P/1 – Então, pra começar, eu queria que você se apresentasse, dizendo o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Sou Elismaura Pereira dos Santos, nasci em mil novecentos e setenta…
P/1 – Vai aí, vai tranquilo, pode repetir, fica à vontade.
R – Sou Elismaura Pereira dos Santos, nasci em 28 de outubro de 1974, fiz 47 anos esse ano…
P/1 – Em que cidade você nasceu?
R – Nasci na Bahia, lá na Santa Bárbara, lá do nordeste.
P/1 – E, Maura, qual é o nome dos seus pais?
R – No meu registro não tem nome de pai, só tem nome de mãe. A minha mãe chama Carmosina Pereira dos Santos.
P/1 – E o que ela fazia?
R – Minha mãe, não conheço muito bem, não, nós não tivemos muito convívio, eu e ela.
P/1 – Como foi isso, você foi pra outra família? Como que…
R – Como meu pai não me assumiu, minha mãe teve que sair da fazenda, então eu terminei ficando sem o nome paterno e fiquei só com o materno. E, como eu era muito pequena, acho que ela estava passando aperto na Bahia e a família a trouxe, pra ver se ela melhorava aqui em São Paulo, para depois ir lá me buscar.
P1 – Então, você ficou com seus avós?
R – Não, eu fiquei em casa de um parente lá dela, mas eu não sei quem era quem, não. Era muito pequena para saber.
P/1 – E você sabe um pouquinho da história da sua mãe?
R – Da minha mãe, muito pouco. Minha família esconde muito as coisas. Gente do passado esconde muita coisa, então você pega um toquinho dali, outro toquinho de cá. Então, não sei muito, não. A única coisa, a última conversa que teve dos meus mais velhos, foi que o meu pai tentou me matar com dois dias de nascida e ela teve que sair correndo comigo, nos braços. Só isso que eu sei, assim, por cima. Agora, se é real ou não, não sei.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Tenho, tenho sim. Nós somos quatro....
Continuar leituraP/1 – Então, pra começar, eu queria que você se apresentasse, dizendo o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Sou Elismaura Pereira dos Santos, nasci em mil novecentos e setenta…
P/1 – Vai aí, vai tranquilo, pode repetir, fica à vontade.
R – Sou Elismaura Pereira dos Santos, nasci em 28 de outubro de 1974, fiz 47 anos esse ano…
P/1 – Em que cidade você nasceu?
R – Nasci na Bahia, lá na Santa Bárbara, lá do nordeste.
P/1 – E, Maura, qual é o nome dos seus pais?
R – No meu registro não tem nome de pai, só tem nome de mãe. A minha mãe chama Carmosina Pereira dos Santos.
P/1 – E o que ela fazia?
R – Minha mãe, não conheço muito bem, não, nós não tivemos muito convívio, eu e ela.
P/1 – Como foi isso, você foi pra outra família? Como que…
R – Como meu pai não me assumiu, minha mãe teve que sair da fazenda, então eu terminei ficando sem o nome paterno e fiquei só com o materno. E, como eu era muito pequena, acho que ela estava passando aperto na Bahia e a família a trouxe, pra ver se ela melhorava aqui em São Paulo, para depois ir lá me buscar.
P1 – Então, você ficou com seus avós?
R – Não, eu fiquei em casa de um parente lá dela, mas eu não sei quem era quem, não. Era muito pequena para saber.
P/1 – E você sabe um pouquinho da história da sua mãe?
R – Da minha mãe, muito pouco. Minha família esconde muito as coisas. Gente do passado esconde muita coisa, então você pega um toquinho dali, outro toquinho de cá. Então, não sei muito, não. A única coisa, a última conversa que teve dos meus mais velhos, foi que o meu pai tentou me matar com dois dias de nascida e ela teve que sair correndo comigo, nos braços. Só isso que eu sei, assim, por cima. Agora, se é real ou não, não sei.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Tenho, tenho sim. Nós somos quatro. Somos eu, Márcia, Lourivan e Sérgio, somos quatro.
P/1 – E você é a do meio, a mais velha?
R – Sou a mais velha, sou a primeira da minha mãe. Eu só soube que eu tinha uma mãe, eu tinha sete anos. Até sete anos eu não sabia que eu tinha uma mãe, (risos) ninguém chegou e falou nada. Estava lá, na Bahia, com o pessoal.
P/1 – Que pessoal?
R – Eu a chamava de tia. Agora, se ela era tia mesmo, eu não sei. A chamava de tia. A filha dela, que era minha prima, eu acabava chamando de tia também. Então, nem sei quem era direito. (risos) E também minha mãe não falou se era minha tia mesmo, se era por parte de pai, se era por parte de mãe, ela não me falou nada, não.
P/1 – E os seus irmãos moravam com você?
R – Eu vim conhecer meus irmãos quando minha mãe me trouxe, da Bahia pra cá, ela já estava com uma das filhas. Uma das irmãs morava lá na Bahia comigo, Lourivan morava já comigo. É filha de outro homem, só tive uma convivência com ela até os sete. Quando minha mãe me trouxe pra cá, nós perdemos o laço de uma com a outra. Mas eu cheguei aqui, já tinha outra irmã. (risos)
P/1 – E como você descobriu que tinha mãe? Como foi esse encontro?
R – Então, porque chegou uma tia minha, não é tia, é prima de quarto grau, mas como antes, no passado, todo mundo é tio. Então, ela disse que tinha recebido dinheiro pra ir me buscar de lá e tinha que me trazer pra São Paulo, de qualquer jeito, eu querendo ou não. Eu não queria vir, (risos) não queria. Eu me lembro que eu fiz até greve de fome. (risos)
P/1 – Jura?
R – Acho que eu consegui fazer greve de fome oito meses. (risos)
P/1 – Por que você não queria vir?
R – Eu não queria me separar da família em que eu estava. A família em que eu estava era como se fossem os meus pais. Então, quando você tira uma pessoa de uma casa, você está tirando também o quê? São os pais das pessoas. Ali eu os via como meus pais. Estava acostumada já com aquele ritmo, já estava acostumada com aquela vida. Então, sair de lá, pra me adaptar em outra vida, não deu, não deu certo, não deu certo mesmo. Fiquei muito pouco tempo morando na casa da minha mãe.
P/1 – E como era a vida, em Santa Bárbara? Que memórias você tem dessa época?
R1 – Bastante, porque eu tenho bastante lembrança de lá. Eu tenho lembrança de eu estar amarrando o sapo, jogando o sapo na árvore. (risos) A minha tia me levando pra escola, porque ela era professora, acordava cedo, eu ia de chinelinho para a escola. Eu me lembro de muita coisa. Eu me lembro dos milhos, porque a gente pegava aqueles negócios do milho lá, pra fazer boneca. Eu pegava as frutas, fazia bichinhos. Me lembro, mais nova ainda, de atentar a vaca lá do vizinho e a vaca correr atrás de mim. Eu me lembro de um moço que pegou na minha mão e me jogou na garupa do cavalo dele, ele me fez prometer que nunca mais eu ia mexer com aquela vaca. Ele falou: “Hoje eu tô aqui pra te ajudar, amanhã eu não vou estar”. Aí eu falei pra ele: “Mas a vaca nunca me pegou”. Ela ia lá no arame. (risos) Porque eu passava rápido e a vaca metia a cara no arame. (risos) Mas ela corria, ela corria. (risos) Imagina um bicho correndo atrás de uma ‘pivetinha’ pequenininha. (risos) Aí ele me fez prometer e nunca mais eu fui mexer nos gados de lá. Eu lembro de ver um moço sentado lá na cadeira de balanço, balançando assim, vendo eu correr e a bicha correndo atrás de mim. Mas eu nunca deixei o bicho me pegar. (risos) Aí, esse dia, meu tio me pegou assim, pelo braço assim, jogou assim na garupa do cavalo dele e saiu galopando. (risos) Eu me lembro que eu o chamava de príncipe de cavalo branco, porque ele tinha um cavalo branco, né? Ele usava muito aquele cavalo branco, então eu chamava, com aquele chapéu, eu falava que ele era o meu príncipe de cavalo branco. (risos) Também eu não sei quem era, se ele morreu também, eu não soube como morreu. Eu só sei que a imagem dele sumiu da minha memória. Eu me lembro dos detalhes, mas ele, mais, eu não consigo lembrar.
P/1 – E como era sua rotina, nessa época?
R – Brincar no terreiro. O tempo todo brincando lá no terreiro. Só tinha eu de criança lá, então, meus brinquedos eram os matos, eram as frutas, era o meu único brinquedo. Não tinha outro brinquedo lá, pra eu brincar.
P/1 – E a imaginação.
R – E a imaginação, eu usava muito a imaginação pra fazer as coisas (risos). Eu lembro que alguém falava assim: “Oh, o sapo vai mijar nos seus olhos, você vai ficar cega” “Eu fecho o olho”. (risos) Porque não tinha o que perder. As pessoas eram adultas, né? Lá a criança não pode ficar no meio de adulto. Então, eu falei: “Vou ficar no terreiro”. Só quando alguém ia me chamar, que eu entrava pra dentro de casa.
P/1 – E esses seus tios, que eram considerados seus pais, como era a sua relação com eles?
R – Era muito boa, não tenho nada de reclamar. Enquanto eu estava lá, não tive nada de reclamar. Muito bom, muito bom, senti muita falta deles, senti muita. Até eu desacostumar com eles, doeu muito, mas doeu muito. Eu sabia que a pessoa que tinha buscado era minha mãe, mas doeu muito ficar longe deles.
P/1 – Você lembra da despedida?
R – Lembro, lembro sim. Foi no mesmo ano que Bernadete ia casar e ela disse que eu ia ser a dama de honra dela, que eu ia entregar a aliança. Eu me lembro de muita coisa de lá. Parece que um ser tão pequenininho, mas eu consigo me lembrar bastante coisa, o tempo passando. Aí, quando tive problema com minha mãe, minha mãe me mandou de volta, mas não me mandou pra casa dela, me mandou pra outra casa. Lá não era a mesma coisa. Mas eu já estava mais tranquila, porque eu já estava na minha terra, perto da minha irmã. Só quando eu voltei, minha irmã não queria mais falar comigo. Doeu muito, doeu muito a rejeição da minha irmã. Porque eu, quando eu tinha, não sei que idade que eu tinha, eu tinha prometido pra minha irmã, como era só nós duas, uma ia cuidar da outra e eu, por ser mais velha, eu era mais responsável por ela, né? E eu acho que ela se sentiu traída, porque a família que eu tinha, virava e mexia me deixava lá, brincando com ela. Eu me lembro que tinha um bar, que era acho que do pai dela, aí ela me levava até o bar, nós pegávamos doces, voltávamos pra casa, brincávamos com as motocas dela, porque eu não tinha motoca, quem tinha era minha irmã. Minha irmã estava na cidade de Lamarão e eu estava lá no meio dos matos. Mas senti falta muito, também, da minha irmã. E eu voltei, uma semana antes de fazer quinze anos, minha mãe me levou pra Bahia. Aí, outra tia minha me trouxe. Ela me trouxe, porque ela disse que precisava de ajuda minha. Que era pra eu vir pra ajudá-la, que ela ia ter uma filha e precisava de alguém pra olhar as crianças dela, pra ela continuar trabalhando. Foi até por isso que eu voltei, também. E elas não me queriam mais lá, porque eu fui atrevida, mexi com meu pai, onde era pra eu não mexer com ele, entendeu? Uma pessoa da família, que eu não posso dizer o nome, falou que, se o meu pai estivesse na frente do padre, eu poderia mexer com ele, que ele não faria nada comigo. Aí eu falei assim: “E como eu vou saber que ele é o meu pai?” “É a última pessoa que vai falar com o padre, sem ninguém estar por perto, ninguém vai chegar perto, porque todo mundo respeita teu pai”. Eu falei: “Ah, tá. Muito obrigado”; “Você nunca vai dizer que fui eu que falei, você nunca vai dizer que fui eu. Se você falar, eu mato sua cachorra”. Eu não falei, ele matou minha cachorra. Como agora, eu não tô falando quem foi, mesmo ele tendo matado a minha cachorra, o segredo dele ficou guardado. Eu não abro a boca que foi ele que me contou (choro). Até a cachorra também. O ideal seria nem um, nem outro. Mas um dos dois, infelizmente, pagou muito caro pela minha ousadia: custou a vida da minha cachorra. Aí o pessoal também não queria que eu ficasse lá, porque eu poderia ser a próxima pessoa a morrer também e a pessoa que me contou também. Mas eu tive o gosto de chegar pra ele: “Você sabe quem sou eu? Você tem certeza? Você não sabe quem sou eu?” Eu tinha feito quinze anos, eu era atrevida, danada. “Olha, que o senhor me conhece muito, muito bem!” “Eu nunca te vi nem mais preta, nem mais branca, não mesmo” “Então, vou falar pro senhor quem sou eu. Sou Elismaura, filha de Carmosa com você”. Pensa meu pai! Quando eu olhei assim pro lado, pro outro, não tinha uma alma viva. Quem tinha perna, corria. Até as mais gordinhas. Era engraçado que as gordinhas corriam assim, parecia que estavam pulando. (risos) Era como cada um queria se salvar da própria vida. Aí eu pensei: “Meu, que monstro, esse cara! Será que esse cara merece mesmo que eu seja filha dele, esse monstro? Tem terra pra dedéu lá, enquanto eu não tenho nada aqui. Eu prefiro não ter nada, do que ter coisa desse monstro. O monstro que tentou matar uma criança com dois dias de nascida. O monstro que rejeita a filha a todo custo, pronto para matar qualquer um. Eu tenho culpa do que eu fiz? Não. Eu não tenho culpa”. Eu só sei que eu sou filha de patrão com empregada. Até antes dos quinze anos, eu pensei que ele era peãozinho de obra, da terra. Nunca me passou na cabeça que o meu pai era dono de fazenda. Até os meus 23 anos, eu nunca pensei que ele era o meu pai. Mesmo quando me mostraram quem era ele, eu pensei que era peão. Não imaginava que ele era um Costa e Costa, naquela terra, tem poder. Quem descobriu foi uma advogada, quando eu precisei dos meus documentos, para registrar o Elitom e a advogada mexeu lá os palitinhos, umas das estrelas que tinha no meu registro, as estrelas da fazenda. Aí, a pessoa pegou e falou: “Maura, essas estrelas que estão no seu registro, quer dizer que você é herdeira dessa terra”. Aí, a pessoa ficou com raiva de mim, quando eu não abri processo para pegar o que é meu de direito. Não podia, minha irmã está lá, ele podia matar a minha irmã. Era o que ele fazia, pra eu não chegar perto. Mas uma vida seria partida por merda de dinheiro, por porcaria de dinheiro? Que leve dentro do caixão. Cresci sem esse dinheiro, criei meus filhos sem esse dinheiro e pretendo criar meus netos também sem esse dinheiro.
