas no mundo. E essa era em Portugal, era a Michelin de Portugal. Aí os caras me deram mil dólares, lembro na época, falou: “Olha, tem um hotel pra você reservado em Santo Tirso, só que a gente não sabe como se chega a Santo Tirso, então você tem avião até Porto e de lá você descobre como você vai pra Santo Tirso. Tá?” “Tá”.
P/1 – Você nunca tinha saído do país?
R – Nunca tinha saído, foi minha primeira experiência, sair sozinho, botar a cara no mundo, falei: “Caralho”. Foi incrível, cheguei a Porto lindo, sete horas da manhã, aqueles velhos, aquela cidade. Tu conhece Porto?
R – Conheço.
P/1 – Aff, lindo. Lindo. Foi massa. Aí cheguei lá em Porto e tive que descobrir como eu vou pra Santo Tirso. Aí fiquei rodando a cidade, tomando café e rodando a cidade até que eu descobri que no outro dia saía um ônibus, no outro dia de manhã, às sete da manhã saía um ônibus, que aí eu conseguia ir pra Santo Tirso. Podia ir de carro, mas eu fiquei com medo de alugar um carro, num outro país, achei meio... Aí cheguei a Santo Tirso, que era uma cidadezinha que não tinha nada, só uma hamburgueria grande assim, e castelo assim, ao longe. Ficamos hospedados num hotel ótimo, parecia um castelo, gravamos lá, foi lindo. Quando eu voltei pra cá, já tinha um telefonema, já estavam ligando pra minha mãe pra eu ir fazer teste pra novela “Sinhá Moça”. Nesse meio eu fui para o Rio pra fazer “Sinhá Moça”, acabei fazendo “Cidade dos Homens”, que era uma série, aí fiz uma participação na “Cidade dos Homens”, fiz um teste lá, tinha uma...
P/1 – Não, espera, ligaram pra sua mãe porque você tava fora do país?
R – Isso. Ligaram pra minha casa.
P/1 – Ligaram da Globo?
R – Isso. Ligaram da Globo.
P/1 – E aí, como foi esse…?
R – Porque eu já tinha feito cadastro. Ah, foi massa, mas eu já tinha feito “A máquina” também. Foi bacana assim, pensar: “Pô, estão me ligando pra fazer uma novela, ah”. E eu já tinha feito outro teste também, já tinham me ligado da Globo também . Porque nesse meio aí dentro da faculdade, foi o Leo Gama fazer cadastro lá. E como eu fazia “Capitães da Areia” na época, aí ele chamou os atores todos de “Capitães da Areia”, aí me chamaram pra fazer uma novela, “Senhora do Destino”, aí eu vim para o Rio, fiz teste, voltei, não rolou pra mim. Eles já tinham esse meu cadastro lá, aí me chamaram pra fazer teste pra “Sinhá Moça”. Então já tinha rolado esse: “Ah, a Globo me ligou”. Aí eu fiz “Cidade dos Homens” e já fiz o teste pra “Sinhá Moça”, já mandei trazer minha mala, meu carro, falei: “Pai, traz tudo pra cá que eu já vou ficar por aqui”.
P/1 – Até então você nem pensava em sair de Salvador?
R – Já tinha pensado, já tava com malas prontas. Quando eu fui pra Portugal, eu já tava pensando já em sair de Salvador.
P/1 – E vir para o Rio?
R – É. Vir para o Rio de Janeiro. Já tinha um amigão meu que tava morando aqui, Chiquinho, e outra amiga que tava vindo, Lilian, que eram os meus amigos mais próximos assim. Fora esses seis, eram outros amigos que andavam comigo, próximos assim. Aí eles já estavam vindo pra cá, eu falei: “Ah, vou pegar esse embalo, vou junto”. Então já tava meio arquitetando tudo, saca, pra vir para o Rio. E aí cheguei a casa, minha mãe falou isso, eu já fui pra fazer teste, acabei gravando “Cidade dos Homens” e aí to aqui há seis anos no Rio de Janeiro.
P/1 – Tem seis anos já?
R – Seis anos que eu moro aqui.
P/1 – Como foi a “Cidade dos Homens”? Conta um pouco da experiência.
R – Ah, foi ótima experiência. Foi a primeira vez que eu trabalhei com o Christian Duurvoort, que é um preparador que eu gosto muito dele. E eram uns bandidos meio engraçados assim. Era uma história que eu ia resgatar um cara no hospital, só que eu resgatava o cara errado, que era o Laranjinha. Quando chegava na hora lá, o médico tudo cuidando, quando o cara levantava, eu falava: “Ei, esse não é o cara”. Aí, tipo: “Não, mas...”. Aí ficava tentando se explicar um pouco o que tinha acontecido, aí tinha outro resgate que a gente fazia. Foi com um diretor ótimo lá de São Paulo, que eu não vou lembrar o nome dele, é o mesmo diretor do “Contra todos”, Roberto alguma coisa, Roberto Moreira, talvez. Muito legal ele. “Cidade dos Homens” foi um momento interessante assim, porque eu... Depois que rolou... Eu fiquei muito tempo trabalhando só com publicidade, aí eu fiz “A máquina” um pouquinho ali, dois dias, três ali, mas eu tava meio parado de ficção, desejando fazer histórias, outras que não fossem história de campanha, nã nã nã. No “Cidade dos Homens” foi ótimo, porque era essa coisa da ficção, tinha uma brincadeira com o documentário, eu era baiano e tava com sotaque, o cara fala: “Assume teu sotaque, faz do teu jeito mesmo”. Eu ainda tinha um cabelo grandão meio dread assim, ele falou: “Deixa esse cabelo aí”. Tem um plano que é lindo, que é só meu cabelo pulando assim. Ele viajou na minha. E você sentir essa relação com o diretor, do cara te provocar, acho que foi com ele que eu senti já assim, fora essas outras histórias, mas na ficção, já num trabalho mais assim de um diretor falar: “Gostei de você, cara”. Tipo, eu lembro que ele entrou no carro... Saiu do hospital, entrou no carro, chegou a meu ouvido e falou: “Eu coloquei várias garrafas de soro no meio do lugar, ali no meio”. Aí eu fiz: “Ah, que legal. Mas pra quê?”. Ele: “Hã, faz o que você quiser”. E saiu. Puta, o plano é incrível, eu entro no hospital, faço tah, dou um chute assim, as garrafas voam assim de soro, saio batendo em todo mundo, espancando todo mundo. Quando ele me falou isso, quebrou uma chave assim, ele falou: “Faz o que você quiser”. Eu falei: “Ah, então esse é o jogo. Então massa”. Mandou-me fazer o que eu quiser. Foi loucura, saí chutando, batia, fingia que batia nas pessoas, dava chute, gritava: “Aaaah”. Acho que toda minha agressividade eu consegui lançar nesses lugares, um pouco da arte e tudo ali, naquele instante, com tudo. Uma arma, a história de todo poder que dá estar com uma arma. Foi bacana, foi ótima a experiência com o Roberto, foi bem boa. Daí “Sinhá Moça” com uma galera ótima também da Globo, me receberam como filho. Você chegar a um lugar, chegar ao Rio de Janeiro, um garoto, sozinho. Eu lembro quando eu passei o teste, fiz o primeiro dia de teste lá, fiz com todos os outros atores, só eu fazia o Bastíão, todo mundo fazia o Bentinho, então eu fui esquentando, esquentando, esquentando, terminou o teste, o Papinha me chamou numa sala, falou: “Olha, queria te dizer que você foi aprovado e queria te chamar aqui no canto pra te dizer...”. Disse-me várias coisas: “Você passou pelo teu talento, você não precisou de QI, você não precisou...”. Falou umas coisas assim, eu fiquei impactado, falei: “Caralho”. Ele falou: “Ah, e agora to ligando agora pra um cara pra ser teu agente, quer?” “Quer”. Então foi tipo um pai, o Papinha foi um pai pra mim. Chegando ao Rio de Janeiro, ter esse impacto, profissionalmente foi um cara que me ajudou muito, onde eu consegui me organizar.
P/1 – Ele te arrumou agente nesse teste?
R – Quando eu terminei o teste, ele me chamou numa sala, falou: “Você já passou”. Ligou para o Zeca Vitorino, falou: “Oi, Zeca, to aqui com um garoto que acabou de ser aprovado pra um teste, eu queria...”. Que não é mais meu agente hoje, mas falou: “Queria que você agenciasse esse garoto, porque eu acho que ele é um talento, nã nã nã e é isso. Topa?” “Topo” “Então pronto, mande-o vir aqui”. Foi massa, foi muito bacana.
P/1 – Quem era?
R – O Papinha. Quem era o quê, o agente?
P/1 – É. O agente.
R – Não, o agente foi o Zeca Vitorino. O diretor foi o Papinha.
P/1 – E como foi essa chegada ao Rio? Você foi morar aonde?
R – Eu já conhecia o Rio, porque eu já tinha vindo por causa desses meus amigos que estavam morando aqui. Aí eu fui morar num apartamento na Barra, naqueles flats que a Globo dá para as pessoas que vêm de fora. Foi bacana. Eu era meio chato ali na Barra. Eu não gosto de morar na Barra, não, da Tijuca. Não tem muito que fazer, morava perto da praia, eu nunca ia à praia, só ficava restrito àquelas pessoas ali da Barra um pouco. Queria circular, queria conhecer o Rio, o outro Rio, entender o que é o Rio de Janeiro. Esse primeiro ano inteiro eu morei na Barra, me acidentei durante a novela, capotei meu carro, foi uma loucura, uma loucura. Eu fui morar na zona sul, aí fui morar em Botafogo depois. Aí foi um Rio que se abriu pra mim, outro, de gente de esquina, de boteco, de papo aqui, de outros atores também, encontrar outros atores de teatro, que era mais a minha vibe, que ali os atores tinham uma troca mais direta, estavam aqui, que eu podia circular, tomar uma tranquilamente, sem pompa, sem nada. Foi ótimo, eu me senti mais confortável no Rio de Janeiro depois que eu fui pra Botafogo, pra zona sul ali. E foi boa a experiência de chegar a Globo. Entendi muita coisa, foi caindo fichas assim, de como funciona uma empresa, de quem são as pessoas que pensam as coisas que a gente consome. De onde saem as ideias, as coisas que a gente acredita, que a gente assiste na televisão, que mesmo que a gente não queira, educa a nossa sociedade, quem são essas pessoas que pensam isso? Foi bacana poder entender isso, ver a fonte das coisas, saca. Teclou muita coisa da minha cabeça.
P/1 – Deixe-me só voltar pra novela.
R – Volta.
P/1 – Para o “Sinhá Moça”. Como foi? Porque foi sua primeira novela. Esse cotidiano de gravação?
R – É difícil falar da gente um pouco, mas eu sou um garoto muito... Principalmente pelos meus pais, então eu sempre fui muito seguro, apesar de ter outras inseguranças, mas profissionalmente, socialmente, eu sempre fui muito seguro, sempre olhei para as pessoas e falei... Acho que história da minha gagueira também tinha a ver um pouco com essa insegurança, que eu fui resolvendo e cheguei aqui...
