Projeto Ponto de Cultura - Museu Aberto
Depoimento de Marika Gidali
Entrevistada por Simone Alcântara e Heci Candian
São Paulo, 09/02/2010
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV_237
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 07/07/2010
P – Primeiro, eu gostaria que você contasse pra g...Continuar leitura
Projeto Ponto de Cultura - Museu Aberto
Depoimento de Marika Gidali
Entrevistada por Simone Alcântara e Heci Candian
São Paulo, 09/02/2010
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV_237
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 07/07/2010
P – Primeiro, eu gostaria que você contasse pra gente o seu nome completo, onde nasceu, data. Só isso por enquanto.
R - Vou dar o oficial, que é Maria Gidali Duprat.
P - Certo.
R - O artístico, mas o verdadeiro nome com o qual eu nasci, Marika Gidali, achei muito gozado porque eu fui registrada com esse nome, só que, como eu nasci na Hungria, na hora de traduzir a papelada, os documentos, eu virei Maria (risos). Virou Maria Gidali. Aí depois eu casei com Raimundo Duprat, então ficou sendo Duprat. Virei francesa (risos). Data do nascimento: 29 de abril de 1937.
P - Certo. Qual é o nome dos seus pais, avós, e você se lembra do que eles faziam?
R - Lembro.
P - De profissão?
R - Lógico, imagina. Meu pai é Bela Gidali. Sempre quando a gente diz Bela Gidali perguntam se essa é a minha mãe, mas esse é meu pai (risos). Que a tradução de Bela para português é Adalberto. E a minha mãe é Belane, porque na Hungria a pessoa perde o nome: o nome dela, que é Elizabeth, passa a ser o nome do marido, Bela, e o “ne” é a mulher do Bela. Então, vira Bela e Belane. Aqui dá uma confusão danada, mas o nome do meu pai é Adalberto e o nome da minha mãe é Elizabeth em português. Minha avó era Iolanda, meu avô era Eugênio, da parte da minha mãe. E o meu avô fazia... Trabalhava com metal leve, ele fabricava instrumentos, era uma coisa muito linda, instrumentos hospitalares artísticos. Era uma coisa muito bonita, tanto que ele morreu depois da guerra porque, na hora de o comunismo entrar na Hungria, eles encamparam a fabriquinha dele. Uma fábrica que, depois da guerra, ele tinha reerguido, catava coisinha por coisinha no meio dos escombros... Aí, ele não aguentou, morreu por causa disso. A minha avó não tinha uma profissão especial, era uma supermãe. A minha mãe e o meu pai, meu pai alfaiate, minha mãe era costureira. Eles atendiam, tipo um Mappin da Hungria, era uma coisa muito grande, me lembro que tinha gente que ajudava até limpar os casacos, tirar as linhas, essas coisas, era uma coisa muito gostosa. Trabalhava nisso até sair da Hungria e vir para cá. Aqui o papai continuou fazendo. Ele aqui virou cortador em Bom Retiro, depois de ter aberto várias lojas que não deram certo, assim, roupinha de... Feminina, né? Passou, foi para o Bom Retiro e lá ele passou a ser um cortador, que seria chefe de cozinha (risos) dentro da empresa de alfaiataria, essas coisas todas. E a mamãe passou a cuidar da gente, assim foi.
P - A sua mãe teve uma loja aqui em São Paulo.
R - É, depois.
P - Foi bem depois.
R - Depois, depois. Isso é o começo do Brasil, né? Que, quando nós chegamos aqui, mamãe e papai começaram a trabalhar. Depois, quando entrei no balé, eu acho que eu já estava no Centenário, eu já tinha saído até, deixa eu pensar... Já tinha até saído do Centenário. Nos anos 60, por aí. Eles primeiro representaram a La Dance do Rio de Janeiro aqui, e, como a La Dance não conseguia atender todos os pedidos, eles acabaram fazendo Ballet do Centro, que existe até hoje, mas declinou muito porque papai não tinha mais esse elã de entrar na concorrência do (Romeu?) e esse (Capezio?) que está representado aqui agora. Então, eles ficaram na clientela deles. Depois, papai e mamãe morreram, minha irmã e meu irmão ainda ficaram um pouco com loja, e agora também, a minha cunhada atendendo a certa clientela. Mas também em pequena... Uma loja pequena.
P - E voltando um pouquinho à sua infância. Você se lembra da rua em que brincava, como é que era a rua? Do que é que você brincava?
R - Eu não brincava, porque eu nasci em 37 (risos). Nasci na guerra, mas eu corria (risos). Ia para a escola, eu morava numa rua chamada (Dobuchá?), que quer dizer tambor, “roda o tambor”. E eu cursei escola, primário até quarto ano, na Hungria. Mas é muito conturbado tudo isso. Se – eu nasci em 37 –, minha mãe nos levava para a escola e vinha a sirene, tinha que pegar correndo, trazia para casa, foi um esconde-esconde danado. Mas eu me lembro muito de andar de patins, eu gostava muito de patinar no gelo, adorava quando chegava o inverno com neve, essas coisas. Isso eu me lembro muito bem. E o que marcou mais a minha infância foi a guerra. Sem dúvida nenhuma, foi um esconde-esconde danado, negócio de... Como é que fala isso? Negócio do judeu, e eu sou judia e foi um... Ixi, uma complicação (risos). Uma complicação. Mas eu fico falando assim para mim. Nada nasce por acaso, eu acho que eu estava sendo preparado para aguentar uma outra guerra aqui (risos), que não é pouca.
P - Um treino.
R - Ah, não é pouca. Mas, de qualquer forma, lá existia muito o perigo das bombas, você poderia morrer de uma hora para outra. A gente teve muita sorte, minha mãe e meu pai sobreviveram, nos trouxeram para cá, minha irmã, eu e meu irmão. Nasceu minha irmã, nasceu depois da guerra, então ficou uma familiazinha muito legal que ela trouxe embora da Hungria. Minha lembrança da Hungria, tem ainda mais aquela de ir para o Teatro Municipal depois da guerra, a Ópera da Hungria, de Budapeste. Eu tinha passado para cursar dança, balé lá, mas aí eles vieram embora e eu vim para cá. E aqui foi diferente, porque eu fui fazer audição no Teatro Municipal daqui e não passei (risos). Foi bom.
P - Agora, mesmo assim, nesse contexto de guerra, pequenininhos, vocês eram pequenos, você e seus irmãos, dava para ter amigos, para brincar e patinar no gelo?
R - Na Hungria?
P - É. Com eles, tinha essa possibilidade, ou não?
R - Na Hungria, foi complicado porque a gente tinha os vizinhos. Lá era assim, era um prédio de um, dois, três andares, eu morava no segundo. Tinha três andares e as famílias tinham filhos. Mas era um problema porque essa coisa de racismo entrou no meio e foi muito complicado você ter amigos. Que tanto o lado de lá quanto o lado de cá não se juntavam por problemas de pai, mãe, bom, enfim, amigo mesmo. Mas eu tinha uma amiga superlegalzinha, que até fui procurar no Google. O nome dela era Kirsten Marika, ela também era Marika, que também era uma menina de escola, e a gente relacionava bem. Eu me lembro que ela fazia aula de ginástica, de solo, e eu ia. Foi no começo que eu gostei, que eu vi que tinha uma sala de aula em que se fazia uma coisa chamada acrobacia. Essa menina até marcou bastante. Muitos amigos, não.
P - E como era o cotidiano da escola de vocês lá?
R - Como que era...
P - O cotidiano da escola.
R - Na escola?
P - É.
R - Como eu estou te dizendo, a gente entrava na sala (risos), começava a estudar e saía correndo, porque quando dava a sirene, a gente “upi” para casa. Mas era gostoso. As coisinhas de que eu me lembro: eu tinha uma professora de cabelo branco, Bianca Neni, o nome dela, e nisso ficamos... Lembro-me da rua, me lembro que tinha um correio na rua, e a gente tinha grandes correrias por lá. Aí me lembro também que, quando a mamãe foi levada embora, a gente foi parar num orfanato que também fica nessa mesma rua. E nos acolheram lá. As lembranças são muito fumaceiras, né? (risos) Mas tive muita alegria lá, lembranças gostosas, por exemplo, deitar na frente do fogo da sala, como é o nome desse negócio?
P - Lareira.
R - Da lareira, e ouvir aquele tuc-tuc da madeira, eu gostava. Gostava de sentar na beira do prédio, na entrada, e ver bicicleta, adorava ver as pessoas pedalando, tem umas coisas muito gozadas. E tem uma história gozada lá, que vale a pena contar, que eu era muito assim, eu queria fazer sempre tudo sozinha, e isso me custou muito caro na minha vida. Porque tudo sozinha é complicado, até chegar numa conclusão. Mas a minha mãe me levou na feira e ela comprou uma melancia. Essa melancia, eu queria carregar sozinha. “Eu vou levar sozinha, porque vou levar sozinha.” (risos) Aí, a minha mãe: “Tá bom, então você leva sozinha”. Chegamos na porta do prédio e eu, pá (risos). Logicamente a melancia caiu e estourou. Muitos anos depois, eu voltei para a Hungria com Décio, Ademar, e até está filmado isso, e nós entramos no prédio, eu subi para ver o lugar em que eu tinha nascido, eu voltei. Ver os vizinhos, conversar, tudo tinha mudado. Na descida, eu vi a melancia estouradinha na porta (risos) e falei: “Ai, não acredito.” (risos). Olha que coisa legal, né?
P - Incrível. E ficou lá ainda, né?
R - Não, não ficou lá, mas tinha uma outra melancia que estourou e estava me esperando por lá (risos).
P - No mesmo lugar (risos).
R - No mesmo lugar.
P - E você contou para nós que vocês vieram para o Brasil, né?
R - 47.
P - Que você se reuniram novamente. Como que foi essa vinda para cá, essa decisão, porque você voltou para a escola, mas os seus pais voltaram. Como é que foi a decisão?
