Conte Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Lufer Sattuí Mejía
Entrevistade por Bruna de Oliveira
São Paulo, 16 de outubro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV1420
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:23) P/1 - Lufer, a primeira pergunta: o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Meu nome é Lufer Sattui Mejia. Eu nasci em Cajamarca, no Norte do Peru, no dia 25 de julho de 1987, ou seja, sou do signo de Leão.
(0:43) P/1 - Você pode olhar para mim na entrevista… Eu queria saber qual o nome da sua mãe?
R - Minha mãe se chama Marina Margarita. Quer sobrenome?
P/1 - Sim, se você quiser…
R - Tá. Minha mãe se chama Marina Margarita Mejía Galvez, ela tem sessenta e poucos anos.
(1:10) P/1 - E seu pai, você tem contato?
R - Sim, ele se chama Luiz Anselmo Sattuí Meza. Ele tem 69 anos.
(1:17) P/1 - E como você descreveria eles?
R - Como descreveria meus pais? A minha mãe é uma mulher muito afetiva, muito afetuosa. Ela é uma mulher muito carinhosa, carente, apaixonada, mas também às vezes pode ser um pouco teimosa.
Meu pai é alguém cheio de paixão, teimoso pra caramba. Não muito afetuoso, mas do jeitinho dele tenta dar carinho.
(2:03) P/1 - E como eles se conheceram, você sabe?
R - Nossa, aí não sei muitos detalhes, mas segundo o que minha mãe me falava eles se conheceram no local onde trabalhava minha mãe. Ela era secretária do banco e meu pai, às vezes, ia cobrar alguns dinheiros lá, então minha mãe atendia ele e enfim, aí rolou um babado.
(2:30) P/1 - E você tem irmãos?
R - Sim, tenho bastantes. Somos oito em total, mas de pai e mãe somos dois.
(2:40) P/1 - E como era a sua relação com eles na infância e depois, na vida adulta?
R - Acho que no geral tem sido uma relação bastante… Tradicional. Com a minha irmã, que mora na Espanha, [é] com ela que tenho uma relação muito mais próxima. Ela é filha da minha mãe e do meu pai, então...
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Entrevista de Lufer Sattuí Mejía
Entrevistade por Bruna de Oliveira
São Paulo, 16 de outubro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV1420
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:23) P/1 - Lufer, a primeira pergunta: o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Meu nome é Lufer Sattui Mejia. Eu nasci em Cajamarca, no Norte do Peru, no dia 25 de julho de 1987, ou seja, sou do signo de Leão.
(0:43) P/1 - Você pode olhar para mim na entrevista… Eu queria saber qual o nome da sua mãe?
R - Minha mãe se chama Marina Margarita. Quer sobrenome?
P/1 - Sim, se você quiser…
R - Tá. Minha mãe se chama Marina Margarita Mejía Galvez, ela tem sessenta e poucos anos.
(1:10) P/1 - E seu pai, você tem contato?
R - Sim, ele se chama Luiz Anselmo Sattuí Meza. Ele tem 69 anos.
(1:17) P/1 - E como você descreveria eles?
R - Como descreveria meus pais? A minha mãe é uma mulher muito afetiva, muito afetuosa. Ela é uma mulher muito carinhosa, carente, apaixonada, mas também às vezes pode ser um pouco teimosa.
Meu pai é alguém cheio de paixão, teimoso pra caramba. Não muito afetuoso, mas do jeitinho dele tenta dar carinho.
(2:03) P/1 - E como eles se conheceram, você sabe?
R - Nossa, aí não sei muitos detalhes, mas segundo o que minha mãe me falava eles se conheceram no local onde trabalhava minha mãe. Ela era secretária do banco e meu pai, às vezes, ia cobrar alguns dinheiros lá, então minha mãe atendia ele e enfim, aí rolou um babado.
(2:30) P/1 - E você tem irmãos?
R - Sim, tenho bastantes. Somos oito em total, mas de pai e mãe somos dois.
(2:40) P/1 - E como era a sua relação com eles na infância e depois, na vida adulta?
R - Acho que no geral tem sido uma relação bastante… Tradicional. Com a minha irmã, que mora na Espanha, [é] com ela que tenho uma relação muito mais próxima. Ela é filha da minha mãe e do meu pai, então a gente cresceu junto. A gente tem uma relação muito, muito cercana [próxima], da gente contar as questões que saem incomodando, ou ela me chamar só pra fofocar, ou me ligar porque quer saber o que significa um sonho dela. A gente tem esse tipo de relacionamento.
(3:30) P/1 - E você chegou a conhecer seus avós?
R - Sim, eu cresci com meus avós, tanto do lado do pai, como do lado da mãe. Do meu pai só conheci minha avó, e do lado da minha mãe conheci meu avô e a minha avó, acho que é assim que se pronuncia… Mas sim, eu cresci com eles.
Aprendi muitas coisas da minha avó materna, inclusive coisas do tipo limpeza energética com ovo, passar o jornal para fazer limpeza, jeitinhos de cozinhar, até esse tipo de elemento eu aprendi com minha avó, aprendi com minha mãe, aprendi com as tias.
(4:17) P/1 - E tem alguém da sua família que você lembre com mais carinho ou que traga uma memória de algum momento específico, que foi bom para você?
R - Acho que meu irmão mais velho… Ele morou com a gente; alguns anos morava com a gente, uns anos morava com a mãe, uns anos voltava com a gente. Eu lembro muito das épocas que ele chegava em casa, mas eu tenho lembranças muito remotas, sabe, que parecem um sonho. Mas eu acho que também seria com meu avô materno, também acho que teve muito essa questão das boas lembranças, tipo ir ao mercado comprar pipoca doce grande ou ir comprar... Enfim, ir ao mercado, ir caminhar na praça, então tenho muitas lembranças.
(5:31) P/1 - E tem alguma comida ou algum cheiro que lembre a sua infância?
R - Tem, óbvio. Vai ser meio estranho, mas o cheiro de xixi de vaca me faz muito lembrar minha infância, na cidade onde eu nasci. Tinha muita vaca, então sempre tinha esse cheirinho do xixi. Ainda que eu morasse na cidade… Eu não morava na zona rural, mas como tinha tanta vaca, às vezes as vacas desciam na rua, entravam pela cidade e a gente sentia esse cheirinho. Também o cheiro da terra molhada ou das telhas molhadas me faz muito lembrar porque a cidade onde eu nasci foi uma cidade de montanha, então, às vezes não é nem só o cheiro, às vezes é o mesmo... O ar, sabe quando a gente está saindo e sente-se ar seco? Parecia que... E se o céu está azul, eu lembro muito da minha cidade porque olho para os tetos de São Paulo e muitos dos tetos de São Paulo têm essa mesma característica, as telhas de... Acho que laje, algumas têm um mofo nos telhados, então me faz muito lembrar da minha cidade.
São Paulo, ou menos a região onde eu moro, tem muita ladeira, e a cidade onde eu nasci tinha muita ladeira, então… É muito essa coisa, eu moro numa parte de São Paulo que acho que tem demasiadas ladeiras. Moro na divisa de Vila Mariana, Chácara Klabin; eu escalo pra ir à estação de metrô.
(7:27) P/1 - E te contaram como foi o dia de seu nascimento?
R - Minha mãe me contou que ela morria de medo. Eu era o primeiro filho, foi cesárea, porque lá no Peru dá pra escolher entre cesárea ou parto natural. Minha mãe fala que ela não conseguia nem levantar, que sentia muita dor; ela inclusive adiantou a data do meu nascimento para estar com um médico que estava cuidando da gravidez. Também me falou que durante a gravidez teve muitas ameaças de aborto, então foi um embarazo [gravidez] muito delicado. Tanto o meu como o da minha irmã foram embarazos bem complexos, mas que deram certo, eu acho. (risos)
(8:15) P/1 - Você contou um pouco, mas como era a cidade que você passou sua infância, como era a sua rua?
R - Eu morei na cidade onde eu nasci até os cinco anos, depois a gente foi morar em Trujillo, que é uma cidade do litoral, então eu tenho duas infâncias. Tenho minha infância na montanha e minha infância no mar.
Acho que a lembrança mais clara que eu tenho quando morava ainda na cidade onde eu nasci era uma rua meio estreita, apenas passava um carro, mas lembro que tinha muitas crianças correndo na rua, brincando… Lembro, sabe esses faróis de luz laranja, mas laranja que não ilumina nada? No meio da noite, [eram] noites frias; estou te falando de oito, sete graus, muita névoa.
[Lembro do] cheiro de pão, porque perto de casa tinha um forno - a gente chama de forno onde preparam o pão; não é uma padaria, só é onde preparam o pão. Às vezes vinha o cheirinho do pão.
Se eu vou para a minha infância, mas no litoral - falo no litoral porque o mar estava a quarenta minutos da minha casa - eu lembro que atrás de casa tínhamos uma praça grande, então eu passei grande parte da minha infância brincando na praça, criando meus mundos imaginários na cabeça. Acho que isso me ajudou bastante.
Eu lembro que a gente saía bastante na rua, acho que provavelmente sem medo de me errar. Sou das últimas gerações que jogou na rua, porque acho que depois o maior acesso a coisas tipo o Super Nintendo, Playstation, fez que as crianças ficassem mais em casa, mas eu lembro que meus amigos, meus primos que moravam do lado da casa, iam para casa para a gente sair a fazer bagunça na rua, sabe? Era gostoso.
Lembro que eu sempre era a pessoa que liderava os jogos, porque eu que criava os mundos. Eu sempre fui uma pessoa muito imaginativa, mas ao mesmo tempo também era quem ficava em casa brincando com meus brinquedos, criando cidades; a mesma coisa fazia na rua, fazia em casa, criando histórias. Tinha muitos soldadinhos nativos americanos, inclusive. Vou comprar esse jogo que sempre quis que a minha mãe me comprasse. Ela me comprou, todos se perderam, mas eu vou conseguir achar. Um dia vou voltar e vou mostrar para a minha mãe: “Olha, consegui.”