P/1 – Eu queria perguntar da gagueira. Como foi? Você era desde pequeno?
R – Gago desde pequeno. Fono a minha vida inteira. Medo das pessoas, hoje eu consigo diagnosticar isso. Medo de falar com as pessoas, de olhar para as pessoas, muito retraído. Então eu ficava em casa pensando muito no que eu ia falar. E todo gago é assim, eu já conversei com vários gagos. A loucura é muito mais psicológica, muito mais nesse espaço. “Tu é gago também? Tu também é?” Não tá muito mais nessa coisa de... Aí eu comecei a descobrir que tinha a ver com a minha insegurança. Então eu ficava em casa pensando, tipo: “Ah, eu vou chegar lá e vou perguntar tal coisa, perguntar tal coisa”. Chegava na hora, arrrg, argrr, grrr. Aí ficava com vergonha, saía correndo, ou então, grrrr, chorava no meio, ou então vinham umas coisas que eram... Aí eu comecei a sacar que eu precisava respirar e ter calma pra isso. Isso eu fui descobrindo com a vida. Então chega e tem... E comecei a perceber que toda vez que eu tava em cena eu não gaguejava. Aí comecei a falar: “Por que eu não gaguejo quando eu to em cena?”. Eu falei: “Ah, porque eu penso antes, eu sei o texto que eu vou falar, eu já sei bonitinho o que eu vou falar. Então ali eu não preciso, ali só eu chegar e falar. Ótimo, então acho que é essa a história. Então eu preciso chegar e falar com calma, olhar pra pessoa e falar com calma”. Fui descobrir isso dentro da arte, porque de algum jeito eu fazia personagem e pessoas eu precisavam falar, e falar desse jeito, tranquilamente, mas tinham que falar olhando no olho. Então eu descobri que eu podia fazer isso na vida também. E fui resolvendo na minha cabeça. Hoje eu posso gaguejar em situações assim um pouco, mas consigo me manter, acho que hoje eu gaguejei pouquíssimo falando assim, enquanto eu to falando contigo eu não gaguejei quase nada. Mas é. E fui descobrindo. O yoga pra mim foi o ápice, que aí eu já descobri organicamente como funciona isso em mim, quando pode vir a gagueira, quando eu estou, o que eu faço pra resolver com a minha respiração, yoga é respiração. Então eu fui descobrindo muito dentro do meu corpo isso, como vinha, como eu posso controlar, se eu respiro melhor por aqui. Foi massa isso. E venci mesmo socialmente.
P/1 – Em que período você começou a fazer yoga?
R – Yoga eu fiz já mais pra frente. Fiz Yoga uns cinco anos atrás. Mais ou menos, cinco, seis anos atrás. Cinco, quatro anos atrás.
P/1 – E faz até hoje?
R – Não. Parei. Parei. Mas foi muito importante, foi muito bom. Antes disso eu fiz pilates muitos anos. Quando eu fazia “Capitães da Areia”, a preparação nossa foi com pilates, então eu fiz muito tempo pilates também, que trabalha com a respiração. O pilates é um exercício com teu corpo, com o peso do teu corpo, com a respiração. Então eu comecei a controlar a minha respiração através disso.
P/1 – Vou voltar pra “Sinhá Moça”.
R – Vai. Corta. Para.
P/1 – Eu volto. Você vê que eu …
R – Que bom. Quem bom que você consegue acompanhar, porque minha cabeça é toda fragmentada. A minha cabeça é muito fragmentada. Muito.
P/1 – Que bom também, senão seria muito linear. Aí em “Sinhá Moça”, esse cotidiano de gravação, primeira novela.
R – Foi meio pancada assim, porque eu tive que lidar com muitas responsabilidades, apesar de ter o Papinha ali, tudo, mas tudo fica na tua mão, é você que vai levando a história do personagem, é você que não tá bem no dia, é você que é gago, é você que é isso, é você que é aquilo, é você que vai resolvendo tuas histórias. E é uma coisa que não para. A novela não para porque você quebrou o pé, não para porque você não tá bem no dia. Então você vai tendo que ir se resolvendo você mesmo. Foi difícil, lidei com pessoas difíceis também dentro dessa produção, foi bem complicado, bem complicado. Mas foi bom para o meu crescimento, foi bom para meu crescimento pessoal e profissional, até para o meu comportamento dentro do trabalho hoje, da minha relação com os diretores, da minha relação com a produção. Adveio muito daí também, de ter sofrido. Aconteceu uma coisa muito delicada, quando eu entrei na novela logo, a gente tinha pensado num cabelo ótimo. Eu tinha visto umas revistas de época assim, nem sei se eram revistas, acho que eram uns livros antigos que tinham me mostrado e eu lembro que tinha um cara, e eu fazia um escravo que morava dentro de casa. E tinha uma foto de um cara com um black enorme assim, só que dividido no meio, era uma coisa engraçadíssima, era uma coisa assim. Aí eu falei com a cabeleireira, falei com o Papinha, ele falou: “Tá incrível. Ótimo”. Aí a gente montou, eu já tinha jeito para o personagem. A gente viajou pra Bananal, pra São Paulo, gravamos 12, 13 cenas lá, voltamos. Quando a gente voltou, o diretor de núcleo e o autor da novela não tinham gostado. No dia que eu cheguei eu descobri isso, falou assim: “Você vai ter que cortar o cabelo agora, raspar a tua barba, raspar tudo e começar a gravar pra frente as coisas e refazer, a gente vai viajar pra Bananal pra refazer tudo”. Eu falei: “O quê?”. E o cara ainda foi bem grosseiro comigo assim, sacou? Aí começou esse aprendizado pessoal de como também me colocar, dizer: “Ô ô ô, calma aí, não fala comigo desse jeito, não. Não fala comigo desse jeito, não”. De começar a me colocar mesmo, quer dizer: “Espera aí, cara, tá pensando o quê? Que tipo de relação é essa? Que pra mim não diz nada. Você tá nesse lugar, pra mim não diz nada. Estamos aqui eu e você, e aqui como a gente resolve fora do seu pseudopedestal? Vamos aqui”. Foi muito duro pra mim, muito duro. Mas foi bom, tinha também esse outro lado, o cara foi embora depois, o autor aceitou, aí eu fui fazendo um joguinho e eu sentia que de algum jeito...
P/1 – Você teve que refazer?
R – Tive que refazer tudo. Refiz tudo. E eu fazia um personagem que era mais malandro, era um cara mais malandro, era o Arlequim da história, o cara fazia consciente. E por uma reprodução, aí eu entro numa questão que é maior, que é uma reprodução de como a gente vê o negro dentro da televisão, que é sempre como submisso, ou então sempre como o engraçadinho, nunca tem escolha, nunca decide pelos caminhos dele, é sempre tudo que leva o cara e o cara ou tá rindo, ou tá... É foda isso, mas essa é a nossa história. A gente pensar no Grande Otelo, é um grande ator, mas sofreu. O Milton Gonçalves já me contou isso diretamente, ouviu do Grande Otelo que ele se arrependia das coisas que ele fazia, que ele já não aguentava mais ser o engraçadinho nem o bobo da corte, ele tinha muito mais pra dizer. Mas só tinha vaga pra ele nesse lugar, então eu não queria entrar nesse lugar, então eu já construí esse personagem entrando em outro lugar, que eu sabia: “Opa, esse cara parece com Arlequim”. Fiz faculdade, sabia, pô, de teatro medieval, tudo isso já sabia o que eu podia construir. Aí eu o construí mais Arlequim, mas ainda tinha esse olhar vicioso, que é de olhar o negro. Então eles queriam que eu construísse esse cara. Falei: “Bacana, vocês vão acompanhar”. Aí o fiz mais pra baixo, comecei a fazê-lo dissimulado, então tudo que ele fazia, ele fingia. Aí eu fiz uma construção enorme, eu falei: “Tudo bem, é pra ficar eu feio?”. Aí o fiz todo torto, ele falava assim, o cara, era um menino que tinha um retardamento mental, só que ele sempre fingia as coisas, ele falava: “Ah, então tá”. Fazia a coisa assim de boa. Aí a pessoa saía, ele: “Hum”. Então ele decidia as coisas. Então foi meio que mensagem subliminar. Eu tinha que colocar isso, não dá pra gente reproduzir isso dentro. Isso é uma coisa que eu levo para o meu trabalho mesmo assim, mesmo, mesmo, de tipo, chega desses olhares viciosos, chega desse tipo de comportamento, porque isso influencia fora, claro. Eu tenho amigos que não entram em loja, amigos, diretores, que entram em loja sem graça, porque parece que tá... Eu falei: “Bicho, você tá maluco?”. (pausa 1º23’33’’ até 1º24’00’’) Não. Não. Esse ano eu não tive um acidente.
P/1 – Não, no ano da...
R – No ano da “Sinhá Moça”.
P/1 – Não esse ano, nesse ano que a gente tava falando da “Sinhá Moça”.
R – Foi na “Sinhá Moça”. É. De carro.
P/1 – Como foi?
R – Eu tava vindo da reserva e aí acabei capotando meu carro. Eu não tava nem em alta velocidade, mas tinha um carro na frente, um carro que abre e aí fica aquele asfaltozinho que divide uma mão dupla numa única, foi isso que aconteceu comigo, o cara saiu, eu peguei o asfaltozinho e virei. Foi bobo assim, foi, tipo, bateu e fez inhééé péé, virou assim, mas ficou paradinho, fez um péé. Só que aí, nesse primeiro impacto eu fraturei os meus dedos do pé e um corte aqui no joelho. E como eu fazia uma novela, tava no meio ainda, foi uma loucura.
P/1 – Como é capotar?
R – Foi muito rápido e tudo, mas dá um delayzinho, parece que tu saiu e voltou rapidamente assim.
P/1 – Você saiu do carro, alguém…?
