Projeto Museu Aberto
Depoimento de Beatriz Maria dos Santos Nascimento
Entrevistada por Charles e Eduardo
São Paulo, 28/02/2004
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MA_HV053
Revisado por Natália Ártico Tozo
P/1 – Beatriz, inicialmente eu gostaria que você me dissesse o seu nome c...Continuar leitura
Projeto Museu Aberto
Depoimento de Beatriz Maria dos Santos Nascimento
Entrevistada por Charles e Eduardo
São Paulo, 28/02/2004
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MA_HV053
Revisado por Natália Ártico Tozo
P/1 – Beatriz, inicialmente eu gostaria que você me dissesse o seu nome completo.
R – O meu nome completo é Beatriz Maria dos Santos Nascimento.
P/1 – Quando você nasceu, Beatriz?
R – Nasci dia 7 de fevereiro de 1946.
P/1 – Onde você nasceu?
R – Em Andaraí, Bahia.
P/2 – Beatriz, você pode me falar um pouquinho da sua família? Seu pai?
R – Meu pai era uma pessoa... Uma figura muito ilustre, porque ele disse que ficou independente desde os oito anos de idade. Ele era o filho mais velho da família dele e o pai dele levava sempre ele consigo quando ia trabalhar. E aí o pai dele teve um surto de doença mental e foi assassinado a tiros. E ele que seguiu comandando a vida dele. Ele aos oito anos de idade já levava um monte de animais de uma cidade para outra, sabe? Era jegue, não é? Que tinha as tropas...
P/2 – Hum... Hum...
R – Pra vender, então levava de um sítio pra outro, ele já sozinho mesmo. Levava, ganhava dinheiro e dava para a mãe dele sustentar os outros irmãos, que tinha também uma turma de crianças menor que ele, bastante. Ele disse que o pai dele quando morreu, morreu novo, aos quarenta e poucos anos, deixou 23 filhos e nada de recursos para nenhum. Então eu acho, achava ele admirável.
P/1 – E o seu pai fazia o quê?
R – Ele fazia de tudo. Quando ele conheceu minha mãe lá em Andaraí, que ele nasceu em Lençóis, morou em Itaberaba... E aí ele viajou lá para Andaraí, conheceu a minha mãe no Andaraí, porque ele foi pra lá para garimpar e pegar diamante na Serra. E lá ele conheceu a minha mãe.
P/1 – Hum... Hum...
R – E então ele era garimpeiro; além de ser tropeiro era garimpeiro, era lavrador, que ele tinha a roça dele, ele plantava mandioca, fazia farinha, criava bichos, cabrito, sabe? Sempre teve criações e eu achava ele muito admirável, muito trabalhador, muito forte. Eu gostava muito do meu pai...
P/1 – E a sua mãe, Beatriz?
R – A minha mãe a mesma coisa, a minha mãe já era a filha caçula da família dela, era mimosa, sabe? Todo dengo. Aí meu pai chegou lá na cidade, a minha avó viu ele, gostou dele, porque ele era um homem trabalhador, esforçado, e fez ele casar com a minha mãe. Eles não eram um namoro, a minha mãe não gostava dele, não amou ele, não namorou ele, ela tinha outros sonhos para a vida dela.
P/1 – Hum... Hum...
R – E aí casou, não é? Viveram uns dez anos só juntos, mas foi com muitas brigas, muito sofrimento.
P/1 – E a sua infância, como é que foi?
R – Aí que vem: a minha infância era o reflexo dessa união, desse casamento da minha mãe. Ela era uma moça cheia de sonhos, de alegria e casou com um homem bem mais velho, ele era vinte anos mais velho que ela e aí não dava certo e eles se separaram. Mas eu adorava a minha mãe... Quando eles se separaram já estavam com cinco filhos, seis filhos, estavam esperando o último... Por ter esperado o Paulinho... Ela estava grávida dele...
P/1 – Hum... Hum...
R – E...
P/1 – Tudo bem, pode ficar à vontade.
R – E então, nessa ocasião, quando ela foi embora com cinco filhos, ela não queria me levar...
P/1 – Hum... Hum...
R – E não ia levar eu nem meu irmão mais velho, porque ela não queria levar os cinco, ela ia levar só os pequenininhos, mais cuidados pra ela, ela tinha um cuidado especial por aqueles, e nós, que éramos maiorzinhos, já ajudava eles e ela queria deixar com o meu pai. Aí eu fugi atrás dela, atravessei a pista, a via Anhanguera. Fugi e acompanhei e fui com ela; mas pouco tempo depois os vizinhos denunciaram para o meu pai que eu estava apanhando muito, ela me bateu muito e ele foi lá, me enganou e me levou pra morar com ele.
P/1 – Hum... Hum...
R – Então eu fui criada pelo meu pai. E eu era assim, já dona de casa; com nove anos, oito, nove anos de idade já era dona de casa. Tinha que cozinhar pra família, que era eu, o meu irmão mais velho, que é o Ângelo e a Mara que era a mais nova, na época. Abaixo dela ainda vem o Paulinho, que tinha nascido... Mas ela era uma das pequenininhas, então eu tinha que lavar, cozinhar... Já era dona de casa aos oito anos de idade.