R - Meus pais voltaram, recomeçaram o negócio deles na Hungria, nós voltamos para a escola, mas a mamãe estava com muito medo de estourar outra guerra lá, de criar os filhos e perdê-los. E eu tinha uma tia, eu tenho uma tia, agora são as primas, que moravam aqui, que vieram antes para cá. E aí eles se contataram. “Vamos para o Brasil.” “Então, vamos para o Brasil.” Era a tia Madalena, o tio Francisco, as minhas primas que estão vivas, essas primas têm até uma loja chamada Antiguidades Francisco, uma loja bonita. Aí, a minha mãe resolveu vir para cá, e foi complicada a vinda para cá, porque na época era o Dutra que estava aí e não deixava judeu entrar. Então, nós ficamos quatro meses na Itália, eu, minha irmã Inês e meu irmão Pedro. Ficamos na Hungria com mamãe e papai, imagina, na Itália, em Torino. Ficamos quatro meses em Torino, na casa de uma outra tia que existia em Torino. Mas totalmente aflitas, porque, imagina... E a minha mãe e meu pai correndo atrás da papelada para conseguir chegar. Conseguimos embarcar. Viemos num navio chamado Paulo Toscanelli, que foi a primeira viagem desse navio, depois saiu de linha. Foi uma viagem gostosa, só que eu chorava, falei: “Ai, meu Deus, onde a gente vai, lá no Brasil tem índio e tem doença, no fim da rua a gente vai olhar e vai ver índio. E só índio!” E a gente morria de medo de índio (risos). E as doenças também que falavam, era um terror para criança de dez anos. E era criança mesmo porque, veja bem, hoje em dia, dez anos não é mais criança, naquela época era criança. Eu usava meia soquete, essa coisa assim. E eu queria chegar em casa, em algum lugar. Aí chegamos aqui no Brasil, em Santos, a minha tia Madalena foi, subiu no navio, e não nos deixaram descer, não deixaram descer. Aí foi uma desgraça. Foi: “Putz, vamos para Montevidéu.” Então, fomos pra Montevidéu. Lá, nós conseguimos descer e ficamos duas semanas em Montevidéu e entramos fugidos no Brasil. Eu me lembro de todo mundo correndo atrás de nós, foi uma loucura, uma loucura, mas chegamos aqui (risos).
P - Vocês vieram para São Paulo direto de Montevidéu?
R - Direto para São Paulo, para a Rua... Onde é que eu fui? Para Pinheiros, Rua Tupi, a primeira casa foi na Rua Tupi.
P - Vocês...
R - Adorei chegar aqui.
P - Qual foi a sensação, você se lembra? Porque é que você gostou tanto?
R - Lembro. Deu a mim um bem-estar danado poder andar na rua, ninguém me mandando atravessar calçada e, enfim, sem essa perseguição terrível da Hungria, que foi muito ruim. E tinha uma família aqui, essa minha tia e a minha mãe, tudo. Enfim, cheguei em casa. Sem entender nada, sem ter amigo de nada, foi uma loucura (risos).
P - E como é que foi o cotidiano, como ele foi se construindo?
R - Muito difícil (risos).
P - O que é que vocês faziam, como é que...
R - Tipo: “Vai buscar pão.” Um vai pegar três pãezinhos, e até tem uma propaganda aí, eu estava vendo: “Seis pãezinhos, seis pãezinhos, seis pãezinhos, seis pãezinhos.” Aí, chega lá: “Quê?”. E volta para casa (risos).
P - Você falava português já, não?
R - Nada. Isso que eu estou dizendo. Minha tia falava assim: “Vai buscar pão.” Aí eu ia buscar pão (risos), e foi tudo assim. Até eu tenho um complexo danado, complexo não, é um bloqueio. Se você pergunta assim: “Qual é o seu nome?” Eu não sei. Eu tenho que rebobinar, me acalmar, para dizer: “Eu sou Marika Gidali.” (risos) Porque as perguntas que vinham, eu tinha muita dúvida de como responder, eu não entendia, e o pessoal dizia, quando todo mundo ria, eu também ria: “Mas por que você está rindo?” (risos) Foi muito difícil.
P - Para se adaptar.
R - A adaptação de uma língua húngara para o português foi uma adaptação muito complicada. E até hoje tem coisas que eu não entendo, mas aí não vai mesmo e não irá nunca, que é o masculino e o feminino. Para mim, palavras conjuntas, como eu não estudei essa coisa de raiz, é tudo por ouvido, e eu tive um amigo muito querido, que é o Ademar Guerra, que uma vez me deu uma aula de masculino e feminino. Aí, nunca mais eu aprendi (risos).
P - Piorou.
R - Porque ele confundiu a minha cabeça de propósito (risos). Mas foi muito complicado, muito complicado. De um lado, complicado, mas a outra foi aquela calmaria de ser humano. Sabia que você podia voltar para casa, não cairia bomba, tem comida na mesa, porque eu passei muita fome. Na Hungria, a gente acabou comendo lentilha seca por muito tempo (risos). Então, foi uma infância muito complicada, qualquer coisa que viesse aqui seria mais fácil de tirar.
P - E você chegou aqui com dez anos? Você estava contando.
R - Eu fiz... Eu cheguei no 27 de abril e, no dia 29, eu fiz aniversário no navio.
P - Ah, sim. E como é que foi? Você estava saindo de lá, da Hungria, e ia fazer um teste (Maldição?), não é? Para a escola de dança?
R - Aqui?
P - Lá.
R - Lá, eu fiz antes.
P - Você chegou a fazer?
R - Fiz.
P - E aí você teve que vir embora. Como é que foi a dança, como é que ela foi chegando aqui para você?
R - Você sabe que eu gostava muito de acrobacia, a vida inteira. Então, eu tive muito, eu aprendi sozinha fazendo acrobacia. Eu me lembro, na Hungria, tinha a cozinha e o corredor, aí tinham os quartos e também a oficina da minha mãe; no corredor, eu fui marcando assim, eu fui crescendo, fazendo parada de mão, e meu pé encostando na parede um pouco maior, que daí eu sujei bastante aquela parede, e, no sofá do meu avô, eu me lembro que eu fazia ponte, parada de mão etc. Aprendi tudo sozinha lá. Então, eu tinha essa coisa de corpo, eu queria fazer corpo, não era intelectual. E a minha mãe fez um negócio comigo que foi muito cruel, porque tem que fazer composição: “Sua irmã faz para você, filhinha, você faz dança.” (risos) E a filhinha achou que não podia fazer composição (risos). Não sabia que a gente estava com essas coisas e era na maior boa intenção, só que era assim: eu era corpo, e a minha irmã, na Hungria, ela ganhou, quando acabou a guerra, ela ganhou o concurso de poesia sobre paz, ela ganhou esse concursos, então, ela era a intelectual da família (risos). E eu fazia tudo que era o corpo (risos), eu fui o corpo, demorei (risos).
P - E aí você faz essas paradas de mão em casa e continua aqui?
R - Fazia essas paradas de mão e tal, tal, tal, cheguei aqui. Aí, cheguei aqui e entrei. Não, chegamos aqui, existia um clube húngaro que tinha um professor chamado professor (Ariga?). E esse professor me pôs no palco, dançando, sem saber dançar. Fazendo uma peça assoviando, falando, dançando, cantando, tudo. Sabe aquelas coisas de (clube?)? Tudo eu falei que fazia. “Nossa, menina talentosa.” Mas eu ainda não sabia o que eu ia fazer. Então, descobria o atletismo, que eu gostava muito de correr, pular, mas ao mesmo tempo tinha um professor que queria dançar pa de deux, essas coisas. Fim de semana, eu ia lá para ensaiar o pa de deux com esse professor. Então, tinha essa coisa de clube, corrida, salto ou dança. Isso ficou bastante complicado na minha cabeça, porque eu queria, eu gostava muito dessa coisa de atletismo e acrobacia. Mas esse meu professor me levou para uma professora chamada Carmen Brandão e comecei a estudar e vi que tinha um desafio legal na minha frente, porque eu dançava, mas não sabia dançar, não tinha técnica nenhuma. Era fazendo acrobacias, aquelas técnicas de boate. Lá, eu percebi que tinha um trabalho legal. Comecei a estudar lá, depois eu estudei com a Adaíse Lousa Miranda e passei para o Centenário.
P - Aí, você já estava com quantos anos mais ou menos?
R - Estava... Olha, eu cheguei aqui, acho 15 para 16.
P - Então, nesse tempo, você foi fazendo essas aulas. E eram gratuitas, como que eram?
R - Não.
P - Eram pagas?
R - Era assim, algumas pagas e algumas conversadas. Mas custava.
P - É, porque vocês estavam construindo a vida, né? Nesse período.
R - Custava, custava, mas, da Carmen Brandão, eu consegui dançar no fim do ano. Então, ela me deixou fazer aula, daí você tinha que pagar, não foi muito fácil.
P - E os seus pais estavam trabalhando já?
R - Já. Papai estava nessa de construir a vidinha dele aqui. Mas foi difícil, não foi fácil para eles.
P - E aí você já foi para o Centenário fazer audição, quando foi divulgado?
R - Foi (risos).
P - Como foi no IV Centenário?
R - Um terror (risos).
P - Por que um terror?
R - Eu acho que eu entrei em último lugar (risos). Aspirante dos aspirantes, que tinha corpo de baile. Não, tinha primeiro a bailarina, sobe isso, a primeira e a segunda, sobe isso, depois corpo de baile, estagiário primeiro, estagiário segundo e aspirante. Eu era aspirante. Eu acho que se não me... Eu não acho essa coisa que eu gostaria de achar, mas acho que meu nome estava em último lugarzinho lá quando entrei.
P - Como foi a entrada no IV Centenário? Você gostava de acrobacia, gostava da dança?
R - Vamos falar primeiro da audição.
P - Ah, fala.
R - A audição foi ótima (risos).
P - Então, diga da audição. Conta, como foi?