R – Saí do carro, saí normalmente. Tava eu e um amigo, aí eu falei: “Chico, tá tudo bem?”. Ele falou: “Tá. Tudo bem” “Vamos sair?” “Vamos”. Aí abrimos. Olha a loucura isso. Aí saímos, ligamos, aí veio Lilian, veio com ambulância, essa minha amiga Lilian, vem uma ambulância, todo mundo, nã nã nã. Aí veio o carro dos bombeiros com a ambulância, quando eu olho, era tipo seis e pouco, tava passando a novela que eu fazia, a minha cara. Eu falei: “Que coisa doentia”. Eu falei. Eu fiquei meio assustado. Aí entrei pra ambulância, o cara falou: “Ah, você não é aquele ator?”. E eu em prantos, falei: “Cara, será que eu vou perder o movimento do meu pé?”. E o cara falou: “Mas você não é aquele ator?”. Eu falei: “Não, por favor, olha o meu pé”. Ele falou: “Cara, fica tranquilo, teu pé vai ficar bom. É que eu preciso se você é aquele cara que faz...”. Escroto. Eu fiquei com uma raiva do filho da puta. Com uma raiva, eu em prantos achando que ia perder o movimento do meu pé e o cara preocupado... Não. Loucura. Loucura. Loucura. Depois policiar pedindo dinheiro. O policial foi ao hospital dizer que eu tinha colocado em risco a vida do meu amigo e que eu precisava pagar uma grana pra ele ali, pra ele não entrar com um processo contra mim. Eu no hospital com o costurando o joelho. Aí os caras não tinham o que fazer, os caras foram lá e roubaram as cadeiras de praia que estavam no fundo do meu carro. Não, tipo, absurdo, absurdo. Morar no Rio de Janeiro pra mim foi uma louca, que foi ter que lidar com isso. Que em Salvador eu já lidava, mas eu acho que tem um... Não sei se em Salvador não teve tantas coisas como aqui do Rio de Janeiro aconteceu com essa coisa de favela e pista, saca, então são uns policiais... Não sei, bicho. Fora o lado de corrupção, o jeito que eles lidam com você, não tem respeito nenhum, o cara não tá a favor de você nunca, você é, tipo, alvo dele claramente assim. O Rio de Janeiro foi foda pra mim, ter que lidar com isso, ter que lidar com o cara parar... Eu já vim de lá com um carro alto assim, que era o carro que eu tinha, e aí o cara parava, abaixava o carro, falava: “Ei. E aí negão, faz o que da vida?” “Faz o que da vida? Hã? Faz o que da vida? Nada que te interessa, toma aqui meus documentos”. Mas imagina você ter que lidar com isso o tempo inteiro, de “faz o que da vida?”. Por quê? Tem alguma coisa estranha? Não sabe lidar com a estranheza do teu olhar? Vai jogar pra mim isso? Era foda isso. Era foda. Ainda passo por isso, eu sou parado em blitz por segundo aqui no Rio de Janeiro, por segundo. Na zona sul você não vê negão na zona sul, vivendo, convivendo, não tem, são pouquíssimos. Então as pessoas me param mesmo no carro, falam: “Ei” “Ei o quê?”. É doido isso. Muito doido.
P/1 – E aí nessa novela você passou a ter um agente nesse…?
R – Passei a ter um agente, que foi o Zeca Vitorino.
P/1 – Como é? O que muda em ter um agente? O que acontece?
R – Nada, quase. Não muda nada. Acho que é você que não recebe os telefonemas. Porque as pessoas me convidam mais diretamente, já conhecem o meu trabalho alguma coisa, e não sabem quem é o teu agente, então ligam pra mim e eu passo para o meu agente sempre.
P/1 – Mas é, tipo, ele resolve, negocia salário, cachê?
R – É. Resolve. Isso é um ponto bacana, que você não precisa lidar com essa coisa da grana. Que u até gosto de lidar, acho que eu me vendo melhor do que alguém me vendendo. Apesar de que essa agente agora, minha nova, acho que ela vende bem. Mas é isso, você não precisa lidar com essa coisa. Hoje eu tenho muita preguiça também de lidar, prefiro passar: “Não, fala com ela. Ah, vai resolvendo com ela aí”. Mas, claro, eu bato tudo, tudo passa por mim.
P/1 – E os convites chegam pra pessoa ou ela batalha também trabalhos, ou não tem isso dele?
R – Muito pouco. Muito pouco. Hoje a gente não batalha.
P/1 – Já chega...
R – Nada. Já chega a você mesmo. São pouquíssimos.
P/1 – Vem meio pronto.
R – É. Meio pronto. Eu também não faço um perfil de ator que faz muita publicidade aqui no Rio de Janeiro, nem faz baile, esse tipo de coisa. Então esse é um tipo de trampo que eles podem conseguir pra você. O que rola mais pra mim é convite pra trabalho mesmo, de cinema, de televisão, de teatro. Então isso já vem diretamente comigo. Agora com a Carol as pessoas já sabem mais que a gente tá trabalhando junto, então tem algumas coisas que já chegam pra ela, falam: “Ah, a gente pensou no Fabrício pra fazer tal coisa”. Mas ninguém batalha. A história mesmo do agente é ter alguém ali junto, é alguém que vai contigo ali, mas que trabalha pra você, não é você que trabalha pra ele, a relação é outra.
P/1 – E aí depois da novela “Sinhá Moça”?
R – Depois da novela eu emendei o “Sítio do Pica Pau Amarelo”, emendei a “A Favorita”, aí já foi assim, nesses anos eu fui emendando novelas, recomeçando. Parava, terminava, voltava pra cá, alguém me ligava e falava: “Ei, tem um trabalho aqui. Vem cá”. Eu falo: “Ah, bacana. É legal? Massa. Vamos ver”. Aí fiz o “Sítio” que foi uma experiência linda, supergostosa.
P/1 – Como foi o “Sítio”?
R – Eu fazia o Saci. Na época eu lembro que eu fiquei meio... Falei: “Ah, não quero fazer o Saci”. Mas, cara, foi incrível. Incrível. Porque aí foi despertar de novo uma coisa minha infantil e de lidar com o meu jeito, e eu tinha esse jeito meio Saci, meio pirracento, essa criança mais... Então eu fazia esse Saci, que era um Saci mais malandro, mais pirracento, mais provocador, mas sarcasticozinho assim, do que o que era amiguinho da turma. E foi bom ver esse lado meu aflorar de novo infantil. Eu tenho vários amigos que ficam me chamando de Saci até hoje, não só pelo personagem, mas pelo meu jeito na vida um pouco, pirracento, essas coisinhas de aprontar, esconde uma coisa, eu fazia esse tipo de brincadeira. Foi lindo. A gente gravava na mata, gravava ali no Projac, mas do outro lado tinha mata mesmo, eu lembro que tinha uma cachoeira construída, com criança, ter que lidar com esse espaço, criança que não decorou o texto, criança que nã nã nã, como faz, como brinca, as mães da criança, que é o pior de tudo. Foi muito legal. Foi muito legal fazer o “Sítio”. E no meio do “Sítio” entraram vários atores do Rio de Janeiro, que era uma história do conto de fadas, então eu comecei a conhecer gente do Rio de Janeiro mesmo, outros atores do Rio Janeiro, atores de teatro, mais até do que quando eu fui pra Botafogo. Que é concomitante, porque eu terminei “Sinhá Moça” e comecei o Sítio, então aí eu comecei a conhecer esses atores por lá por morar em Botafogo, e também porque eles entraram no “Sítio”. Então foi ótimo, eu conheci muita gente legal da minha faixa etária que tava fazendo teatro fora, ia ver as coisas, circular por ali. Foi massa.
P/1 – O teatro, você parou o teatro?
R – Não, aí no “Sítio”, no finalzinho do “Sítio”, ou foi junto com o “Sítio”, eu fiz uma peça com Zéu Britto aqui no Rio de Janeiro. Aí fiz, uma loucura. Você conhece o Zéu Britto?
P/1 – Não.
R – Que é um cantor baiano. Você conhece o Zéu, gente.
P/1 – Não, sei quem é, não conheço pessoalmente.
R – Ah, figura. Já pelo trabalho dele tu já vê. Tem uma peça que tinha um anão que entrava, tinha com uma travesti, a gente fazia umas velinhas rezando pra Santo Antônio, que tinha um furo origem e desejo à noite. Loucura. Loucura. Tipo Zéu Britto. A gente fez a peça, não aguentava mais tanta loucura, a gente saiu da peça todo mundo, a gente falou: “Gente, chega, não dá mais pra fazer essa peça, é só loucura”. Não ia ninguém assistir, quase. Só a gente se divertia. A gente já chegando já tocando o terror, eu falava: “Gente, é muita loucura, vamos trabalhar sério. Isso aqui tá virando um esporte nosso”. Aí fiz essa peça com Zéu. Depois eu conheci um grupo de teatro muito legal, que era a Companhia de Teatro Íntimo, que é daqui do Rio de Janeiro. Aí eu comecei a trabalhar com eles assim, que é uma linguagem muito bacana também. Isso fazendo novela e trabalhando com eles também um pouco, fazendo curso com eles, aí fiz um espetáculo com eles. Depois fui trabalhar com Amir Haddad, que foi incrível, uma puta experiência pra mim trabalhar com ele, foi ótimo. Até hoje eu sou meio do tá na rua, vou lá um pouco, frequento, de teatro de rua de verdade. E o Amir é muito esse diretorzão de discussões, de pá, então a gente quebrava um pau assim mesmo, a vera. Ele tenta se calcar num lugar, mas ao mesmo tempo ele tira tudo também pra vir um papo reto, então era ótimo com ele, aprendi muito, bicho, um cara mega inteligente, inteligência de vida mesmo assim, de me dar altos toques de vida. Foi muito bacana trabalhar com o Amir, muito. Aí acabei não fazendo nem a peça que eu tava ensaiando com ele. Aí fui fazer um filme, que aí foi intervalo da ”A Favorita”. Na “A Favorita” eu trabalhava com o Amir. Depois terminou “A Favorita”, aí eu fui fazer um filme, que foi “400 contra 1”. Foi um filme que eu viajei para o sul, que era um filme que se passava no Rio, mas a gente começou a gravar em Curitiba. Foi uma puta experiência, porque aí foi quando eu comecei a pegar uns personagens grandes assim, pesão mesmo assim no cinema, até trabalhando também. E tem um jeito no cinema que é bacana, importante pra você trabalhar e tudo, que é do respeito que se tem, tem um respeito pelo profissional, pelo ator, pelo lugar do ator, pela sensibilidade do ator, pelo interesse que você tem dentro daquilo. Então você fala: “Ah, porque eu tinha sonhado...”. Eu já cheguei no primeiro dia, a mulher do diretor era historiadora, a Ana. Você conhece a Ana, será? Ele é Caco. Não sei o sobrenome da Ana.
P/1 – Ele é quem?
R – Eles são de São Paulo. Caco é nome dele. Caco... Ai, falou os sobrenomes.
P/1 – Ela é de São Paulo também?