P/1 – Você queria falar com ele? Você precisava falar com ele?
R – Com quem?
P/1 – Com seu pai.
R – Eu acho que eu tinha de falar, eu já falei com quinze anos.
P/1 – Então, mas com quinze, você precisava falar?
R – Precisava, precisava desabafar aquilo que estava aqui, preso. Eu precisava mostrar pra aquele monstro que ele tinha perdido, quem perdeu mais foi ele, que eu sou uma grande mulher. Ele não sabia a filha maravilhosa que ele podia ter do lado dele, até por eu não ser macho, por eu ser fêmea, podia ter mostrado pra ele como uma fêmea tem tanta capacidade que um macho. As más línguas dizem que eu sou a única filha mulher dele, que o resto é tudo macho. Agora, se é verdade, também não procurei mais saber. Me isolei dele, fui viver a minha vida. E estou aí, sem precisar nada dele.
P1 – E, Maura, como foi a sua vinda pra cá? O que você se lembra dessa época?
R – Da primeira vez que eu vim?
P/1 – Isso.
R – Foi muito triste, foi muito doloroso, esquecer meu laço, trocar meu laço, pra entrar laço desconhecido. Nem a minha mãe eu aceitei, rejeitei também. Com a Márcia, já fiquei meio assim. Aí mamãe logo engravidou, veio meu irmão. Aí eu falei: “Agora sou obrigada a ficar quietinha aqui, que agora mamãe precisa de mim”. Aí eu começo a ter problema com meu padrasto. Fui aguentando, aguentando, até meus nove anos e terminei saindo de casa de mãe. Não estava aguentando mais, saí. Não contei nada pra mãe. Até hoje eu não conto nada pra mãe. E minha mãe, também, eu vejo de vez em nunca. Mãe, eu só a vejo quando terminava de ganhar o nenê, que ela vinha conhecer quem era o neto que eu tinha dado pra ela. (risos). Minha mãe criou minha primeira filha, a Érica Luiza, porque eu estava na rua, infelizmente não tenho laço. O que eu sinto pela minha mãe, acho que é o que a Érica deve sentir por mim e eu tenho que respeitar, porque não fui eu que criei e ela tem que ter amor pela pessoa que a criou. A Érica sabe que eu sou a mãe dela, sou mãe dela, não, eu sou a mulher que deu a vida a ela, porque mãe é aquela cria, não aquela que dá a vida. Não foi por eu querer, jogaram um ‘b.o.’ em cima de mim e eu terminei perdendo a guarda de Érica Luiza. Se eu tivesse caminhado com a minha cabeça, porque eu estava caminhando, não tinha perdido a guarda da Érica. Com seis meses, eu me internei no Amparo Maternal, para ter a Érica. No Amparo Maternal, hospital de mãe solteira. Quando eu ganhei a Érica, lá no hospital, eu pedi pra assistente social arrumar um emprego que a aceitasse. O meu erro foi que eu estava no emprego e a patroa disse que eu tinha que passear, eu não sabia pra onde eu ia. Eu sabendo que, se eu fosse pra casa da minha tia, ia ter problema com a minha mãe e eu não queria ter problema com a minha mãe. (risos) E acabei indo pra casa de uma amiga minha, aí eu tive problema, porque essa mulher encheu minha cabeça: que eu estava de quarentena, tem que ficar de resguardo, que não podia trabalhar, blablablá. Eu fui lá e pedi a conta do emprego. Eu só tinha dezoito anos, o que o mais velho falasse, eu ia acreditar. Fui morar na casa dessa bruxa. Maldita hora. Foi na casa dela que eu perdi a guarda da minha filha. Se eu tivesse feito meu instinto, que foi até certo: pedir emprego, arrumar emprego, com minha nenê, estava junto com a minha nenê, estava empregada, tinha um teto pra minha filha, né? E aí eu fui ouvir conselhos dos outros, terminei perdendo a guarda da minha filha, infelizmente. Eu agradeço a Deus que foi minha mãe que a criou. Com certos limites, eu não podia ir na casa dela, não podia fazer um monte de coisa. Aceitei. O importante, pra mim, era ela pegar a criança, lá no fórum. Além de buscar a menina no fórum, pelo menos sabia que a menina estava no meio da gente, estava ao lado da gente, um dia eu podia vê-la e um dia eu a vi, graças a Deus!
P/1 – Como foi esse dia?
R – Ó, eu sempre via a Érica escondida, eu sempre via a Érica escondida, eu sabia dos passos de minha mãe. Sabia o horário em que minha mãe estava trabalhando, era só ficar atrás dos carros. Que a minha mãe era feirante, então, às vezes, ela levava a menina. Quando ela levava, dava tempo de eu ver, (risos) mas quando ela não levava, eu saía triste. Imagina você amar uma pessoa e poder vê-la só com os olhos? Eu a via só com os olhos. Eu me lembro que tinha dois amiguinhos que eu olhava. Um deles acho que tinha oito anos: “Tia Maura, vamos lá, vamos raptar a menina, é sua filha!” Falei: “Não é assim que funciona. (risos) Vamos embora, vai, você já está pensando besteira demais pra tua idade”. (risos) E ensinar esse menino que não era assim que funcionava, né, foi complicado. Engraçado, que ele tinha uma irmã, que lembrava muito a filha. E a irmã dele tinha a mesma idade da minha filha e ali eu me consolava, o sofrimento da Érica, por essa menina. Até que o tempo foi passando e aí eu terminei engravidando do Elitom, começando uma nova história de vida.
P/1 – Antes, eu queria saber, você chegou a conversar com ela?
R – Com quem?
P/1 – Com a sua filha, com a Érica.
R – Sim, eu fui conversar, consegui conversar com a Érica. Eu tinha visto a Érica com um ano e pouco, com permissão da minha mãe, porque eu tentei arrumar emprego e esse emprego era cuidadora de uma pessoa mal de Alzheimer. Mas a mulher não tinha dinheiro pra me pagar: “Vou ficar cuidando da senhora só por troca de comida?” Até aguentei muito, eu aguentei ainda oito meses, mas eu falei: “Puta, eu tô comendo, e minha filha? Eu tenho que dar pra minha filha, não é pra mim”. Então, toda vez que eu ia comer, a mulher pedia: “Vem almoçar”. Aí, um dia, eu cheguei pra ela e falei assim: “Dona, eu gosto muito de ficar aqui, eu gosto muito de cuidar da tua mãe, mas eu preciso de dinheiro, eu tenho uma filha”. Eu me lembro que ela juntou um monte de coisa velha, de nenê e deu pra mim. Eu fiquei muito chateada, porque não era aquilo que eu queria dar. Mas podia fazer o quê? Não tinha nada, sem ser aquilo. Aí eu mandei mensagem pra minha tia, dizendo: “Fala pra minha mãe que eu tenho umas coisas pra Érica, se ela deixa eu dar. Também vai ser o único jeito de ver a Érica, né?” Aí mandei umas coisinhas para ela, que a mulher tinha dado. Falei: “Mãe, eu tô trabalhando assim e assado, mas foi até a minha patroa que mandou isso daí pra Érica, não foi nem eu que comprei”. Não era aquilo, eu queria chegar na casa da minha mãe: “Toma, mãe, isso aí é da minha filha. Faça o que a senhora achar que a menina estiver precisando”. (choro) Queria chegar todo mês e dar o dinheiro dela, não queria ter deixado toda a bomba pra minha mãe, porque a responsabilidade era minha. Mas, infelizmente, eu falhei. (choro) Aí, quando eu saí da casa dessa mulher, eu saí tão revoltada, com outra cabeça, com raiva de mim, com raiva de tudo (choro) que tinha acontecido. Me sentia tão incapaz, tão incapaz. Eu já tinha dezenove anos, mas aí o negócio apertou. Já estava no cigarro, comecei a fumar, a Érica, me sentia incapaz, aí eu comecei a beber, com a minha patroa. Não usei coisa pesada, foi só baseado. Eu dou graças a Deus de ter engravidado dele, porque aí a bebida e o baseado eu cortei, pra não fazer mal a ele, logo quando eu descobri, percebi, eu falei: “Tenho que parar com isso, vai fazer mal à criança, a criança não tem culpa dos meus problemas”. Aí veio ele, pra me salvar dos problemas. E fiquei bem aliviada.
P/1 – Posso voltar um pouquinho?
R – Pode.
P/1 – Se você quiser contar um pouquinho pra gente como foi essa volta pra Bahia e depois voltar para São Paulo, o que aconteceu…
R – Isso aí foi antes de eu ter a Érica. Quando eu tive a Érica, já estava com dezoito. Eu já tinha ido pra Febem, com nove anos. Era pra eu ir pra orfanato. Inventei uma história, que os meus pais tinham morrido num acidente de carro. Na época, tinha um Fusca que caiu na ribanceira e morreu todo mundo. E eu falei: “Não, eu consegui sair pela janela, fiquei zanzando por lá, até chegar por aqui”. E batia o tempo, entendeu? Aí, só pra moça que me deixou dormir na casa dela, que eu falei a verdade, pra ela pra me arrumar emprego. Falei: “Não, fugi de casa, mas eu não quero contar o que é, não, quero reservar, porque eu não quero polícia na casa minha mãe, não”. Aí a moça: “Pra quem você ligou?” Falei: “Pra uma amiga da escola, uma amiga que eu confio. Mas eu não vou falar muito pra ela, não, porque o pai dela é policial. Ela me jurou que tudo o que aconteceu, ela não ia falar pro pai dela, que o assunto ia morrer entre eu e ela”. E eu prometi pra ela todo dia ligar, pra ela ficar bem, sem precisar contar pro pai dela o que aconteceu. Aí eu fui pra casa dessa senhora, passei acho que um mês na casa dessa senhora. Aí essa senhora foi na delegacia, pra ver se podia ficar comigo, porque eu era ‘de menor’. Aí a polícia falou que não. Se eu não me engano, era na Delegacia da Mulher da Praça da Sé. Eu tinha nove anos. E essa mulher morava na Praça da Árvore. E aí, ela pegou e acabou me levando para a delegacia. Eu respondi todas as perguntas, eu falei pro delegado isso daí e pensei: “Tá bom, agora eles vão bater na casa da minha mãe. E agora?” Aí eu lembrei do histórico lá, o cara falou assim: “Até tal dia, se ninguém procurar por ela, aí a gente a manda pro orfanato”. Aí, a perua de recolhimento dos menores passou, era já de noite e o orfanato tem hora pra fechar. Aí acabei indo pra Febem, fiquei lá seis meses dentro da Febem. (risos) Minha mãe me encontrou de novo. Uma vez a assistente social me chamou e perguntou assim: “Você conhece aquela mulher?” (risos) Através do vidro, né? Eu neguei, disse que eu não conhecia, não. Aí eu falei pro juiz, que só voltaria pra casa da minha mãe, se ele me deixasse trabalhar, porque eu queria ser independente, eu queria ser dona dos meus atos.
P/1 – Você não queria voltar para casa?
R – A casa não era da minha mãe, a casa era do meu padrasto, não da minha mãe. Tem um ditado: “Quando um não quer, dois não brigam” e eu não queria ficar com ele. Na casa dele, não, de favor, não. Aí eu terminei fazendo as minhas escolhas, tentando me virar, pra me sustentar.
P/1 – Como foram esses seis meses na Febem?
R – Foi ruim no primeiro dia, né? Mas depois foi tranquilo. No dia que eles também descobriram que eu estava lá por engano foi terrível.
P/1 – Por que foi ruim no primeiro dia?
R – Ah, no primeiro dia, porque você é novata, então eles já têm uma máfia lá dentro. Tem uma que é seu pai, a outra é sua mãe, então você tem que enfrentar de unhas e dentes, pra você não ser dependente delas. Aí eu já enfrentei logo, cortei o mal pela raiz logo, falei: “Aqui dentro ninguém vai mandar em mim, não. Se tiver que morrer, vai morrer” , “O que você fez?” “Não é da tua conta o que eu fiz e o que eu deixei de fazer, fica na tua, que eu tô na minha. Eu não vou embaçar na tua, você não embaça na minha”, “É então, a gente tá ajeitando aí de fugir” ,“Vai, foge, tô fora. Cada macaco no seu galho”.
P/1 – Quando descobriram que você estava lá por engano?
R – Já fazia seis meses, porque a minha mãe me encontrou lá. Então, eles já foram mexendo lá os palitos, vendo os papéis…
P/1 – Como foi esse dia?