(11:25) P/1 - E como era a sua casa na infância?
R - Qual das duas?
P/1 - A de Trujillo.
R - Era a casa dos avós. Na época da infância era uma casa que tinha dois andares. A gente tinha um quarto onde estava a cama da minha mãe, onde ela dormia com minha irmã, e a minha cama. A gente tinha todas as coisas lá dentro, nós brincávamos às vezes ali no quarto.
Às vezes tínhamos dois quartos, às vezes um; era uma coisa muito mutável porque era a casa dos avós. A gente brincava muito na laje, então a gente pegava todos os brinquedos, soltávamos tudo, às vezes brincávamos na... A casa tinha uma garagem na frente e na parte de trás tinha um quintal, então a gente brincava também muito no quintal, mas muito na laje, porque a gente jogava tudo no chão. Nossa, era uma bagunça, ficávamos porcas!
Jogava muito com a minha irmã, muito. Eu não gostava muito de jogar de boneca, mas gostava com ela, brincava com ela, porque éramos só nós dois. Às vezes viam amigos, mas a gente sempre jogava juntas, né?
(12:43) P/1 - De que brincadeiras você gostava mais naquela época?
R - Construir minhas cidades, era a que mais amava. Eu era a criança chata, que ficava em casa construindo cidades, lendo livros, e quando falo lendo livros, eu falo lendo a Divina Comédia, lendo... O Pequeno Príncipe, o Don Quixote, essa era a leitura. A Ilíada, a Odisseia… Eu não lia outras coisas, então acho que isso também me ajudou a ter uma mente muito mais aberta, muito mais criativa também por conta das coisas que eu lia. Eu conseguia meio que... Expandir, para poder brincar com outras coisas.
Acho que nesse sentido minha mãe foi muito... Ela lacrou, ela lacrou demais porque ajudou muito a construir a pessoa que eu sou agora, uma pessoa que imagina demais; às vezes é um problema, mas é um pouco isso.
(13:51) P/1 - Quando você era criança, você tinha um sonho de ter uma profissão específica, ou isso não passava na sua cabeça ainda?
R - Eu tive três expectativas, três sonhos. O primeiro… Eu queria ser sacerdote. Logo quis ser médico e depois eu quis… Estou falando da infância, porque quando eu entro no ensino médio é outra coisa. Quis ser alguém que trabalhasse com zoologia ou medicação veterinária. Foram mais ou menos as áreas que eu tinha interesse.
(14:33) P/1 - E qual é a primeira memória que você tem da escola?
R - Da escola, [é] difícil.
P/1 - (14:49) Não precisa ser a primeira, mas uma lembrança marcante.
R - Estou tentando lembrar, é porque… Acho que é uma época que não foi tão marcante, salvo coisas muito específicas, mas acho que foi uma infância muito tranquila, no geral. Eu não era uma criança chata, não era uma criança que dava problema. Raramente me machuquei, não tenho nenhuma cicatriz de infância, então dá para mais ou menos ver que eu não tenho muitas lembranças mesmo da escola.
Provavelmente [lembro de estar] indo e voltando da escola. Eu gostava que o meu avô fosse para casa e me acompanhasse pra ir para a escola. Às vezes a gente conseguia se mudar, mas voltávamos para casa dos avós e meu avô ainda assim ia para casa só para buscar-nos e levar-nos pra a escola. Ele nos levava e nos buscava pra voltar para casa, isso até que eu entrei no terceiro ano do ensino médio, porque eu falei: “Avô, chega!”
(16:07) P/1 - E como era, ele ia a pé?
R - A pé. A gente ia andando, porque era perto de casa, era tipo dez [minutos] andando, e no caminho ali ia contando histórias muito malucas, ia contando histórias.
(16:20) P/1 - Tem alguma história marcante dessa época?
R - Meu… É porque ele gostava de falar muito dos animais. Ele gostava de contar, por exemplo, das coisas que ele fazia quando era mais criança, que ele brincava de pelota. Ele cresceu em um sítio, pai dele tinha um sítio, então contava um pouco essas coisas que aconteciam na casa dele, as coisas que comiam. As histórias, às vezes, também… [Ele] meio que inventava umas coisas, mas ó, abafa.
(16:58) P/1 - Tem alguma memória da adolescência que tenha sido marcante? Também queria saber se alguma coisa mudou, da infância para adolescência.
R - Mudou bastante, porque quando eu comecei a adolescência, eu entrei na igreja. Fui parte dos mórmons desde os doze anos, até os 23, ou 24, não lembro, então muitas coisas mudaram na minha vida, certamente. Primeiro que aprendi muito sobre Jesus; segundo, aprendi também o que é preconceito, por conta da igreja. Acho que é o espaço onde mais aprendi a me sentir menos querida. Foi também quando eu comecei a me sentir suja, acho que é o mais tenebroso quando você começa a se sentir assim, como... Se não fosses uma coisa legal. Provavelmente eu tinha quinze anos, foi a primeira vez que me senti [assim]: “Eu acho que eu tô errada”.
Foi tenebroso, porque foi uma coisa tão natural. Alguém perguntou, as pessoas estavam perguntando: “Vocês gostam de quê?” As pessoas falavam [que] gostavam de chocolate, aí eu falei: “Homem”, do nada assim, espontânea. A bicha soltando todo o babado. Fiz o truque, mas ficou ali, né? Eu disfarcei, mas ficou claro que tinha uma coisa ali.
Acho que as minhas lembranças vão muito mais por esse caminho. Não foi uma adolescência tão legal.
Logo fui para uma escola que era só de homens, então acaba sendo uma coisa meio puxada. Nunca passei violência física na escola, mas eu vi pessoas na escola onde eu estudava sendo assediadas só porque eram bichonas - eu era menos bichona, mas era bichona -, sendo assediadas, sendo molestadas. Acho que o mais puxado era ver pessoas que eram como eu sendo acusadas. Passavam mão, era tenebroso, porque era... Batiam nelas, cuspiam nelas. Eu sentia muito medo de me converter nesse foco de violência que eu nunca passei.
Acho que quando eu estava no quarto ano de ensino médio - lá são cinco anos - meio que começaram a notar que eu não era tão macho, aí começaram meio que assobiar, a querer xingar, mas se eles xingavam, eu xingava o dobro e eu nunca deixei… Se em uma coisa eu sou boa, é resposta rápida, então eu xingava, mas eu xingava de um jeito que afetava o psicológico da pessoa, que o deixava tremendo. Acho que uma das coisas que eu aprendi foi a rapidez da resposta, porque eu sabia que eu não podia me deixar… Também sabia que não podia ser uma pessoa medíocre, eu tinha que ser nos primeiros postos, porque era o único jeito de ser respeitada.
(20:56) P/1 - E nessa época, como você se sentia frente a isso?
R - Eu não entendia muito bem o que estava acontecendo, sabe? Eu já entendia que não era... Eu não fazia parte da massa, mas não sabia exatamente o que estava acontecendo. Eu lia nos livros da igreja que essas outras ovelhas são queridas por Deus, porém elas não podem manifestar afeto com outras pessoas do mesmo sexo, como eles falam, porque isso é pecado, e se cometer esse pecado, vou para o inferno. Então era essa coisa, eu tinha por um lado a pressão moral, por outro lado, a pressão de as pessoas não perceberem que eu sou viado, que eu era bicha na época, então foi bem tenso.
(21:51) P/1 - E como você fazia para se divertir naquela época?
R - Bom, não lembro. Acho que eu me divertia bastante na igreja, porque literalmente durante a semana eu ia à escola e ao final da semana eu ia pra igreja. A gente tinha atividades no sábado, aí ia pra igreja no domingo, então era basicamente. Não teve, assim, um grande espaço de liberação, mas eu lia bastante; acho que foi a época que mais li na minha vida.
Já nessa época, eu acho que uma coisa que veio comigo da infância, por conta de eu ficar lendo a vida inteira, [veio] essa capacidade de questionar. Ainda fazendo parte da igreja, eu questionava coisas que pra mim não faziam sentido - questões como aborto, o papel da mulher. Eu ficava sempre batendo nesse ponto. Eu falava: “Mas por que não?” Aí ficava uma coisa meio puxada.
(22:55) P/1 - Nessa época, e também na infância, você via, você tinha referências de outras pessoas LGBT?
R - Minha primeira referência vem da televisão. Acho que eu devia ter uns quatro, cinco anos. Tinha um programa que se chamava Risas e Salsas; eu lembro que na abertura do programa entravam várias mulheres vedetes dançando e uma no meio, [se] destacando. Minha mãe falou: ”Nossa, nem parece que não é mulher” e eu fiquei com isso. É uma artista que se chama Coco Marusix, uma travesti, e nessa época tinha muitas travestis que saíam na televisão, tipo aqui no Silvio Santos, mas lá aparecia no programa de humor. Elas faziam show, faziam uns espetáculos, espetáculos tipo vedete também.
Minhas outras referências eram cabeleireiros, geralmente travestis. [Tinha] outra pessoa que minha mãe falava que era “bichinha”, mas falava assim, desse jeitinho, então essas eram minhas referências de pessoas. [Tinha] também um cara na igreja que era bichona, bichérrima, que as pessoas ficavam fazendo piada com ele, então eu tinha essas referências, ainda na igreja.
Vamos falar que por um lado tinha a espetacularidade, mas por outro lado também [tnha] aquelas pessoas que lembravam que eram vítimas de algum tipo de violência, como esses outros estudantes da escola, como esse alguém da igreja.
(24:55) P/1 - E como foi quando você estava para se formar na escola? Você foi direto para o curso que você fez ou não? Como foi esse momento?
R - Eu termino a escola e chego à pergunta: “Vai estudar o quê?” Minha mãe queria que eu fizesse Engenharia; eu falei: “Não vou, eu quero fazer artes.” Eu queria fazer Artes Plásticas; ela falou: “Não, não dá, porque a gente não tem dinheiro.”