R – É. São de São Paulo os dois, Ana também é de São Paulo. Capaz de você conhecer, que ela é historiadora. A Ana me deu uma pasta assim desse tamanho com tudo sobre a história do Comando Vermelho. Era um filme que falava sobre o Comando Vermelho. Com coisas da época, com recorte, com tudo, com filmes, com tudo. Então você tinha um interesse por isso, pra que eu estivesse munido de muita coisa pra fazer esse filme, esse cuidado que se tem pela minha criação, pela nossa criação. Então foi incrível trabalhar desse jeito com ela já. Ela chegou e me deu uma pastona e falou: “Olha, tem esse filme, esse filme, fique à vontade, faça o que tu quiser, leia o que tu quiser. O que você precisar, tiver uma ideia, me fala que gente pesquisa aqui e te dá na mão”. Porra, foi um filmaço, uma puta experiência. Foi muito bom. Muito bom. Que aí eu trabalhei com os meninos do “Nós do morro”. Eu fazia um bandidão, aí a gente começou a trabalhar no “400” dentro de uma penitenciária lá em Curitiba, mesmo, a gente ensaiava lá dentro da penitenciária. Bicho, foi uma experiência de vida, porque eu tinha que dominar esses caras, que tinham essa vivência inteira de violência, de crime, e eu um ator chegando. Eu, o Daniel, a Branca Messina, o Daniel Oliveira, uma galera, que não tinha muita... E foi massa, bicho, ter que ganhar desses caras ali mesmo. Aí eu trabalhei de novo com o Christian Duurvoort que eu tinha trabalhado na “Cidade dos Homens”. E aí o Christian fazia isso, misturava a gente, porque eles iam fazer figuração no filme, então ele queria que a gente meio que trocasse, a gente sugasse coisa deles e eles sugassem coisa nossa. Foi lindo ver esses caras fazendo exercícios, os caras dentro da penitenciária fazendo exercício com a gente, os caras superenvolvidos com o trabalho. Pô, foi uma loucura isso de ver esses caras de verdade descobrindo uma nova possibilidade pra vida deles e sem saber o que fazer, porque eles tinham que voltar para o presídio. Os caras choravam no último dia. Eles estavam andando assim no corredor, me lembro de uns doidos andando assim no corredor sem parar, eu falei: “Bicho, que é que você tá andando?” “Bicho, eu não sei o que fazer”. Chorando assim. “Eu não sei o que fazer. Agora eu descobri isso, bicho, eu vou ter que voltar pra lá”. E os caras trabalhando com a gente, fazendo exercícios todo dia de manhã. Eu parava com eles todos os dias assim, a gente fazia exercício de respiração pra gente ir se concentrando, a maioria deles comigo ali aprendendo mesmo. Foi ótimo, uma puta experiência de a gente quebrar, ali quebrou uma coisa forte minha de maniqueísmo mesmo, de ver aqueles caras seres humanos mesmo claramente, eu podia ser um daqueles caras. Se eu não tivesse meus pais, não tivesse a minha história, claro, os caminhos que a gente vai decidindo e tudo. E às vezes é uma coisinha. Vi caras muito parecidos até com pais, histórias de vida parecidas com a minha, mas teve uma coisinha no caminho deles e eles cederam, puff, chegaram àquele lugar e hoje são vistos como... Estão à margem. São meninos, homens, foi uma quebra, foi uma rachadura na minha cabeça. Lidar com aqueles caras, abraçá-los todos os dias, depois descobrir que aquele cara tinha matado a mulher, aquele cara tinha esquartejado, nã nã nã, e o cara ali contigo te olhando, trocando com você, te contando coisas, vivendo coisas. Foi bem importante pra mim esse trabalho.
P/1 – E teve ator do “Nós do morro”?
R – Tiveram os meninos, o Negueba, o Jefferson. O JB. Você conhece o JB?
P/1 – Não.
P/1 – Eles têm uma banda hoje, será que você os conhece dessa banda?
P/1 – Ah, mas não é daquele menino…?
R – Desses aqui que estão aqui não. Não é nenhum desses, não. São outros.
P/1 – Eram mais novos na época?
R – Não. Não. Eles têm a minha idade. Esses aqui são muito mais novos do que eles. E foi uma ótima experiência trabalhar com esses meninos, porque eles têm essa coisa de rua mais aqui do que eu tinha. Porra, foi incrível aprender com eles. A gente ia pra night, a gente fazia muita coisa, a gente bebia em cena quase, de verdade. Eu não tinha feito isso, atorzinho de faculdade, disciplinadinha, bobo. Os caras comendo água em cena e tudo isso ia pra dentro. Era o tipo do jogo que a gente fazia, era esse, então a gente tinha que ceder. Éramos eu, Daniel, Branca, todo mundo, ator, tendo que ceder àquele jeito pra funcionar. E os caras tinham toda a história. Esse Negueba era um cara pra fazer esse tipo de documentário, a história de vida dele é fortíssima.
P/1 – É mesmo?
R – E é um garoto hoje, gente, o cara é um poeta assim, da vida.
P/1 – Ele é do “Nós” ainda?
R – Ele não é mais do “Nós”, mas tá na Globo, trabalha na Globo hoje, o Negueba. Mas ele conseguiu pegar toda a vida dele e transformar, fazer poesia disso. Então ele hoje faz uma música do nada, declama uma coisa aqui do nada, vê essa garrafa térmica, já virou uma música, já virou uma coisa, você fala: “Caralho, de onde esse garoto tirou isso”. Foi uma experiência foda de vida. E foi ótima essa convivência, essa troca. Presidiários, esses meninos de lá que tinham outra relação aqui do Rio de Janeiro, de comunidade, que tinha tudo a ver com o filme, tudo a ver com a história, a pegada do filme era total a pegada deles. E com essa seriedade daqui desses caras, e com a nossa experiência. Então é um filme bacana, bacanérrimo. São todos hoje muito próximos. A gente vai acumulando gente.
P/1 – É.
R – Isso é muito legal.
P/1 – E depois desse filme?
R – Depois do “400” eu voltei pra Globo, fiz “Tempos Modernos”, então “Tempos Modernos”, acho que foi a última novela que eu fiz na Globo. E aí saí, fui dar um tempo, fui dar um tempo. Aí fui fazer cinema fora. Viajei, foi aquela viagem que eu falei que fui um tempo, fiquei quase dois meses na Europa, fui estudar lá com o Odin.
P/1 – Como foi essa experiência lá?
R – Pô, foi incrível.
P/1 – Você já tinha voltado lá desde aquela ida a Portugal?
R – Não tinha voltado mais. Não tinha voltado mais pra Europa. Aí fui a essa viagem sem falar inglês, nada de inglês, fui pra Dinamarca, cheguei a Copenhague assim, puff, tinha alugado um hotel, tinha reservado um hotel que não existia mais. Eu cheguei ao hotel, não existia mais. Eu com a minha mala andando, quando eu cheguei à porta do hotel era um portão, sabe casa antiga de cinema com um ventinho passando e folhinhas? Eu falei: “Caralho, isso não existe mais”. Eu perguntei pra alguém com esse meu inglês, que não sei como eu consegui chegar lá também. Eu me lembro de ter chegado ao aeroporto, de não saber falar nada, não sabia falar nada, e falei: “Como eu vou começar? Tá, eu preciso pedir pra eles me dizerem nome dessa rua, nã nã nã. “Hi” “Hi”. “Eu, I need...”. Vinha, vinha, vinha, vinha. Bicho, me desenrolei, porra, encontrei tudo, fui conhecendo gente, foi incrível. Aí cheguei a esse hotel lá, não tinha nada, e tive que desenrolar ali um jeito. Eu ficava dois dias ali em Copenhague de depois eu ia pra Holstebro, era Holstebro, que era norte da Dinamarca, um lugar superfrio lá, que é onde esse grupo italiano tem sede há 50, 40 anos, acho. Foi incrível. Chegaram lá 20 alunos, 20 pessoas do mundo inteiro e eu superinseguro. A minha sorte é que tinha esse cara lá, o Augusto Omolú, o cara da sapatilha, nã nã nã nã, que falava português, então eu falei: “O curso dele eu já vou saber. Pelo menos já vou aprender isso aqui. O resto eu vou tentando me descolar e ver. Aí todo mundo: “Fique calmo, você vai descobrir, aqui tem uma linguagem que é Odin”. Bicho, uma linguagem Odin total, eu aprendia tudo, em inglês, italiano, o que eu não entendi falavam, alguém repetia pra mim em italiano, espanhol eu já falava, porque no meu segundo grau eu não fiz inglês, eu fiz espanhol, inteiro, então espanhol eu já sabia falar. Aí eu fui na minha, então fui desenrolando, aprendendo, conhecendo gente. Tinha uma mulher que era da Nova Zelândia, não sei de onde ela era, ela só falava inglês e eu só falava português, espanhol ela não falava, nada. A gente se comunicava muito. Eu não sei como, eu sei da vida dela, sei quantos filhos ela tem, sei tudo da vida dela, só que ela falando inglês e eu reproduzia em português, e a gente ia falando, ia falando. Muita coisa a gente ficou só nessa, cara. Muito bom. Aí de lá eu já tinha marcado com outros amigos por lá, pelo sul da França, e fiquei viajando. Fiquei um mês e pouco, quase dois meses.
P/1 – França... Que países você foi?
R – Fui pra França, fui para o sul da França, pra... Como é o nome do lugar onde Nicolau mora, Deus? Esqueci. Mas fui para o sul da França, depois fui pra Paris, fiquei um tempo, depois Amsterdã, depois Madrid e voltei. Aí já tinha uns amigos de Madrid também, foi incrível, foi uma puta viagem, gente que foi ficando, que fui conhecendo, muita experiência, loucura se abrir. De lá eu voltei, fui pra São Paulo, cheguei a São Paulo, tava numa mesa de bar, tinha uma banda que tava viajando pra Cuba pra poder fazer um documentário deles tocando lá com os cubanos. Aí uma menina que era amiga do Ilci, que é esse meu amigo lá de São Paulo, falou: “Ah, então, por que vocês não vão?”. Aí eu olhei para o Ilci, falei: “Vamos. Vamos?” “Vamos”. Pronto, combinamos, uma semana depois a gente já tava em Cuba. Foi incrível também.
P/1 – Que banda era?
R – Eu não sei o nome da banda. A gente nem os acompanhou, a gente largou eles, a gente não encontrou mais nada. Cuba? Imagina, a gente se perdeu em Cuba, tava fazendo militância. A gente foi pra Venezuela primeiro, achando que Venezuela era linda, que eu vi lá “Mar caribenho”. Chegou lá, um dos lugares mais tristes que eu vi na vida, ficamos três dias lá sofrendo muito. A sorte é que a gente já ia pra Cuba, a gente tinha que voltar ainda. Quando eu to pra viajar pra Cuba lá na Venezuela, eu vejo as pessoas com máquina assim, falando. Eu falei: “Gente, na Venezuela? O que tá acontecendo?”. Aí eu olhei. A mulher falou: “É o Didu, é o Didu”. A novela “A Favorita” tava passando em Cuba ao mesmo tempo em que eu estava lá. Foi um inferno na minha vida, Cuba. Foi um inferno, porque as pessoas na rua... As pessoas em Cuba veem muito televisão, então as pessoas ficavam me gritando na rua, me gritando o tempo inteiro, eu não tinha paz. Eu andava de chapéu grande, a televisão ficava na porta da casa. Eu fiquei na casa de gente lá, porque lá eles têm esse costume até pra ajudar as pessoas lá. Então eu ficava na casa de uma menina lá, eles ficavam na porta, ligava pra casa da menina pra saber se eu tava à disposição pra dar entrevista. Uma coisa maluca, maluca. E como eu falava espanhol, me desenrolava bem, então os caras ficaram loucos, falavam: “O cara ainda fala espanhol. Então vamos chupar esse cara inteiro aqui”. Foi uma loucura, eu tinha que me esconder nos lugares, ir para as casas certas assim. Foi uma mega experiência, uma mega experiência. Tava quase militando em Cuba.
P/1 – É mesmo?
R – Quase militando, quase militando. É foda, ia pra rua, discutia.
P/1 – Que ano foi isso?
R – Dois anos. Estamos em 2012? 2010, final de 2010, novembro de 2010.
P/1 – Ah, foi recente. E como que tava lá?