R – Aí, eles me afastaram das presas. Então, comecei a ter um lugar melhor. Aí, as presas ficaram revoltadas comigo. No outro dia, a menina estava me beliscando, me beliscava na hora de dormir, na hora que eu levantava, que eu estava tomando banho. Aí eu falei: “Meu, até quando eu vou ficar de castigo, sem poder brincar, sem poder…”. As meninas brincando e eu ali, de castigo. “Mas você tem…” “Mas que merda de televisão, não tô gostando de ficar presa aqui, não. Ô, até quando vai durar esse castigo?” As meninas: “Tá nada, não” “Eu quero saber o que foi que eu fiz, pra vocês me meterem um castigo louco desse”. Ela: “Ó, vou falar para a diretora lá e depois eu vejo, vai pro quarto, você vai lá pro quartinho”. Falei: “Ah, de novo, ficar lá sentada, o dia todo, com a televisão?” Aí as meninas começaram a fazer baixaria lá, pra me liberar do castigo. (risos) Aí a madre falou: “Você sabe que você não é igual ela” “Agora eu sou, vocês não me jogaram aqui dentro? Me jogaram aqui dentro, virei, filha. Agora elas vão ficar brincando e eu aqui, chupando dedo?” “Tá, a gente vai te liberar pra brincar, mas vamos ficar de olho. Só elas não souberem, se você ficar de boca fechada, tudo quieto, tudo certo. Você consegue?” “Se eu tô conseguindo sair do castigo, ô, se eu não consigo outras coisas!”. Aí, fizeram assim: “Ufa!” As meninas, nossa: “Hoje nós vamos brincar”. Aí tinha uma galera que era da copa: “Hoje a gente faz a melhor comida!” Aí, mais quatro funcionárias falaram: “Não, podem brincar com ela, que a gente hoje vai cuidar da cozinha” “Tô livre!”. Tiraram a roupa, nossa… olha, a gente era tudo barro, nós rolamos pelo barro, tinha até nos cabelos. Depois, pra tomar banho, limpar, as carcereiras falaram, no outro dia: “Nossa, ontem vocês se divertiram, né? Vocês fizeram a festa! Gente, pra tirar o barro da cabeça de vocês…”. (risos). Aí a diretora veio: “Nossa, me falaram que vocês brincaram tanto, que brincaram tanto, que caísse uma bomba aqui, vocês nem acordavam” e a gente ria. Aí ela falou de prêmio, que todo mundo ia ganhar pasta e também, aí veio aquele kit pra gente. Falei: “Oba!” Aí ela: “Quer ficar lá de castigo mais não?” Falei: “Sai fora!” (risos) Aí ela sabia que eu tinha que sair e eu não podia me despedir delas, porque elas não podiam saber que eu não era marginal, que eu era de outra plataforma. E eu preferi sair, saí na frente delas como marginal. (risos) Coisa de doido, né? Escolhas difíceis.
P/1 – E aí, isso aí, como que foi esse novo momento, fora da Febem?
R – Fora da Febem, minha mãe já tinha falado com uma mulher, minha mãe já disse: “Tá, não vou te levar lá pra casa não, vou te deixar na casa da minha comadre, tá bom?” Falei: “Tá bom”. A comadre dela queria me tratar como bebê, eu não podia fazer isso, não podia fazer aquilo. Aí eu cheguei na mulher: “Você pode me deixar trabalhar? Eu não quero me sentir inútil, eu quero pagar o prato que eu tô comendo”. Ela: “Ah, Maura, a mulher ali estava perguntando se você não quer cuidar dos nenês dela, terminou de nascer”, eram gêmeos. Eu falei: “Ah, pagando, está ótimo. Pode falar pra minha mãe que eu aceito trabalhar”. E, com nove anos e meio, fui trabalhar de babá, na casa da mulher (risos). Cheguei lá, acho que o nenê tinha seis ou sete meses, um negócio assim. Aí eu fiquei cuidando e o marido dela exigiu que ela me pusesse na escola. Eu ia pra escola, só que a mulher viajava muito pra escola, viajava muito. O marido dela mandava eu ir pra escola, eu falava pra ele que não podia, porque tinha que olhar as crianças. Aí o marido dela: “Não, eu fico nesse horário da escola com as crianças e você vai trabalhar”. Nisso, a cunhada dela enchia a cabeça dela com coisas que nem ela sabia que estavam acontecendo. Se eu tô na casa de uma pessoa, eu tenho que obedecer tanto a esposa, quanto o marido dela, porque os dois são os pagadores do meu salário, né? Ela não está em casa, eu tenho que obedecer quem? O marido dela. Eu falava que ela era muito irresponsável. Como uma pessoa viaja, deixa uma criança de dez anos olhando duas bebês de um ano, marido, cunhado, tudo na mesma casa. Eu a achava muito irresponsável, muito irresponsável, mas quem era eu pra julgar. Eu só balançava a cabeça , nem tampouco as crianças, só dormiam comigo. Aí, de tanto ela viajar pra lá e a cunhada fazer coisas, ela terminou me levando pra casa da minha mãe, mas eu fiquei pouco tempo ali, eu acho que eu não fiquei nem um mês e já arrumei outro emprego. Aí, o outro emprego era muito legal, eu me divertia muito com a senhora lá. A senhora estava me ensinando a limpar e falava assim: “Tá saindo chocolate, ó o chocolate descendo”. (risos) Aí foi por isso que eu parei de tomar Nescau. (risos) Tinha o Vítor e tinha um outro menino que eu não consigo lembrar, o ruim era linha de trem. Eu sempre tinha que estar negociando com eles, pra eles não irem pra linha de trem. “Ah, eu vou levar vocês lá pra tua mãe, vem cá. Deixa eu fazer aqui, que eu já levo”. E olha que eu não tinha muita idade, assim, acima das duas crianças. Era quase da minha idade, eu não sei se um tinha seis e o outro tinha oito, ou era sete, seis, sabe, pra uma criança de dez, que ia fazer onze. E, assim, veio a Vera, falar com minha mãe que os filhos dela estavam doentes, porque o médico pediatra falou que estavam sentindo minha falta, que, ou ela me levava de volta, ou as crianças iam ter problema, e aí eu tive que pedir a conta do serviço que eu estava. Eu falei: “Ó, mãe, eu posso pedir a conta, mas se ela levantar a mão pra mim, eu vou bater nela”. Minha mãe riu, porque eu era um toquinho desse tamanho e a mulher era gigante. “Mãe, a senhora não me conhece, não, mãe! Se ela botar a mão em mim, eu vou bater nela na frente de cunhado, de irmão, de genro, do marido e dos filhos. Ela que pense em pôr a mão em mim”. Da outra vez ela me bateu, eu fiquei quieta, porque o marido dela estava fazendo negócio lá, aí minha mãe falou: “Maura, dessa vez, quem vai quebrá-la, sou eu, porque ela está enchendo o saco já um mês pra você voltar”. Não teve outra: pedi a conta no serviço, fui pra casa dela. Falei: “Ó, arruma alguém pra ficar com teus filhos, vou ficar aqui até quando, porque minha mãe está pedindo pra eu sair, a outra patroa que está enchendo o saco dela, aquela que me batia, mais por causa da minha mãe que eu tô pedindo as contas”. Não teve outra. A mulher arrumou outra, a mãe dela chorou (risos) que eu ia embora, chorava. Aí eu peguei e fui, aí cheguei lá, trabalhando, a mulher falou: “Tá bom, pode ir, você não tem aula?” “Tenho” “Não adianta eu estar aqui, fazendo massa e você passando pano. Deixa eu terminar, depois você limpa”. O marido dela se irritou comigo por causa da escola: “Mas e as crianças?” “Vai pra escola”. Aí eu fui. Nisso, chegou a cunhada, chegou de viagem, foi falar umas coisas. Eu pensei: “É hoje, é hoje que essa vaca vai querer pôr a mão em mim e é hoje que ela dança”. Aí o marido: “O que você está falando, Maura?” “Nada não, ‘senhor”, nada não”. (risos) “O coro vai dançar?” Eu falei: “É, o couro vai dançar”. Aí, estamos lá, sentadas, ela veio saindo lá, toda doida, da fofoquinha que a cunhada fez e me bateu. Quando ela deu, dei um pulo, tive que dar um pulo, ‘catei’ o cabelo dela pela mão, puxei ela até a minha altura e dei na cara dela: “É gostoso bater na filha dos outros?” Toma. “É gostoso bater na filha dos outros?”, “Ah, meus filhos podem morrer, mas não te quero mais na minha casa, não”; “Isso aí é pra você aprender a não pôr a mão na filha de ninguém. Você acha que eu sou pequenininha, eu sou obrigada a ficar apanhando de você?”; “Manoel!”, pega o facão (risos). Chega o marido dela: “Toma, toma!” O irmão dela só abriu os olhos deste tamanho. E eu falei: “Eu não vou te pegar, sua vaca linguaruda, porque você está dentro da tua casa. Minha família me ensinou a ter honestidade, dignidade, respeitar os outros e a sua não tem isso não, tá? Olha, ‘seu’ Manoel, toda essa encrenca que acontece comigo e com a sua esposa, essa linguaruda aí, foi porque o senhor me mandou ir pra escola e essa linguaruda aí vem contar pra ela que eu deixei as crianças abandonadas”. Ele: “E eu estava fazendo o que lá?” Aí a mulher dele: “Não quero saber de nada, não quero saber de nada”. Nervosa. “Amanhã cedo te levo pra casa da tua mãe”. Falei: “Um favor que você me faz, eu tenho capacidade de arrumar outro emprego!” Aí ela me levou de novo pra casa da minha mãe, mas aí eu não consegui arrumar outro emprego. E os problemas na casa da minha mãe foram crescendo, foram crescendo, até que minha mãe me levou pra Bahia. Eu estava com quinze anos, ia fazer, eu fiz quinze na Bahia. Aí, de presente de aniversário, fui descobrir quem era o meu pai. (risos) Em janeiro, eu voltei, porque vim ajudar outra prima minha, que hoje é falecida. E aí, fiquei aqui até hoje, não voltei mais.
P/1 – Nunca mais?
R – Nunca mais eu voltei lá.
P/1 – Você gostaria de voltar?
R – Até que não. A única pessoa lá, que eu sinto falta, sentia falta, era a moça que tinha um pêlo aqui, não sei quem era. E eu não sei nem se ela está viva. Gostaria de ver a moça, a senhora que salvou a minha vida, que seria a minha avó, a mãe do meu pai, que me puxou pelas pernas, antes dele me matar. Que também não está mais entre nós. Então, a única pessoa que sobrou lá foi minha irmã. Mas qual o laço que eu e minha irmã temos? Nenhum. É um pouco tenso, complicado. (risos)
P/1 – Maura, como foi a sua infância, pra você?
R1 – Conturbada, (risos) conturbada. Tive que começar a ser ‘de maior’ antes do tempo. Acho que, com sete anos, resolvi ser dona do meu nariz. (risos) Mas não me arrependo, não, senão não seria o ser humano que sou hoje.
P/1 – Você sentiu falta de alguma coisa?
R – Da minha irmã. Eu senti muito a falta da minha irmã. Eu gostava muito da minha irmã, muito. Era Deus no céu e minha irmã aqui na terra, eu amo muito, muito. Sou muito família, felizmente eu sou muito família. Eu sou aquela que gosta do aconchego da família. A família, pra mim, é tudo. Mesmo com defeitos ou não, mas é tudo. Então, a única coisa que eu senti falta foi disso, da minha irmã, mais da minha irmã.
P/1 – E aí, aqui em São Paulo…
R – Minha filha. Aqui em São Paulo, foi minha filha. Ficar sem minha filha doeu muito, muito.
P/1 – E como foi ter seu filho?
R – Oi?
P/1 – Como que foi ter seu filho?
R – Achei normal. Não foi tão esperado como a Érica. Da Érica, o cara tinha pedido minha mão em noivado, na casa dessa prima aí, que hoje não está mais conosco. E ela sabia que nós estávamos namorando. E no dia que ele falou que, se eu ficasse grávida, não ia assumir a menina, eu joguei a aliança na cara dele e eu não sabia que estava grávida. Quando eu descobri também, não fui atrás não, não voltei atrás, não. Sou daquele tipo: quem volta atrás é caranguejo, eu não sou caranguejo, tem que ir em frente. Seja o que der lá na frente, vai em frente. Se é um muro, derruba e passa.
P/1 – Então você teve a gravidez toda sozinha?
R – Sozinha. Quase todos os meus filhos foram sozinha. Quase os meus filhos todinhos, foi sozinha. Ó, da Érica, foi sozinha. Do Elitom, foi no meio da rua sozinha e com Deus. Quase todo mundo foi sozinha. Agora, do Elton, da Esthefany, Elisabeth e Esthefania, já foram nesta casa. Mas o resto foi tudo sozinha. Total. Debaixo do teto, mas estava sozinha com eles. A avó deles, por parte de pai, aparecia de vez em quando, as tias também, mas não moravam comigo. Vinham, davam aquela força, iam pra rua, seguiam esposas e voltavam pra vila. Então, eu terminava ficando bastante tempo sozinha.
P1 – O Elton é o filho mais velho, o homem?
R – Elitom. É o deficiente, com paralisia cerebral.
P/1 – Como que foi tê-lo?
R – Do Elitom, eu estava olhando carro no domingo, senti umas dores esquisitas, e terminei pegando o ônibus e indo para o Amparo Maternal. Aí, chegou lá, eu soube que eu tive um descolamento de placenta e o sufocou. Faltou oxigênio no cérebro. Então, meu filho lindo, maravilhoso, que me ajuda, me entende, está o dia todo na minha cola. (risos) Por causa dele, estava aí. É assim, ele. Sempre aconchegante.
P/1 – Como foi se tornar mãe dele?
R – Oi?
P/1 – Como foi se tornar mãe dele? Como é a relação de vocês?
R – O Elitom, eu não sabia que ele era deficiente. Nem sabia direito o que tinha acontecido no parto. Porque, quando o médico falou que ele estava morto dentro de mim, eu desmaiei, fui pra UTI, mas já fui desmaiada, não vi nada. Eu só me lembro da médica me chamando, me acordando. Aí ela me acordou, perguntou. Como eu estava na rua e só usava o nome Maura, então, na minha memória, já não tinha mais Elismaura, só Maura. Só usei meu nome quando eu vi a enfermeira falar assim: “Doutora, tem alguma coisa errada, ela só está usando Maura e é metade do nome dela”. Eu: “Quem está perguntando?” “Eu sou a enfermeira, eu gostaria de saber seu nome”. Eu falei: “Elismaura”. Ela: Ô, Elisamaura de quê? Que dia você nasceu?” Falei: “Desculpa, é que eu moro na rua e meu nome é Maura na rua, então, eu já tô acostumada, quando as pessoas perguntam, falam que é Maura, eu quase não uso meu nome legítimo”.