Um tio nessa época estava trabalhando na França como faxineiro em casas, então ele falou que podia pagar a faculdade da gente, tanto da minha como da minha irmã, quando ela terminasse a escola. A gente pesquisou e eu falei que queria fazer Arquitetura; minha mãe falou: “Não, é muito caro.” Eu falei: “Ou arquitetura, ou nada.” Eu me fechei, falei: “Não, comigo não.”
Quando comecei a fazer Arquitetura… Foi muito rápido, entrei muito cedo na faculdade, com dezesseis anos. Eu era bem nova. Conheci a primeira pessoa por quem me apaixonei, foi a primeira… Foi a segunda, porque a primeira foi uma menina; na época que eu tinha quinze ela tinha treze. A primeira pessoa realmente por quem me apaixonei foi uma menina de treze anos; era uma criança, não conta, mas depois, já com dezesseis anos eu me apaixonei assim, ó, louquíssimamente por um cara. Também com dezesseis anos começaram minhas primeiras experimentações com... Com outras pessoas, né, com experimentações sexuais, mas de fato, com quem tive relações sexuais foi com essa pessoa que me apaixonei.
(26:53) P/1 - E como foi esse momento de descoberta, de experimentações?
R - Sujeira. Na minha cabeça, eu estava fazendo coisas supererradas, mas se eu deixava, eu falava: “Você vai me apoiar, mas eu [não] estou fazendo nada errado”. Na minha cabeça, funcionava assim: se eu não faço a penetração, é menos pecado; não é tão pecado como se eu colocasse a mão no coiso. Era muito essa coisa de eu mesma ficar colocando os limites até onde eu podia ir, só que quando aparece essa pessoa eu fico com tudo. Falei: “Foda-se, foda-se a igreja.”
(27:43) P/1 - E como foi na faculdade, esse momento de entrar na faculdade, o curso em si?
R - Foi legal. Conheci pessoas muito bacanas, inclusive pessoas que ainda mantenho contato, apesar de que não moramos no mesmo país. Fiz grandes amizades, inclusive por uma delas sei que eu descobri a religião que atualmente pratico.
A gente era da turminha das pessoas superinteligentes, eu sempre fiz parte dessas turminhas. Eu lembro que gostava, mas não participava de muitas coisas, porque eles bebiam, eles fumavam e eu não, porque eu ainda ia à igreja. Com dezenove anos tranco a faculdade e vou para o serviço missionário, servir no mesmo país onde eu nasci, na parte sul do Peru. Servi por dois anos. Eu saí para tentar me curar, como toda pessoa que cresce na igreja acha que se tu sai, enfim, faz coisa de Jesus, Jesus vai tirar a doença de ti, mas não tirou, voltei mais bichona. Inclusive aí... Eu lembro que durante a época que estava na missão ainda me sentia muito próxima com uma divindade, mas ao mesmo tempo sentia que aquela divindade que eu falava não era uma divindade que gostava muito de mim, então eu ficava já questionando.
Quase fui expulsa da igreja, só porque dei um beijo no umbigo de uma liderança, e a gente estava brincando, não estava fazendo nada; imagina se tivesse feito outra coisa que eu faço agora, ia direto pro inferno, mas quase fui expulsa da igreja. Nossa, foi muito ruim, nos tiraram do bairro onde a gente estava, nos levaram até a sede, nos entrevistaram, fizeram perguntas bem nada a ver, então foi meio tenebroso. Depois, as outras pessoas conseguiram continuar subindo dentro da liderança, dentro do serviço missionário; eu não, fui degradada, por assim dizer, porque fui a que ocasionou a coisa.
Depois eu voltei para casa. Quando estava em casa voltei novamente para a faculdade e encontrei outro grupo de pessoas. É a minha segunda promoção. Eu tenho duas promoções, a promoção das antigas e das velhas - perdão, das antigas e das novas; com as novas eu me enturmei muito rápido, e aí comecei a me soltar. Antes eu vivia muito dentro do armário, tentava que não se notasse, obviamente… Notava-se desde o céu, se você estava na lua dava pra ver que eu era bicha, mas eu... Eu me encerrava muito. Quando entrei com a segunda turma, comecei a me abrir um pouco mais, aí foi quando eu me apaixonei… Não, eu me apaixonei na época que eu estava fazendo o serviço missionário; me apaixonei uma menina aí. Eu voltei, não deu certo, enfim não podia também, mas enfim, não deu certo, aí eu voltei e foi quando eu me apaixonei de novo… Não, me apaixonei de novo só depois de muito tempo.
Comecei a sair com pessoas, devo ter… Comecei a fumar, comecei a beber.
Eu já estava um pouco de saco cheio da igreja, foi em 2009 que eu parei de ir à igreja por conta da Proposta Nove, que foi apoiada pela igreja lá nos Estados Unidos. Com a Proposta Nove, ou proposta Oito, acho que foi, eles... [Foi] basicamente o que está acontecendo aqui no Brasil. Proibiram o casamento homoafetivo no estado da Califórnia e quem apoiou foi a igreja, aí eu me decepciono totalmente.
Já era uma época em que eu estava refletindo mais sobre minha sexualidade, já tinha ido no psicólogo pra entender, aí me assumi pra meus amigos. Eu falei: “Olha, eu sou bicha, é isso. Eu sou gay.” Eu já estava saindo com pessoas, era legal porque era um olhar diferente. Comecei a fumar, comecei a beber, inclusive lembro as datas: comecei a fumar no trinta de novembro de 2009, exatamente porque eu comecei a fumar no aniversário... Mentira! Dia 28, porque eu comecei a fumar... Um amigo me ensinou a fumar e dois dias depois eu já estava fumando no aniversário da minha amiga. Comecei a beber tipo uns quinze, vinte dias antes.
Falei pra mim: “Foda-se a igreja, eu vou seguir a Wicca como religião.” Desde ali eu dei as costas pra Jesus, e nunca mais voltei pra olhar esse rosto.
(33:34) P/1 - E nessa época, você tinha liberdade de falar sobre a igreja também, sobre essa saída da igreja e também sobre a sua sexualidade na época, com a sua família?
R - Não, eu... Acho que eles entenderam que eu não queria ir mais na igreja, respeitaram bastante, davam a desculpa de que eu estava com muita coisa na faculdade, mas a minha mãe começou a perceber que eu tinha mudado um pouco - bastante, porque estava a roupa muito mais justa, as camisas muito mais curtas, muito mais coloridas, enfim, minha barba… Foi a época que eu comecei a usar a barba maior, ainda usava o cabelo curto, mas eu usava a barba muito grande.
Eu não conseguia falar… Eu tentava falar sobre minha sexualidade, isso que era difícil, porque minha família era muito fechada. Inclusive, nessa época, eu tive um grande problema com a minha irmã, que teve gelo por um mês. [Foram] coisas bem pesadas, mas logo a gente se ajeitou; nunca falamos sobre o assunto, mas a gente se ajeitou.
Acho que eu não conseguia falar dentro de casa, mas fora de casa eu conseguia fazer várias coisas, conseguia falar. Eu tinha meus amigos da faculdade, que acabaram sendo um pouco esse suporte pra mim. O que eu não tinha em casa, eu tinha fora.
(35:15) P/1 - E como você se divertia nessa época, como era a cena LGBT lá?
R - Eu só conheci a cena LGBT quase no último ano da faculdade, porque como meu grupo de amigos era basicamente puta, ou era viado, a gente saía para as boates; eram boates tenebrosas, mas era aquilo que tinha para mim. Eu saía muito a boates hétero e também para as boates LGBTs, comecei a ir para bares, então tinha muito isso. Eu conheci as drags também nessa mesma época, no ano de 2009. Em 2009 também conheci [RuPaul’s] Drag Race.
Muitas coisas aconteceram no ano de 2009, muitas coisas importantes na minha vida, muitas mudanças: me aceitar como alguém não-hetero, conhecer as drags que acabam sendo personagens, inclusive manifestações artísticas que envolvem minha vida atualmente. Acho que foi um ano extremamente importante para mim.
(36:34) P/1 - E você quer contar um pouco como surgiu a sua drag, a sua persona?
R - Então, é a coisa mais... Acho que a maioria das coisas importantes da minha vida aconteceram assim, por acaso. Era 2012, acho que estávamos em setembro; eu fazia parte da companhia de teatro da faculdade. Eu já tinha saído da faculdade, só que eu ia porque gostava. Eu queria pegar um menino de lá, inclusive, então eu ia.
Eu ia representar um personagem, estávamos preparando Jesus Cristo Superstar. Eu ia fazer Herodes, só que eu queria fazer uma versão drag do Herodes; eu nunca tinha feito, aí falei: “Beleza.” Aprendi. Comprei salto, mandei fazer salto, comecei a andar de salto; aprendi em menos de quinze dias. Fiz uma maquiagem, tudo.
Foi em Halloween que eu falei: “Eu vou montada”, porque tinha festas de Halloween nas boates. Uma boate que eu ia bastante, que se chamava Babylon, que não existe mais. Eu lembro que eu fui, participei. Fui metade drag, metade homem - metade Lufer. Ganhei o concurso, ganhei 150 dólares, que bebi nessa noite. Foi a primeira vez que eu me montei e fui um pouco refletindo sobre o que era ser drag.
Meu primeiro show oficial foi no musical. Foi muito legal, as pessoas amaram. Eu estava com barba, foi tudo.
(38:23) P/1 - E como é o nome?
R - Dita Absinthe.
P/1 - E por que esse nome?
R - Dita Absinthe? Dita, porque a estética que mais me inspira é o pin-up, o burlesco. Quem mais é rainha do burlesco que Dita Von Teese? E Absinthe por conta do absinto.