R – Pô, tava no final... Tá ainda nessa entradinha do capitalismo, as pessoas se seduzindo, uma fila enorme de gente pra comprar celular, a gente sofrendo muito por conta disso, falando: “Vocês não precisam disso”. Então tá abrindo. Agora, eles conquistaram muitas coisas incríveis por conta de não ter o capitalismo na existência deles. Estarem no capitalismo. Porque mesmo estando à margem, está contido, então de algum jeito você pensa naquilo. Eu não faço parte daquilo, mas você sabe da existência daquilo. Aquilo tá nutrindo, eles desejam, desejam ter as coisas, desejam. Mas eles conseguiram, por não terem as coisas, um puta desenvolvimento intelectual e uma relação linda entre eles. Porque eles não ganham muito, o que eles ganham do estado só dá pra eles comerem por 15 dias. Então esses caras precisam descolar alguma coisa, aí rola prostituição, rola essas coisas todas que têm, mas se eu vou comer num restaurante e sei que você ganha a mesma coisa que eu, ou ganha uma diferença boba, eu tenho dinheiro, bicho, eu nem pergunto duas vezes: “Você quer que eu...”. Nada. Eu já peço duas coisas. Se eu tenho, agora é minha vez de dar, não tem: “Ah, você pagou da outra”. Nada, bicho, eles têm uma relação linda de cuidado. Eu tenho duas calças, é tua. Pra quê eu preciso de duas calças? Pra quê eu preciso comprar? Eles não têm shopping, eles não têm esse verbo “comprar”, não existe esse verbo “comprar”, eles vão pra rua pra olhar as coisas, ficar no Malecón, pra trocar ideia, pra estudar. Você chega à rodoviária, tinha uma senhora vendendo amendoim, lendo. Aí eu falei: “¡Hola! ¿Cómo estás? ¿Qué estás leyendo?” “Ah, estou lendo Nietzsche”. Aí meu amigo: “Ela tá lendo, Nietzsche, caralho, vendendo amendoim”. Então o mínimo que se tem lá é uma faculdade de Filosofia, então ninguém de verdade passa fome, meu, não passa, porque tem um colega, tem um companheiro, tem amigo de luta ali que vai segurar a tua onda. Médico também não falta pra eles em Cuba, todo mundo já sabe mais ou menos o que tem, estão tão instruídos, já viram e já leram a respeito, que já sabem o que tem. Eles têm grandes avanços maravilhosos da relação deles. Táxi dividido, isso eu amava. Como eles achavam que eu era cubano, negão, falando espanhol, eles achavam que eu era cubano. Claro que quando eu falava mais um pouquinho, já falavam: “Isso não é cubano mesmo. Esse sotaque não é”. Mas eu conseguia pegar os táxis dele, que se chamam Máquina, então se eu tava indo pra aquela direção, eu entrava no táxi, parava, ele perguntava: “Pra onde tá indo?” “Ah, não, to indo pra tal lugar” “Então entra aí”. Aí entrava num táxi com várias pessoas. Eu parava no meu ponto, dava uma parte da grana. Incrível. Incrível. É você poder entrar num táxi, dividir com alguém, é um avanço, é um avanço nas relações.
P/1 – Você ficou quando tempo?
R – Fiquei três semanas, mais ou menos, em Cuba. Foi incrível. Artistas plásticos maravilhosos, coisas na rua, comprei quadros, foi lindo, foi uma puta experiência.
P/1 – Aí nesse período você já tava com algum outro trabalho engatilhado?
R – Não, esse período eu tava de férias. Eu falei: “Chega de tudo”. Eu voltei... Aí antes de ir pra Cuba rolou um teste pra um filme, que foi o “Faroeste Caboclo”, aí eu fiquei sabendo por uma amiga que tava em Salvador, saiu do teste, me mandou uma mensagem, falou: “Olha, eu tenho um e-mail que estão procurando um ator negro pra fazer o ator principal”. Falei: “Jura? Quem é a produtora?”. Era uma produtora que eu conhecia, Marcela Altberg. Liguei pra ela, falei: “Marcela, tem possibilidade? Eu viajo em dois dias pra Cuba”. Ela falou: “Jura?” “Juro” “Então vamos fazer na casa do diretor”. Fizemos um teste lindo, viajei pra Cuba. Falei: “Ah, se eu passar, vocês me ligam que eu volto” “Tá”. Aí ele falou: “Você passou, então volta pra fazer a segunda fase do teste”. Eu falei: “Ah, não vou voltar mesmo. Aqui em Cuba?”. Falei: “Nada”. Falei: “Olha, me desculpa, as coisas em Cuba aqui são muito difíceis, vocês sabem que tem um embargo comercial”. Inventei várias coisinhas, mandei o e-mail, falei: “Espere-me voltar, aí a gente vê se rola”. Aí eu voltei já no último teste já, só tinham mais dois atores, e pronto, fiz, passei e já comecei a rodar o filme, que foi em dezembro já. Aí eu terminei, fiz isso em dezembro, em janeiro a gente já tinha começado a preparação para o filme, aí emendando para o filme, que foi um filme lindo, que ainda não estreou esse filme, “Faroeste”.
P/1 – Parece legal. Ele terminou? Finalizou?
R – Ainda não terminou. Tá faltando agora a parte de áudio. Mas eu vi já uns cortes, tá lindo o filme, lindo. Que experiência foda. Em Brasília, dois meses morando lá em Brasília, conhecendo a fundo a história mesmo do rock and roll de Brasília, foi bem bacana. Brasília é o nosso rock and roll do país, as pessoas só andam de preto, as pessoas ouvem outras coisas, as relações, todo mundo tem uma história drástica na família, de alguém com drogas, internado, são pessoas profundas. Muito bacana Brasília. Muito, muito bacana. Fiquei lá esse tempo, rodei o filme, voltei, aí dei um tempinho assim, trabalhei numa coisa no governo... Numa coisa federal, que era do ProJovem, o cara me chamou como ator, aí eu li o roteiro, ele queria transformar num curta, eu acabei roteirizando pra ele. Aí ele falou: “Ah, então vem dirigir comigo”. Aí eu dirigi umas ceninhas lá.
P/1 – Primeira experiência como diretor?
R – Dirigindo? De verdade foi. No set mesmo, a vera, foi ótimo. Eu que eu penso como ator muito mais como diretor do que como ator. Eu to muito mais ligado no todo, no set, do que só aqui. Que eu não sei se é melhor ou pior, mas é só como funciona comigo. Eu to aqui, mas eu to ligado em tudo, eu to vendo câmera, to vendo nã nã nã, eu sei da luz, eu sei de tudo. To meio ligado, sei lá, se eu falei uma coisinha, se ela riu, se ela não riu, se isso eu posso chupar pra cara, sei lá. Eu penso muito como diretor, mais do que como ator assim, eu acho. E acho que isso é bom também pra mim, quero enveredar total também no caminho da direção. Esse vai ser um passo na minha vida.
P/1 – É um desejo?
R – É um desejo sim. É quase uma realidade. Já to trazendo... Mas eu tenho projetos, coisas aí que eu quero botar em edital e tudo pra começar a dirigir já.
P/1 – E aí depois...
R – Depois eu comecei a fazer um... Aí eu fiz um filme, que ainda não estreou também, que é um filme sobre a Nise da Silveira, um filme lindo, lindo, que eu fazia o Fernando Diniz, que é um artista plástico dentro de um hospital psiquiátrico.
P/1 – Eu conheci o roteiro.
R – Você conheceu o roteiro desse filme? Ah, que bacana. Que bom. Lindo o filme. Lindo. Lindo. Com a Glória Pires, que arrasou, ela fez a Nise. Uma turma ótima de atores. Foi bem bom esse filme. Aí viver essa história lá, Jung e hospital psiquiátrico.
P/1 – Ele tá finalizado?
R – Não. Esse é um filme que eu sei muito pouco. Eu sei que teve um primeiro corte. É. Eu só soube que teve um primeiro corte aí, que tinham visto ele. Mas não sei muito dele, não. Vou até mandar um e-mail para o Robertinho. Bem lembrado. Pra saber. Mas não sei como tá. Um filme lindo. Tive que lidar com coisas muito profundas, sensíveis. Muito doido o olhar que a gente tem para o esquizofrênico, de separação. Os caras se superam, artistas bicho? Porra, muito bonito. Só é alguém que tem outro recorte do mundo. Só isso. Um cara que opta por ter outro recorte. E isso vai a vida dele sendo levada desse jeito. Ele tá fora do social, fora do comum. A história do Fernando é muito louca, que é um cara que vai preso porque tira a roupa inteira em Copacabana num dia de domingo na década de 40 e vai tomar um banho de mar. Porque ele tava com a cabeça louca, não aguentava. E ele fala disso. Não aguentava e entrou na água. Tinha descoberto, tava com problema no curso que ele fazia de Engenharia, descobriu que a menina que ele amava ia se casar com um cara, uma menina da infância. Ele já tinha certo distúrbio também por conta da mãe, era ele e a mãe só, ele era meio o homem da mãe, mas ao mesmo tempo a mãe tinha vários homens em casa. Ele sofria com preconceito racial também na década de 40. Aí com isso tudo cheio, vai pra lá, internado como um cara violento. Um cara sensível ao extremo, saca. E lindo o trabalho como ele consegue se reencontrar, reencontrar o eixo dele através do trabalho dele, dessa experiência com as tintas, com os desenhos, com as coisas da mente dele, com as mandalas que foram reorganizando a mente dele. Foi lindo ter um contato também com o trabalho do Jung, foi muito bacana. Que a Nise teve um trabalho direto com o Jung. E a gente estudou muito também com o Jung pra poder aprofundar a história, respaldar. Aí fiz esse filme e já emendei com um filme do Joãosinho Trinta que eu fiz, que foi um filme sobre Carnaval. Agora a pouco, foi esse ano. Os dois foram esse ano. O filme Joãosinho Trinta foi lindo, com o Matheus.
P/1 – Você fez...
R – Eu fazia um cara da escola de samba. Foi um filme ótimo, porque eu não tive tanto aprofundamento, estudo, nada, e pude sambar mais, ficar mais leve também. A gente sempre fica meio cabeção, tem que estudar, tranca lá. Nesse eu já cheguei, ele falou: “Ah, bota um figurino massa aí”. A gente fez, eu tava bem magro, então tava com umas calças bem apertadas assim, meio 70, o cabelo grande aqui assim escovado, tipo, o cara era uma figura. E era um cara que existia, que existe, só que a gente não conseguiu se encontrar. E foi ótimo isso, não ter encontrado ele, porque me deu toda liberdade de fazer do jeito que eu queria. Eu sempre quero saber quem é o cara, buscar ali. Esse foi ótimo. A gente não conseguia se encontrar, eu falei: “Ah, massa, tudo bem, vamos respeitar isso”. E foi ótimo, eu tive toda liberdade de fazer do meu jeito. Um filme lindo, com Paulinho Machline. Tu conhece o Paulo Machline lá de São Paulo?
P/1 – Conheço.
R – É, então, como Paulinho, que é meu amigo. Aí fiz esse filme com ele e já caí pra cá para o... Terminei há pouco e já tava meio nessa história aqui do...