P/1 – Você disse que ele estava morto?
R – Sim, ele ficou um minuto e pouco morto, ele foi reanimado, ressuscitado, deram… e daí, quando eu descobri, ele já estava de sete pra oito anos, porque eu tive que pegar o laudo de nascimento. Aí, no laudo de nascimento sai tudo, né? Para descobrir por que ele tinha atraso de andar, porque ele estava com atraso na escola. Aí, pra descobrir isso, teve que pedir o laudo de nascimento. O laudo de nascimento dele durou quase um ano e pouco pra sair, demorou.
P/1 – E nessa época você morava na rua?
R – Morava na rua.
P/1 – Como que era?
R – Ó, no começo foi difícil, mas depois a gente acostuma, vira normal. (risos) Depois, a gente desacostuma com casa, a casa parecia fantasma, era assustador pensar em ter que entrar aqui dentro. Eu pensava assim: “Mas eu tenho que entrar, por causa do meu filho. Se eu não entrar, eu vou perder meu filho. Eu já perdi uma, vou perder outro”. E foi assim que eu consegui ir me adaptando da rua pra casa. Foi à força… Por isso que eu falei, eu sou muito família, a família me faz mudar. Posso ser grossa aqui, mas a família consegue me trazer bem pra trás: “Fica aí”. Porque eu sou muito eles, muito eles. Eles fazem umas coisas erradas, me dói, machuca, mas também perdoo futuramente. (risos)
P/1 – E você começou a trabalhar quando, depois?
R – Da carroça?
P/1 – Não sei, queria saber. Depois que você teve seu filho, você trabalhou…
R – Então, eu tive o Elitom, estava pedindo esmola no farol. Aí, quando o Elitom estava com dois anos e meio, eu comecei a puxar carroça. Eu ficava metade no farol, metade na carroça, metade farol, metade carroça. (risos) Até me adaptar totalmente na carroça.
P/1 – Como era a vida no farol?
R – Pra mim, era tranquilo, porque eu vendia chiclete. Brincava, dançava no meio dos carros, para chamar a atenção dos clientes. (risos) Então, era tranquilo. Eu vendia mais que o pai dos meus filhos. Ele ficava com muita raiva, falava: “Nossa, você tirou cem ‘conto’, eu tirei vinte”. (risos) Eu levava duas caixas de chiclete, vinha quarenta e eu vendia as duas caixas. E aí, o resto era caixinha que entrava, de brincar, correr com o pessoal: “Ah, não quero não”, deixava as moedas. “Não quero, não”. (risos) Aí, quando chegava a tarde, eu estava com isso. Meu marido ficava ‘puto’, porque ele estava com vinte ‘conto’, mas ele era só da caixinha de chiclete. (risos) Ou, às vezes, ele estava com vinte ‘conto’, mas não tinha vendido chiclete, foi só de caixinha que ele ganhou. Até teve uma época em que ele ficou com as crianças aqui e eu ia pra rua. Porque, na carroça, no farol, eu ganhava mais que ele. Enquanto ele chegava da carroça com dez ‘conto’, eu chegava com vinte, vinte e cinco. (risos) Ele dizia: “Eu não entendo”; “O que você não entende?”; “Você ganha mais dinheiro que eu”. (risos)
P/1 – Você lembra de algum dia que tenha te marcado, no farol?
R – Um assalto, um assalto. Era uma moça que a gente gostava muito e eu e meu marido voamos em cima do cara que estava a assaltando. (risos) Eu falei pro meu marido: “Eu pego o de trás, você pega o da frente”. (risos). Aí a gente deixou as crianças sentadas lá e fomos nós dois. (risos) Aí ele falou pra mulher: “Corre, corre!”, (risos). Nem pegou nada. Aventura de criança. (risos) Acho que foi o que mais me marcou, lá no farol.
P/1 – Que bairro você ficava?
R – Sempre por aqui, Pinheiros. Avenida Brasil. Sempre na redondeza. Eu ia pra vila, pra casa dos parentes do meu marido, mas sempre estava aqui de volta, não tinha jeito, não. Era só bate e volta lá: “Oi, gente, tô viva, tchau, tô voltando”. (risos) Aí eles também vinham, ficavam bastante tempo aqui comigo também.
P/1 – E como você conheceu o seu marido?
R – Na rua, vendendo chiclete, que eu conheci o meu marido. Na rua, vendendo chiclete.
P/1 – E como foi esse período de vocês, juntos?
R – Teve uma época que a gente viveu muito bem. Aí teve uma época que a gente viveu muito mal. Essa casa aqui teve uma época que parecia o inferno, eu e ele. Até que o juiz fez a separação e tirou eu e ele. Juiz nos separou em dezembro, em abril o mataram. (risos) Não deu nem pra ______.
P/1 – E, Maura, como a reciclagem começou a entrar na sua vida?
R – A reciclagem? Quando meus filhos estavam na escola, a turminha da escola falava que eu era tão pobre, que não podia comprar um brinquedo pra minha filha. Aí eu vi que estava na hora de sair totalmente do farol e ficar só na carroça. Porque, lá no farol, todo mundo me via quando passava. E na carroça, quebrava um pouco a exposição, preferi ficar só nela. Aí que eu me enfiei mesmo na carroça, de vez. Em vez de fazer os dois trampos que eu fazia, comecei só a fazer só a carroça. E, mesmo assim, meus filhos sofreram muito preconceito, por eu ser carroceira. E sofrem preconceito até hoje. Quando eu entrei na mídia [quando deu entrevistas para mídia], eu entrei pra ver se eu cortava esse preconceito. Porque, quando o preconceito é com você, é uma coisa. Quando o preconceito é com outro, é outra coisa. Igual, sobre a minha reciclagem, não sei se você viu duas mulheres aí na frente, eram da prefeitura, não dei nem assunto para elas. Ela disse que o governador reclamou, denunciou a minha reciclagem aqui na frente. Eu falei: “Eu não vou te dar atenção, porque eu tô fazendo filmagem lá dentro. Se você quiser entrar, entre”; “Ah, mas tinha que alguém acompanhar”; “Então, vê se alguém dos meus filhos te acompanha”. É legal isso? Não é legal. Meus filhos não acompanham, porque eles estão cansados disso. Estão cansados da polícia entrar em casa, juiz entrar em casa, promotor entrar em casa. Só porque eu trabalho com reciclagem? Ah, não, não é porque eu trabalho na reciclagem, é porque eu moro num bairro tão rico, tão rico, que os ricos veem isso como nojento. Olha, o cheiro da minha casa, é tão gostoso! Tem a minha bagunça? Tem. Mas o ar em que eu vivo é gostoso. A bagunça, a gente limpou, a bagunça pode ficar mais limpa, mas o importante é esse cheiro. E elas vão voltar. Isso, pra mim, é perseguição. Enquanto eles não conseguirem me tirar daqui, eles vão me perseguir. Isso revolta meus filhos. As ‘cagadas’ que os meus filhos fazem, são o modo deles lidar, não é tanto eu. Eu aprendi que não era eu, mas sim, quem está ao meu redor que faz isso. Por isso que o Régis ligou o carro e saiu, porque ele já está cansado deles virem em casa, bem cansado. Eu prefiro catar reciclagem do que roubar. A reciclagem não vai me levar pra porta de cadeia. A reciclagem está deixando eu ir e vir tranquilamente. Eu tô arrancando o que de vocês? Não tô arrancando nada. Tô só trazendo comida pra mim, comida pra minha família. É bem complicado morar num bairro desse, viu, bem complicado. E eu não tô a fim de ceder, de deixar eles terem a glória, de dar vitória, jogar artifício, dizer: “Vencemos, tiramos a mendiga, a maloqueira dali”. É assim que eu me sinto aqui. E eu sei que isso empaca a vida dos meus filhos, ô se eu não sei como isso empaca. Empaca muito. E dói, dói mesmo. Igual, o outro me falou: “Se você troca reciclagem, eu te dou…”. Eu falei: “Eu não sou aleijada, eu não sou inútil, eu não sou doente, eu sei o que eu estou fazendo, sei muito bem”. Um dia eu vou ter o meu espaço, pra eu reciclar. E tomara que seja nesse bairro, para matá-los ainda mais de raiva e de ódio. Porque eles não podem tratar pobre desse jeito. Eles não devem tratar pobre desse jeito. Esse bairro aqui é cruel. Uma coisa que eu aprendi: quanto mais o pessoal tem, mais cruéis eles são.
P1 – Desde o momento em que você veio morar aqui, até hoje?
R – Não. Eram mais problemas que tinha. Esses problemas começaram a surgir tem o quê? Sete anos. E o Régis acompanhando minha guerra e vendo isso, ele até saiu de carro, pra refrescar a cabeça, quando elas estavam aí. Porque é direto, é direto, direto. Nem na pandemia me deram paz. Até na pandemia vieram.
P/1 – Explica o que que está acontecendo.
R1 – Assim: a reciclagem fica aí na frente, pra eu repassar. Pronto, já é um motivo deles filmarem, tirarem foto e dizerem que eu sou acumuladora, que eu junto lixo. Aí, chega lá a denúncia e eles já vem com uma ordem judicial para entrar. Aí vem mais de dez caminhões.
P/1 – Você estava contando o que tem rolado ultimamente. Ultimamente não, há um tempo aqui. Se quiser continuar.
R – Então, vou começar do começo, porque não foi filmado, então, vamos começar: eu moro nessa casa há 23 anos, né? 23 anos não são 23 dias. Mas, de sete anos pra cá, comecei a passar aperto demais por causa da reciclagem. Construíram muitos prédios. Antes, quando não tinha esses prédios, eu não tinha esse tipo de problema. Os vizinhos sempre souberam. Mesmo quando eu andava com meus filhos em cima da carroça, não tinha esse problema. De sete anos pra cá, se eu guardar os fios pra cá, aqui dentro, dizem que eu ia bater nos meus filhos com fio. Eu estava guardando os fios aqui dentro, pra poder descascar e vender com um preço justo. Mas não, eu sou acumuladora pra eles. Qualquer coisa que eu guarde dentro da minha casa, eu sou acumuladora. Só porque eu mexo com reciclagem. Aí eles me dão motivo de chamar a polícia, entrar com ordem judicial, obrigar. Se eu não abrir a porta, eles quebram a porta, só por causa da minha reciclagem. Gente, eu queria tanto trabalhar, porque, através da reciclagem, eu sustentei os meus seis filhos. Foram seis crianças, para comer, para beber, para vestir, para estudar. O meu mais velho, hoje, tem um filho de quatro anos. Estou com um outro filho de 22 anos, a filha de 20 anos, com dois filhos dela. Tem uma mocinha que vai fazer dezessete anos, uma outra mocinha que tem quinze e tem um rapazinho de doze… Eles precisam ainda de dinheiro? Eles precisam. Como eu arrumo dinheiro? É na reciclagem. Só porque eu moro num bairro nobre, eu não posso reciclar? Só porque eu trabalho, eu moro no bairro chique, de sociedade, eu não posso trabalhar com reciclagem? Por que me barram? Por que essa perseguição? Eu não tô tirando nada de ninguém, eu não tô mexendo em nada de ninguém. Eu tenho direito de ir e vir, em qualquer lugar que eu esteja, seja rico, seja pobre, seja o lugar em que eu estiver, eu tenho o direito de ir e vir. Isso está me machucando. Está me machucando, porque isso, pra mim, já virou perseguição. Há sete anos é a mesma coisa, a mesma novela, não dá. Não dá, mesmo. E eu não tenho estrutura, não tenho estudo para saber como fazer pra isso parar. Precisei trabalhar com reciclagem, isso eu sei. Se mandar eu drenar, eu sei drenar. Se mandar eu reciclar, eu reciclo. Mas essa tortura não dá mais pra continuar, eu preciso tomar providência, eu preciso de ajuda nesse assunto, que me abala, abala minha família, abala os meus amigos mais próximos. Eu sei que muita gente não gosta dessas atitudes de poucos, tem muitos aqui que me aplaudem, como a pessoa que me ajudou a fazer a reforma da casa. Essa pessoa, eu sei que aplaude meu trabalho. Agora vem dizer, foi um deputado que abriu um processo contra mim. Então, a prefeitura está querendo me barrar de trabalhar? Eu entendi isso. Estamos saindo de uma porcaria de uma quarentena, onde está todo mundo num buraco sem fundo, cada um vai tentar se virar como dá e a prefeitura vai começar a nos barrar de trabalhar? Em vez de arrumar um espaço para nós trabalharmos. Ah, tá, tanta ponte aí. “Essa ponte vai ficar cinco catadores aqui. Faz a quadra, esse espaço é seu, esse espaço é seu, esse espaço é seu. Vocês vão limpar, vocês vão pagar água, vocês vão pagar luz”. É falta de estrutura do nosso Brasil? É falta de estrutura. Porque todo mundo sairia ganhando. A partir do momento que eu saio com essa carroça pra rua, eu tô pagando um imposto danado. Como você está pagando? Pneu fura, eu pago imposto. Rolamento fura, eu vou pagar imposto. Se isso daqui quebra, vou mandar soldar, vou pagar imposto. Ela está andando, mas ela está pagando imposto mais que tudo, porque uma soldinha vai sair mais de duzentos contos. O cara vai cobrar a mão de obra dele. O cara do pneu, do outro pneu que eu tiver de comprar, vai cobrar. Espera aí, ela está pagando imposto. Ela está passando, pagando imposto, para ela ir e vir e, desse imposto dela, que ela paga, é dos materiais que estão dentro dela. Os materiais que eu pego, pra sustentar minha casa, eu também, nesse material, que eu não sabia administrar, pra quando quebrar alguma coisa dela, eu conseguir arrumar. Aí a prefeitura quer levar o carrinho da gente, prender o carrinho da gente, dizendo que a gente