Acho que o absinto representa muito quem eu sou, o absinto representa muito também como é que funciona a minha cabeça. Acho que às vezes falar comigo pode ser muito como se fosse uma conversa... Em Montmartre, em Paris, nos anos 20; todo mundo assim, chapadíssimo de absinto, só soltando coisas… Eu acho que é muito característica da minha drag a sensação que pode ser falar comigo, que possa ser essa coisa que te deixa assim, numa sensação de leveza, que possa estar falando coisas pesadíssimas, mas deixando de um jeito tão leve que fica até legal de me escutar.
(39:35) P/1 - Uma coisa que eu queria saber: como foi essa primeira vez que você se montou? O que você sentiu?
R - Foi doido, porque foram três horas de maquiagem só para um lado do rosto. Foi desconfortável demais, porque eu tinha um aplique de cabelo quase cravado na minha pele, tinha um espartilho muito apertado. Eu tinha raspado minhas pernas, estava coçando tudo e eu estava com a meia calça, os saltos, que acabaram sendo desconfortáveis, ficaram... Fiquei a noite toda de salto, então foi desconfortável. Mas foi gostoso, porque as pessoas tiravam foto comigo, ou me falavam: “Nossa, você tá bela”. Ganhei 150 dólares, então já é o... É um pouco essa mistura de desconforto com prazer, como tudo na vida.
(40:40) P/1 - E qual foi seu primeiro trabalho?
R - Meu primeiro trabalho... Eu trabalhei no teleatendimento, vendia internet pra Espanha. Foi tenebroso esse trabalho, horrível, era... Acho que chama-se teleatendimento ativo, que tem que ligar. Era horrível, mas também foi a primeira vez que eu comprei algo com o meu próprio dinheiro. Comprei um celular que logo me roubaram, mas o meu primeiro celular eu comprei.
(41:19) P/1 - Em que momento foi?
R - Foi quando eu voltei do serviço de missionário, foi em 2009 que eu comecei.
(41:28) P/1 - E nessa época que você começou a se montar como drag também, eu queria saber se você já militava na cidade. Ou ainda não?
R - Já tinha começado a militar. Eu começo minha militância em 2011, quase no final de 2011. Comecei a me montar no ano seguinte, então é quase tudo ligado à minha militância, minha... Minha arte, está quase tudo ligado.
Comecei a militar primeiro [como] uma coisa mais leve, em 2011, 2012. Em 2013, comecei a participar em mais ações um pouco mais fortes. De 2014 a 2016, eu fui a vocería, a voz principal do movimento na minha cidade, até porque eu tinha me assumido, óbvio, e quando eu falo me assumido era na TV, nos jornais, na rádio. Quando comecei a me montar, já militava no movimento.
(42:42) P/1 - E como você começou a militar? Como foi esse momento, o que despertou também?
R - Eu tinha um grupo de amigos, a gente começou… Participamos em um grupo no Facebook, que era de uma ONG lá em Lima, na capital do Peru, aí a gente estava tipo: “Nossa, eles fazem atividades muito legais. Por que a gente não faz uma coisa similar aqui em Trujillo? A gente propôs, eles aceitaram e criamos um espaço em Trujillo, então foi um pouco isso, foi um pouco no teste, erro, teste, erro.
Foi legal, foram os melhores anos da minha vida, conheci pessoas muito legais. Como eu te falei, foi uma coisa mais leve porque era um trabalho mais interno, do tipo: “Vamos nos fortalecer, vamos fortalecer a autoestima”, isso até 2013, mas ficava tanto nisso que eu estava cansado. Em 2013 comecei a me politizar muito mais e entender muito melhor qual é o meu sentido político. A partir de 2013 eu questionava mais, tudo, tudo.
Em 2014 fui contratada como monitora de um projeto de direitos humanos. Acho que esse projeto também é… 2014 também é um ano sumamente importante, porque é o momento que eu começo a refletir muito mais sobre movimentos políticos organizados. É um ano onde entendo que minha sexualidade é muito mais que ser gay; eu me entendi já como uma pessoa bi/pan. É um ano que comecei a mostrar mais meus outros aspectos, tanto como drag quanto como bruxa - muito mais quieta a questão da bruxa, mas muito mais como a drag.
De 2015 a 2017, por três anos fui a hostess da abertura do principal evento LGBT do país. Já fiz coisas legais no meu país. Já fiz piada com o agregado [adido] cultural do Chile, eu fazia muita piada com a situação política do meu país. Acho que sinto um pouco de saudade dessa época, de fazer essa coisa doida.
(45:42) P/1 - Tem alguma história desse momento?
R - Eu estava belíssima, toda montada… Era tipo uma das melhores montações que eu já tive, muito bela. Foi no Lugar da Memória, em Lima, no último ano que eu morei lá, o último ano também que eu fui hostess.
Peru e Chile, temos meio que uma rincha, uma coisa histórica ali, um babado, então lá no Peru temos uma bebida tradicional que é o pisco, só que o Chile também fala que é originário do Chile, então eu fiz o quê? Justamente no encerramento, já para fazer o brinde, falei: “Agora vocês podem passar a nossa after, e faremos um brinde com pisco - olhei para o agregado cultural chileno - peruano, aí todo mundo deu risada. O cara se aproximou para mim, me segurou pela cintura para tirar foto e falou: “Você é uma filha da puta.” Falei: “Eu sou”, sorrindo.
Acho que essa é uma das coisas mais doidas que eu já fiz. Não estava falando com qualquer um; [era] um agregado cultural, um funcionário do governo.
(47:08) P/1 - E nessa época - você estava falando da sua militância - que surge o Epicentro, né?
R - O Epicentro surge em 2011. É o Epicentro que me leva à militância. Eu saí esse ano, no começo do ano, por questões com um dos fundadores. Eu fui uma das fundadoras, mas outros fundadores quiseram ficar com a organização. Ele fez chororô, chororô e eu falei: “Ah, tu quer? Toma!” Ele ficou com a organização, agora está morrendo, nem existe mais.
O Epicentro foi uma parte muito importante da minha vida. Eu vi vidas de pessoas melhorar, escutei testemunhas de pessoas falando de como a organização tinha impactado a vida delas, como tinha sido um tipo de família, essa coisa que às vezes a gente, como pessoas LGBTs, buscamos - a noção de família, que é uma coisa meio que negada pra gente, né? Poucas pessoas de nós têm esse privilégio de ter uma família que nos acolha, infelizmente.
(48:33) P/1 - E nessa época, como você se expressava artisticamente?
R - Ah, eu era muito caricata, realmente. É porque… Eu era caricata, mas também não tinha muito uma voz, porque ainda que meu corpo estivesse emprestado… Inclusive nessa época eu tinha outro nome, como drag sempre Dita, mas tinha outro sobrenome. Eu lembro que nessa época tinha alguém que me maquiava, tinha alguém que fazia minha produção, tinha meio que uma equipe, então quem fazia minha produção geralmente escolhia o formato da minha maquiagem, e eu nem sempre gostava. Eu fazia o babado acontecer, mas nem sempre gostava da proposta final, nem sempre eu fazia o que queria. Era legal, ainda assim, só que eu não sentia muito minha mão ali.
Eu fazia tudo, eu entretia muito, sabe, mas acho que tinha camadas muito mais profundas que não conseguiam fazer que eu desfrutasse todo o processo. Ainda que eu amasse me montar, eu não conseguia desfrutar totalmente.
(49:52) P/1 - E quando você se muda para Lima?
R - Eu viajava muito para Lima por conta de cursos, capacitações. Eu nunca vivi em Lima, mas eu sempre estava em Lima.
Acho que de 2014 a 2017, antes de vir para São Paulo, eu passei muito tempo em Lima; era quase duas vezes por mês. Em 2017, todo mês eu estava em Lima, mas eu ficava dois, três dias e voltava. Era assim, uma rotina muito cansativa, mas era gostoso, eu amava.
Acho que tanto amava Lima que quando eu vim pra aqui foi mais fácil me acostumar. Quando estava em Trujillo já estava procurando os caminhos pra conseguir ir morar em Lima, que era uma dos meus grandes desejos. Não mais.(risos)
(51:03) P/1 - Trujillo era muito diferente de Lima?
R - Totalmente. Trujillo é uma cidade muito conservadora, muito pacata, como qualquer cidade do interior de São Paulo. Eu trabalho numa cidade pacata, é literalmente isso. Eu trabalho em Jundiaí, então é como se morasse em Jundiaí, só que com menos pessoas.
(51:25) P/1 - E como era Lima pra você? O que significava?
R - Lima significava libertação. Lima significava esse local onde eu meio que podia ser eu, Lima era um pouco essa... A cidade onde eu conseguiria empezar [começar] a escrever meus sonhos - nem [era] conseguir meus sonhos, era escrever meus sonhos, era isso.
(51:53) P/1 - Eu queria saber se em algum momento você exerceu a profissão em que você se formou.
R - Sim. Eu saí da faculdade em 2010 e trabalhei com arquitetura até 2013, quase 2014, quando fui demitida. Acho que fui demitida por ser bicha, porque eu estava muito mais ativo no movimento LGBT. Do nada, um dia falaram: “Obrigada. É isso.” Não deram maiores explicações.
Eu fiquei sem emprego de agosto de 2013 até abril de 2014, [quando] consegui esse emprego no Movimento Homossexual de Lima.
(52:40) P/1 - E quando começa a sua trajetória em São Paulo?
R - Essa trajetória começa exatamente no dia dezoito de outubro de 2017. Como falei, muitas coisas da minha vida não foram pensadas, só aconteceram.
Eu vim visitar minha irmã. Minha irmã morava aqui em São Paulo, ela morava no Jabaquara, pertinho do metrô - ó, amei!
Uma coisa que é muito legal e que eu vou repetir sempre: eu viajei cinco dias montada de homem de Lima a São Paulo, porque ninguém percebeu que era bicha durante cinco dias. Só quando cheguei aqui [que] perceberam que era a maior bicha que já vimos em São Paulo, então, para mim, isso já é o lucro.