P/2 – E você já estava em São Paulo nessa época?
R – Ah, já. Quando veio eu tinha... Quantos anos que eu tinha? Acho que uns seis anos, quando a gente veio...
P/2 – Por que a sua família veio pra São Paulo?
R – Por causa da crise, da seca, da fome. Começou a dar uma crise, ninguém tinha dinheiro para comprar nada. Não produzia, a roça começou a secar, as plantas... O pessoal todo corria pra cá. Também existia uma fama que aqui em São Paulo era só chegar que todo mundo ganhava muito dinheiro e ficava bem de vida, e a minha mãe... Nossa! Enlouqueceu para vir para cá. O meu pai não queria vir, mas ela falou: “Se você não quer ir você fica aí, porque eu vou”. A tia dela já tinha vindo na frente, a tia Calu, que era como se fosse a mãe. A minha avó morreu, mas a irmã da minha avó morava perto da gente e a minha mãe gostava muito da minha tia Calu. Minha tia Calu veio embora pra cá, aí ela também não ficou mais lá, por isso que a gente veio pra cá.
P/2 – Os seus pais se separaram aqui em São Paulo...
R – É, se separaram aqui em São Paulo. Depois que veio pra cá que se separou.
P/1 – E você se lembra da sua chegada em São Paulo?
R – Lembro. Saímos de lá de caminhão e era uma estrada muito perigosa, tinha a curva da morte lá, era uma estrada muito ruim. A gente veio até Queimadinhas, chegou lá, a gente fazia baldeação com trem – a primeira vez que nós entramos num trem, num trem de ferro. Viemos até Minas Gerais, lá fazia outra baldeação, que ia até o Rio de Janeiro, de lá pegava outro trem que vinha até São Paulo, aí quando chegamos... Ficamos nesse trem, assim, dormia em beliche, a gente tudo veio. Eu era pequenininha, meu irmão, nós achávamos uma festa aquilo tudo, porque tinha aquele monte de beliche, todo mundo dormindo um em cima do outro, a gente achava muito legal...
P/1 – E a viagem de trem, você se lembra de alguma coisa?
R – Ah, na viagem de trem também foi muito interessante, foi a primeira vez que eu comi macarronada. (risos) Tinha pessoas doentes no trem, era triste, sabe? Mas pra nós era uma festa, eu e meu irmão...
P/1 – E quando você comeu macarronada, o que você achou?
R – Ah, uma delícia, muito gostoso, a gente fica muito feliz comendo macarronada.
P/2 – Beatriz, você falou que praticamente aos oito, nove anos, você já comandava a sua casa. E como é que foi a sua adolescência? O que você fazia, qual era a diversão?
R – É, praticamente tinha muita diversão, tinha um circo, a gente ia ao circo, no bar mesmo, a gente ia à missa e ir à missa já era uma diversão naquela época pra nós...
P/1 – Você gostava...
R – Na minha adolescência ia à missa, ia ao retiro com o pessoal da Igreja, uma chácara que tem lá, da mãe Lainha, a gente ia lá, passava um dia, brincava lá...
P/1 – Hum... Hum...
R – Alguma coisa desse tipo, tinha muita diversão, muito lazer...
P/1 – Você sempre foi muito ligada à Igreja?
R – Não, não. Eu tinha muita fé, mas não de ser devota da Igreja, ser membro, filha de Maria, como a minha irmã que morreu. Ela era bem ligada à Igreja a ponto de ir trabalhar na casa paroquial pra poder ir... Porque o meu pai não deixava a gente ficar muito obcecada por nada, assim, não tinha o direito, naquela época...
P/1 – Hum... Hum...
R – Não podia gostar de nada, era só o que ele deixava; se fosse pra ir à missa, tinha que pedir permissão para o pai, era muito rígido na educação.
P/2 – E o circo daquela época, principalmente esse circo de bairro, era um circo menor?
R – Era praticamente como o de hoje, tinha lá o palhaço, tinha... Era igual. O circo era simples, mas tinha animais, tinha dança, era bonito. Eu achava bonito o circo.
P/1 – E a escola, Beatriz?
R – Na escola era ótimo... A escola era uma escolinha num sítio chamado “Escola do Sítio Jaraguá”. Lá a professora era como se fosse a nossa mãe, sabe? Ela ensinava a gente, ensinava tudo, de tudo um pouco...
P/1 – Hum... Hum...
R – Higiene, educação, amar os pais, de tudo ela ensinava.
P/2 – Você se lembra de algum fato especial dessa época?