está deixando a cidade feia. Uma vez, eu deixei uma carroça na Afonso Braz e o segurança disse que o cara queria que ele tirasse a carroça de todo jeito. O segurança falou: “Eu vou tirar a carroça e vou pôr onde, se a moça está trabalhando e pondo o material aí dentro?” O rapaz virou pra ele e disse: “Isso é ridículo”. Falei: “Que pena que eu não estava aí, eu falava que a atitude dele, pra mim, é ridícula. Ridícula, pra mim, é a atitude dele. Eu tô dignamente suando, dia de sol, dia de chuva, frio ou não, estou ali, na luta”. Agora, ele está falando que o meu carro é ridículo? Ridículo, pra mim, foi a atitude dele. Que pena que eu não o vi. Só foi passado o que ele deixou pra mim, recado. Aí a prefeitura vem com polícia, vem com ordem judicial, entra dentro da minha casa, não tem hora pra entrar, não tem dia pra entrar. Pega meus filhos ainda na cama. Pega menores dentro de casa. E como fica a cabeça dos meus filhos? Como ficou a cabeça deles esses sete anos, direto? Como está a cabecinha deles, com a sociedade, com o mundo? Que visão ele tem quando a polícia entra aqui como se ele fosse bandido, como se fosse traficante? “Ordem judicial, nós temos direito a entrar”; “Tem direito de entrar não, é minha casa, é meu lar, não tem direito de entrar”. Eu não tô roubando, eu não tô matando, por que eles têm direito de entrar? Eu acho um absurdo eles dizerem que têm direito de entrar, porque eu sou pobre. Porque eu sou pobre, aí eles têm direito de entrar? É por isso? Como eu falei no documentário que eu fiz, uma vez: se o rico pode comer caviar, por que eu não posso? Eu vou querer comer caviar igual eles. Ele pode estacionar o carro deles aqui, eu posso pôr meu bag aí também. Se ele pode estacionar os carros deles aí, eu posso pôr minha carroça também. A rua não é pública? Não é pra todos usarem? Por que eu não posso usar pra ganhar o meu pão? Me fale, por que eu não posso usar pra ganhar o meu pão? É o meu pão de todo dia. O dinheirinho dela vai trazer o café da manhã pra minha família, o leitinho da minha família. É através do dinheirinho dela. É através do nosso trabalho que nós vamos manter as coisas dentro dessa casa, dentro do meu lar, dentro da minha família, pros meus filhos, a necessidade da gente. Não vou dizer que a gente vai viver em luxo, não tem como. Mas, pelo menos, passar fome, nós não vamos passar fome não, enquanto ela estiver nos sustentando. É dose, gente. É dose. Está aqui me filmando, mas a prefeitura veio hoje bater na nossa porta. Eu que fui burra, podia ter pedido pro menino: “Vira a câmera aqui, ó que bonito”. Eu fui burra, só depois caiu a ficha. Pra ver se isso para. Eu sou foda. E te falar, aí ó: ele, mesmo sendo deficiente, põe dinheiro naquele cartão, ele sabe usar. Que é de encostar, ele não grava número, então ele encosta e paga as continhas dele, né? Eu ensinei tanto aos meus filhos a respeitar o próximo e nessa matéria eu tô saindo como mentirosa, que o próximo não o respeita, por que ele tem que respeitar o próximo? Ensinei pros meus filhos que criança, idoso e deficiente não se mexe. Tem que ter um patamar de respeito. Aí, eu ensinei isso pros meus filhos. Mas como eles ficam agora, com a cabeça? “Nossa, minha mãe é hipócrita, minha mãe é falsa. Ela fala umas coisas assim, ó”. Que visão agora eles têm, de mim? Esses últimos dias eu pensei: “Meus filhos são revoltados comigo, não é culpa minha, é a sociedade que fez isso com meus filhos. Foi a porcaria da sociedade que fez isso com meus filhos. Foi vizinho, governantes, você entende? Foram eles. Pergunta pros meus filhos se eles querem tirar título? Eu não vou obrigar, eles estão machucados, eles estão machucados. O Elton nem carteira de trabalho quer tirar. Eu paguei um curso de design, ainda tô devendo uns meses lá para ele, que é arte de design. Podia pegar uma profissão boa, né? Mas, se ele não tirar o resto dos documentos, o que vale? Nada. Por que ele não quer tirar? Porque ele está machucado, ele está ferido, ele está sofrendo com esses sete anos de tortura. Nem na pandemia esse povo nos deu sossego, nem na pandemia. Na pandemia ainda veio quinze. Até na pandemia, tendo que ter a distância, eles vieram, me assustei com o caminhão e tudo mais. De novo, de novo. Outra vez. Até quando? Eu pergunto pra mim: até quando? Eles vão voltar. Eles vão continuar voltando, voltando, voltando. Eu não sei como fazer eles pararem. Não sei como fazer eles me respeitarem como eu os respeito. Não sei. Não sei como lidar com minha família, com essa situação. Não sei. Se eu os ensinei a estudar, os ensinei a irem pra escola, os ensinei a respeitarem. Aí depois: “Ah, a mãe não deu educação”. Será? Eu dei, mas a sociedade tirou isso dele, educação.
P/2 – O trabalho que a senhora faz como catadora, a senhora não acha que existe alguma valorização por parte da prefeitura?
R – Não, ninguém. Nem da prefeitura, nem pela sociedade, de ninguém. De ninguém. Só de mim mesma. Eu mesma vejo. Eu, Elismaura Pereira dos Santos, já passei quatro vezes na Rede Globo, falando de reciclagem. Eu, Elismaura Pereira dos Santos, tenho um histórico de reciclagem grande no YouTube. Eu, Elismaura Pereira dos Santos, tenho um Instagram, eu tenho um Facebook falando do meu trabalho. Agora, eu, Elismaura Pereira dos Santos, tenho todo esse projeto criado e mesmo assim me acontece um absurdo como vocês viram hoje: a prefeitura na minha porta. “Ah, porque nós recebemos uma denúncia”. Puts, será que sete anos direto eles não sabem que eu mexo com reciclagem? Uma, duas, três, passa. Mas são sete anos, já. Sete anos já!
P/2 – E a senhora está ajudando a cidade, né?
R – Eu já ajudava antes, mas esse tipo de batimento de cartão na minha casa, tem sete anos direto, direto! Tem policial que sai daqui rindo da cara da denúncia. Que barbaridade! Aí o policial: “Ah, você não põe nada aqui dentro”. Falei: “Minha casa é pra eu viver, lá é pra eu trabalhar. Eu vou pôr lixo dentro da minha casa? Não tem como, entendeu?”
P/1 – Maura, como funciona o seu trabalho? Como é o seu dia a dia?
R – O meu dia a dia é… eu trabalho de domingo. Hoje é sexta-feira, eu não faço muita coisa, gosto mais de relaxar. E sábado eu retomo. Eu pego um saco ali, eu separo, igual aquele ali, tem ali aquele branco, é pra separar. Porque não é tudo que eles põem dentro que é reciclável. Igual no meu Instagram eu filmei alguns sacos mostrando que tem lixo orgânico no meio, fralda que ali não é lugar. Então, eu tô bem já mais instruída na reciclagem. Toda vez, estou tentando me focar mais. Hoje, eu digo que carroceiro não é apenas um carroceiro, é um catador. É assim, a partir do momento que ele já consegue separar o resíduo certinho. Igual eu, eu já fiz Virada Cultural, Mundo Sem Lixo. Então, eu estou dentro de um patamar muito satisfatório. E, tendo todo esse patamar satisfatório, a prefeitura ainda me barra. Então, aquele saco ainda está para ser drenado. Eu dreno esse saco, quando eu consigo fazer seis bags, eu chamo uma cooperativa pra vir pegar, que é o São Paulo Favela. SP Favela, mais fácil, SP Favela. E ele vem e retira. Veio o Favela e retirou a reciclagem ontem. Então, eu tenho até terça-feira que vem pra fazer de novo. Então, toda terça-feira ele vem. Se terça-feira cair no feriado, na quinta-feira ele vem. Ele falou: “Se não der pra pegar na terça-feira, na quinta-feira, com certeza, eu pego”. Aí eu pego, eles vem e cai dinheiro direto na minha conta. Aí vem também o material que foi pesado, quantos sacos foram, vem escrito tudinho, por ser uma empresa, já vem direto. Ai, esse negócio da prefeitura me tira até o rebolado, gente do céu!
P/1 – Estamos entendendo, super.
R – É, entendeu? Nossa Senhora, é desconfortável. Hoje eu não quis nem dar bola, pra mim chega, não tô aguentando mais. Eu sei que se eu não der bola pra elas, vai ser pior, porque elas vão mandar lá pro juiz, dizendo que eu não deixei entrar.
P/2 – A senhora ainda não tem advogado?
R – Não, não tenho. As duas moças que estavam ali são da prefeitura. É da prefeitura. E meu amigo Régis não aguenta mais ver essa situação.
P/2 – O Régis mora com a senhora também?
R – Ele dorme bastante aqui, porque as minhas três filhas caçulas têm uma paixão enorme pelo Régis. Elas criaram um laço com ele que é espetacular. Às vezes, eles tiram umas brincadeiras brutas. Eu falo: “Meu Deus do céu!” Eu saio até de perto. (risos). E eles mesmos brigam e eles mesmos resolvem, parece pai e filhos. E, assim, eu tô dando a oportunidade pros três mais novos, que os três mais velhos não tiveram. Um dos meus filhos falou assim: “Mãe, eu não consigo me relacionar com homem porque, na minha convivência, não teve homem ali pra conversar comigo, foi só a senhora. A senhora não pode ser mamãe e papai, a senhora é uma coisa: mamãe”. E, pra eu não ouvir isso até dos mais novos, soltei na banguela com o Régis e deixei. Daqui a pouco, o Régis vai na escola, vai buscar uma na escola. Às vezes, quando ele está com bom humor, ele desce na outra escola, vai buscar na escola. (risos) Às vezes, pega uns pega rabo aí, eu fico só quieta, só olhando. Aí eles mesmos brigam, eles mesmo resolvem. (risos) Mas eu sinto que eles gostam até mais do Régis do que de mim. Faz mal a mim? Não faz. Aí me dá aquela sensação de que Régis é confiável. Porque, assim, através dos seus filhos, você sabe se a pessoa é confiável ou não. E os três me mostram que ele é. Outro dia, Régis parou na cama, perguntou pra cada um deles o que eles achavam dele. Eu falei: “Será que Régis está carente?” (risos) Fiquei pensando. Falei: “Depois vou conversar com Régis, o que ele tinha”. (risos) Aí, não sei se ele gostou do que nós falamos, sei lá. Mas achei interessante ele fazer a pergunta. (risos) É, gente, é isso aí. Só que advogado eu não tenho, não sei como procurar advogado e nem que tipo de advogado eu deveria ter, para isso acontecer. Já falaram que aqui é ocupação. Não é ocupação, porque ocupação tem que ter um monte de família junto e aqui é só uma família. Então, não é ocupação, né? Falar, não dá pra eles falarem que é tráfico, porque não tem. Eu e meus filhos, a minha única droga é o meu cigarro, meu cigarro é minha droga, né? É o único problema que eu tenho. Bebo? Não. Se eu beber dois dedos de cerveja, já fico bêbada. (risos) Não consigo passar de dois dedos. Teve meu aniversário, meu amigo me forçou a tomar um copo, eu tomei um copo de cerveja. Isso foi o quê? Umas seis horas da tarde. Aí, às onze horas, o Régis: “Vamos tomar uma latinha junto, né? É o seu aniversário”. (risos) Também, eu tomei banho e capotei, parece que eu tomei o litrão todo. (risos) Falei: “Amanhã eu tô lascada, com dor de cabeça”. (risos) Eu falei pra ele: “Como pode, uma latinha de cerveja e um copo, você sentir dor de cabeça?” Eu sou muito ruim pra beber, eu sou muito ruim. Então, a bebida é lá e eu cá (risos). Então, meu único mal mesmo é meu cigarro. E pra sociedade, meu mal é ser recicladora. Quando falam assim: “Por que você gosta de ser chamada de Maura catadora?” Porque eu quero falar pra sociedade que eu sou a recicladora, eu sou catadora e tem que me respeitar do todo que eu sou. Eu não tô fazendo mal a ninguém. Fora o contrário, eu me sinto uma mini bombeira, tô salvando vidas. Tô salvando peixe, tô salvando elefante, tô salvando um monte e o ar que a gente respira, tô despoluindo, tô despoluindo o ar que nós respiramos. Quanto tempo essas pessoas vão ser cegas, vão ser tampadas? O pior é que eles não procuram me conhecer, eles não procuram saber de mim. Só me criticar e jogar pedras, só critica e joga pedras. Aí, vai ficar muito difícil pra catadoras como a gente fazer uns projetos desses, com tanta barreira. Com tanta barreira, vão dizer: “Vem uma geração mais evoluída, que vocês não podem”. Por quê? Para estar barrado, que a sociedade barra, que a prefeitura barra, que o estado barra. Porque, se a gente não fizer alguma coisa por quem está limpando já a cidade, daqui uns dias eles vão tomar conta. Vai cortar seu direito de ir e vir. Porque isso, pra mim, está cortando o meu direito de ir e vir, de eu ir lá buscar o pão pra minha casa. Infelizmente é assim que eu me sinto, esse são os traumas que já estão na minha família, que eu posso chamar de trauma, depois de sete anos direto, eu posso chamar de trauma. Posso chamar de perseguição? Já posso chamar de perseguição, então perseguição é trauma, tortura.
P/1 – Você acha que o seu trabalho é importante pro meio ambiente, para preservação do meio ambiente?