Pra mim foi uma coisa muito louca, porque vi muitas mudanças. Eu fiquei em Lima um dia inteiro, um dia de viagem de Lima até a divisa. Quando a gente atravessa o posto - ai, como que é? -, o ponto de migração, eu percebi como eu tinha privilégios, porque a pessoa que estava na minha frente, a pessoa da Polícia Federal, deu quinze dias de tempo pra ficar. Eu falei: “Vai ser a mesma coisa para mim.” Eu dei meu passaporte, ele deu três meses pra mim. A pessoa que estava atrás de mim, um equatoriano que estava viajando comigo, porque eu fiz amizade com algumas pessoas, deu trinta dias e entre nós três que passávamos a única diferença era a minha cor de pele, então percebi mesmo que tinha certos privilégios.
O primeiro local que eu cheguei foi o Acre. Fiquei espantada porque tinha esse rio que a gente tinha que atravessar numa balsa com o ônibus em cima - o Rio Madeira, acho que era, e eu achava que ia morrer. Aí a gente chegou em Cuiabá, de Cuiabá fomos para... Não, não foi Cuiabá, foi Porto Velho. De Porto Velho fomos para Cuiabá, enfim… Não, para Rio Branco e de Rio Branco para Cuiabá, acho que Mato Grosso, então eu fiz esse recorrido [caminho], provavelmente conheço mais esses estados que a maioria dos brasileiros.
Percebi muita diferença entre Acre e São Paulo, porque a região do Acre era muito carente, inclusive os pontos onde a gente parava para comer eram muito mais humildes, muito mais simples. Por exemplo, o último ponto antes de chegar foi já em São Paulo, acho que era perto de Campinas; era um posto imenso, chiquérrimo, então eu consegui perceber essas diferenças.
Eu chego em São Paulo e tem coisas que eu gosto muito de... Não necessariamente que eu goste, mas acho que uma das coisas que mais me marcam são os cheiros. Eu cheguei no Tietê, então, o que foi que eu recebi? Cheiro de mijo, de urina velha, pão de queijo chulento e cheiro de fumaça de carro, então qual é a minha primeira lembrança de São Paulo? Esses cheiros tenebrosos.
Estava meu cunhado me esperando ali, na rodoviária, e a gente foi pra casa. Eu lembro que estava já chegando na casa e minha sobrinha estava lá fora esperando; ela começou a chorar e me abraçou. Minha outra sobrinha era muito pequena, tinha menos de... Já tinha um ano, acho, ainda estava meio que andando, mas a outra me viu, ela chorou.
No dia seguinte fui com a minha irmã ao consulado para conhecer a Avenida Paulista e acho que foi amor à primeira vista. Eu estava na esquina da [Rua] Augusta com a Paulista, especificamente no Shopping Center 3. A gente estava indo para almoçar, inclusive o primeiro local que eu comi em São Paulo foi o... Como é? Recanto Mineiro... Acho que é Recanto Mineiro; tem em todos os shoppings, é caríssimo.
A gente foi comer lá, eu estava entrando no Shopping Center 3. Olhei para um lado, veio um casal de sapatões com duas criancinhas; meu coração se fechou assim. Olhei para outro lado, um par de bicha andando de mãos dadas. Isso é uma coisa que a gente não vê na rua lá no Peru. Foi o primeiro momento que eu me apaixonei por São Paulo. Eu falei: “Ihhh…”, como quando vê essa pessoa gostosa. Eu falei: “Gente, é isso.”
Acho que se passou mais um dia, eu fui conhecendo um pouco a cidade. Saí com um cara que conheci no Tinder, [que] me mostrou o centro da cidade. Achei fedorento o centro, mas achei muito chique, porque fui no centro mesmo. Fui à Caixa Cultural, fui no CCBB, fui... No museu, não, peraí, no Teatro Municipal. Todo o caminho [tinha] cheio de mijo, de urina velha, basicamente, nesses primeiros dias, mas sim, me apaixonei muito por São Paulo.
Já estávamos no segundo dia, acho que foi uma... Eu cheguei numa terça à noite, não, quarta à noite, quinta-feira à noite. Não tinha passado nem dois dias. Minha irmã e meu cunhado perguntaram: “E aí, você está gostando?” “Gostei, é linda a cidade. Eu vim só pra [ficar] quinze dias.” Eles falaram assim: “Quer ficar?” Falei que queria. Foi assim que eu decidi morar aqui, fui fazer meus documentos e estou aqui, na frente de vocês.
(59:38) P/1 - Eu queria saber quando você começa a se montar você mesmo.
R - Eu fiquei alguns anos parada. [Quando] vim para São Paulo deixei tudo porque [era] só por quinze dias. Deixei toda a minha vida lá no Peru: amizades, o Epicentro, mesmo Dita eu deixei lá no Peru, dentro de uma mala.
Durante a pandemia, entre minha vinda e a pandemia, eu sentia muitas saudades da Dita, porque uma coisa que Dita me dava era paz, Dita me dava essa vontade de fazer coisas.
Em 2021 entrei numa... Eu vi que tinha uma oficina de arte transformista. Eu falei: “Peraí, o que é isso?” Eu já estava fazendo uma... Treinando uma maquiagem, mas... Era feia! Feia, feia, feia!
Entrei, era uma oficina on-line. A gente esteve desde março até setembro de 2021. A oficina era ditada pela Mackyalla Maria, uma drag muito maravilhosa do DF, mas que mora aqui em São Paulo e ela participou na Academia de Drags, inclusive na segunda temporada. Ó, xoxota!
Eu lembro muito que a gente conversava bastante sobre a arte transformista, o que significava para a gente, e fazíamos muitas... Treinávamos muito maquiagem, mas não era tipo “você faz a maquiagem desse jeito”, era “faça maquiagem.” Ela ensinava o jeito dela, mas falava para a gente experimentar.
Comecei a experimentar mais com as coisas que eu queria ter feito na minha drag, sempre com essa inspiração forte no pin-up, esse glamour também de Hollywood dos [anos] 50, que é uma coisa que me apaixona demais, e comecei a me montar, primeiro em casa, porque era pandemia, não tinha onde sair; era no meio da pandemia, acabou sendo meio complicado.
As coisas começaram a ficar um pouco mais leves, começaram a abrir alguns espaços e eu ia para isso, conversar com muitas pessoas. Uma drag que eu flertava fala que ia participar de um evento, aí eu fui lá, desmontada, e eu gostei das pessoas que foram, as drags que participaram. Beleza.
[Ela] me convidou para a final. Ela não passou para a final, mas eu quis ir. Fui toda montada, belíssima. Eu estava muito bela. Nessa época eu ainda não tirava a barba, porque eu me sentia muito confortável com a barba. Aí comecei a ir a vários eventos assim que abriam, ia montada. Foi basicamente isso, quase no final de 2021 é que Dita renasce, volta para as ruas.
(1:03:00) P/1 - E quando você chegou aqui em São Paulo, que você estava morando com a sua irmã, você foi morar com ela?
R - Eu fui morar com ela. Morei com ela [por] dois anos. Em 2019 que... A gente morava numa casa muito grande, só que era muito cara, então minha irmã falou que ela ia ir pra um apartamento um pouco mais barato para ela, as meninas, o marido e minha irmã, e eu que buscasse outro espaço para mim. Eu falei: “Beleza.” Foi quando eu comecei a morar na Vila Mariana, isso foi em agosto de 2021 - não, mentira, agosto de 2019. Moro lá até agora. Mudei da casa A que eu morava para casa B, que é onde eu moro agora, literalmente minha única mudança em quatro anos.
(1:04:00) P/1 - Então você não saiu da Zona Sul de São Paulo.
R - É, basicamente fiquei na Zona Sul de São Paulo. Estou muito mais próxima, mais para o centro, mas não saí da Zona Sul.
(1:04:55) P/1 - E como é essa... Você sente diferença entre a Zona Sul e o centro em relação a LGBTs?
R- Totalmente. Eu já me sentia confortável morando no Jabaquara. Eu falo que moro na Zona Sul, mas às vezes parece que a Vila Mariana é muito mais centro que Zona Sul. É Zona Sul no sentido que tem muita família, mas ao mesmo tempo eu tenho muita liberdade, eu me sinto muito confortável morando na região onde moro. Quanto mais para o centro eu estou, parece ser muito mais tranquilo em relação a ser LGBT.
Eu já fui montado de metrô. Ninguém ficou espantado, querendo me bater, me xingar. Eu já saí de saia, gosto de usar saia, então já fui de saia para vários locais, ou de shortinhos curtos e ninguém fica me olhando com cara feia. Se alguém olhou com cara feia eu não percebi - legal, porque se eu tivesse percebido, oh, a bronca que levava a pessoa. Mas no geral, eu acho que pras pessoas LGBTs, quanto mais próximo do centro estiver, é muito mais tranquilo. Não vou falar que é melhor, porque melhor seria um ambiente onde todos os corpos LGBTs sejam bem-vindos. É mais tranquilo de andar.
Eu nunca fui agredida aqui no centro de São Paulo, por onde eu mais ando, na Vila Mariana, mas eu já fui xingada, por exemplo, na Granja Julieta. Falaram: “Veste roupa de homem, seu viado.” Foi um carro que passou a toda velocidade, gritou e eu só fiquei: “Oi?”
Mesmo sendo na Zona Sul acho que tem uma diferença entre a Granja Julieta e a Vila Mariana, aqui onde eu moro. [No] ano passado, por exemplo, veio uma amiga me visitar. Eu chamo ela de filha porque ela é bem mais nova que eu, porque a gente tem essa relação de afeto. Eu sou mãe de muitas pessoas por conta do Epicentro e ela me chama de mãe. A gente foi na padaria e eu a apresentei como minha filha, a namorada dela como a minha nora, e a mulher da padaria ficou: “Nossa, mas você é muito jovem para ter uma filha.” Ela não questionou que minha filha tivesse namorada e sim que eu era tão jovem pra ela ter um namorado. Achei isso chique, questionaram mais minha idade que a questão da minha filha ser sapatona.