P/1 – Suburbia.
R – Do Suburbia.
P/1 – Como foi o convite?
R – Para o Suburbia?
P/1 – Para o Suburbia.
R – Então, eu mais ralei atrás do que fui convidado do Suburbia.
P/1 – É mesmo? Você foi atrás?
R – Fui atrás. Eu já sabia, já tinha todo interesse em trabalhar com o Luiz Fernando, soube que era uma história dele que ele escreveu com Paulo Lins, falei: “Opa, que bacana”. O Paulo é bem interessante, o Paulo Lins. Você conhece o Paulo Lins? É bem interessante, falei isso é bom. Aí fomos afinando pelas pessoas. A mesma produtora do “Faroeste” é amiga do Luiz, então ela deu um toque para o Luiz, falou: “Olha, tem um garoto”. O meu personal trainer do “Faroeste” é personal trainer do Luiz. Foram umas coisas, tipo, meio bizarras assim. Só que todo mundo falava, o cara não acreditava muito, todo mundo dizia: “Não, não, ele tá pensando, porque ele precisa de um cara mais novo do que você, que tenha 19 pra 20 anos, de um cara que nunca tenha feito nada na vida com experiência com teatro, com televisão. Tenha experiência com teatro, tudo, mas não tenha feito televisão. Porque ele não queria um rosto que fosse marcado. E um cara que fosse um mulato e moreno, porque o pai dele é branco”. Eu falei: “Tá. Vamos tentar”. Aí eu fui, falei: “Olha, eu to muito afim de trabalhar com o Luiz. To muito afim. Vamos nessa?” “Vamos nessa”. Eu falei isso com minha agente, aí falamos: “Então vamos tentar”. Aí falamos lá com o produtor de elenco, que aí já falou: “Não, chama o Fabrício pra fazer um teste”. Ótimo. Aí fiz o primeiro teste.
P/1 – Já para o Cleiton?
R – Já para o Cleiton. Já para o Cleiton. Sabendo que podia não passar. O produtor de elenco me falava todo dia. Você saía do teste e falava: “E aí”. Ele falava: ”E aí você sabe que tá todo...”.
P/1 – Mas aí te deram o roteiro ou não, deram só…?
R – Nada. Não. Só a cena.
P/1 – Só a cena.
R – Só a cena. Aí já falavam: “Olha, você sabe que tá tudo contra você. Você vai fazer, mas tá tudo contra você” “Tá tudo contra mim...” “Não, cara, nã nã nã”. Eu falava: “Tá certo. Vou indo”. No primeiro teste foi isso. Não. Não. No primeiro teste foi uma loucura, eu fui a uma casa que eles estavam fazendo teste, uma casa distante, lá na Praça Seca. Só que como eu tava fazendo o filme do Trinta, eu tava com uma barba de época e um cabelo aqui. E aí eu sabia que os caras queriam que eu estivesse novo, que eu não tivesse com uma cara de época. Esse personagem me deixava mais velho, que tinha uma barbinha assim, e ele era mais pesado. E eu tava numa energia. Se eu botar barba, você não consegue me ver com essa idade que eu tenho aqui, com certeza eu fico muito mais velho, muito. Acho que aí eu aparento a idade que eu tenho, que é trinta. Mas aí falei: “Não, então eu tenho que dar um golpe, dar um jeito de eu não fazer”. Aí eu cheguei, vesti a roupa, tinha tentado com o produtor de elenco, o Nelsinho, só que ele não tinha respondido, falei: “Vou fazer o teste de qualquer jeito”. Chegou lá, ele apareceu. Falei: “Bicho, to de barba, to com o cabelo desse tamanho”. Eu fiz um coquezinho assim no cabelo, que escovado tava grande, aí fiz um coquezinho assim, falei: “Vou fazer teste assim. O que você acha?”. Ele falou: “Volta de novo”. Eu falei: “Tá. Eu vou fazer isso, vou voltar de novo. Vou voltar de novo”. Tirei a roupa inteira, só que hora que eu tava indo embora eu vi um garoto fazendo. Foi uma coisa louca, eu não sei como isso aconteceu, eu nem sei o que é. Eu olhei aquilo assim, então eu falei: “Caralho, eu sei como faz. Eu sei como faz isso”. Sabe quando bate num lugar assim? Você fala, eu não sei o que é. A atmosfera assim, parecia que eu já reconhecia aquela atmosfera. Eu saí dali, liguei pra minha agente, falei: “Não sei como, mas eu sei fazer e acho que eu vou fazer esse Cleiton”. Não sei o que é, mas tem uma coisa aí forte me dizendo que eu vou fazer esse personagem. Massa. Fui pra casa. Fiz o primeiro teste com o Nelsinho. Beleza, passei na primeira.
P/1 – Daí você tirou a barba?
R – Aí eu tirei a barba. Terminei o trabalho lá, consegui tirar a barba, fiz um teste já no Projac. Não fui mais à casa, fui ao Projac. E a casa era ótima, era super-real, tinha umas paredes, eu lembro que me deu vontade de escrever nas paredes. Eu falei: “Se for nessa casa eu vou pirar, estão fudidos na minha mão”. Mas aí eu fui ao Projac, que é mais quadrado, mais ali, faz ali e nã nã nã. Aí eu passei dessa fase e fui pra outra. Na segunda fase foi essa, foi outra... O meu Deus. Teve outra fase que eu não lembro também, mas aí fiz mais outra fase. Na terceira fase, que já era com todos os atores, que já era com os atores escolhidos, seis escolhidos mais ou menos, aí eu já cheguei mais tarde, já tava em Salvador ensaiado uma peça, porque como não tinha rolado a resposta aqui, me chamaram pra fazer uma peça lá dos cem anos do Jorge Amado. Tava superfeliz, ir pra Salvador, fazer um trabalho lá na minha terra.
P/1 – Em casa.
R – “Pô, tanto tempo que eu não volto, não trabalho aqui”. Cem anos de Jorge Amado, que é o mesmo autor de “Capitães da Areia”, falei: “Porra, olha o ciclo fechando”. Aí ficou essa história aqui pendente. Fiz o teste, foi lindo o teste lá já com Carnevale, o Luiz não tava, mas já foi com uma galera, foi uma loucura, foi muito bom, eu me senti bem fazendo o teste. Aí voltei pra Salvador, porque eu tava ensaiando a peça. Eu tava em São Paulo, isso foi engraçado, tava em São Paulo, num carro viajando com a Gabi Amarantos, que é de Belém do Pará, a gente tava indo pra uma festa lá em São Paulo mesmo, a gente tava indo a São Paulo pra outro lugar mais distante. Aí a Gabi tava falando de Belém, eu falei: “Ah, então, to esperando agora a resposta, vão me ligar agora, nesse caminho, nesse trajeto, que era o horário, pra me dizer”. Ela foi falando da festa que tem e Belém, da festa que tem...
P/1 – Lá da procissão da Círios de Nazaré.
R – Da procissão que tem. Círios de Nazaré. Perfeito. Falei: “Porra, vou pedir pra Nossa Senhora de Nazaré, vou passar nesse teste. Promessa feita agora”. A Gabi falou: “Então você vai cumprir”. Eu falei: “Tá certo. Promessa feita”. Liga o telefone, o Nelsinho: “Fabrício, você não passou”. Eu falei: “Então tá. Tudo bem”. Lidei bem. Lidei bem. Na hora eu fiquei baqueado, falei: “Porra, achei que era eu, bicho, tinha feito um puta teste bacana”. Mas falei: “Mas tudo bem”. Tinha tudo contra mim, eu já sabia disso. Ele falou: “Pois então, eles queriam um menino mais novo, nã nã nã”. Eu falei: “Não, tá tudo bem”. Ele falou: “Não, então, tem outro personagem”. Eu falei: “Eu não sei se eu consigo fazer, porque eu to em Salvador fazendo uma peça. Eu largaria lá pra fazer o Cleiton, sei lá”. Mas ele falou do pastor, que era um personagem bonito, que eu já tinha lido, aí eu já tinha lido pra esse último teste. Falei: “Ah, porra, vamos tentar conciliar e tudo, mas tá tudo bem”. Viajamos, voltei pra Salvador, comecei a ensaiar. Três dias, talvez uma semana depois, uma hora da manhã eu recebo uma mensagem do Nelsinho: “Tá acordado?”. Falei: “To”. Aí ele falou: “Posso te ligar agora?”. Falei: “Liga”. Aí ele me ligou, tava ele já e o Luiz, falou: “Não, não, então, o cara que foi aprovado não rolou e o Luiz quer que você venha pra cá amanhã ou depois pra... Acho que é você. Ele só quer fazer o teste de caracterização, ver se você se enquadra”. Eu falei: “Pô, bicho, vamos. Já to aqui mesmo”. O problema vai ser a peça, que já tava num avanço, já tava rolando. Não tinha estreado, nada, tinha um tempo ainda pra ensaiar, mas você tem uma palavra ali com as pessoas, estão contando com você ali pra fazer o espetáculo e tudo. Falei pra eles delicadamente, tava indo para o Rio pra poder fazer mais uma fase do teste aqui da série. Eles já sabiam da história da minissérie. Aí vim e foi incrível, já foi com o Luiz, já foram decidindo coisas lá.
P/1 – Até então você não tinha... Aquele outro teste que você fez então não foi com o Luiz?
R – Não foi com o Luiz, nem o… tinha sido.
P/1 – Foi nesse, nesse terceiro que foi?
R – É. Esse já foi com o Luiz. Aí já foi lindo, com o Luiz já me levando para o lugar, foi um teste meio mágico assim. O Luiz tem essa coisa, essa brincadeira, meio mágica, vai te levando, tu não percebe, já tá virando coisa, virando. No final a gente fez uma leitura, ele falou: “Ah, porque amanhã...”. Eu falei: “Não. Amanhã nada. Vocês não me disseram nada até agora, eu não sei de nada”. Meio fazendo... Ele falou: “Não, bicho, é você”. Foi incrível. Foi ótimo. E aí eu já tava totalmente apaixonado pela história, por tudo, já tava, tipo: “Cara, eu quero fazer isso, quero viver essa história”. E já com figurino, a gente fez teste de figurino, de maquiagem, já com as atrizes também. Falei: “Porra, não, tem que rolar, tem que rolar”. E foi ótimo. Aí eu tenho que pagar minha promessa… porque ela atrasou, mas ela...
P/1 – E a peça? Como você fez com a peça?
R – A peça... Aí eu voltei pra Salvador, conversei com eles, expliquei tudo, o cara falou: “Ah, eu entendo, você vai fazer uma série com o Luiz Fernando Carvalho. Vai”. Vai. Vai. Todo ator deseja isso de algum jeito. Tem um mito em cima, mas que ele faz jus de algum jeito, o Luiz, não fica só na coisa, não. É um cara de verdade, sensível e que trabalha com você num espaço de sensibilidade, que é muito interessante. Que você vai armazenar coisas materiais pra tua vida como ator. Fora no presente, você fazer um puta trabalho interessante, esse cara que trabalha com estética, que trabalha com verdade. Fora isso você armazenar uma puta bagagem para suas próximas coisas. O cara falou: “Vai, bicho, vai seguir teu caminho”. Aí entrou um ator ótimo pra poder fazer, eu falei: “Ah, que bom, deu tudo certo”. Fechei essa história lá, que eu precisava, e já vim de cabeça pra cá pra fazer a série.