R - Eu assisti a audição por causa da bailarina maravilhosa, e a minha professora achou que tinha que mostrar tudo o que eu sabia, só que eu não sabia nada, né? E tudo o que eu sabia... Lembro-me que ela marcou uma avaliação com a música do Besouro, aquele tarararã, é uma música bem rapidinha, e só me lembro que eu tinha que girar, girar, girar, fazer manège assim, assim e assim, daí de repente tinha que parar no meio do palco e fazer o arabesque penchée. Olha, até hoje isso é uma coisa difícil (risos). Quando eu parei para fazer arabesque penchée, minha perna, logicamente, dançou, e o público: “Oh!” (risos) Foi horrível. Mas eu tive sorte, eu acho, porque eu sabia fazer acrobacia, e tem o tal do Petruska que tinha os acróbatas. E a acrobacia salvou minha pátria, eu entrei pela acrobacia, tenho certeza que entrei por causa disso. Aí, comecei a minha luta pessoal. Trabalhei, fazia aula de manhã e de tarde, de noite, de madrugada, ensaiava, insuportável.
P - Era muito puxado.
R - As pessoas não me suportavam
P - Por quê?
R - Porque eu só fazia aula.
P - Ah, sim. O tempo inteiro voltada. Porque você gostava, tinha prazer, era por isso?
R - Não, eu nem gostava, eu tinha que sair desse estado de aspirante.
P - Sim, esforço.
R - Tinha que sair disso. Tanto que saí lá fazendo solinhos, foi legal. Mas já fui daí direto para o Teatro Municipal do Rio de Janeiro, corpo de baile, muito bem.
P - Então, o IV Centenário teve para você uma transformação importante, que você se esforçou na dança.
R - Tudo, foi minha base.
P - Foi a sua base. E no Teatro Municipal do Rio, como é que foi?
R - O festival do Rio foi interessante.
P - Aí você foi sozinha?
R - Foi.
P - A família, porque você era a mais jovem...
R - A minha mãe só disse assim: “Filhinha, você poderia ter avisado que você assinou um contrato.” (risos)
P - Você era menor de idade ainda? Era adolescente?
R - Não, aí já estava maior, não estava?
P - Com 18?
R - Aí, eu já estava com 18, eu já estava com 18. Não, mas é que a gente tinha um relacionamento familiar que todo mundo sabia tudo, que a minha luta era tão forte, e era certo que a mamãe estava seguindo tudo. Imagina, eu chegava em casa chorando: “Por que chora, filhinha?” Filhinha chora porque está difícil, mas eu não abria a boca. Aí eu dizia assim: “Hoje, eu consegui fazer três piruetas.” A mamãe: “Alguém viu?” (risos)
P - Não (risos).
R - Não era para alguém ver, era para mim (risos). Muito gozado. Então, a mamãe participava, só que eu nunca deixei ela fazer nada, era eu sozinha.
P - O esforço era seu, você queria conseguir aquilo.
R - A luta era minha. Loucura, loucura. Poderia ter sido mais fácil. Mas aí o Teatro Municipal estava com Mancini, e acho que temporada do Mancini, Leone de Mancini. E estavam precisando de pessoas lá. Aí eu recebi um telegrama me chamando e fui. Doeu na minha alma, para mim o Centenário era o começo, meio e fim, nunca imaginei poder largar do Centenário. Nunca. Foi uma coisa muito doída. Lá dentro, eu dancei, me realizei, me descobri como artista, me descobri como gente, como bailarina. Bom, enfim, a profissão de dança foi muito forte para mim, eu não joguei fora meio minuto lá dentro.
P - E foi repentino que acabou a companhia?
R - Não. Quando o Milloss foi embora, começou a ficar complicado, e comecei a não gostar mais. Não era mais aquele Centenário que eu conhecia. O Ismael até abriu um balé no Museu de Arte Moderna, não me convidou, porque eu era aquela que não iria fazer nada na vida. Que coisa, né?
P - Incrível. Que fica marcado, né?
R - Não, foi uma estima assim.
P - Os comentários...
R - Quando fui para o Rio, o Ismael já estava no Rio, eu fui fazer aula com ele, e ele me usava como exemplo: “Essa é aquela que parecia que não ia dar nada e está aí.” Então, a coisa foi muito, mas foi muita loucura, né? Muita loucura, foi dança 24 horas.
P - Por dia.
R - Durante anos, durante anos.
P - E, no Teatro Municipal do Rio, você já, claro, você já dançava clássicos, sapatilha de ponta.
R - Sim.
P - Mas você aprendeu na Hungria?
R - Não, aqui em São Paulo, porque aqui também tinha, no repertório existia o balé na ponta. E eu também estava correndo atrás dessa técnica da ponta e lá não, lá consegui não fazer Lago dos Cisnes porque não gostava, mas ______ eu fiz vários balés na ponta, Proteu, acho que Prometeu, que era um solo já na ponta, era tudo na ponta. Era aquela história do clássico, neoclássico, e tinha Nina Verchinina com o moderno, que também eu gostava muito, mas era a ponta, era sapato de ponta.
P - E como é que eram, nessa sua juventude, as paqueras, os namoros, como foi? Porque você está 24 horas por dia para a dança, mas estava jovem. Aconteciam as paqueras, você tinha um momento de lazer, saía com amigos?
R - Não, lazer a gente fabricava no Centenário, porque, por exemplo, a Iolanda tinha um sítio ou não sei o quê, convidava e a gente ia para lá. Vários deles tinham alguma coisa, e a gente ia num sábado, num domingo, mas o negócio de namoro, lazer, nunca. Agora, gostava muito de teatro e isso eu perseguia, o teatro eu perseguia desde sempre. A minha irmã tinha um namorado que eu achava um terror, tinha horror, só que ela desmanchou com esse namorado, ele começou a me paquerar e acabei ficando noiva dele (risos).
P - Por que ele era um terror e depois virou noivo? (risos)
R - Não tem explicação (risos). Era húngaro também, aí vamos. Tanto que, quando fui para o Rio de janeiro, fui para a casa dos pais dele, que tomaram conta de mim, e a minha mãe não ficou nada nervosa porque sabia que eu estava na casa de família. Mas a gente namorou muito, muito tempo lá no Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro, eu tive mais lazer do que aqui em São Paulo, no Centenário.
P - Tinha essa possibilidade, né?
R - Tinha mais, porque era Teatro Municipal. Quando não tinha espetáculo, você trabalhava até sexta, não me lembro se trabalhava sábado de manhã, mas você tinha sábado e domingo, você ia na Barra, tinha mar. Minha época de grandes lazeres foi por lá. Tinha o namorado, a gente ia para o restaurante, tinha teatro, revista, eu usufruí bastante do Rio de Janeiro. Aí, o Olívio (Rangar?) resolveu fazer um balé aqui em São Paulo, na Cultura Artística. Você soube disso, não?
P - Não, isso não.
R - Então, o Teatro Cultura Artística resolveu fazer um corpo de baile, e aí o Olívio foi para o Rio de Janeiro e convidou Neide, eu, Iara.
P - Estavam todas lá.
R - Estávamos todas lá. E voltei para cá.
P - Sim, para esse grupo do Cultura Artística.
R - É, que era lá no Nestor Pestana, no segundo andar, numa salinha pequena, a gente fez um bom trabalho lá.
P - E era um grupo grande?
R - É.
P - E o repertório, como era? Clássico?
R - Era neoclássico.
P - E também profissional. Você continuava sendo remunerada.
R - Sendo profissional. Olha, quem saiu do Centenário não conseguiu fazer nada de amador, era ritmo profissional, aula, ensaio, espetáculo. E a gente ganhava alguma coisa, não era muito, mas a gente ganhava. Só que depois o Olívio não aguentou, a Cultura não quis, e eu me lembro que deu uma gripe assim, uma gripe dessas asiáticas, e deu um forrobodó danado na época. Caiu o público, os bailarinos ficaram doentes também. Então, o negócio acabou por lá. Mas foi muito bom, com a Suzana Faini.
P - E depois você foi...
R - E o namorado, voltando para o namorado.
P - Sim, o namorado.
R - Voltando para o namorado, aí voltando para o...
P - Noivo.
R - Noivo, já era, não. Aí voltamos para casa, no dia primeiro de janeiro ele virou meu noivo, pediu a minha mão, e no dia dois eu desmanchei (risos).
P - Por que, Marika?
R - Não tem explicação, eu não queria, desmanchei. Era gozado que ele era fabricante de joias. Então, enquanto ele estava no Rio de Janeiro, e eu já estava aqui, cada viagem me trazia um relógio, um anel, não sei o quê. Eu estava com a fábrica de joias já na minha... Na hora em que eu desmanchei, eu peguei toda pacotada e devolvi para ele, e me arrependo até hoje (risos). “Chega, toma.”
P - E ele aceitou (risos).
R - “Mas eu posso financiar a sua carreira.” E eu falei: “Não quero.” Sofri muito porque me acostumei muito com ele, mas eu não queria casar.
P - Certo. Era a sua careira.
R - É tudo. Não queria. E aqui foi uma loucura em São Paulo. Esse tempo, desse momento até a Stagium, teve muita coisa que aconteceu aqui. Eu comecei a fazer coreografia.
P - E você coreografava já para quem, para onde?
R – Para a televisão.
P - Aí que você entrou na televisão. Como foi essa entrada na televisão?
R - A televisão foi pelo Ismael.
P - Ismael Guiser.
R - Como a gente, o Ismael estava na Cultura. Quando a Cultura acabou, ele começou a levar gente para boate, cinema, televisão.
P - Teatro de revista também?
R - Muito. (Juque?) Ribeiro.
P - Ele reunia, né? Vários bailarinos.
R - É, a gente era um grupo, tinha a Iolanda, tinha a Neide, tinha eu, a Marisa, a (Manganês?), Yoko, Ruth, era uma turma forte e eu (risos).
P - E naquela época era um público que via a dança na televisão? Como é que foi esse trabalho?
R - Eles eram muito bons porque tinha noites de gala. Noite de gala não era qualquer coisa, né? Era música erudita, balé erudito, cantores, e, mesmo na época da Cultura Artística, eu participei do programa do (Olívio?), que era fantástico, que aí vinham as grandes estrelas, cantores. Eu sempre participei de coisa muito boa, porque esse do (Olívio?) era erudito, a gente era meio modelo, fazia as roupas, mas participava, vinha nesse anúncio (risos). Era do Lelis Zalabeta, do (Ladinho?), e tudo assim, _____________ e vai e frente. Tinha gente muito boa, e a gente fez isso por muito tempo para sobreviver à coisa. E depois, com o Ismael, a gente fazia canal Record, que era grande o movimento de estrelas também que eles traziam. Aí, eu dancei com a Marlene Dietrich na Record.