(1:07:00) P/1 - É um elogio, né?
R - Ó. amei! Nunca mais parei de comprar nessa padaria, inclusive.
(1:07:58) P/1 - Houve dificuldades quando você chegou aqui? Se sim, quais foram?
R - A língua foi uma das menores. Eu tenho o privilégio de conseguir aprender a falar em línguas rápido, glória a Deus, mas... Eu acho que o mais difícil foi me sentir sozinho, ainda tendo a minha irmã e minha mãe, eventualmente, que veio morar também com a gente depois que faleceu meu avô, mas acho que é essa sensação de estar só aqui na cidade. É uma cidade com doze milhões de habitantes, mas eu não tinha um círculo de amizade. Acho que para mim o mais difícil foi isso, me encaixar dentro de um grupo de pessoas a quem eu pudesse chamar de amigas. Inclusive, eu estou meio que escrevendo um livro sobre minhas vivências como Dita; eu falo sobre essa questão, sobre a solidão. Às vezes, podemos sentir que somos de fora de São Paulo, pessoas que não são paulistas, podemos sentir aqui na cidade… Acho que é um sentimento ou uma emoção que é muito comum para quem não é de São Paulo e quem não cresceu em São Paulo.
(1:09:48) P/1 - Lufer, eu fiquei curiosa porque lá no Peru você tinha o Epicentro, você tinha toda uma militância e também uma rede de apoio quando você se muda para cá, você se muda sozinha, então como que foi esse momento de reencontrar o seu lugar dentro da militância aqui em São Paulo?
R - Eu comecei, acho que não tendo esses espaços de militância. Tentei, juro que eu tentei, busquei muitos espaços para militar. Fui na Casa 1, nem olharam para mim; fui em outros espaços, fui já para o Casarão, que já nem existe mais. Eu busquei no primeiro ano porque eu queria militar, é uma coisa que eu sentia falta, então o que eu fazia? Já que eu não conseguia estar dentro da militância ativa, dentro de organizações, movimentos, eu fazia a militância do boca a boca, conversando no trabalho, tentando gerar essa reflexão com as pessoas LGBTs do trabalho que eu estava, botando reflexões também em grupos de militantes que tinha no Facebook, no meu próprio Instagram. Eu sempre tive essa postura. Daqui de São Paulo eu ainda mantinha esse contato com o Peru, com o Epicentro, então eu mantinha, ao menos, conseguia satisfazer, em certo aspecto, essa necessidade de fazer coisas pelos meios iguais.
Eu também tinha outras questões, como ter me entendido como pessoa não-binária um ano antes de vir para São Paulo, então tem várias questões que me atravessam. Eu já conversava com o movimento trans, já conversava com o movimento NB [não-binário] do Peru, aqui comecei a conhecer pessoas NB também, então meio que acaba sendo uma coisa legal essa falta. Sentia muito, muito essa falta de militar dentro de um espaço organizado, porque não é a mesma coisa tu ir na Parada LGBT sozinha ou com as amigas do trabalho e tu fazer parte do movimento. Realmente, o movimento faz total diferença.
(1:12:00) P/1 - E como foi se entender ainda lá no Peru como uma pessoa não-binária?
R - É meio complexo porque primeiro eu me entendo como NB, então é engraçado porque foi durante uma palestra - mais que uma palestra, um círculo de conversa, pois [era] uma projeção do documentário que estava com duas meninas trans. Eu estava me adiando, nessa época ainda me entendia como cis. Eu não sei se alguma vez me entendi como cis, mas vamos imaginar que eu me entendi como cis aí... Quase ia terminando, mas as meninas faziam uma brincadeira: “E aí, Lufer, quando você vai sair do armário como trans?” Demos risada, mas isso ficou na minha cabeça.
Minha drag, Dita, se ela fez uma coisa foi me ensinar sobre gênero. Acho que nem [Judith] Butler, acho que nem [Paul B.] Preciado me ensinaram tanto como minha drag sobre gênero. Eu comecei a entender que não encaixava no masculino, mas [não] me encaixava no feminino também, eu estava em algum ponto por ali.
Já comecei a me entender no neutro lá no Peru. Foi em 2016 que eu entendi que o meu corpo é um corpo não-binário e entendi que era isso, então. 2016, novamente, [foi] um ano de transformações, mudanças, porque é o ano que me entendo como uma pessoa não-binária, e o ano que me entendo também dentro da militância política organizada. Eu era filiada ao Partido Socialista lá, e começou em 2016. 2016 também é um ano que eu me entendo como uma pessoa que tem outros tipos de afetos, ou seja, como uma pessoa não-monogâmica, então a cada certo tempo parece que minha vida tem esses... Podem ser hiatos, onde... Todo mundo meio que se mexe, vira de cabeça e volta de uma forma totalmente diferente. Parece que tem essas ondas de desconstrução, cada uma a seu tempo.
Lá foi difícil porque não tinha uma discussão tão forte a respeito, eram mais questões sobre pessoas trans dentro do binário, mas essa questão de pessoas trans fora do binário era meio complicada, [tinha] muito essa coisa da invisibilidade por conta dos movimentos mais tradicionais, vamos falar, dentro do movimento trans. O movimento trans no meu país é bastante conservador, em muitos aspectos.
(1:15:00) P/1 - E como você cria amizades quando você chega aqui?
R - Abafa! (risos) Eu acho que como toda pessoa LGBT com pinto, a partir de aplicativos de paquera/pegação. Conhecia pessoas, passava o rodo; algumas dessas pessoas tinham que virar amigas. Passaram-se quase quatro anos fazendo isso para conseguir começar a criar alguns laços de amizade, mas no começo, em 2018, eu conheci um grupo de pessoas que era a Esquerda Festiva, um grupo bem legal, que logo se desfez, e eu conheci algumas pessoas. Conheci ali o Marco Tolentino.
Coisas da vida: durante a pandemia o Marco Tolentino entra em contato comigo, porque eu já tinha participado com ele numa revista. Eu escrevi um artigo para uma revista, [em] 2020 ele me entrevista, eu participo de um podcast, Passagem só de ida, inclusive eu falo sobre minha vida como imigrante em São Paulo. Dois anos depois, ele me chama de novo e me pergunta: “Lufer, você ainda está buscando um espaço para militância?” Eu falei que sim. “Você quer participar do acervo?” Eu falei que eu queria e comecei a participar do acervo.
Estou no Acervo Bajubá até agora e encontrei, por fim, após quase seis anos, esse coletivo LGBT onde eu posso militar, mas também esse espaço de afeto, esse espaço de cuidado. Sei que eu tenho uma rede de apoio, mas teve que passar seis anos para isso acontecer. Aí está o Bruno, está minha irmã Natan, está a Rafa, o Marcos mesmo, então acho que... Assim como provavelmente minhas redes de apoio, Daniel, Fábio, Lucas, que eu conheci pelo Scruff, Happn e Grindr acabaram sendo pessoas muito importantes na minha vida, e que eu sei que fazem parte da minha família, que eu escolhi.
(1:16:00) P/1 - Você quer contar um pouco sobre o que é o acervo?
R - O acervo Bajubá é um espaço, um coletivo que trabalha, por um lado, na recuperação das memórias dos coletivos LGBTs ou das pessoas LGBTs. É aqui em São Paulo, mas não só busca essa coisa da recuperação; também construímos outras narrativas LGBTs, então trabalha, por exemplo, questões como... Questões que já nos atravessaram bastante, como a ditadura, o HIV-AIDS, mas também um pouco de como essas narrativas já nos atravessaram, como impactaram a nossa vida. Atualmente trabalhamos num projeto sobre a noite paulistana e a arte transformista, que foi, oh, babado! A gente fez uma exposição muito bela.
Inclusive, graças ao acervo estou trabalhando naquilo que eu sempre quis, que é na arte-educação, porque a partir de uma das pessoas do acervo que eu conheço eu soube de um processo seletivo no Sesc e estou trabalhando no Sesc, como arte-educador, então acho que o acervo também acaba impactando a minha vida, não só de um jeito, mas de muitas formas, atravessou a minha vida e acho que me fez uma pessoa muito mais feliz, uma pessoa mais realizada.
(1:20:00) P/1 - E quando você chegou aqui, você começou a trabalhar com o quê?
R - Eu trabalhava com atendimento ao cliente, trabalhava no Meta, antigamente Facebook. Trabalhei por cinco anos. Fui demitida sem causa nenhuma, só falando: “Ah, obrigada, é isso…” Falei: “Tá bom.”
Eu fiquei um mês sem trabalhar sem trabalhar com carteira assinada, porque todo esse mês que eu trabalhei, eu trabalhei no projeto de porta da boate, e no seguinte mês, no mês de julho eu já estava trabalhando no Sesc. Era isso, tava escrito.
(1:20:48) P/1 - Eu queria saber quais baladas você frequenta aqui em São Paulo, quais você mais gosta.
R - Eu não sou muito de balada, acho que eu fiz trinta anos e fiquei com preguiça do mundo, mas eu gosto de alguns espaços. Eu amo a Casa Fluida, gosto demais, acho que tem uns shows de drag muito legais. Eu gosto da Zig, Zig Duplex sobretudo, mas não vou falar porquê. Abafa, é conteúdo +18. Mas é muito legal lá, a música é muito legal, a bebida é gostosa, whatever.
Eu gosto também do Cabaret da Cecília, que eu acho muito chique, muito legal, um espaço também legal de performance. Acho que esses são os espaços que eu vou, mas eu sou muito de bar, então tu vai me achar na Estrela da Vila Mariana, que está ali, na frente da [Estação] Ana Rosa, ou vai me achar no Bar da Lôca, ali na [Rua] Peixoto [Gomide] com [a Rua] Frei Caneca, ou vai me achar em algum barzinho ali pela [Praça] Roosevelt. É basicamente isso.