R – Com certeza é, com certeza. Cada vez que eu tiro isso daqui fora, eu já não deixo pros rios e tudo mais, é uma árvore a menos que eles vão derrubar, é uma árvore a menos… porque eu preciso da árvore pra eu respirar. Se eu não cuidar dela, quem vai cuidar? Mas eles querem ganhar dinheiro, arrancando pra fazer prédios. Enquanto nós, não. Quer deixá-la subir, sobe minha filha, viva! Igual, eu vou enfeitá-la todinha de árvore de Natal, ela vai ficar linda. Se eu vou ter minha roupa nova do Natal, ela também vai ter os pisca-pisca, as bolinhas de Natal dela. Ela é merecedora disso, ela é merecedora de tudo isso. Acho que por isso que ela é tão linda, (risos) que ela sabe o quanto eu gosto dela. (risos)
P/1 – Maura, você estava contando do seu trabalho. Então, quase todos os dias você sai pra pegar os resíduos…
R – O papelão e o ferro eu já repasso na hora. Hoje o meu filho já foi pro ferro-velho. Ele ia descer de novo com essa. (risos) Ele não vai descer com a carroça, eles querem descer com a Pipi, a Pipi, todo mundo adora a Pipi. A Pipi já me foi roubada três vezes, mas já consegui recuperá-la três vezes. (risos) A Pipi tem segredo, tem esses buraquinhos, ainda ela era rosa. Aí, o último que roubou, a pintou dessa outra cor, para disfarçar. Disfarçou a cor, mas não deu pra disfarçar o modelo, (risos) que ela é modelo único, não tem outra igual a ela. Você pode ver que não tem igual a ela. Aí a gente já recuperou. Vira e mexe, o Régis encontra algum, alguém puxando-a, Régis fala: “Volta, põe lá onde você achou”. (risos) A gente tenta pôr cadeado e daqui dá um jeito no cadeado e não dava mais pra mexer. Mas a gente sempre tenta deixar travada, porque além da gente correr da polícia e da prefeitura, tem que correr dos ‘nóias’ também. Então, a gente está num círculo fechado: se você correr pra ali, o bicho pega; se você for pra lá, o bicho come. (risos) É uma situação meio crítica, né? Mas eu vou, saio todo dia com ela, assim, nós trabalhamos todo santo dia. Como eu falo: eu trabalho hoje, pra comer amanhã. Então, o que eu consegui ganhar hoje, é pra amanhã; de amanhã é pro dia seguinte e assim vai, reservando. Então, a gente vive desse jeito: pega hoje pra comer amanhã. A gente não pega pra comer hoje, a gente já garante o de amanhã, pra saber que amanhã você vai ter. O que você ganha hoje, você tem que saber administrar, pra comer no outro dia, senão fica sem. Que aí você usa o que tem hoje e ainda usa o que é de amanhã. E se amanhã você não conseguir nada, né? Nada. Porque o papelão abaixou de novo, né? Então, sai pouquinho, o dinheiro. Aí você tem que dar uma volta, duas voltas, três voltas, até chegar num patamar. É cansativo? É, mas é o único jeito, né? É fazendo isso.
P/1 – Você recolhe em lugares fixos ou não?
R – Tem alguns lugares que são fixos e outras vezes tem que pedalar. (risos) Dar a volta, dar rolê, (risos) pra poder conseguir, não são todos os lugares já fixos, não. E tem aquela barreira também, nem todos pegam e deixam a carroça parar na frente deles. Uma carroça parada mais de dois dias é abandono. Tem tudo isso, você não pode deixar a carroça ali, parada. Por isso que, às vezes, eu já prefiro estar na frente da minha casa, porque está na frente da minha casa. Mas aí eles se incomodam do mesmo jeito. Se eu deixar na rua de trás, enche o saco. Se eu deixar lá, enche o saco. Se eu ponho na frente da minha casa, me enchem o saco. Se eu pôr dentro de casa, piorou ainda, aí eu virei acumuladora. A gente está presa numa visão do ser humano, que a gente não conseguiu ainda sair. Não tem uma lei que diga assim: “Não, pode trabalhar tranquilo”. Tem uma lei: não pode mexer, não pode sair daí. (risos) Não pode, sabe? Eu não entendo.
P/1 – E quais são os materiais que você trabalha?
R – Hoje eu tô trabalhando com tudo. Porque a cooperativa leva tudo, a cooperativa leva isopor, a cata pets. A cata pets, infelizmente, nós vendíamos junto com o papelão, ai que burrice! E muitos catadores ainda vendem junto com o papelão. Foi bom entrar na cooperativa, porque aí eu aprendi algumas coisas. Quando é cata pets, quando as marmitex de isopor, o isopor. Então, são mais materiais que eu consigo repassar. Se eu preciso juntar seis bags, se eu fizer uma de garrafa, fizer da cata pets, que não é fácil juntar. (risos)
P/1 – O que é “cata pet”?
R – É a caixinha de leite, a cata pet. Eu não consigo falar o nome dela direito.
P/1 – Ah, é embalagem longa vida?
P/2 – Tetra Pak.
R – Isso. É Tetra Pak. Então, sabe, caixinhas de leite. Então, eles se misturam muito, passam por meio dos papelões no ferro-velho. Não separa, porque isso daí, quem compra mesmo, só a cooperativa que compra tudo separado. Então, nós temos que separar cor, tecido, material, para ser passado para a cooperativa. Ou você pode ganhar menos, sem estar separando.
P/1 – Você separa?
R – Eu separo, eu separo pra eu poder ganhar um pouquinho a mais. (risos)
P/1 – Desde o momento que você começou a trabalhar com reciclagem, até hoje, o que mudou? Quais foram as transformações que aconteceram nesse trabalho?
R – Conhecimento. Porque você imagina, quando eu comecei, era ferro, papelão, latinhas, fios. Depois de sete, oito, nove, nove anos pra cá, é que eu comecei a mexer com plástico, estudar o plástico, ver como se faz a separação do plástico. E aí, eu tô só evoluindo, na separação deles. Só nas aparas, que eu dou aquela deslizada, porque é muito difícil de entender, o que é reciclável, o que não é reciclável. Igual aqueles plásticos que vem na flor, não é reciclável. (risos) Vou dizer: aquele que vem enrolado de presente também não é reciclável. Então, tem algumas coisinhas que a gente já pegou, que é mais fácil. Mas tem uns plásticos que ainda dão aquela confundida: “É ou não é? Mando ou não mando?” (risos)
P/1 – Como você acha que as pessoas podem aprender mais sobre reciclagem? Conseguir separar, saber a importância da separação, da coleta seletiva? O que você acha que pode ser feito, pras pessoas aprenderem mais sobre isso?
R – É uma coisa, é uma coisa que eu falo sempre na palestra: quando a gente vai no supermercado, estão todas as prateleiras bonitinhas, você compra tudo o que você precisa. Você chega na tua casa, você vai no armário, coloca tudo direitinho. Por que depois que você usa, você tem que jogar de qualquer jeito? Você não usou? Por que você não coloca do jeito que está certo, onde que é, coisa com coisa? Aí você vai, está lá: a prefeitura vai fazer o recolhimento dessa sacaria. Até não gosto de mexer na sacaria, pra eu não ver o que tem de errado. Aí, quando você vai olhar na sacaria, tem casca de banana, tem casca de fruta, tem pó de café, (risos) fralda de idoso, fralda de criança. Chega até a ter soro biológico no meio dessa sacaria. Agulhas de diabetes. Não era pra estar aí na sacaria. Isso seria parte, é reciclável, mas seria pra um outro ponto de reciclável. Seringa, essas coisas, seria outro patamar de reciclável, mas não, vem parar aqui. Infelizmente, ainda vem parar aí. Pó de café, casca de banana, casca de fruta, lixo mesmo. Eles adoram… tem a borra de café, de fazer, eles adoram jogar no meio do lixo aquilo. Se vocês pegarem como lixo orgânico e como lixo reciclável, tanto um como o outro estão misturados, totalmente misturados. Dá pra filmar, dá pra mostrar que está. Eles misturam. Aí perde, são poucas pessoas que reciclam. Igual tem uma aqui que falou: “Nossa, eu mando tudo limpinho do meu apartamento, mas não sei o que acontece lá embaixo”. Aí, a gente chega no faxineiro e fala: “Nossa, aqui vem tanto orgânico!” “Ah, são as empregadas”. Então, fica aquele jogo de empurra-empurra. Mas a dona dali, do apartamento ali, já conversou comigo sobre isso. (risos) Aí estava conversando com ela, tô aguçada. “Ah, mas eu faço direitinho”, ponto. Aí eu virei para ela: “Você pode fazer direitinho. De repente, o vizinho do seu lado não faz tão direitinho”. Aí termina tendo essa confusão de ‘lixaiada’. E aí, eu mexo muito, vejo que, se pegar um, dois, três, quatro, cinco prédios, juntar e fazer a drenagem, você vai ver que tem muita coisa aqui. Fora que aquilo que é de plástico mesmo não tem jeito de ser passado, porque a indústria não os aceita, que alguns plásticos eles não aceitam, infelizmente a gente tem que jogar pro aterro. Mas tem outros que nós repassamos, mas aí está ou no meio do lixo orgânico, ou está no meio do orgânico com lixo, com o reciclável. Aí tem essa pandemia ainda muito sem estar decidida. Uma Maria faz, mas o João já não faz, aí mistura os dois juntos, vira aquela coisa. Termina contaminando Maria e João. (risos)
P/1 – Maura, como você via a reciclagem, antes de começar a trabalhar com isso? E se mudou o seu modo de ver a reciclagem depois que você….
R – Eu nunca tinha parado para ver. Me deu interesse de puxar carroça, só me interessei a puxar. Tive alguns acidentes, (risos) para aprender a mexer com ela. (risos) Mas não de me machucar, né? Quando eu via que ia me machucar, eu pulava e deixava a carroça sair correndo. (risos) Eu sempre tentei jogá-la pro meio da guia, porque eu sabia que ia parar. Aí, uma vez, minha cunhada gritou tanto, achando que eu ia morrer. (risos) Eu ri tanto, ri tanto, falei: “Calma, eu tô aprendendo, uma hora eu aprendo”. Aí, hoje, é mais tranquilo. Meus filhos estão acostumados, mesmo a de barriga, hoje, está andando na carroça, né? Então, pra eles, é café com leite. Qualquer um se tiver uma carroça deles, faz melhor que eu. Porque o hábito de ver, já acostuma.
P/1 – E, com todos esses anos de trabalho, teve alguma história de alguém que você conheceu trabalhando, que tenha te marcado? Fez bastante amigos? Como foi?
R – Amigos, tenho bastante. Quase todos os catadores me conhecem, né? Quase todos. Assim, tem uma vez sim, que me marcou bastante. Foi um catador, o Alemão. Ele trabalha lá em cima, perto da Vila Olímpia. Tem umas coisas de luz, que a gente abre dentro, é cobre. Cada um, se abrir cinco daquele, dá um quilo de cobre. E ele achou dentro da caçamba, ele começou a jogar, tirar da caçamba e jogar pra fora, né? Aí, ia passando um casalzinho, aí o casalzinho pegou: “Que vontade de pegar isso e dar na cabeça dele”. Eu falei: “Credo, moço. Que estupidez!” Ele: “Se você falar muito, eu ataco em você também!” Aí eu peguei o celular: “Como que é?” Eu falei, aí eu falei assim: “Ó, moço, se você acertar em mim e eu morrer, você vai ter oito bocas pra sustentar” “Eu mato as oito” “Você mata o quê?” “O que você está fazendo?” “Tô filmando, vou mandar pro Instagram, vou mandar pro Face”. Mas esses dois começaram a andar rápido, tão rápido, que não deu tempo de eu ligar a filmadora. (risos) E foi aqui perto, entendeu? Eu estava indo pro lado do Itaim, estava aí perto. Mas eu vi os dois andando rápido, falei: “Ô, não vai falar mais nada, não? Fala aí, a Globo quer te ver”. (risos) “Ela está filmando, ela está filmando!” Aí você vê, né? O que custava falar assim: “Ô, moço, eu sei que você está precisando, tenta jogar aqui no lado”. Aí falei: “Vai, Alemão, vai apanhar, hein, Alemão!”. Eu ainda fiquei zoando com ele, né? (risos) Eu dando atenção pros dois, o casal e ainda enchendo o saco do Alemão. (risos)
P/1 – E, Maura, aprendizados, você teve aprendizados, trabalhando com reciclagem?
R – Sim, eu aprendi. Como eu falei pra você: hoje eu entendo melhor. Porque você vai mexendo, vai aprendendo. Porque também é do interesse do ser humano. Quem quer, vai longe. De tanto mexer, você vai aprendendo. Igual como eu falei, você imaginar, eu catava o quê? Papelão e ferro e levava pro ferro-velho. Ferro-velho não compra plástico, não compra nada disso, só alguns, não todos, os daqui não compram, os da Vila Olímpia. E aí você vai aprendendo. E aí, depois, você vai procurar uma indústria que consegue pegar isso de você. Aí, vai dizer: “Você vai cutucando, pra ver onde vai chegar”. (risos) E até que o dia que eu conheci o São Paulo Favela, o SP Favela. E a gente está estável aí. Ontem mesmo ele levou o material, hoje deve estar caindo dinheiro na minha conta. Tô aqui conversando contigo, mas o meu material está sendo pesado (risos) contabilizado. Tem que começar a fazer outras bags, pra ele levar, né? Acho que foi isso daí que eu aprendi, aprendi bastante agora, com a cooperativa, muitas coisas. E eu, cada vez que eu tenho alguma dúvida… a minha dificuldade mais é gravar nome de material reciclável. Já tentei gravar, até os doze anos, tentaram me ensinar. A Esthefania tem essa curiosidade também, dos nomes dos plásticos, né? Tem gente que trabalha na reciclagem para valores e eu já trabalho na reciclagem para conhecimento.
P/1 – Seus filhos trabalham com você?