P - Incrível. Tinha essa aproximação.
R - Não era pouca coisa, era uma coisa muito boa.
P - Importante.
R - Como, no Rio, eu tive muita sorte e eu peguei grandes bailarinas, Tumánova, Makarova, Markova, nomes que você não chegaria nem a ver. Eu tive muita sorte porque lá eu tive essa gente toda dançando junto, e aqui, quando voltei, teve essa outra coisa de show, outra prateleira, mas de gente muito importante.
P - E tinha essa aproximação? Convivia?
R - A Marlene Dietrich, a gente dançava junto. Fazia a bengalinha, ela segurando, a gente um lado, outro lado, aquela fila, e ela vindo, dançando com ela.
P - Certo. E foi assim, um bom tempo na televisão?
R - Muito.
P - A dança...
R - Mas várias televisões foram fundando, e a gente foi fazendo aberturas, que era o único grupo que tinha, depois veio o do Victor Austin, que era do Centenário, e tinha a Ládia com negócio de sapateado, com aquele rapaz, qual é o nome dele mesmo? Bom, agora vai falhar, que bom. Mas que era muito bom, era um grupo de sapateado muito bom na época. Então, eram três grupos que preenchiam as coisas que foram acontecendo. E eu sei que tinha tempo em que eu saía da televisão para ir para o show, do show para a boate, cinema, eu fiz Uma Certa Lucrécia de... Oh, meu Deus, da...
P - Quem era?
R - Corta aí, porque falha de memória (risos). Qual é o nome dela, vai? Dercy Gonçalves.
P - Ah, com a Dercy.
R - Dercy Gonçalves. Depois, comecei a fazer teatro porque essa carga que eu trouxe comigo, que eu nunca fiz as coisas pela metade. Porque no Rio de Janeiro eu fazia, ao mesmo tempo que eu fazia os balés de repertório, eu fazia ópera, eu adoro ópera. Eu estive perto de grandes cantores, coisas maravilhosas, e eu adorava aquilo lá, que é uma escola. Aí você volta para cá, pega essa turma de show, aí pega, bom, enfim, televisão, tudo. Então, foi a grande faculdade da minha vida. A minha faculdade, quando eu digo, a minha vida, foram poucas pessoas que tiveram a chance de estar perto de gente importante do jeito que a gente teve.
P - E de várias áreas artísticas?
R - De várias áreas. E, quando o Ismael foi para o Rio de Janeiro fazer balé do Rio de Janeiro, eu fiquei aqui com o Abelardo, e o Abelardo me convidou para fazer coreografia, isso já anos de televisão. Aí, eu comecei a fazer coreografia, até a primeira eu fiz Orfeu do Carnaval, eu e a Ruth fizemos juntas, e depois passei a fazer sozinha.
P - E continua na televisão também?
R - Até onde der. Tiveram vários programas que eu fiz.
P - Na Tupi também.
R - Na Tupi, na Tupi direto. Fiz bastante coisa lá, até que apareceu o Cláudio Petraglia que estava na Avenida Paulista, na Avenida Paulista tinha uma televisão lá, e teve o Cláudio Petraglia, que era diretor. Ele apareceu na minha vida assim, que anos depois ele me convidou para fazer teatro.
P - Ah, e aí você foi fazer teatro.
R - Isso. Primeiro, fui embora para a Europa para ver se eu faria... Já estava casada, eu casei.
P - Ah, então conta um pouquinho. Quando você casou? O primeiro casamento de que você falou...
R - O primeiro casamento foi com o Raimundo.
P - Como vocês se conheceram?
R - Foi porque eu fui para o Teatro Sérgio Cardoso, como assistente de coreógrafo de Ismael. Aí, o Ismael teve que ir embora para a Argentina, e eu fiquei, e fiquei trabalhando com os atores lá. Aí, eu conheci o Rai, e foi uma paixão dos dois lados, foi uma loucura. A gente casou e, nossa, quantas águas rolaram. A gente se casou e foi abrir a minha escola, a primeira escola, na Rua Sarandi.
P - Que já era a Stagium?
R - Não, Amigos da Dança.
P - Amigos da Dança. Junto com ele.
R - Era minha a escola.
P - Porque ele trabalhava...
R - Antes... Mentira, estou pulando uma fase. Eu fui morar na Avenida São João, e, na frente, tinha uma salinha, e eu abri a escola na salinha.
P - Amigos da Dança.
R - Amigos da Dança.
P - Ah, na São João.
R - Estou pensando se era Amigos da Dança ou se era Ballet de Câmara. Mas, aí, a Geralda veio trabalhar comigo, a Gê foi minha primeira organização de escola.
P - Como você conheceu a Geralda?
R - Ela estava na Maria Olenewa, e a gente se conheceu. Ela veio fazer aula com o Ismael, e a gente se conheceu lá.
P - E ficaram amigas.
R - Não.
P - Juntas trabalharam.
R - Depois a gente se reconheceu, eu já estava esperando meu filho, Edgar, e, um dia, ela estava descendo do ônibus, e eu com a barriga: “Nossa, Marika, que maravilha.” Bom, enfim, nós ligamos, aí ela veio me ajudar a fazer a primeira escola e nunca mais desgrudou. A gente ficou junta até hoje.
P - Até hoje. Você já estava com essa escola, engravidou...
R - Na Avenida São João.
P - Certo.
R - E, da Avenida São João, eu vim pra Rua Sarandi. Então, a Sarandi deve ter aberto em 64.
P - E você foi mãe pela primeira vez, do Edgar, mais ou menos em que ano?
R - 64.
P - 64 mesmo. Como é que era o cotidiano de ser mãe? Retomando, você ia contar um pouquinho sobre quando você teve o Edgar, seu primeiro filho. Como é que era o seu cotidiano sendo mãe, bailarina, com escola?
R - Olha, para começar, eu não parei. Eu estava esperando o Edgar, eu até... O Edgar nasceu domingo à noite, até sábado eu estava trabalhando. Mas eu fiz assim: a minha mãe morava no nono andar desse prédio onde tinha a escola, eu morava na frente, aluguei um apartamento na frente. Então, era só atravessar a rua. É a época em que todo mundo estava tendo filho, a Neide teve filho, a Susie teve filho, todo mundo estava tendo filho (risos). E era fácil, porque eu atravessava a rua com o meu filho e ficava lá dando mamadeira e trabalhando. Mas 15 dias depois eu estava trabalhando. Eu tive um parto normal e, 15 dias depois do parto, eu estava na sala de aula.
P - E como você fazia com o Edgar? Quem ficava com ele?
R - Carregava junto.
P - Ia junto.
R - Em todo lugar.
P - E você estava casada. Ele trabalhava com...
R - Ele fez dublagem, ele era ator, depois passou a fazer dublagem para televisão.
P - E com essa vida nova? Porque mudou um pouco, filho...
R - Bastante (risos).
P - Como é que foi ter escola, por exemplo?
R - Você sabe que eu, nessa época, eu estava com o meu filho e estava achando que o meu corpo não estava como tinha que ser. Eu era do Clube Pinheiros e eu ia muito com o Edgar no clube. Eu estava vendo o pessoal fazer ginástica de solo no aparelho lá, e eu fui fazer ginástica de solo no aparelho com o Edgar do lado. Foi com a (Via?) Paulista (risos).
P - Isso já adulto?
R - É. Fui campeã paulista, fui selecionada para o Pan-Americano, foi uma loucura. E balé, sempre balé, né?
P - Sempre o balé. O que é que mudou você ter uma escola? Como você fazia a parte administrativa?
R - Eu não queria ter uma escola, eu queria ter uma sala para fazer aula. Para poder ter a sala, para fazer aula, eu tinha que ter escola. Eu adoro ensinar também. Porque, como foi muito difícil para mim essa coisa toda, eu queria facilitar um pouco. Hoje em dia, vendo assim, [eu queria] passar as minhas experiências para frente. Quer dizer, sempre ensinei. Essa escola não era uma escola grande, era mais para nós termos lugar para fazer aulas e fazer a companhia. Então, tinha a companhia, tinha a Marina Tim, tinha o Anton Garcez, tinha a Gê, a Eliete Vilela, Vilela o nome dela – acho que ela usava outro nome. Bom, tinham umas quatro, cinco. Iolanda estava lá, Suzana, a gente fez um ambiente para fazer aula. Aí, nós ficamos fazendo aula, e essa mesma gente fazia os programas de televisão.
P - Continuava com os programas de televisão.
R - Continuava a fazer, porque o Ismael foi embora, fechou o dele e, aí, teve um núcleo para a gente trabalhar. A escola virou escola quando passei para a Sarandi.
P - E, quando virou escola, como é que era para você, na parte administrativa? Como vocês organizaram isso? A parte artística, parte administrativa da escola, como que foi para você?
R - A artística, segundo grau naquele momento, era escola. A gente organizou, começamos a dar aula, foi muito bem. Teve uma hora que tinham muitos alunos e, ao mesmo tempo, quando aparecia uma coisa, a gente juntava e trabalhava lá, mas era bem menos profissional do que hoje em dia, a gente juntava para fazer... Esses grupos independentes de hoje. Eu me lembro que veio o primeiro festival de dança de São Paulo, no Teatro São Pedro, que eles deram 40 mil reais para a dança. E nós fizemos um balé meio irônico, fizemos aquele Noite dos Desesperados, aquele que dança, dança. Aí, a gente pôs as placas 40 mil reais (risos). Foi uma barra para poder a gente lá dentro dançar. Era muito político isso. Porque, na peça, não tinha nada, nenhum tostão, é a primeira vez que deram 40 mil, nossa, que maravilha. Fora o Centenário, que não era para a dança, mas era para a cidade, para os festejos da cidade, mas ninguém levava a dança a sério, uma companhia de dança a sério. E a nossa luta vem daí, a briga, né? Nas Secretarias de Cultura, fazia a coisa acontecer. Milhares de comissões de dança que não levavam nada, presidente de comissão, presidente daqui. Dá muita luta, a gente não tinha muita voz.