Na Vila Madalena eu não vou, porque acho um espaço extremadamente hétero e eu, sorry, sou um pouco heterofóbica, mas tenho direito a isso. Eu gosto de um ou outro bar na [Rua] Augusta, mas acho caro demais, então não vou. Às vezes também vou a alguns bares que ficam atrás da Estação Santa Cruz, não vou lembrar os nomes. Acho que se a Estação Santa Cruz, inclusive. Como ficam perto de casa, então é tranquilo; volto bêbada às três da manhã, volto andando, ninguém me rouba, então tá chique, o que não aconteceria se fosse no centro.
Acho que esses são os espaços que eu frequento.
(1:23:00) P/1 - Eu queria saber o que você faz no seu dia a dia, como é?
R - Depende do dia, mas vamos falar de um dia comum de trabalho. De terça a sexta eu acordo [às] quatro horas e meia da manhã. Eu me preparo para ir ao trabalho, tomo um cafezinho, converso com minha gata, faço minhas preces, enfim. Saio de casa às 5:45. Vou para o trabalho e chego geralmente em Jundiaí umas oito da manhã. Chego no Sesc de Jundiaí às 8:40, 8:30, aí abro todo o espaço. Chega a Nath, minha amiga, que é do acervo, mas a gente trabalha junta, então a gente toma mais um café da manhã, fofocamos um pouco, porque o trabalho que presta é o trabalho onde a gente fofoca, então a gente fofoca horrores. Eu vou chegar para casa falando “nossa, o trabalho está me matando”, mas eu fico... Eu sou o claro exemplo do meme, porque eu falo “o trabalho me mata” e fico só dando risada, rindo no trabalho.
Trabalho até às três da tarde. Saio, pego o metrô, volto pra casa. Faço minhas orações de novo, assisto alguma coisa no YouTube, brinco com a minha gata porque ela fica muito tempo sozinha. Assisto alguma coisa, sei lá, um filme, se estou com vontade leio um livro e vou dormir. É assim, de terça a sexta.
Aos finais de semana, dependendo… Se não trabalho, não faço nada, salvo domingo. Domingo geralmente eu vou no Santuário da Grande Mãe, ou vou ao acervo. Segunda-feira geralmente eu dedico mais para limpar a casa, tentar organizar alguma coisa, escrever, enfim. Tenho sempre tentado ocupar minha segunda-feira, mas sábado e domingo é muito variável, porque se trabalho é só tristeza; se não trabalho, tento me divertir.
(1:25:00) P/1 - Tem alguma história do acervo que você acha marcante?
R - É porque, ok, acontecendo acervo é tão legal e nunca se sabe o que vai rolar. Já aconteceu de a gente estar fazendo os mutirões nos finais de semana. A gente vai, como todo acervo tem um monte de materiais, mais de quatro mil itens, então a gente tem que organizar. Às vezes a gente está organizando coisas. encontra um relato e a gente começa a conversar. Esse relato [é] sobre, sei lá, alguém fazendo banheirão, acaba levando para uma dissertação babadeira sobre práticas sexuais, de como eles, como pessoas LGBT, cresceram, e as referências que eles veem na TV. Eu aprendi, por exemplo, de vários personagens LGBTs do Castelo Rá-Tim-Bum que não eram LGBTs, mas que dentro do imaginário eram um monte de bicha, então acho que isso é legal, porque eu aprendo um pouco as referências brasileiras e um pouco essa partilha de experiências. Acho que isso é o mais legal do acervo, porque tu não sabe que novo aprendizado vai sair. É tão aleatório, porque a gente literalmente vai só organizar livros, revistas, mas não sabe o que vai rolar, que conversa vai ter. Às vezes a gente fica falando de Drag Race e falamos porque tal foi cortada ou porque a avaliação de tal júri foi nada a ver, ou às vezes a gente fica falando sobre nossas ícones, Madonna ou Marcinha do Corintho, ou fazendo um projeto.
É muito aleatório, mas sempre reconfortante. Toda vez que eu vou ao acervo fico tão feliz… [Fico] cansada porque a gente acaba destruído, mas sempre tem café, sempre tem bolo, sempre tem fofoca, então é gostoso.
(1:27:00) P/1 - E a sua história com o Wicca, como começou?
R - Como eu te falei, em 2005… Eu estou na faculdade, no segundo ano da faculdade. Uma amiga sabia que eu amava demais essas religiões, que eu falava muito sobre as religiões. Ainda era mórmon, mas eu falava muito sobre as religiões, aí ela me perguntou um dia: “Lufer, sabe o que é Wicca?” E eu assim: “Wicca, que é isso? Nossa, será alguma coisa indiana?” Ela me mostrou um site, ainda lembro: wicca.lunacelta.com. Já não existe mais. Esse site existe, mas nunca mais foi atualizado. Nossa, esqueci o nome da mulher… Elsie Kuslas, uma mexicana. Ela foi minha primeira referência dentro da Wicca. Eu li tudo que estava no site dela e fez sentido, mas olha a doideira: um dia antes eu tinha assistido um filme que se chama As Brumas de Avalon. É um filme que está inspirado num livro da Marion Bradley, acho que é, que fala... Uma leitura sobre o mito do rei Artur, só que pelos olhos das mulheres. Fala sobre a Morgan Le Fay, que ela é uma sacerdotisa de Avalon, e falava sobre a deusa. Esse filme me impactou de uma forma alucinante e no dia seguinte, ou dois dias depois, eu conheci a Wicca, então agora para mim está tudo ligado, era o momento certo para eu conhecer.
Eu comecei a devorar tudo que era sobre a Wicca, tudo sobre a deusa, sobre o deus, os rituais, como se conjurava um círculo, como se chamavam os anciões, enfim, muitas coisas ritualísticas. As próprias histórias comecei a pesquisar. Quando voltei do serviço missionário, comecei a pesquisar mais, junto com uma amiga que logo virou minha mestre e me ensinou um pouco mais; criamos um círculo de estudos lá na minha cidade e a gente ficou junto. Celebramos os rituais principais, as festas principais durante vários anos lá. Éramos só seis pessoas, mas ficamos muito tempo assim, até que eu vim pra aqui.
É óbvio que se a gente pensa no Brasil, em Wicca, [tem] o Claudinei Prieto, o Flávio Lopes, a loja Wicca Old Religion… São Paulo tem uma história bruxa, uma história Wicca muito forte, então parece que tudo da minha trajetória me levou pra aqui, para eu morar aqui e ter meus altares porque eu não tenho um altar só em casa, tenho vários altares. Após dezoito anos decidi que estou no tempo certo de começar meu processo de iniciação, porque ainda que eu esteja há muitos anos, como eu sigo uma corrente muito mais tradicional, a minha iniciação tem que ser dentro de um coven, um grupo de treze bruxos e bruxas. Como eu não faço parte de um coven, não posso me iniciar. Tenho que buscar sacerdotes, sacerdotisas para fazer o processo. Mas depois desses dezoito, quase dezenove anos, decidi que era o tempo certo. Essa é minha história com a Wicca.
(1:31:00) P/1 - Você estava contando que você participou de um documentário. Como foi?
R - Ah, esse documentário foi muito legal e foi muito intimista também. Um amigo, como parte do mestrado dele, estava trabalhando questões, por um lado, artísticas, mas também questões eróticas, sensuais/sexuais, aí ele me convida para participar no documentário dele.
O documentário tem o meu nome, que é o Dita Absinthe. Ele grava o processo de maquiagem, perguntando coisas sobre minha drag, sobre o que era fazer drag - enfim, perguntas gerais, mas meio aprofundadas.
Uma coisa que me impactou mais dentro do documentário e das falas que eu tive logo com ele, com o namorado dele, [é] que eles conseguem perceber num momento que eu deixo de ser Lufer e sou só Dita. Eu tenho um momento muito específico, num momento de montação, que meus trejeitos mudam, até minha voz muda, meu jeito de olhar muda e é incrível, é surreal. Acho que às vezes as pessoas podem confundir a drag como só palhaça, ou só uma pessoa com muita maquiagem, mas eu acho que é mais que isso, porque eu mesmo consigo perceber essa diferença quando estou no processo de maquiagem, por exemplo. Agora estou com um pouquinho de maquiagem, mas eu não tenho essa coisa que tem a Dita normalmente, que dá para perceber no olhar. Acho que tem uma coisa nos olhos que mostra que tem outra pessoa ali, que para de ser Lufer. É surreal mesmo.
(1:33:00) P/1 - Eu queria saber, nesses seis anos que você está aqui em São Paulo, se você considera São Paulo um lugar acolhedor, tanto para imigrantes quanto para pessoas LGBT.
R - A pergunta seria acolhedora para quem. São Paulo é uma cidade que é muito aberta pra diversidade, mas só pra diversidade que ela quer. Durante o mês de junho a gente elegeu muito bem-vinda, mas depois eu não sei que tão acolhedora pode ser, porque sim, eu... Na minha experiência, eu não tenho passado questões pesadas por ser LGBT, porém eu tenho recortes de privilégio porque sou branca, sou lida como homem. Eu tenho a passabilidade brasileira, porque tu olha pra mim e não vai achar que eu sou peruano, então acho que provavelmente só vou passar despercebida. Quando estou montada, ninguém vai querer me encarar, porque [com] uma bichona de quase dois metros de altura ninguém vai querer dar uma briga. Mas acho que não é uma cidade acolhedora. É acolhedora, sim, mas com os paulistas e com alguns paulistas, mas que é muito mais... Quanto mais você estiver perto do centro, mais acolhedor vai ser contigo.
Com nós que somos de fora, é muito agressiva. Não é aberta, não nos escuta para nada; acha que nos conhece, mas não nos conhece, absolutamente. Acho que São Paulo só conhece o estereótipo da gente, mas não conhece, ou não nos entende como pessoas reais. Só nos entende como dados. Para São Paulo sou [número de documento], simplesmente isso. Toda a minha história antes de ser esse número e toda a minha história depois disso acho que não interessa muito para São Paulo.