P/1 – E como foi a preparação?
R – Ah, foi uma delícia, com Carnevale, que é um queridaço, é ator também, então tem toda a sensibilidade com o ator, sabe os caminhos, sabe os truques, te revela muito como ator, te revela mesmo, fala: “Ê, trucou aqui hein, nã nã nã, não trucou”. Isso é bom de ter essa troca. Ah, foi ótimo a preparação, eu gostei. Eu vivencio muito a preparação como real já, como já indo. Então pra mim já é parte de acúmulo de coisas, de sensações, de possibilidades, de coisas pra cena, de vivências ali, de papos que a gente tem eu já carrego também para o momento, porque ali já é a construção. E às vezes a coisas mais... Aparece ali naquele instante, que é a primeira vez que você olha pra ela, é a primeira vez que você fala com aquele cara. Tinha uma cena com o Guti que eu fiz quase igualzinha como a gente fez na preparação, foi a primeira vez que a gente passou aquela cena, que a gente tinha lido antes, aí eu já tinha lido todos os capítulos, já sabia que ele ia ser um escroto comigo, aí fui dar o troco nele. O troco foi, tipo, ele ficou louco, ele não acreditava nas coisas que eu tava fazendo com ele, cuspia na cara dele.
P/1 – Ele contou.
R – O Guti contou?
P/1 – Mas contou positivamente.
R – Não, foi ótimo. Foi ótima a experiência com ele, foi ótima.
P/1 – Ele é muito bom.
R – Não, com atores maravilhosos, muita gente nova que nunca fez... Esse frescor que eu falei lá do filme, de tudo, das primeiras vezes, isso vai faltando na gente. A gente vai ganhando em outras coisas, mas isso vai te deixando cascudo demais, então um olhar nunca é um olhar, é o olhar, aí já vira um olhar, não vira o olhar, saca? E eles têm ainda esse olhar, porque não fizeram muitas coisas. Então é um olhar. É como se fosse a primeira coisa, a primeira vez pra tudo, e isso a gente precisa manter como ator. Porque se eu to fazendo um bom trabalho, ninguém tem que estar lembrando o que eu fiz lá. É a primeira vez naquele instante, naquele presente ali eu tenho que tentar manter como se fosse a primeira vez, no meu olhar, no meu jeito de fazer, deixar vazar coisas, não ficar preso nas coisas que eu já sei, que eu sei que funcionam. Tem que deixar vazar. E isso eu consigo beber muito com esses meninos. Com a Ana Pérola, muito.
P/1 – Ana Pérola?
R – O que é Ana Pérola? É uma coisa... Ela já nasceu pronta, é uma coisa que nasceu pronta. Ela já divide o texto às vezes assim, intuitivamente ela divide bem. A Érika, essa coisa também mágica, sabe, tem uma coisa, tem um olhar primeiro. O Nelly. O Nelly, essas coisas. Então é ótimo, tá sendo uma troca bacana. E eu sinto que eles puxam também, eu gosto dessa coisa de troca, não tem ninguém ali... Não, a gente tá trocando. Eu to deixando coisas irem pra eles e to puxando coisas, e tá sendo lindo para o trabalho, rico pra caramba para o trabalho.
P/1 – Antes de entrar no personagem, você contou um pouco dos bairros que você morou lá em Salvador, da vinda para o Rio de Janeiro. O que você conhecia do subúrbio?
R – Subúrbio?
P/1 – Aqui do Rio de Janeiro, a coisa carioca.
R – É do Rio de Janeiro. É.
P/1 – Ou parecido em Salvador.
R – Mais de lugares simples assim, tive aquela vivência do IBGE. Aquilo foi num lugar que a gente poderia dizer que é igualzinho ou correspondente a um subúrbio daqui do Rio de Janeiro. Então eu tive essa relação com essas pessoas que tomam café na porta, com essas pessoas que saem ali e sabem da vida do vizinho, tem uma relação mais próxima, mais sinestésica, mais aqui. E o subúrbio aqui no Rio eu conheci meio visitando assim, com amigos que me levavam. Fui a alguns pagodes, fui a samba, já fui a funk, baile funk.
P/1 – Baile funk você já tinha ido?
R – Já tinha ido a alguns bailes funk, fui à Rocinha, fui a alguns mais distantes também. Delícia. Baile funk é uma delícia. Não consigo ir muito, a música me dá uma enjoada uma hora, mas é mais pra antropologia, tu vê, tu fala: “Caralho, olha ali, olha o rebolado, olha como funcionam as coisas”. Dá uma dançadinha ali.
P/1 – Quem é o Cleiton? Fala um pouco do Cleiton.
R – Ah, o Cleiton é um menino tentando descobrir o “eu” dele, tentando ir atrás da persona dele, de uma persona segura, só que ele é muito verdadeiro com ele e muito emocional, muito passional. Então ele não consegue. Ele entra numa roupagem, mas alguma coisa o tira, que a gente não sabe se é a escolha dele. Que eu acho que no caso do Cleiton é mais a vida o levando, é um cara que não reclama da vida. Engraçado, hora nenhuma você ele falando: “Ai, puta vida, olha as merdas que aconteceram”. Ele soluciona. É um puta aprendizado pra mim isso, que ele vai solucionando a vida sempre, não tem olhar pra trás, não tem nem desejar tanto à frente, ele não deseja tanto à frente, ele tá aqui. Aí apareceu, vem cá, vem cá que eu dou um jeito, vem cá que eu resolvo, vem cá que eu tento resolver. E nisso ele vai tentando descobrir quem é esse cara. Começa um garoto supertímido, com essa persona de alguém que perdeu muito. Ele tenta se abrir na vida um pouco mais, só que a vida vai levando-o pra outro lugar, ele já descobre outro sabor e já virou outra coisa, já tem outra casca, ele já virou outro bandido lidando com outras coisas. Mas permanece aquilo que a gente pode chamar de essência, sei lá o que é isso, que é um fiozinho que segura ali, vai ligando tudo, mas permanece. Ali ele já passou pra outra, virou evangélico, caramba, já é um cara com outro comportamento social, lidando com outra persona, essa coisa que fica à frente, ele vai buscando roupa pra ele, tentar achar que persona é essa dele. É esse menino atrás de um “eu”.
P/1 – Deixe-me te mostrar aqui aqueles desenhos que a gente tinha falado, o Luiz fala que vocês fizeram na...
R – É.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouco dessa representação aqui. Esse foi o primeiro. Cleiton um.
R – Cleiton um. Então, isso foi muita coisa intuitiva mesmo, não pensei muita coisa, mas agora, analisando, eu consigo perceber muita coisa do que eu faço hoje e do que eu pensava a respeito. Porque tem cores primárias mais do que até... Só tem um verde, que é uma cor secundária. Então é um garoto que na coisa do instinto, primário, ele lida com a emoção dele como uma criança.
P/1 – A gente parou no desenho, você tava falando.
R – O desenho. É isso. Pois então, esse é um desenho e aí eu acho que representa essa coisa do “eu”mesmo, é um bonequinho vazio sendo completo. Engraçado agora vendo, parece aquele... Sabe um jogo que tem na década 80, 90, que é Cara Maluca? Cara Maluca, uma coisa assim, que era uma cara e você ia cruzando umas coisas, ela balançava e caía. É um pouco isso que eu tenho, que eu acho que esse desenho tem. Eu acho que o Cleiton vai puxando coisas pra tentar formar essa persona dele. Aí eu acho que o vermelho, esse olhar tem um pouco de momento dele, acho que tem um pouco dos momentos dele aqui. Esse azul eu acho que representa um pouco esse momento primário. Talvez o vermelho, óbvio até, mas eu acho que são momentos secundários, vejo uma coisa mais temporizada, acho que ele tá mais temporizado quando ele vira evangélico. Acho que é um pouco isso esse desenho.
P/1 – E esse segundo? Porque primeiro vocês fizeram esse, depois vocês fizeram no mesmo dia, não foi? Como foi?
R – No mesmo dia. No mesmo dia. A gente fez esse desenho, depois a gente fez um exercício com a Lucinha, que era um estudo que ela tava fazendo sobre danças dos orixás, música, e a gente fez uma brincadeira ali. E acho que tem tudo a ver com a série, total, uma série que tem muitos negros, então tem a ver com a nossa ancestralidade e tá total ligado com o candomblé, e com o mito dos orixás. Foi ótimo ela ter buscado isso. Esse dia eu vi muita coisa, foi muito legal esse dia, porque com as pessoas no jogo e ali brincando, eu fui vendo ali as possibilidades. Aí vira uma coisa até mítica também essa coisa dos orixás, porque eu acredito, então acho que a gente deixa aparecer, botou o batuque, nã nã nã, começa a transparecer o que te guia. Que você não é só isso, mas o que é que nesse instante tá te movendo. Aí eu consegui ver várias energias, forças da natureza nas pessoas. A Érika era uma coisa louca, a Érika mudou, o rosto dela mudou. O rosto dele mudou, foi uma coisa louca, eu me lembro dela vindo assim em cima de mim com o rosto e eu fiz assim uma hora que eu olhei, falei: “É a Érika”. Aí eu fui de novo, entrei no jogo, olhei, falei: “Caralho, olha no que ela pode virar também”. E vendo isso nela, foi ótimo. Do olhar, o olhar muda muito quando a gente tá jogando, em cena vendo com ela, o olhar dela muda, o fora muda muito. Como a gente tá sempre contracenando e tá aqui, eu consigo perceber essas diferenças. Eu acho que isso é que vai alimentando, isso que é interpretação, você ir brincando com essas camadinhas de sensações, que isso transparece muito pelo olhar. Então esse dia foi muito valioso por isso. E acho que aqui eu volto na coisa do azul e tudo, mas aí eu acho que eu consegui juntar o Cleiton. Ali eu acho que ele tava separado, esse cara que vai atrás buscando, acho que tá tudo dentro dele também, aí virou esse caminho de coisas que você busca. Por que você busca essas coisas? É por que são coisas que estão dentro de você e você não conseguiu enxergar, e você tenta buscar fora? Sacou? O que me pareceu nesse é que o Cleiton é tudo isso mesmo, já era tudo isso que ele tá buscando, eram facetas dele que ele não conseguia colocar pra fora. Então o vermelho foi pra uma cabeça mais pesada, mais... Acho que aqui eu já repeti essas cores já, propositadamente já, eu não sabia aonde ela ia, cada uma. Acho que eu fiz isso com o vermelho, acho que a escolha das cores foram as mesmas assim, acho que eu quis usar o vermelho, o azul, o amarelo e o verde, que ali foi intuitivo, aqui eu já quis. Mas eu acho que aqui os traços me trouxeram outras sensações do Cleiton, esse coração que explode, o Cleiton é total movido pelo amor, total movido pelo coração, ele é total movido por isso. Essa cabeça pesada cheia de história, cheia de traumas da vida, num corpo fluido, num corpo tá aí pra ir, pra poder caminhar, seguir. Acho que esse é um pouco do Cleiton.