P - E, naquela época, na Sarandi, por exemplo, você se reuniam, né? Outras áreas, o teatro muito próximo...
R - Na Sarandi, o muito importante que aconteceu, eu acho, que era um ponto de resistência, porque, 64, quem fazia aula lá eram as pessoas Dina Sfat, Sônia Braga, Ruth Escobar, Beatriz Segall, e outras. E muitos professores de universidade. Discussões eram feitas realmente, e você ficava sabendo: sumiu aquele professor, sumiu a outra. Era um ponto de resistência. Quando as pessoas vinham, faziam aula, mas a conversa corria.
P - E a censura já estava atrás de vocês também?
R - A gente não teve problema de censura. Esse foi o grande lance porque, da Sarandi, eu passei para a Augusta logo. Na Augusta, antes de passar para a Augusta, eu passei para o teatro, comecei a fazer teatro. E, no teatro, eu tive também muita sorte, que Ademar Guerra era um ser pensante de primeira. Tudo que eu ouvia lá, o Abujamra conversando com o Ademar, o Plínio conversando com o Ademar. Aquela minha forma de ser, eu não ia lá fazer coreografia, eu me envolvia absolutamente, totalmente. Tudo o que estava acontecendo, e tudo o que acontecia, eu estava de olho aberto. E o Ademar percebeu também que a gente seria um Brecht através da dança. Então, nós começamos a trabalhar na resistência, porque, enquanto eles foram se calando, porque foram calados, a gente foi dançando as coisas que eram caladas.
P - E, já com o Ademar Guerra, vocês estrearam em 71, 72?
R - Antes de nascer o Stagium, eu fiz o trabalho com o Ademar e com a Aracy Balabanian, em que eu era a Marie Farrar, e a gente fez esse negócio para estrear no Móbile, e o Móbile era um programa de meia-noite, uma hora da manhã. Falei: “Vamos fazer e a gente leva lá, dança à meia-noite, ninguém vê.” E nós ficamos quase dois meses trabalhando, o Ademar me trabalhando cada passo, e eu fiz a coreografia, e ele dirigiu, e a gente fez aquele coisa de Brecht, de distanciamento. A Aracy declamava o poema, e eu dançava a emoção do poema. Era coisa superlegal que foi em 70.
P - Depois que vocês estrearam, em 72? Diadorim.
R - 71.
P - Como é que foi a recepção do público, porque eram assuntos proibidos, né? O homem brasileiro... Era Guimarães Rosa, a condição do homem, e vocês sempre tentaram apresentar esses assuntos também.
R - Tentamos, não; fizemos assim, conscientemente. O Stagium foi um trabalho consciente, não foi um trabalho inconsciente. Mas quem fundou o Stagium foram Marika, Décio e Ademar.
P - Você já estava casada com o Décio? Como é que foi isso?
R - Eu estava aqui trabalhando em teatro. E a última coisa que eu fiz grande – última coisa, não; antes do Décio – foi o Hair. Fiz o Hair e virei a estrela da situação, não tinha feito nada ainda, mas já era o grande sucesso. Gozado, né? E, nessa época, se usava demais expressão corporal, negócio de Stanislavski, essas coisas no teatro. E o Kus. Meu grande amigo, ele era muito Stanislavski, o Kus. E eu estudava aquilo porque, ao mesmo tempo, eu tinha feito Marat-Sade e o Kusnet era dono do hospício. O trabalho que ele fez de minúcia, de participação, porque o tal dono do hospício praticamente não faz nada, ele era o dono, as filhas, a família que ficavam assistindo aos louquinhos lá no teatro, no palco. E era uma peça fortíssima, na Revolução Francesa, aquela loucura. Mas o trabalho do Kusnet foi um trabalho fantástico, e eu aprendi demais com ele também. E eu comecei a aplicar expressão corporal para bailarino. Aí, como eu estava fazendo essa aula, me convidaram para ir para Curitiba. Eu fui para lá e conheci o Décio.
P - Você estava casada ainda? Não, você já estava separada?
R - Estava. Foi um escândalo porque eu estava casada, e meu filho já tinha oito anos. É muito gozado, porque o Décio estava casado com a Jura, Jura Otero, que trabalhava com José Celso, que era muito minha amiga também, e, aliás, ela me dizia: “Marika, um dia, para dar certo alguma coisa, você tem que conhecer o Décio.” Isso aqui em São Paulo ainda, antes de ir para Curitiba. Eles estavam separados, a Jura estava com o Peréio já, casada. Nossa, quanta gente em volta que a gente ________ (risos). Que horror. Bom, eu fui para Curitiba e reconheci o Décio. Cheguei a dançar com ele no Teatro Municipal, lá atrás. Aí, o Décio foi para a Europa e teve uma experiência muito grande na Europa, primeiro bailarino, coreografia. E eu estava com esse monte de coisa importante na minha cabeça, explodindo para fazer alguma coisa. Precisava me concentrar para a dança e, na dança, eu não sou, coreograficamente falando, preciosista, eu não sou de fazer passinho, não. Eu tenho a ideia, eu quero ligar isso para frente, e o Décio, não. O Décio é o... né? Então, o casamento. A gente se conheceu lá e estava na cara que a gente ia se juntar. E eu estava com o meu filho lá. Voltei para casa, me convidaram para fazer um programa de dança na televisão, na TV Cultura, e falei: “Ah, eu faço, mas só faço se for com o Décio.” Imagina, eu estava trabalhando sozinha numa boa. “Se o Décio vier, eu faço.” Liguei para ele, ficou aquele silêncio. De repente, ele veio, me levou. Eu estava na Sarandi, na hora veio assim, tu-tu-tu, o Décio chegando. Mudou a minha vida.
P - Mudou?
R - Mudou a minha vida.
P - Como foi, como mudou?
R - Foi um terror, porque a gente percebeu. Momento histórico em que bate um com o outro, aquilo não tem como escapar. E meu outro casamento estava em declínio, estava em declínio, também estava esperando uma oportunidade para resolver o caso. Foi uma coisa doída, doída para o meu marido, ex-marido, foi uma coisa. Para mim também, porque foi um grande companheiro, grande amigo, grande marido, tudo foi muito bom. Deu para mim um filho fantástico e teve que acabar com aquilo. Aí, acabou. Passo de coragem, não foi fácil. Não, não foi fácil, para ninguém.
P - Transformou mesmo. Tudo.
R - Foi horrível. Mas começamos com Décio, construímos uma outra vida. Eu não sei se foi uma arapuca (risos).
P - Como foi essa mudança, Marika, na escola, tudo? Vida familiar?
R - Radical, radical. Saímos da Sarandi, fomos para a Augusta. Foi radical.
P - E começaram os programas da TV Cultura, também. Vocês dois.
R - Não, mas todo esse processo foi durante, a TV Cultura foi uma separação e um ajuntamento. Eu sou muito assim: quando casada aqui, eu não namoro aqui. Então, ficou complicado. Mas aí terminou, terminou, vamos. Décio completamente diferente do outro marido, era uma outra coisa. Foi radical, foi uma mudança louca.
P - Um marco.
R - Foi uma mudança absolutamente louca, mas mudou, assim, vrum. E mudou. E começou a Stagium. “Vamos fazer o quê?” “Vamos fazer balé?” “Vamos.” Eu fui na casa dele, em Minas, conhecer a mãe. Fomos olhar no dicionário um nome para o balé novo, porque, depois de a televisão acabar, a gente queria continuar e, nesse momento em que a gente queria continuar, estava em Minas. “Vamos continuar, vamos ver como e qual é o nome.” A gente arranjou. “Ah, Stagium é um bom nome.” Pegamos o Stagium, voltamos para cá, acabou o dinheiro, porque a televisão pagava e o que propunha era uma outra coisa. Foi difícil de juntar pessoas, mas conseguimos juntar nove.
P - Para estrear, para começar o Stagium.
R - É, foi quem? Foi Anton Garcez, foi o (Crechuque?), o Pedro, que é marido da Cecília, foi o Décio...
P - A Geralda?
R - Um, dois, três. Acho que Valda, nessa época. Ah, acho que Valda estava nessa. E Valda, é verdade. Eu, a Gê, a Liliana Benevento, (Chufaching?) e mais alguém. Fomos em nove.
P - E como é que sobreviveu o Stagium? Era com as aulas? Os alunos?
R - Era assim, começando na Sarandi, essa montagem. Foi assim: a bilheteria, a gente dividiria entre nós, e os gastos, a escola pagaria.
P - Como é que foi quando vocês estrearam? A aceitação do público.
R - Não, foi um boom. Não, foi uma loucura. Foi um boom total. Nós começamos, fizemos treze cidades em volta. São Caetano, até onde dava para chegar de fusca. Eu tinha meu fusca. Tinha mais um fusca. A gente ia até Ribeirão Preto, deu para ir. Não, mentira, até para Curitiba deu. E, aí, voltamos, a última apresentação foi aqui, no Teatro São Pedro. O décimo terceiro são três espetáculos, e casa lotada, foi incrível.
P - E a censura não atrapalhou?
R - Nunca.
P - Mesmo quando vocês dançaram Santa Maria de Iquique, do Plínio Marcos?
R - Nunca, nunca. Mas tinha Dona Maria I, a Rainha Louca, que falava de esperança, opressão, falava muito.
P - E não incomodavam.
R - Não incomodavam, não chegaram lá. Porque censura era uma coisa muito burra. Imagina, nós fizemos... Porque era uma coisa muito burra, as pessoas que exerciam esse papel. Eu fiz no Hair o primeiro nu artístico no teatro. Fizeram três censuras porque todos queriam ver, era uma vergonha.
P - E vocês foram, pelo que eu sei, vocês foram inovadores.
R - Em tudo.
P - Inclusive na forma de apresentar, né?