R – Trabalham, todos eles me ajudam, todos eles me ajudam. Me ajudam, porque, assim, igual a Lisa, precisou de um tênis, se ela me ajudar, esse dinheiro sai mais rápido e mais rápido ela compra o tênis dela. Igual o Edgar, quer um brinquedo de cento e cinquenta. Falei: “Edgar, você quer o brinquedo? Beleza. Me ajuda, que você vai ter esse brinquedo. Ele pode chegar até duzentos ‘paus’, mas, se você me ajudar, com certeza você vai ter esse brinquedo”. Eu o estimulo a não ter também a coisa só de graça: “Só mamãe vai dar”. Também estimulando-o a conseguir esse brinquedo que ele quer. Eu acho que é até bom. Só que as pessoas já veem diferente. Não chega perguntando pra mim: “Ah, você pôs a criança pra trabalhar” “Não, eu não pus a criança pra trabalhar. Ele vai querer uma coisa, ele vai fazer o objetivo pra chegar naquela coisa que ele quer”. Aí, que eu vou ver, a semana que vem já vou dar o dinheiro pra ele ir lá no Extra, comprar o brinquedo que ele quer. Ele falou que é um kit lá, nem sei o que é esse kit que ele quer. Ele conseguiu? Conseguiu ajudando a mamãe, ele conseguiu ter o que ele quer.
P/1 – Como é o seu dia a dia hoje?
R – De sexta-feira?
P/1 – Não, é…
R – Domingo eu começo a trabalhar das onze até às quatro, aí eu paro. Na segunda-feira, eu começo às seis, aí eu vou até às oito da noite, direto. Se eu tomar café, eu consigo passar o almoço batido. Se eu chegar cansada, vou tomar banho e vou dormir. (risos) Agora, se eu não levantar, meter massa, vou trabalhar e não tomar café, quando der onze horas, tira as panelas da frente, que a leoa está com fome. (risos) Eu já vi isso do meu organismo, eu tomo meu cafezinho preto, aí eu começo a mexer nas coisas aqui, aí, depois, eu vou lá e tomo outro café. Aí, esse café que eu tomo, já vi que dá pro dia todo. Aí eu meto uma água. Às vezes, os meninos acordam: “Ô, mãe, levanta, a senhora tem que comer”. (risos) “Ah, deixa eu dormir, amanhã eu como”. (risos)
P/1 – Quando você não está trabalhando, o que você gosta de fazer?
R – Aí eu começo a mexer, cutucar a casa. Mexo dali, mexo de cá, mudo as coisas de lugar. (risos) Eu sou muito elétrica, então eu tenho que estar... Ela se soltou?
P/1 – Acho que foi lá fora.
R – É, é que ela pode vir aqui no quintal. Esses dias eu deixei, eu tirei, ela se soltou e o portão estava meio aberto, ela correu a rua, quase o carro a pegou. Falei: “Filha da mãe, agora você vai ficar presa”. Mas foi um susto tão grande, que o meu coração foi lá na boca, dei um grito com ela. (risos) E ela ainda continuou correndo, pra um lado e pro outro. E pra pegá-la? Que a gente vai pra esquerda, ela vai pra direita (risos) e nada de entrar. Aí foi que eu falei: “Põe na corrente. Não dá não, o carro passa aí, a atropela, vai dar mais problema do que ficar aí na corrente”. Aí ele a viu, você vê, ela é tão mansinha, que vocês entram, ela nem tchum, cachorro bom é assim. É ruim você receber a pessoa, igual o cachorro que eu falei pra você, é do Regis. Ele tem que amarrar, senão ele morde. Cachorro bom é esse aí: você entra, você faz carinho nele, brinca com ele, é igual as outras duas que eu tenho lá em cima também, eu falo pra elas: “Tô com visita”. Pronto, nem abre a boca, fica tudo boazinha. Só que eu não posso soltá-la não, se soltar, ela abre toda a geladeira e tira tudo de dentro. É que, assim, ela foi criada junto com meus filhos, dentro de casa, então ela teve aquele convívio das crianças. Eu abria a geladeira, as crianças abriam a geladeira e ela, com a boca, aprendeu a abrir a porcaria da geladeira. Até o fogão ela abre, aquele forno e puxa a grade de lá de dentro. São duas pentelhas, duas pentelhas. Eu não gosto de ficar brigando com bicho, então eu prefiro amarrar: “Você, ó, você está aí, você fez coisa errada, você está de castigo”. (risos) Acho um barato falar pro cachorro que ele está de castigo. (risos) Olha, antes era um amor, a relação entre eu e os meus filhos. Antes de começar a porcaria dessas prefeituras danadas, era muito legal. Agora são um terror, um terror. Eles estão muito revoltados, muito revoltados. Aquelas crianças doces que eu tinha, que, às vezes, eu estava deitada no sofá, eles dois se juntavam, levantavam o sofá pra varrer embaixo, se está limpo, está bom; se não estiver, está bom. Muita coisa morreu dentro deles, muita coisa. E eles tentam também evitar ficar perto de mim. Tentam o máximo evitar, todos eles. Se ficar perto de mim, coisa assim, fica mais perto do Régis do que de mim. Eles são muito mais aconchegantes ali, com o Régis. Acho que eles veem que a prefeitura vem por minha culpa, por eu trabalhar desse jeito, né? Igual o Régis estava falando com eles, com um deles, eu não sei qual deles, foram reclamar com o Régis que não gostava da reciclagem, não sei o quê. Aí o Régis respondeu: “Mas é da reciclagem que você tira sua comida. Como você pode não gostar da reciclagem?” Aí o Régis veio e questionou, mas o Régis não falou o nome do culpado. Ele fala o que é que está acontecendo, mas não fala o nome do culpado. Aí, a gente vê onde estão os erros. Quando eu falo que a prefeitura barrou muita coisa dentro da minha casa, barrou. Porque eles não vão bater de frente, porque eu eduquei pra eles não baterem de frente. Mas eles vão ter que atirar aquela raiva em alguém e a raiva eles vão atirar em cima de mim. Eu vou ter que estar aqui, forte e firme, para aguentar o baque que os meus filhos vão jogar pra cima de mim.
P/1 – Como você se sente?
R – Triste. Porque eu queria uma família, não uma família assim. Mas dos outros, eu perdi o carinho dos meus filhos, o carinho que eu tinha, o carinho que a gente tinha, já pegamos essa sala, fizemos de acampamento, pegamos lençóis, pegamos a coberta. (risos). A gente já brincou muito. Não tem dinheiro pra acampar? Tá, vamos acampar aqui, vamos fazer aqui. Igual a minha filha, vai fazer aniversário, não quer festa, não. Por que ela não quer festa? Porque ela está machucada. Como uma menina que vai fazer dezessete anos não quer festa? Porque está machucada. E olha que eu a chamo de Flor do Dia. Aqui em casa é a única ainda que me abraça, é a única. “Ai, mãe, eu senti lá longe que a senhora estava precisando de um abraço”. Aí, quando eu vejo a Esthefania fazendo isso, aí eu vejo que são os outros que estão machucados. Uma palavra de um filho já dá pra saber dos outros. Quando um fala pro Régis que odeia a reciclagem, você já vai matutando o que está acontecendo, o que foi de errado. Igual a Beth: “Ah, vou lavar essa porra aqui, que eu não quero prefeitura na minha porta”. A Beth tem quinze anos. Aí você já começa a montar o quebra-cabeça do porquê eles estão assim com você, o que está acontecendo para eles estarem assim com você. Ver você comer quieto, calado. E um montão de coisa vai acontecer, ficar melhor, se eu conseguir barrar onde está mais prejudicando em casa, são eles, a sociedade. O Elton pegou e falou assim: “Ó, mãe, a senhora falou pra gente respeitar o entorno. Dá não, dão não, mãe”. Falei: “Ixi, vai falar merda mais dos papelões”. Vem logo na minha cabeça, automaticamente. Tô errada? Não tô. Não tô errada. A sociedade, às vezes, procura umas coisas que, futuramente, pode ter um erro, pode ter um fato doloroso futuramente. “Ah, foi a mãe que não deu educação?” A mãe deu. Mas o que a sociedade fez, pra essa pessoa chegar no motivo que chegou? O que foi feito? Será que a sociedade foi amiga dessa pessoa, ou foi inimiga dessa pessoa? Eu tenho que dar graças a Deus que nenhum dos meus filhos entrou pra droga, nenhum dos meus filhos rouba, nenhum dos meus filhos. Eu dou graças a Deus, porque a tortura que eles viveram, tanto na escola, o deficiente foi empurrado de escada abaixo… uma turma falar: “Vamos passar a sujeira da Lisa e sair correndo, pra ninguém passar a sujeira da Lisa em ninguém”. Você acha que isso é legal pra uma criança, na escola? Às vezes, a gente sofre aqui calado, quieto, com as barbaridades que são passadas. Não é fácil ser catador. Não é fácil mexer com carroça, não é fácil mexer no lixo. Pra mexer no lixo, pra mexer nas caçambas, você tem que ter um pulso de cão. Porque você vai receber da sociedade, você ainda vai receber de dentro de casa. Mas você vai receber dentro da casa, fora do apoio, quando a sociedade invade o símbolo da tua casa e isso aconteceu ó, há tempos. Quebraram o cristal assim, ó. E, quando o cristal quebra, não tem como voltar, não tem nem como colar. E está aí, a crueldade da sociedade que nós vivemos. Aí diz que eu sou suja? Suja é o pensamento deles! Sujo são eles. Estão cegos, o dinheiro está deixando o ser humano cego. É como o Valter lá: “Ah, meu pai, quanta fazenda, quanta terra, terra de perder metros, é grana, isso é grana, é grana!” Mas pra que essa grana? Pra que serve essa grana? Só pra dizer que tem? Que manda e desmanda, né? Prefiro eu mesmo, eu posso sair andando aí, ó, ninguém vai roubar meu celular, ninguém vai pegar nada. Igual ali, falou: “Ih, o portão ficou aberto”. Esse portão foi feito agora, o outro portão não tinha nem como trancar. E nunca ninguém entrou pra me mexer em nada, graças a Deus. Deito no meu travesseiro, levanto. E olha que eu tenho amigo bandido, eu tenho amigo polícia, eu tenho amigo de todo jeito, porque, pra mim, todo mundo é igual. Quando a gente morrer, a gente é a mesma porra. Por que esse cara virou bandido? Alguma coisa fizeram lá no passado, ele se revoltou. Hoje, na carroça, acho que nós já estamos com trezentos e cinquenta ex presidiários que aprenderam a mexer com lixo, que dá qualquer coisa pra não voltar pra cadeia. E, quando eu os vejo conversando comigo assim, sentada, é por isso que eu tenho orgulho de ser eu, porque eu não sou nada disso, então, eu sou uma ponta diferente. “Ah, mas todos que…”. Opa, eu não sou isso, como você pode falar isso? Igual, eu estava no Sesc, quando aconteceu a modelagem das novas carroças, as carroças elétricas. Aí as carroças elétricas, o que acontece? Eu fiz os projetos das carroças elétricas. E uma mulher lá no Sesc falou assim: “A metade dos catadores são velhos, ou são o que a sociedade não quer”. Eu falei: “Eu sou velha?” (risos). Aí o cara: “Mas você é exceção” “Ai, então, a Fabi, Luciana são exceção?” Não sou exceção, são escolhas, são escolhas que nós fizemos. Eu ensinei pros meus filhos: “Faça o que você goste. Você fazer o que você gosta, você se sente bem”. Igual esse dias, eu briguei com a Beth, ela estava dando soco na parede, mas eu entendi que ela estava dando soco, porque eu fui dar bronca nela. Aí ela falou: “Mas o Elton falou que, quando eu estivesse com raiva, não era pra quebrar nada, era pra eu socar a parede”. Aí eu falei, quando chegar estressado da escola: “Tá nervoso? Bate na parede! Vai bater na parede, vai! Não tira seu estresse em ninguém, não”. Esses dias, eu falei o que você ensina pro mais velho, passa pro mais novo.: “Vai lá, bate na parede, vai xingar ninguém não, vai ‘coisar’ não, vai chutar nada não, vai dar na parede, desconta raiva na parede”. Aí eu olhei pros buracos, falei: “Nossa, isso daí foi tudo estresse deles!” (risos) E aí eu tentei criá-los dessa forma. E o Régis, como ele já estão, os mais velhos já estão bem adultos, sabem muito bem, pelo menos tentar equilibrar essa tortura que eles vivem e vou ver o que eu posso fazer pra essa tortura parar, que isso, pra mim, virou tortura e perseguição.
P/2 – Quantas vezes por semana eles vêm na sua casa?
R – De seis em seis meses? (risos) De seis em seis meses, sempre uma novela diferente. Primeiro vem essas daí e depois vem o ________ . Até o Sérgio Quintella está sabendo disso. Você sabe quem é Sérgio Quintella? Sérgio Quintellla da revista Veja. Eu não sei a quem pedir ajuda mais, gente, eu tô te falando sério, eu não sei. Até a revista Veja estava ciente disso. “Ah, mas eles disseram que vão dar uma limpezinha aí”. Limpar o quê? O meu trabalho? Não tem cabimento. Te juro que não tem cabimento.
P/1 – E, Maura, como foi se tornar avó?
R – Meio esquisito, (risos) meio esquisito. Quando eu descobri que ia ser avó, foi na festa de aniversário do Elton, que o Elton ia fazer dezoito. Eu descobri que eu ia ser avó, porque a minha filha mais velha estava grávida. O Elton está com 22 agora, então, foi onde eu descobri, na festa do Elton. Ela veio e contou pra mim que estava grávida. Não sei se ela estava grávida de dois meses, coisinha pouquinha. Aí, logo em seguida, essa daqui ficou grávida, ela também ficou grávida, já veio três logo, de uma vez só. Aí, agora, ela teve um, aí são quatro. (risos) As duas parem, pelo amor de Deus! (risos)
P/1 – E a pandemia, como que impactou sua vida?