P/1 – E aquela meio clássica. É clássica, mas é engraçado, que eu ia perguntar assim, qual é a identificação da pessoa com o personagem, o que tem de um e de outro, mas é engraçado que nesse caso a gente vê que tem muita característica mesmo.
R – Muita. Muita minha.
P/1 – É.
R – Daquilo tudo que a gente falou.
P/1 – É. Quando pega lá atrás, o que você acha que tem nessa...
R – Dessas personas inteiras que eu fui na minha vida... Claro, essas personas inteiras que eu fui na minha vida, do garoto gago, tímido, de aparelho, de óculos, para o garoto já mais bem resolvido, mais seguro, para o homem que já coisas que estão resolvendo na cabeça, de outro comportamento, menos agressividade, mais observação. Acho que tem tudo. Tudo. Acho que tem tudo como humano. Acho que o Cleiton é um pouco desse mito humano mesmo, da saga, dessas fases todas que a gente passa na vida, de uma construção de uma persona, a construção de uma identidade. Que não existe também só essa única identidade, acho que a construção é o caminho mesmo, o que você vai chegar lá é parte do caminho ainda, nunca vai chegar lá. Isso tudo é esse aprendizado. Acho que o Cleiton representa essa saga do humano à busca do “eu”, de descobrir o “eu”, conhecer o “eu”, tocar no “eu”, nesse possível “eu”, conectar, vivenciá-lo. Essa coisa de ele ser um cara que reclama menos é uma coisa que me falta, isso é bom de observar no personagem. Não sei se eu vou conseguir ficar com isso. Nesse instante eu to preparado pra aprender isso com o Cleiton. Mas é um cara que as coisas vão passando pela vida dele e ele tenta não ficar preso no que poderia ser, é no que tá sendo, tá sendo, tá sendo, não tem... Tá sendo. E por uma coincidência, não só coincidência, porque o Carnevale tinha me falado do Joseph Campbell, aí eu comprei um livro, comecei a ler, o Luiz trabalha muito com... Leu muito Joseph Campbell, então a gente tá trocando muito com isso. E agora esses dias a gente falou disso, que tinha um capítulo da... Foi esse capítulo da beleza, que falava do Buda? Um capítulo que falava do... Nesse livro que eu te falei do mito da criatividade. Que falava dessa coisa de não desejar muito à frente, que a caminhada do Buda só foi uma caminhada onde ele estava inteiro, integrado com ele, porque ele não tava desejando, ansiando à frente, nem preso a passado nenhum, nem atrás, ele tava caminhando, está caminhando, está na ação, está no presente, presentificado. Acho que isso pode ser um bom aprendizado pra mim e pra quem assistir. Tomara que isso fique claro e que toque as pessoas. Fazendo o coração aberto, to unindo meu coração ao do Cleiton, ao do Luiz, ao dessa equipe inteira, ao de vocês agora.
P/1 – Delícia.
R – Vamos carregar isso.
P/1 – A gente vai terminando devagarzinho aqui.
R – Ahã.
P/1 – Se tiver alguma coisa que você queira deixar registrado, que evidentemente a gente não tocou também, você...
R – Tá ótimo.
P/1 – Do passado, da tia, da avó, de agora. Você olhando a sua trajetória de vida, se você fizesse uma avaliação assim rápida nessa conversa que a gente teve, se você pudesse mudar alguma coisa, você mudaria?
R – A gente se arrepende de coisas que a gente faz, mas eu estou feliz nesse lugar que eu estou agora. Não sei, não dá pra gente mudar, nem tudo faz parte da gente. Acho que esse é um aprendizado. Era um caminho, foi o caminho que aconteceu e ponto. Acho que eu não mudaria nada, não. É onde eu estou agora e ponto. Tudo eu consigo enxergar onde eu errei, onde acertei, pra onde possivelmente eu to indo, o que eu to desejando, onde fiquei preso atrás. Eu consigo enxergar essas coisas. Eu to no caminho, não sei o que é uma vida feliz, o que é uma vida idealizada, não sei. Eu não idealizo a minha vida, não. Desejo coisas, mas não tenho um ideal de persona, ou ideal de lugar.
P/1 – E sonhos?
R – Alguns. Eu sonho... Ah, eu sonho com coisas simples também. Sei lá. O meu espaço profissional é um lugar onde eu desejo muito, desejo muito. Não sei se é desejar, não sei, acho que eu to fazendo as coisas que eu desejei, que eu sonhei. Eu me lembro de ter sonhado em fazer cinema, eu me lembro de ter sonhado em fazer televisão, me lembro de ter sonhado em ter um carro, eu me lembro de ter sonhado coisinhas assim, de poder viajar, de poder conhecer alguns lugares, de poder conhecer pessoas, de trocar, me lembro de ter sonhado isso. E acho que eu to realizando tudo. Tenho novos sonhos, mas eu vou chegando, vou realizando-os. Tenho muitos, simples, sonhos simples.
P/1 – Você é casado, tem filhos?
R – Não. Eu sou solteiro.
P/1 – É a parte “Revista Caras”.
R – É. Não, solteiro. Namorandinho assim. Apaixonado. Eu to sempre meio apaixonadinho assim um pouco, nem que seja aqui no cantinho, duas horas, dois dias, um trabalho, to me apaixonando, olho, desejo um pouco. Eu tenho muita paixão nesse espaço de trabalho, então eu acabo me apaixonando e a maioria das vezes, sempre quase, não é realizado. É paixão meio... Sério mesmo. Nada. Platônica total. Desejo mesmo de ficar com friozinho e falar, e vou usando, vou usando. É estranho isso, eu tenho desejo pelos diretores também um pouco, tem um lance aí que rola mesmo de... Não vai realizar nada, isso é fato consumado, não vai rolar nada.Mas que tem o olhinho que brilha, tem uma coisinha, tem um querer estar bem, tem o querer estar se relacionando de verdade, sincero, ter uma relação de verdade, construir isso pra algum lugar, acho que isso são coisas de relação, de quando você tá apaixonado. Eu tenho essa relação um pouco assim, com direção, com a equipe, com atores. Com Érika, eu to apaixonado pela Érika, não vai rolar...
P/1 – Até ela.
R – É. Não é difícil. Não é difícil se apaixonar pela Érika. Não é difícil. Mas eu to, eu olho pra ela meu olho brilha um pouco. Eu sinto que é do Cleiton, mas que tá misturado, que é o meu sentimento também, dou uma olhadinha a mais. É ótimo, é supersaudável, eu acho que não tá nada errado, temos todo o controle, ela também tem isso. Mas a gente precisa botar o nosso um pouco, cair no abismo. Você acha que sabe muito bem, mas aí foi lá, smack, você deu um beijo, você não sabe se era da cena ou se era um desejo teu. Deu um beijo, e aí? . E aí. Isso é bacana, isso é bom. Nesse instante eu to meio apaixonado assim. To apaixonada aqui, mas to tendo umas relaçõezinhas, uma relação. Mas to solteiro.
P/1 – O que você achou dessa experiência de dar o depoimento para o Museu da Pessoa?
R – Pô, o estar aqui foi ótimo, poder recapitular coisas da minha vida, lembrar. Tinham coisas que eu não lembrava mesmo, coisas que eu fui juntando agora e foi chegando, eu falei: “Ah, olha isso, olha isso, olha isso”. Pra quem vai assistir também. O estar aqui é maravilhoso, acho que pra quem dá esse depoimento e poder enxergá-lo depois, e ver, e ser ver vendo, isso é um puta aprendizado, quase psicodrama, quase você poder enxergar de longe uma... Porque já tem uma câmera, tem alguém te perguntando, eu já estou, mesmo que minimamente, interpretando. Estou mesmo, não tem como. Tem câmera, tem você aqui me perguntando, tem gente me olhando. Então de algum jeito sou eu me vendo socialmente. A história que você contou das pessoas que vão receber isso, eu acho do caralho de poder se ver, ver o meu jeito, ver pra onde minha mão vai. Eu já me vejo um pouco trabalhando, mas quem não tem o contato com isso poder ver, poder ver como eu sou, como eu falo: “Ê, vergonha. Ê, que legal”. Tudo isso. É ótimo ter esse espelho. E poder ouvir histórias de outros, poder vislumbrar novas possibilidades de vida, de caminho, te dá uma liberdade dentro da tua vida hoje, no presente. Eu posso ser qualquer coisa, eu posso fazer o que eu quiser. Viagem pra mim... Cinema e viagem pra mim é um pouco isso, chega a um lugar, você fala: “Caralho, eu posso ser o que eu quiser”. Você volta pra casa falando: “Se neguinho lá em tal lugar vivia assim, por que eu vou viver aqui desse jeito que estão me dizendo pra viver? Eu vou viver do jeito que eu quiser”. Aí você consegue vencer coisas que são culturais, que nem sempre você comunga, coisas que são impostas, coisas que estão socialmente impostas pra você, você consegue ir expandindo as suas possibilidades, o seu potencial. Acho que isso pode ser um bom lugar pra isso. Ver, ouvir essas histórias, e de pessoas reais, de pessoas normais, de pessoas qualquer. De pessoas qualquer, em qualquer lugar, somos todos “qualquer”, também esse espaço do qualquer. E aqui parece que a gente tem voz, aí você ouvir que aquele qualquer tem voz aqui: “Opa, olha como ele fala bem, olha que história”. Teve uma exposição, uma época, de um cara, acho que foi o Sebastian... Não. Eu vou lembrar o nome dele. Lá em Salvador, que era um cara que tirava fotos de pessoas. Primeiro ele começou na feira de São Joaquim. Ele tirava foto da pessoa que trabalhava na feira, e aí a exposição dele era colocar essa foto no stand em que essa pessoa trabalhava. Então era incrível você passar e ver a foto da pessoa, e ver a pessoa, e a pessoa se ver. Eu vi duas pessoas na mesma posição, na mesma posição assim. Eu falei: “Caralho, que brincadeira boa de arte, de realidade, de o que é, e tudo misturado ao mesmo tempo”. Depois ele foi a bairros mais pobres e tirava foto das pessoas, só que ele ampliava em doors, outdoors enormes. Eu passei em um na suburbana de lá, tem até suburbana, suburbana é o nome, passei pela suburbana de lá e vi três meninas assim, aí eu falei: “Caralho, imagina pra essas meninas se...”. Não por estar num lugar maior, não é disso que a gente tá falando, é de reconhecimento, é de se ver, podia ser numa coisinha pequena, é de ver e dizer: “Olha como eu sou. Olha como eu sou bonita. Olha como eu sou legal. Olha como a arte me deixa feliz. Olha como o contato da arte...”. Isso aqui também é arte, de algum jeito. Acho que o contato com uma arte é onde a gente consegue transcender a realidade. Hoje pra mim é o único caminho possível de transformação e de mudança, é através da arte.
P/1 – Obrigada.
R – De nada. Obrigado a vocês.
P1 – Foi ótima.
R – Também gostei.
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