R - Em tudo.
P - Abriu o aquecimento, cortina aberta, o espaço, arenas, terra batida...
R - Qualquer lugar.
P - Como é que foi isso?
R - Qualquer lugar. Mas, mesmo a primeira coisa que foi, a gente achou que não caberia fazer balé tradicional. Eu já tinha feito, o Décio já tinha feito, a gente sabia muito bem de que se tratava. Você não tinha dinheiro para isso, então, vamos partir para uma coisa... O importante seria fazer algo que a gente tivesse condição de fazer. A minha mãe tinha a tal da loja, Ballet do Centro, e ela vestiu as malhas. Começamos a dançar de malha porque malha era a única coisa que não precisava ser comprada, mamãe dava, e os tchu-tchus que existiam pelas escolas, a gente pendurou no cenário. Era o grande Impressions (de bar?), que a gente dançava, e, no último momento, os tchu-tchus subiam e as malhas apareciam. E assim foi. Tudo novo. Corajoso, absolutamente corajoso, sem nenhum medo de nada, nada, nada. Tanto que a primeira viagem para o Nordeste, em 72, eu acho que... Você sabe que eu fiz agora, até está no meu site, não muito bem arrumado ainda, mas o Edgar vai acabar arrumando. Mas eu fiz uma estatística, de 71 até 2008 – está feio isso, eu levei seis meses trabalhando nisso. E é incrível o que nós fizemos, é incrível. Tem no meio dos anos 90 e alguma coisa, eu tinha feito Belém 20 vezes. Mas a primeira vez em que nós fizemos foi em 72, que era diferente de agora. Você pegar um ônibus para ir até São Luís e voltar era muito coragem.
P - Vocês viajavam de ________?
R - Muita coragem. Hein?
P - Dias de viagem para chegar até lá?
R - Foram quatro dias e cinco noites, ou cinco dias e quatro noites.
P - E o Edgar estava com quantos anos, mais ou menos? Já era adolescente?
R - O Edgar não começou essa viagem comigo, ele começou só depois. Ele ficava com a mamãe.
P - E ele começou a dançar com quantos anos com você?
R - Treze, e depois entrou na companhia.
P - Nessas viagens da Stagium que vocês faziam, todo custo... Também teve aquele projeto da barca no Rio São Francisco, né?
R - É, esses só foram os acontecimentos pontuais. Teve coisa pontual, mas teve coisa de turnê mesmo. A barca foi uma coisa pontual, vamos para a barca, Pascoal Carlos Magno, mais um supernome da minha vida, uma paixão. Ele convidou a gente porque ele estava sabendo que a gente estava andando. Isso foi em 74, nós já tínhamos feito duas vezes Nordeste e algumas coisas até mais. Aí, ele convidou a Stagium, e nós fomos em cinco na barca, foi fantástico. Foi uma experiência, e eu estava aqui fazendo Lulu com o Ademar, fazendo coreografia de Lulu com Armando Bógus, Irina Grecco, só tinha gente importante. E saí no meio da montagem, eu falei: “Eu vou.” A gente ia passar 14 dias lá, 15 dias.
P - Era na barca, né?
R - Na barca. Em cima da barca.
P - Vocês desciam o Rio São Francisco?
R - De Pirapora a Juazeiro, na Bahia.
P - E tinha ator, bailarino...
R - Cento e cinquenta artistas.
P - Música...
R - Teve folclore, orquestra, pequeno grupo de violão, teatro. Teve uma coisa muito séria.
P - E vocês dormiam na barca?
R - Em 74.
P - Em 74, quase o auge da censura.
R - 74, ainda dentro da loucura. E a gente estava fazendo um trabalho de base.
P - Pois é, como é que foi isso, fazer esse trabalho de base?
R - Não, primeiro, ele achou que ia pegar a barca em Juazeiro. Não, em Pirapora. E foi parando nas pequenas cidades, Xique-Xiques da vida, pequenas cidades. O Pascoal achou, um pouco na inocência, que ele desceria da barca e iria numa praça apresentar tudo aquilo lá. Não tinha infraestrutura para fazer isso, não tinha som, não tinha luz, não tinha nada disso. O Stagium deu a ideia de limpar a proa da barca e fazer um palco lá, e a gente começou a fazer as apresentações em cima da barca.
P - Paravam, e vocês se apresentavam na própria barca.
R - Isso. E, no dia seguinte de manhã, a gente descia e fazia oficinas com a criançada. Eu peguei a turminha de Porto Alegre, que tocava violão, e falei assim: “Vamos comigo.” Eles tocavam, e eu fazia danças circulares, ensinei dança húngara que cruza, abre e fecha, que é muito bom para a coordenação (risos). Miséria, fizemos miséria.
P - Para você, essa experiência da barca teve alguma influência no seu modo de ver a vida, o mundo?
R - Totalmente.
P - O que é que te marcou muito assim?
R - Não, não é que marcou muito: mudou, mudou. Isso eu conto bastante, porque, no dia de Carnaval, que era mais ou menos nessa época que estava chegando lá... No dia de Carnaval, para a barca numa cidadezinha dessas que eu não tenho agora o nome aqui. Estava chovendo. Não deu para apresentar o espetáculo à noite e, na beirada... Porque a barca era uma barca muito bonita, branca, e o Pascoal levou uma porção de bandeiras, e os artistas eram obrigados a pegar uma bandeira e ficar tchum-tchum enquanto a barca ia chegando. Era muito bonito aquilo porque a criançada vinha nadando em volta da barca, e a gente chegando. A cultura chegando, era uma coisa emocionante. Aí, a barca parava, e o público já estava todo lá, que as cidades são desse tamanhinho. Então, estava um grande público, esperando com chuva. Falei assim: “Não dá para fazer o espetáculo com chuva.” Parou a barca, e a gente anunciou que, no dia seguinte de manhã, a gente estaria apresentando o espetáculo. Quem é que falou que alguém saiu dali? E o público era muito especial, que tinha gente sem perna, com barriga, com tudo o que você puder imaginar. Estava tudo lá dançando porque era Carnaval. Essa noite foi o grande momento de reflexão do Stagium, que se mantém até hoje para quem dançar, onde dançar e como dançar. Essa foi uma coisa que, até hoje, a gente procura ser coerente com essas três colocações.
P - E o que é que vocês refletiram para quem era que vocês queriam dançar?
R - Com que direito você dança num país onde a criança morre de fome? Isso é muito sério. Com que direito você dança? Responder isso é uma coisa complicada. Então, nós passamos a noite refletindo sobre isso. Porque você descia, e: “Você já tem outro filho, você já tem?” “Ai, que legal.” “Tinha 12, agora só tenho esse.” “E os outros?” “Morreram de catapora, não sei o quê.” Eles perdem os filhos assim. Porque um médico fica a não sei quantos quilômetros de distância do lugar em que moram, é uma coisa muito doída de se ver. E a reflexão foi inerente, tinha que refletir sobre isso. Então, passamos a noite, e ninguém dormiu, ninguém dormiu, ficamos lá bla-bla-blá. “Como faz?” “E o que faz?” “Bom, mas eu não sou assistente social, o que é que eu vou fazer, não vou mudar de vida, não vou mudar de profissão, não vou mudar para cá.” Hoje, talvez até mudaria, mas, naquela época, não. “Não vou mudar para cá e o que é que eu vou fazer?” “É através da dança.” “Então, que dança é essa?” É muito profundo isso, e é muito complicado entender isso aqui em São Paulo, naquela época. Que as pessoas nos chamavam de xenófobos, as pessoas não tinham e não têm nem culpa porque era muito longe. Hoje em dia, é perto, mas era muito longe. Hoje em dia, tudo é perto, a televisão inclusive traz rapidinho, mas, naquela época, para você entender que uma companhia de balé vai fazer esse tipo de repertório que a gente escolheu era muito complicado, porque a gente queria mostrar o que a gente via lá e levar o que interessaria para eles daqui para lá. A ideia era sempre esse troca-troca. E teve momentos fantásticos nessa viagem porque, além desse momento, teve um outro momento doído também, quando estavam construindo a barragem e estavam desabitando as cidadezinhas onde as pessoas tinham feito suas casas, estava tudo inteiro. Sempre eu desci, sempre me meti nos lugares e assistia folclore do lugar, tinha grupo das mães, milhares de manifestações. Entramos numa casa, linda a casa, pareciam aquelas casas espanholas até. Tinha uma sala assim, era um “u”, tudo com quartinhos, e um fundo, um jardim grande, e num dos quartos tinha uma baiana, linda, sentada toda de branco. “O que é que ela está fazendo?” Aí, a irmã, não sei quem era mais: “Ah, ela está esperando a morte, porque ela não vai sair daqui.” Olha que coisa linda, né? Quer dizer, são coisas, são imagens que você nunca mais esquece. Em algum momento, eu retratei isso dançando, logicamente. Era uma coisa muito especial, aquele momento, naquele lugar. A gente vendo aquela gente que vai ter que morar em... Porque, por mais miséria que fosse, não era miséria, porque era um lugar, é um lugar depauperado, Rio São Francisco, você vê, até hoje é um lugar complicado. Mas eu vou dizer uma coisa para você: sabe que a gente vive viajando e atravessando o Rio São Francisco, eu, para o motorista: “Me avisa quando passar pelo rio, porque é um negócio assim, de você tirar o chapéu.” E é um problema enorme que está acontecendo lá. Estão querendo desviar. Mas a minha relação com o rio é muito forte.
P - Então, foi um grande marco.
R - Muito forte, isso ficou para o resto da minha vida. E o pessoal no ônibus morre de rir (risos).
P - Quando você pergunta do rio.
R - “Olha o Rio São Francisco.” Pode ser três horas da manhã (risos). E eu levanto. Mas é uma coisa muito linda, e foi um momento muito marcante, muito marcante, porque, por tudo. E, quando voltei para casa e contei as coisas para o Ademar, mudou minha cabeça mais muitas outras cabeças também. Foi muito bonito. E o outro momento foi do Xingu. São momentos muito marcantes, porque, até aquele momento do Xingu, a gente chegava com muita vitória. Cultura chegando, cultura, olha a cultura. Só que o Xingu mudou, que, aí, você toma um banho de cultura. Você toma um outro tipo de cultura, tudo passa a ter outros valores, são outros valores.