Acho que São Paulo não tem interesse em saber como estou reagindo à minha transição hormonal. Eu tomo hormônios há quase um ano, mas São Paulo não tem esse interesse. Não tem nenhum interesse, nem vontade de saber como a minha história, como a minha vida tem mudado. São Paulo também não tem interesse em saber como uma pessoa peruana que mora sozinha no Brasil, que não tem família, consegue lidar com essa questão. Sendo tão agressiva do jeito que é, sendo tão fechada do jeito que é, acho que também faz que nós, que não somos paulistas, aprendamos a conviver com a solidão e transformemos nós mesmas essa solidão em solitude, aprendamos a querer esse... Aprendamos a entender e abracemos esse estar só na cidade.
(1:37:00) P/1 - Sua irmã não mora mais aqui?
R - Não, ela mora na Espanha. Ela foi embora em 2021, justamente na parte mais tenebrosa da pandemia, quando tudo era caro, quando já não dava mais e as cifras de mortos estavam altíssimas. Ela decidiu ir embora, foi difícil para ela porque teve que ir para a Sérvia, que era o único país que deixava brasileiros, ou pessoas vindas do Brasil, entrarem. Ela chegou, ficou quinze dias e fecharam a fronteira, não recebiam mais.
Ela conseguiu atravessar [a fronteira], foi para Itália, mora na Espanha atualmente, mas eu sou a única pessoa da minha família que mora no país.
(1:38:00) P/1 - E você voltou para o Peru?
R - Não, não voltei. Provavelmente não pretendo voltar porque minha família, para mim, é minha mãe, minha irmã e meus dois sobrinhos… Meu irmão mais velho, meu tio e ninguém mais; o resto são parentes. Não falei do meu pai, então, ó, abafa!
Não tenho muito interesse em voltar ao país, porque minha família não mora lá, minha família mora na Europa, então acho que se eu em algum momento voltasse, seria só para pegar as minhas... As poucas partes da minha vida que ficaram lá - meus livros, meus brinquedos, porque sim, eu guardei meus brinquedos, minhas coisas, meus altares, minhas artes que eu que fiz lá. Só voltaria para isso, mas não voltaria para mais nada porque não tenho mais nada lá.
(1:39:00) P/1 - E o que é importante para você hoje?
R - Hoje? Nossa, [é] puxado. Acho que viver com dignidade, sentir afeto, receber e dar afeto para outras pessoas. Acho que o mais importante é ser eu mesma e ter a liberdade de ser eu mesma. Acho que essas são as coisas mais importantes para mim atualmente.
(1:39:42) P/1 - Você quer contar sobre o processo de hormonização que você está vivendo ou não?
R - Sim. É uma coisa meio louca porque como muitas pessoas trans durante a pandemia e com a minha família fora do país, eu não tinha mais ninguém para falar pessoalmente, aí tu tem que encarar a ti mesma. Quando tu te encara, começa a saber que tem questões que tu tem deixado para trás por muito tempo. Comecei a refletir sobre como eu queria que meu corpo fosse mais próximo à minha ideia do gênero que eu tenho na cabeça.
Foi em 2022 que eu falei: “Vou iniciar o processo de transição hormonal.” O processo começou em junho. O SUS... Eu vou agradecer sempre o SUS, mas o SUS e o Sampa Trans… Acho que o Sampa Trans é o programa mais transfóbico que existe, porque ao invés de pensar em pessoas trans como pessoas que requerem esse suporte, o que fazem é deixar o processo mais traumático e mais tenebroso.
Eu passei desde junho até novembro esperando para ter minha consulta. Mas bacana, comecei meu tratamento no [dia] dezesseis de novembro do ano passado, já estou [há] quase um ano. As mudanças têm acontecido muito mais rápido do que eu pensava; meu corpo tem mudado bastante, sobretudo nas partes que eu queria. Algumas partes que eu não queria aumentaram, mas está tudo certo, nada que uma mastectomia não resolva, mas está sendo legal, está sendo leve.
Só a semana passada que teve problemas porque novamente o SUS e o Sampa Trans fazem do processo um processo traumático e a médica optou por trocar minha medicação, então mudou o bloqueador que eu usava, aumentou a dosagem sem me consultar, o que causou que uma semana inteira estivesse com a cabeça toda louca, sem vontade de viver, não querendo atentar contra mim, mas sem vontade mesmo de fazer coisas, porque provavelmente minha testosterona tinha tido uma queda muito brusca. Felizmente, tenho um grupo de apoio com outras trans; eu perguntei para as monas e as monas falaram: “Baixa a dosagem.. Volta à dosagem que estava antes, mas continua tomando esse remédio.” Deu certo, agora as coisas estão legais.
É um processo gostoso, leve, mas tem as questões que são chatas do processo.
(1:43:00) P/1 - E quais são os seus sonhos?
R - Nossa, puxado! (risos) Eu acho que ainda estou escrevendo eles, mas os sonhos que eu tinha, a maioria eu já consegui. Performar junto com uma artista que eu admirava, já consegui. Performar num teatro como drag, já consegui. Escrever um livro e publicar, estou quase para conseguir. Ter uma obra minha exposta dentro de uma mostra, já consegui - inclusive foi semana passada, já está quase um mês no meu trabalho, inclusive, dentro da exposição.
Acho que estou nesse processo de construir novos sonhos, mas acho que entre eles está ter um espaço que eu possa chamar de meu, não que é onde eu moro. Não sei, é meu lar, mas é alugado, então não é meu.
Acho que conseguir escrever uma história com mais uma ou umas pessoas tem sido uma coisa puxada para mim também, ultimamente acho que estou refletindo mais porque estou mais velha. Entrar em Drag Race e ganhar, inclusive - entrar consigo, ganhar é outra coisa. Acho que esses são os sonhos que eu tenho escrito ultimamente, mas é só escrever novos sonhos e vamos ver o que dá.
(1:44:00) P/1 - Agora eu quero que você me conte sobre você ter estado num teatro como Dita.
R - Como eu te falei, eu estava... Eu falei, tenho muitas histórias, vai saindo, só.
Como eu te falei, em 2021, 2022, eu ia muito para os eventos das meninas, onde se apresentou essa drag que eu flertava, mas que deu [em] nada, como quase sempre tudo. Fui para a apresentação das drags, uma apresentação que eu estava querendo muito ver e eu quis render homenagem a duas das participantes que eu mais gostava. Fui montada, belíssima. A apresentadora da casa, que no caso era... Esqueci, peraí. A Delores, aí está. A velhice! (risos) A Delores olhou para mim, viu que estava bela e me falou se eu não queria participar do shows de calouros que tinham lá no teatro Alfredo Mesquita, que era um espaço tanto para pessoas que recém estavam começando como para artistas que querem um espaço para performar. Eu falei: “Topo.”
Eu fui ver o espetáculo. [Era] longe, mas fui, gostei. Aceitei o convite, preparei meu número, que foi a música I Am What I Am, parte do musical Gaiola das Loucas. Eu estava muito bela. Fiz meu show e aí foi quando eu cumpri esse meu sonho de me apresentar no teatro, porque foi um teatro que tinha pessoas na frente. As pessoas gostaram muito, aplaudiram muito.
Outros dos meus sonhos também foram cumpridos nesse mesmo dia, porque uma das minhas primeiras referências de drag, Alexia Twister, estava no mesmo camarim que eu, se maquiando e a gente conversando. Isso foi magnífico, então [foram] dois sonhos cumpridos no mesmo dia.
(1:47:00) P/1 - Qual é o legado que você deixa para o futuro?
R - Nossa. Eu acho que vou deixar uma persona interessante de estudar. Acho que o que eu tenho feito no meu país tem sido uma diferença absoluta, então acho que já tenho um legado lá, mas estou construindo meu legado aqui.
Acho que meu legado está vinculado à minha drag e está vinculado ao acervo. Eu acho que é isso, acho que meu legado está vinculado à história, porque a história, a própria magia também… Eu acho que é bem isso, acho que meu legado é sobre a magia de viver, a alegria de ser e a vontade de se atrever a fazer coisas. Acho que é esse meu legado.
(1:48:00) P/1 - A gente já está chegando ao fim, tenho só mais duas perguntas. Queria saber se eu não perguntei sobre alguma coisa que você queria contar ou se você quer deixar uma mensagem.
R - Eu acho que uma coisa que seria importante falar é a primeira vez que eu me montei, porque quando você me perguntou quando foi... Minha primeira montação como Dita mesmo foi em 2012, mas minha primeira montação foi quando eu tinha quatro anos. Eu peguei a bata de baño [roupão de banho] da minha mãe. Eu estava nua, peguei a bata de baño da minha mãe, amarrei no cinto. Coloquei a toalha de banho dela, enrolei na cabeça, subi nos saltos dela e comecei a girar e girar e dançar e dançar ao som de Marimar - não, perdão, Maria Mercedes, que na época estava passando na televisão. Essa foi minha primeira montação.
Acho que essa primeira montação é o que cria a minha vida, literalmente. De uma bichinha toda magrinha de quatro anos, [que] agora é uma bichona de trinta e poucos anos.
P/1 - (1:50:00) Como foi contar essa história hoje no Museu da Pessoa?
R - Foi gostoso, porque... Sim, uma coisa que eu gosto de fazer é falar sobre mim. Eu sou muito leonina mas eu acho que... Eu tenho muitas coisas que são legais. Acho que as pessoas podem aprender sobre a minha história porque minha vida tem recortes muito específicos, mas acho que tem questões que podem ter-nos atravessado a todas.
Acho que é gostoso conseguir falar sobre nós, mas acho que o mais importante é que as outras pessoas vão conseguir aprender sobre si mesmas a partir da minha história.
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