R – Muito, né? Imagina, você não poder trabalhar, não poder fazer as coisas. Ó, a gente ganhou algumas doações, tinha bastante bolacha de sal dentro do armário. Aí, a minha filha: “Mãe, tem um pãozinho, não?” Eu olhei pra cara dela e disse: “Só tem bolacha” “Ah mãe, não quero, não”. Aí eu fui inventar de fazer coisa, né? Pingo de chuva, bolo, (risos) fazer uma estrutura pra eles tomarem café, porque você sabe, somos uma família grande, então nunca posso fazer uma coisa como se fosse pra uma família, eu tenho que pensar que tem duas famílias dentro dessa casa, né? Família é quando tem quatro, passou de quatro, tem que falar que são duas famílias. Então, na minha casa tem duas famílias. São seis filhos, comigo, sete. O Régis, oito. Agora com mais dois nenês. (risos) Então, são duas famílias. Eu não queria não, cinco mais cinco, são duas famílias. Então, eu tenho que pôr dentro de casa como se tivesse duas famílias dentro de casa. A quantia que tem que entrar dentro de casa, como se fossem duas famílias. Então, eu comecei a inventar. Pingo de chuva, né? Bolinho. E aí eu fui criando, porque não todo dia agorinha tem mais dinheiro pra comprar pão e as contas iam estar batendo. E auxílio, eu não peguei todos, não consegui pegar todos os auxílios. Até o benefício do deficiente está cortado, que eu tenho que mexer nos palitinhos, vou ter que suspender uns dias de trabalho, pra eu ver esse negócio do deficiente, se ele volta a receber o Loas. Algumas famílias, já cansei de pedir, desisti. E acredito mais no suor, foi esses dias que eu falei pro Elton: “Tá vendo, Elton, quem sempre sustentou a gente foi a carroça, não foi o auxílio do Elitom, não foi o Bolsa Família, foi a carroça. Porque Bolsa Família, já tem uns sete, oito anos que eu não pego. E o auxílio do Elitom tem quatro anos que eu não pego. Então, quem sustentou mesmo? A minha carroça. A minha carroça que sustentou a casa, graças a Deus. A gente pede uma coisa que a gente vê quem foi que alimentou a casa, de ver o extra saindo da casa.
P/1 – E quais são os seus sonhos?
R – Meu sonho é ter um espaço em que eu possa trabalhar tranquila, sem ninguém estar me perturbando, pra eu poder ir e voltar sossegada. Ou a liberação do meu trabalho, né? Tudo o que eu quero é a liberação do meu trabalho. Trabalhar eu sei, só que o povo precisa deixar eu trabalhar. Preciso muito trabalhar disso. Afinal de contas, já tô quase chegando perto dos meus cinquenta anos. E não sou uma criança, pra não saber o que eu estou fazendo. E, nesse embate deles, até os meus filhos correm, eles vão correr contra a reciclagem, né? Nesse embate deles. Aí, meus filhos mesmo, vão começar a não querer. Aquele projeto de cuidar do planeta, chegar lá na frente, eles não vão querer mais, porque eles vão estar ó, tiririca. E aí, até pra visão deles mudar sobre esse assunto. Eu falo pra eles: “Não queira ser igual a eles, eles não sabem o que estão fazendo, eles não sabem o que estão falando”. Mas é fácil falar, é difícil fazer. Eu estava tão bem, mas eles apareceram e me quebraram. (risos)
P/1 – Que mensagem você deixaria pra sociedade, assim, sobre a importância de reciclar, sobre a valorização desse trabalho, sobre a importância da coleta seletiva? O que você gostaria de falar pra essas pessoas?
R1 – Uma: todo mundo respira, quem que não respira? Todos nós respiramos, né? Então, se você quer respirar melhor, é começando por aí, é na reciclagem. Porque você vai começar a limpar nossa área, né? Porque, se você aterra esses materiais, só o fogo de desfazer dele, você vai respirar. E, pra isso não acontecer… a partir de… ou queima, ou enterra, vamos crescer problema respiratório, problema pulmonar. E o único jeito disso não acontecer, é quando você começa a reciclar, fazer o ar ficar mais limpo. A gente tem que limpar o ar, nós todos temos que trabalhar juntos, para limpar o ar. Senão, coitado dos nossos filhos, dos nossos netos, que ar que vai ter? Aí vai ter que ser igual o _______, usar um capacete. Até usar capacete, quando nós não usamos. Nós não soubemos cuidar do nosso planeta. Nós dizemos que temos estudos, dizemos que temos estudos, dizemos que somos estudantes. Aprende tanto, mas a necessidade mesmo de fazer, ninguém faz. Às vezes prefiro eu mesmo, analfabeta, mas conhecimento. É isso que eu falaria do nosso ar, do nosso planeta. Porque a gente fala que gosta tanto da nossa família e não cuida do que nossa família mais necessita. Você vê, pode ver, como não tinha muitas coisas, quando os nossos antepassados viviam. Fiquei sabendo que minha avó morreu com cento e poucos anos. Por que ela morreu com centos e poucos anos? Porque o ar não era tão sujo, o ar não era tão poluído. Nosso povo antigo não tinha tanta doença como agora. Quem está criando essas doenças? Somos nós. Nós estamos criando essas doenças. Contamina ali, contamina aqui, o outro vai lá e come, aí passa… é tão fácil de solucionar, não precisa nem ter estudo, é só pensar. É só pensar. As pessoas, parece, têm preguiça até de pensar. Um advogado, pra resolver um caso, tem que pensar, mas não pode só focar no caso dele, tem que focar na vida dele também. Um juiz, a mesma coisa. Aí eu falo assim: “Nossa, as pessoas estão…”, sei lá, não dá pra entender como está a cabecinha desse pessoal, não.
P/1 – Estamos caminhando bem para o fim. Queria te fazer as duas últimas perguntas. Se você gostaria de acrescentar alguma coisa, contar alguma passagem da sua vida que eu não tenha te perguntado, alguma história, ou deixar alguma mensagem….
R – A mensagem eu deixei. Só a bonitinha da prefeitura já estando aí, já deixei uma boa mensagem. Sabe o que eu podia ter feito? Falar pra você: “Vira a câmera”. (risos) Só isso que errei, meu Deus do céu, como eu perdi uma oportunidade boa dessa! (risos) “Ah, você quer visitar minha casa? Beleza. Câmera, vem cá, vamos lá visitar minha casa”. (risos) Eu falei pra ela: “Não”. Falei pra ela: “Entra, porque eu tô fazendo gravação aqui, quer entrar?” “Não, não. Tem outra pessoa pra seguir a gente, não?” “Minha mãe não está, ela está fazendo uma filmagem, não tenho nem assunto pra gente”. Falei, mesmo. Eu vou cortar um assunto que eu já tinha comentado, daqui três, quatro dias, vão estar de novo. E o Régis está ó, com eles. Engraçado que nem fede a minha casa. Agora, o bueiro dessa porra vaza aí, ninguém faz nada. Bueiro livre, desse prédio aí. Ninguém faz nada. Não sei nem como hoje o cheiro não subiu da água suja dali, dali do esgoto deles. É um fedor, é um fedor, que eu me tranco dentro da minha casa, que a minha casa é cheirosinha, ó que ar gostoso. Aquele esgoto deles ali, aberto, Nossa Senhora! Sai água assim, suja assim. Aí ninguém reclama. Água suja lá do prédio pode, né? O esgoto deles pode sair pra rua. Vai saber, se fosse o meu, como estaria, tal. O meu não pode não, vai. Rico pode, pobre não pode. Onde está a diferença, aí? Não diz que são direitos iguais? Onde é que estão os direitos iguais?
P/2 – Maura, posso te fazer uma pergunta? Que você acha falta, por parte da sociedade, ou do Poder Público, de quem quer que seja, para que o catador consiga ser mais recompensado, mais… não só reconhecido…
R – Alvará. Um alvará pra gente trabalhar. É isso que um catador precisa, de um alvará. Porque, se tiver um alvará de liberação do trabalho, todos podemos trabalhar. Igual: se eu fizer um cafezinho ali e tiver um alvará pra vender o cafezinho ali, não posso? Posso. Um carrinho já empurrando também pode ter o alvará. Por que um catador não pode ter o alvará?
P/2 – Hoje não tem?
R – Não tem ainda o alvará. Se eu tivesse. Eu tenho MEI, o MEI eu tenho. Por que eles estão na minha casa? Então, não é um alvará. O MEI eu tenho. Vou ter direito só à aposentadoria, mas não tenho o direito do alvará. Se fosse um alvará, com certeza eles não estariam vindo aqui, com certeza não. Já paga o imposto dela direitinho. Então, não adianta você ter um Cnpj, se não tem o alvará. Tem que ter o alvará, tem que estar ali no papel: “Alvará de fulano de tal, chamada _________, blablablá e blablablá”, mas registrado no cartório. Aí eu acredito, só assim que eu acredito. E essa bagunça vem há sete anos, constantemente, seguidos. Que, pra mim, isso é perseguição. Você vê? O Régis está revoltado. É igual o Régis falou: “Por que eles não invadem a favela, a bocada?” Mas a casa de família, eles invadem, eles entram. Entram às oito, entram às sete. Fecham a rua de caminhão. Uma baixaria, uma baixaria. Me tira minha paz, tira a paz da minha família, meu sossego. Minha família, nenhum os atende, não atende. Tem que ser sempre ser eu pra atender. Porque minha família está machucada com isso. E isso só vai acontecer com isso mesmo, filho, com alvará. Não adianta eu estar na mídia, porque na mídia eu estou direto. A mídia não está conseguindo… eu não tô conseguindo barrá-los com a mídia. Então, tem que ter um alvará. Juntar a mídia que eu tenho, com tudo, pra ver se eu consigo um alvará de liberação de trabalho. Infelizmente. (risos) Você vê que a situação, ainda, do catador avulso, é bem tensa, é bem tensa. O catador avulso sofre pra dedéu. Ele sofre com a prefeitura, ele sofre com a polícia, ele sofre com qualquer coisa. O catador avulso não tem vez. Por isso que eu falei: não quero ser de cooperativa, não quero. Porque eu vou abandonar essa turma aí? Vou deixá-los à míngua? Do mesmo jeito que dói em mim, dói neles. E olha que eu tô debaixo do teto, imagina eles, que não estão? A gente precisa fechar um círculo bem grande, pra ver o que consegue para...
P/1 – Mas como é a vida do catadora, na rua?
R – A casa dele é a carroça. Começa por aí. A casa, a cama dele, tudo é a carroça. A carroça é tudo dele. É o lar, é o ganha-pão, é tudo. Daqui pro ferro-velho, ferro-velho, catar, ‘coisou’. Fora que debaixo tomar banho aqui, muitos tomam de cá, jogam a lona, usa ali pra tomar banho, esquentar água ali mesmo, dentro de uma lata, usa ali pra tomar banho. Ali mesmo na rua já faz sua comida. Às vezes, uns gostam de comer no restaurante, né? Mas outros até… igual um amigo meu falou que foi tomar um café, o cara falou: “O bufê por hoje fechou”. Mas não vendeu o café pra ele. Disse que ficou tão bravo, tão bravo: “Caralho, não tô pedindo, aqui o dinheiro, tô comprando, quero comprar”. (risos). Ele está errado? Está. Entre aspas, ele sofreu um preconceito, ele reagiu. Ele não está roubando, ia pagar o café. Estranho, né? As pessoas… é igual: eu estava desarrumada e entrei no mercado. As pessoas começaram a me seguir. O Régis fica puto da vida. (risos) Foi no Dia, eu estava desarrumada, o Regis estava arrumado. A mulher chegou em mim assim: “Senhora, não pode pedir esmola aqui dentro, não” “Ahn? Ô, Aline, tem uma funcionária aqui no Dia, dizendo que eu tô pedindo” “Desculpa” “Não tem desculpa não, filha. Quem vê cara, não vê coração”. Eu adoro andar bem bagunçada. Só que, assim, eu gostaria de andar bagunçada e alguém na câmera escondido assim, filmando, para ver que barbaridade, que barbaridade! Porque eu solto o cabelo e não o molho, ele fica assim, né? Aí eu ponho uma roupa mais suada. Tenta entrar em algum lugar, pra ver se já não tem segurança atrás de você. (risos) Isso aí é um bando, rapidinho, eu só vou lá pra ver. Eles ainda disfarçam, fingem que estão mexendo nas coisas, fico rindo. (risos). Aí só para de me seguir quando eu chego no caixa. Eu acho isso tão... roupa não é tudo, cabelo não é tudo. Às vezes um paletó está roubando mais que um… é como eu falo: quem vê cara, não vê coração. Então, aquele assunto é isso mesmo: é só com alvará mesmo, porque o MEI, não é alvará não porque, se fosse alvará, jamais eles iam vir aqui no barraco, ou vinha fazer qualquer coisa. Jamais eles iam dar assunto a uma denúncia, entendeu? Então, não é a liberação, ainda não é. Tomara que um dia seja, mas, pra mim, não é. Se fosse uma liberação, eles não iriam vir, entendeu?
P/1 – Maura, como que foi, pra você, dividir um pouquinho da sua história com a gente? Lembrar um pouco da sua trajetória de vida?
R – Eu já tô acostumada. (risos). Porque minha história toda já está no YouTube, né? No documentário que eu fiz, Carroça 21. Então, pra mim, isso é normal. É um desabafo. Eu chamo desabafo. Sabe, assim: “Ô, me ajuda, não aguento mais!” Pra mim, é um desabafo, eu vejo como um desabafo. Você entende?
P/1 – Obrigada!
R – Eu que agradeço.
P/1 – Abrir sua casa pra gente entrar, por tudo isso, por dividir sua história com a gente.
R – Eu preciso abrir mesmo, senão eu enlouqueço. (risos) Senão enlouqueço, enlouqueço. Isso elas devem estar vendo já de outros cantos, sabe? Ai, só Jesus.
P/2 – Obrigadão.
Recolher