P - Como é que foi no Xingu?
R - São outros valores. Não, tudo. Desde... Você está em cima da selva, de repente, você vê um buraco e era lá. Aí, “upi”, desce. Vêm os índios, te pegam, e o relacionamento do índio com o homem branco nesse momento, naquele momento. E eu não sei por que, eu e o Ademar Dornelles, nós fomos muito. Como a gente é muito curioso e muito vai se dando, eu passei a ser chamada de “mãe Marika”. “Mas por que mãe?” “Ah, é mãe Marika.” E eu, como é que eu devolvo isso? Porque não é assim. Porque lá é tudo dá e dá. É tudo troca-troca. Foi muito complexa toda aquela estada. A gente se deu com todo mundo, e eu tinha um médico na companhia chamado Ricardo Gomes e teve um dia em que ele abriu a enfermaria, e nós, enfermeiros. Porque estavam todos tossindo, estava tudo... Todo mundo tratando de todo mundo. E, lá, o seu valor ficou muito pequenininho. Porque, por exemplo: “Vamos fazer a maquiagem lá fora?” Porque tinham umas barracas, onde a gente acabou ficando. “Vamos fazer lá fora para eles verem como é que a gente se maquia.” Estava todo mundo lá, se maquiando, fazendo aquela coisa assim. Aí, eles vêm pingando de urucum. Com aquele indiozinho (risos). Isso aí é só para você ver, a diferença é da noite para o dia. “Vamos dançar.” “Então tá.” Aí, chegaram eles para assistir ao espetáculo, era o encontro do primitivo com o civilizado. “Vamos apresentar a nossa dança.” Eu comecei a dançar da (jeitoria?), para cima, tinha uma arara em cima de mim. Falei: “Pô!” (risos) “Não dá, é muito.” (risos).
P - É muita coisa (risos).
R - É muito, que maravilha (risos). E eles lá, adorando a gente, cumprimentando. Mas é tudo coisa do branco, né? Nossa cultura. Aí, chega a noite, eles dançariam para a gente. Eles acenderam um fogo imenso no meio das coisas deles e começaram a dançar em volta. A lua, o fogo, os índios começando a suar, a poeira levantando, falei: “Pô, não dá, a química é outra.” (risos)
P - Não dá (risos).
R - Não dá para entrar em competição aqui (risos). Mas são duas civilizações totalmente diferentes. A gente passou a fazer uma outra pergunta: como chegar num lugar sem se achar, sendo assim, a grande portadora da cultura, e simplesmente ser? Porque lá nós começamos a receber, e a gente ficou na situação daquela que recebe. Para saber receber tem que ter uma certa modéstia também. Lá, mudou também a cabeça da gente bastante, totalmente. Como não subir no palco para se exibir?
P - Entre esses projetos, também teve outro importante, da Febem, de que você estava falando.
R - Isso veio bem depois.
P - Bem depois. Mas os projetos sociais vieram, já que as ideias dos seus projetos sociais...
R - Amiga, veja bem: eu te contei lá atrás que eu fui fazer oficina na beira do Rio São Francisco e conheci professoras, alunos, as necessidades. Que eu conheci milhares de coisas onde eu achei que eu poderia fazer alguma coisa. Eu sempre fiz social, por circunstâncias. Mas no momento em que você sai de São Paulo, naquela época, e vai fazer as loucuras que nós fizemos, aquilo é um trabalho social. Nós fizemos trabalho de base, trabalho social, aquilo foi inerente. A Febem foi uma coisa inerente, tinha que acontecer. Então, a Febem foi só simplesmente continuação, eu acho que a gente é um processo.
P - E vocês estão sempre refletindo, né? A cada aprendizado, a cada... E, aí, vocês voltaram do Xingu. São Paulo de novo, você casada com o Décio, ele coreografando, bem estabelecida a estrutura da companhia. Como estava indo aqui em São Paulo? Depois dessas reflexões, como é que foi na escola? Mudou também o trabalho de metodologia com os alunos?
R - Mudou bastante. Tudo reflete em tudo. A gente começou a respeitar muito o corpo brasileiro, a forma de comunicação. A gente procurou escapar dessa coisa competitiva da dança, que é uma coisa normal. A criança entra já competindo, achando que tem que ser melhor que a outra. Praticamente mudou tudo. Que o preço é muito alto. Dessa coerência e dessa mudança, o preço é altíssimo, porque a gente fica muito sozinha em muitas questões. E a gente não entra em várias coisas de tendência, de comerciais, não entra nisso. Teve um problema aí, que eu acho que é um problema enorme do Stagium, mas não tem problema, porque cada um tem uma missão na vida. A gente não cuidou muito da área comercial, da área da estabilidade, da área da sobrevivência. A gente sempre pensou muito nos outros e não pensou muito na gente.
P - E isso foi dificultando o administrativo?
R - Ah, isso dificulta bastante.
P - Porque vocês cuidavam de tudo sempre, né?
R - Continuamos cuidando.
P - Até hoje.
R - Mas a infraestrutura, por exemplo, na época em que poderia ter montado a infraestrutura financeira, a gente gastava esse dinheiro todo na cultura, nas viagens, na realização, e não tinha outro jeito, a gente não tinha dinheiro. Nós começamos sem nada. Hoje em dia, não. Hoje em dia, um grupo se constitui primeiro financeiramente e administra a parte administrativa e vai. Que é lógico num mundo competitivo de hoje, é lógico. Nós somos o fruto de uma loucura.
P – E, voltando um pouquinho à vida familiar, a gente retorna obviamente aos projetos, aos outros filhos. Como foram vindo? Foram acontecendo mais ou menos em que época? Tinha o Edgar, que virou bailarino...
R - Eu acho que tudo acaba sendo reflexo de tudo o que estava acontecendo. Porque chegamos aí... Acho que foi nos anos, década de 80, acho que foi. Sempre quis ter mais filhos, eu adoro criança e sempre gostei de criança do meu lado. Os bailarinos todos tinham criança, e eu tinha que ficar lá do lado porque me fazia bem. E a Clarisse Abujamra me chega e diz assim: “Tanta criança para ser adotada, a mãe, não sei quem não queria, pa-pa-pá, você quer?” O Décio estava de um lado, o Edgar de outro. “Queremos?” “Queremos?” “Queremos.” (risos) Aí, novamente, mudou a vida da gente.
P - E veio. Quem foi que veio?
R - O Eugênio foi o primeiro.
P - Era pequenininho?
R - Dois dias.
P - Dois dias. E mudou o cotidiano?
R - Virei mãe, de novo.
P - O que é ser mãe para você, Marika? Como é que era?
R - É dedicação total. E é gozado, você diz, mas como? É dedicação total. Eu posso estar na sala de aula, mas eu estou pensando no meu filho, eu estou vendo o bem-estar dele. Enfim, nunca deixei um filho desamparado em alguma situação.
P - Quantos filhos você tem hoje?
R - Seis.
P – E, aí, teve o...
R - Depois, veio o Marcelo.
P - Marcelo, adotado ou não?
R - Todos. Eu só tive, de barriga, o Edgar. Veio o Eugênio, depois veio o Marcelo, a Yolanda Verdier que me ajudou. Eu falei: “Yolanda, tem mais um.” Eu queria mais uma criança. “Ah, mas você já está... Como? Por quê?” “Não tem porquê.” Olha a loucura: a Yolanda Verdier morreu de madrugada, no meio da noite, eu acho, uma coisa assim. Ela subiu, e minha filha desceu. Porque, aí, veio a Yolanda, que tem o nome de Yolanda por causa da Yolanda. Depois, tinha mais um lugar na mesa. Aí veio a Alessandra. A Alessandra já veio com nove anos, eu já estava corajosa. Que, para pegar com nove anos, tem que ter coragem. E, depois, nós fomos fazer uma viagem para Fortaleza, apareceu o Marquinhos, o Marcos Palmeira. Ele estava fazendo aula. Décio olhou para mim, eu olhei para ele e falei: “Tá.” “Você quer ir para São Paulo?” “Quero.” Bom, aí veio o Marcos, com 14 anos. Está com 30 agora (risos).
P - Que é que eles fazem hoje, os seus filhos?
R - A Alessandra dá aula. Então, a Alessandra... Vamos começar com o Eugênio. O Eugênio casou com uma bailarina da companhia, e foram para Florianópolis agora, depois de dançarem anos comigo. O Marcelo é um DJ, mas faz toda a parte técnica do Stagium. O Edgar faz toda a parte de vídeo, dançou comigo, foi para os Estados Unidos, dançou com Jeniffer Miller, voltou, não quis dançar mais, mas agora faz o site, vídeo, está nessa parte técnica. O Marcelo tomou esse caminho também. A Yolanda é a mamãe agora, supermãe, hipermãe, trabalhou bastante comigo, mas agora é supermãe. A Alessandra está comigo, está dando agora aula para criança, especialíssima, maravilhosa. Dá aula para babies, mas é maravilhosa, fora de sério. Isso eu posso dizer: nunca, em todos esses anos, vi uma professora de criança assim, sem exagerar. E o Marcos é minha mão direita, ele está dançando tudo, o que você quiser. Ele é um desses cabeças com a gente. Está aí, firme.
P - Quem tem filhos? Os netinhos.
R - O Edgar me deu a Isabela, com a Paula.
P - Que é casado com a Marina?
R - Com a Paula, que dança comigo. O Eugênio me deu a Beatriz. A Alessandra deu a Fernanda, e a Yolanda deu a Laís.
P - Todas meninas.
R - Tudo mulher (risos).
P - Advinha o que vai acontecer? (risos).
R - Tudo mulher (risos).
P - E, Marika, eu queria que você contasse um pouquinho para nós sobre os projetos que vocês têm, sociais, hoje, ou alguns que já fizeram.
R - Não, os sociais fortes que nós temos são os projetos junto às escolas, que a gente vai trabalhando nas escolas, faz espetáculo dentro das escolas. Temos o professor criativo, que traz a professorada lá para a academia, para trabalhar com eles, conscientização corporal.
P - Continua ainda?
R - Neste ano foi complicado, sei lá o que aconteceu na secretaria, está meio parado para nós. Este ano foi um ano muito especial.
P - Secretaria do Estado, né?
R - Do Estado. E teve o Projeto Febem, trabalhei quase sete anos lá dentro, e onde nasceu o Projeto Joaninha, que eu achei que a minha pessoa na Febem era muito importante e fiz um trabalho fortíssimo lá, com mais de 50 professores. Coordenei todos, e fizemos cinco encontros de dança de rua e um de capoeira.
P - Lá dentro da Febem.
R - Dentro da Febem, dentro da Tatuapé. Eu trabalhava com todas, mas os encontros eram no Tatuapé. E fizemos... Bom, eu coloquei uma organização dentro da Febem, na época do Mário Covas e em que Marcos Mendonça era o Secretário de Cultura. Chamaram a mim, e eu fui. Aquela coisa: eu vou me envolver, quando eu mexo numa coisa, me envolve e eu fico fazendo. E deu um resultado fantástico. Só que, depois, privatizaram cada sessãozinha, não deu para continuar. Também tinha aquela coisa de que, na Febem, você não pode ter muita meta, pensar muito no futuro. Você tem que estar lá no presente, amenizar aquilo de alguma forma e dar força para aquela criançada ter força para sair e não repetir a bobagem. Mas isso não é Deus para poder resolver as coisas.
P - Mas você percebeu...
R - Mas eu percebi que tinha uma clientela que poderia ser trabalhada, que é o Projeto Joaninha. São crianças das redes públicas, que moram nas periferias e que não teriam... Eu não diria, não são crianças, não é classe carente – que, também, se aparecer a gente pega. Mas tem que ter família que se responsabilize ou algum responsável.
P - Que idade que vocês trabalham?
R - Eu pego entre sete e onze, mas eles ficam sete anos com a gente. Então, tem uma turma que já está formada, outra que está sendo formada, muitos já trabalham em dança, ou qualquer coisa que eles façam fazem de manhã. Eles levam uma educação bastante holística, grande.
P - É um projeto que, quando você fala que se formam, eles se formam em dança?
R- É um projeto de formação de dança. Eu, na companhia, já tive cinco. Um foi para o Ivaldo, foi muito bem no Ivaldo, tem várias escolas livres dando aula. E eu, na companhia, estou agora com a Marcinha, que veio do Dançar para Não Dançar do Rio, tem o Eduardo, que está comigo, e o Alessandro, que saiu e foi para o Sul. Mas eu formo bons bailarinos.
P - Como é que é para vocês, que estão sempre refletindo, discutindo o trabalho que fazem, e mesmo para você, qual é a grande transformação que você vê quando vê as suas crianças se formando em dança? O que é que marca?
R - É cedo ainda para fazer, é cedo. O Stagium, você pode analisar porque tem 40 anos, agora a Joaninha chega a 10, 9. É pouco ainda para fazer história, é pouco, mas a parte que eu garanto é que, na disciplina, na harmonia, na beleza, sociabilização, no cidadão, a gente consegue fazer um trabalho. Eu acho, ao mesmo tempo, olha que coisa dúbia. Porque, ao mesmo tempo, eu acho que o projeto agora, ele está mais ________, mas, no começo, ele dava muita coisa ainda. Ele dava uniforme, ele dava lance, dava passe, tudo dá, dá, dá, e a pessoa acostuma que ele dá, dá, dá, e acaba não dando o valor que tem que dar. Então, agora a gente não dá passe, o lanche também cada um traz da sua casa. Tem uma série de coisas, e o que a gente dá é a formação, e é importante isso porque, senão, se trocam os alhos com os bugalhos. Se troca, aí vira, nós temos fome, e não é legal.
P - E vocês viram que isso mudou a relação deles com...
R - Eu estou mudando isso, porque eu acho que as coisas que não estão certas têm que ser mudadas. Tem que ser mudadas. A gente nunca quis ser assistencialista, mas fica um negócio assistencialista. E, quando você está dando, o que você está dando tem um valor enorme, o pai tem que perceber. Muitos pais não percebem que você acabou de dar uma profissão na mão do filho. E morrer de fome ele não morre mais. “Não, mas tem que trabalhar.” “Você está dando, olha aí, está aí, está provado que ele pode.” Tem uma luta grande, porque é projeto, a gente está querendo descaracterizar um pouco essa coisa de projeto social. É um projeto de formação, que eu acho que isso vai ser o próximo passo. Vai ser, não, está sendo o próximo passo a ser perseguido, porque não pode, viu? Não é real. Uma criança que é formada em dança vai ter que sair na luta e não vai ficar esperando em casa que alguém dê lanche, passe e não sei o quê.
P - Você gostaria de contar alguma coisa que te marcou muito? Você já contou várias (risos).
R - (risos).
P - Que marcaram o público, inclusive. Mas alguma coisa de viagens internacionais, de que a gente também não chegou a conversar?
R - As viagens internacionais, eu acho importante dizer que são um sucesso, que são uma loucura. Eu me lembro que a gente levou Floresta do Amazonas para a Espanha, foi uma das loucuras maiores que eu já vi, do tipo bater pé para aplaudir, e as pessoas participam daquele momento que a gente faz. Na Hungria, foi uma loucura também, e na Hungria assustou porque lá tem o aplauso da cortina de ferro, eles têm uma cortina de ferro que desce, e aquilo é um terror. E eles batem palma assim, cadenciado, e a cortina embaixo: tchã-tchã, que tinha que subir. Tiveram umas coisas. E na China também. Na China, foi uma loucura, e também eu gostei muito porque lá eu dei palestras, e é incrível a comunicação que as pessoas acabam definindo com você. Porque essa história que eu estou contando, se você for olhar, um grupo de balé não tem. Qual é o grupo de balé no mundo que tem uma história dessas? Então, desperta uma atenção enorme nas pessoas. É isso, é a vida lá.
P - Como é que foi para você voltar para a Hungria com o Ballet Stagium, dançar na Hungria?
R - Ó, quer saber? (risos) Não chegou a ser tão emocionante assim.
P - É? Por quê?
R - Eu não saberia te explicar. Você está me perguntando, nunca ninguém me perguntou. Então, eu estou pensando agora (risos).
P - O que você sentiu quando chegou lá?
R - Ah, eu já tinha ido para a Hungria antes, voltei para a Hungria antes. Teve essa história da melancia, tiveram outros momentos, que, no terceiro dia, queria sair correndo porque as lembranças vinham, aqueles fantasmas todos vieram, iam e vinham embora. Da última vez, fiz poucas pazes, vamos dizer, mas não chegou a ficar... A minha cara verdadeira, sem dúvida nenhuma, é o Brasil. Se você me fala: “Como foi em Mossoró?” Eu fiquei muito emocionada. “Como foi em Budapeste?” Foi interessante, mas, se eu disser que foi emocionante, não. Fiquei emocionada com o sucesso, mas eu teria ficado em qualquer lugar (risos). Mas isso é verdade, não estou mentindo. Foi uma coisa assim: tenho vontade de voltar, definir mais coisas, mas...
P - E como é que está a Marika hoje, avó? Ainda na ativa com a dança o tempo inteiro?
R - Olha, é uma luta insana. Insana a luta. É incrível como nessa minha vida toda é guinada o tempo inteiro. São guinadas e guinadas e guinadas, todo o tempo, e você tem que... A pessoa diz: “Não, mas você é muito forte.” “Não sou forte nada, eu sou mais fraca que Deus foi no mundo.” Eu tenho uma obstinação em fazer alguma coisa, mas força é outra coisa. A Marika está aí na luta. Luta, brigando um pouco. Ontem, por exemplo, na reunião, vendo uma pessoa falar assim: “Não, mas isso que você estão conversando vai levar 15 anos para acontecer.” Aí, eu dou risada, né? Quinze anos não são nada, nós estamos em 50 anos, e a conversa continua igual, mas tá melhor, porque se você for olhar nos anos 70 que não existia nada, hoje em dia tem uma classe que discute. Isso é um bom tamanho, e a pessoa que está nascendo agora não percebe. Tem que perceber isso, está evoluindo, sim, tem gente pensando em volta, tem ações sendo feitas. Certo, errado, não interessa, mas estão sendo feitas. Tem ações sendo pensadas. Eu acho que é um momento fantástico, de evolução. Você poder falar em Ministério do Trabalho numa reunião dessas, você está falando já uma outra língua, não está falando: “Ah, porque a gente não tem lugar para dançar.” Era ladainha, né? Não está mais aquela ladainha boba. Hoje em dia, é uma boa conversa com pessoas já quase se especializando em trabalhar em certos lugares, onde tem que ter essa especialidade, essa sabedoria, para ter voz.
P - Tem mais alguma coisa que você gostaria de contar, comentar?
R - Não, se a gente continuar aqui vai ficar três dias, duas semanas.
P - Ia ser ótimo (risos).
R - (risos)
P - Então, só conta para a gente o que você achou de dar essa entrevista aqui no Museu.
R - Eu gosto. Você sabe que sempre que me chamam para falar das coisas, não da minha vida, mas falar das coisas em si, eu gosto de falar porque eu acho que vai servir para alguém. Eu fiz, uma vez, um negócio grande para o Spielberg, e aquilo me deixou muito emocionada depois de poder dizer “eu estou no Museu do Holocausto”. E eu tenho prazer de fazer isso, porque, de uma certa forma, ele vai acrescentar para alguém, e eu acho que nada a gente que levar, a gente tem que deixar para alguém, para servir de alguma forma. A primeira vez que eu ouvi falar em vocês, eu achei superinteressante. Inclusive, eu não sou de personagens, ou personalidade de qualquer pessoa que tenha alguma coisa a dizer, que tem cada história linda, né? Cada história que você fica, e fala: “Nossa, é história de vida, né?” E eu sou uma pessoa que lida muito com isso. Então, eu acho muito bonito, eu agradeço.Recolher