R – Todo dia no jantar dela ela já separava um vasilhame com comida pra nós levar pra casa pra almoçar, porque ela sabia que a gente – eu, meu irmão e minha irmã – não tinha mãe, e ela trazia comida pronta numa sacola, bem guardadinha, nunca estragou a comida que ela trazia, era uma sopa... Não me lembro bem como é que era a comida, eu sei que era muito gostosa e a gente chegava em casa, esquentava e comia ainda, era muito bom. Professora muito dedicada, ensinava muito bem, nos elogiava, falava que éramos inteligentes. E a gente queria mostrar que a gente era mesmo; conforme ela falava que nós éramos inteligentes, a gente não queria errar nada, só tirava nota cem. Eu e o meu irmão tirávamos nota cem, naquela época não era nem nota dez. (risos) Então era muito boa aquela fase da escola, primeira escola, foi muito bom.
P/2 – E você continuou na escola ou...
R – Não, aí a gente estudou até o terceiro ano e quando terminava o terceiro ano se fosse continuar teria que fazer admissão e tinha que pagar a admissão, por causa disso ninguém estudava. Quando chegava no terceiro ano, na nossa área lá, todas as crianças daquela classe, só alguns que os pais tinham mais possibilidade pagavam o estudo para ir pra Lapa. Não tinha mais estudo lá, do terceiro ano em diante tinha que ir para outro grupo e tinha que pagar, praticamente escola particular. Então a gente parava, quando chegava ao terceiro ano parava de estudar e já arrumava emprego. E eu, meu pai não queria deixar eu trabalhar, porque ele falava o que eu ia fazer na... Onde eu ia trabalhar, não tinha profissão, pessoa do meu nível só ia ser chefe de fogão dos outros. Se fosse pra trabalhar para ser chefe de fogão era melhor ficar em casa e eu ficava contrariada com aquilo, sabe? Eu ficava pensando: “Um dia eu ainda saio dessa prisão”. (risos) Ficava muito revoltada. Chegou um dia, eu já estava com dezoito anos, eu fugi de casa e fui morar lá na casa da minha professora. Era a pessoa que eu conhecia na cidade fora do sítio, era só ela, a única casa que eu conhecia, eu fui lá na casa dela... Eu falei: “Eu quero que a senhora me arrume um emprego, deixa eu trabalhar na sua casa ou então arruma um emprego pra mim na casa das suas filhas, porque eu não vou voltar mais pra casa”, aí ela pegou: “Não, mas você tem que falar com o seu pai, você não pode fazer isso”, não sei o quê... Eu convenci ela, ela arrumou na casa de uma amiga dela e eu fui trabalhar em casa de família mesmo.
P/1 – E quanto tempo você trabalhou nessa casa?
R – Eu fiquei um mês, mais ou menos um mês, quinze dias sem dar notícias em casa. Nesses quinze dias a família toda se revolucionou, meu pai foi lá na casa da minha mãe e a minha mãe foi lá na televisão, pediu para o Sílvio Santos, que eu estava desaparecida... (risos) Mas aí quinze dais depois eu voltei e passou, tudo bem, e eles não ficaram mais zangados comigo, não quiseram forçar eu a voltar pra casa, não. E eu continuei trabalhando durante uns dois meses lá nesse lugar, e a minha mãe: “Ah, mas aí ela está explorando você, você tem que ir para outro emprego...”. Minha mãe arrumou uma outra casa pra eu trabalhar e eu fui, fui trabalhando em casa de família por muito tempo.
P/2 – E a senhora trabalhava e morava...
R – Trabalhava e morava em casa de família, porque eu não queria voltar para a casa do meu pai, e a casa da minha mãe era uma casa pequena, ela já tinha... Eu nem fazia planos de voltar para a casa da minha mãe; eu tinha até vontade, mas ela não tinha condição naquela época de me admitir na casa dela. (risos)
P/1 – E seu pai e sua mãe casaram de novo...
R – Não, nunca mais eles casaram de novo, não. A minha mãe teve outro marido, teve um filho primeiro; sete anos depois teve mais uma menina, depois mais outro, são três filhos no próximo casamento dela. E o meu pai não, não arrumou mais outra mulher, ele ficava só com nós em casa. Só que ele passou a beber muito e encher a paciência, a gente não tinha paciência. Quando ficamos adolescentes, primeiro fui eu que saí de casa e depois foi a minha irmã Mara, que foi morar na casa paroquial. Meu irmão casou novinho, casou novo e pronto, aí meu pai ficou sozinho. Mas a gente não abandonava ele e nem tinha ódio, só que ele não suportava ficar preso, ficava nas regras que ele queria. Ele era muito rígido. Todo mundo abandonou ele assim, mas só para pegar uma independência, para poder trabalhar, num lugar que ele queria levar a gente. Ele achava que sabendo capinar já dava para ganhar o pão de cada dia, não é?
P/2 – Beatriz, como é que você conheceu o seu marido?
R – O meu marido? Ele morava de aluguel numa casa que a minha mãe tinha. Minha mãe primeiro fez uma casa, aí foi construindo outra e deixou a casa que ela estava primeiro pra alugar e ele foi morar lá. Ele também veio da Bahia, com os irmãos dele, as irmãs... Era uma família, só que era tudo rapazes e moças. Aí eu conheci ele, gostei muito dele e a gente se casou contra a vontade da minha mãe também. Ela não queria que eu casasse com ele porque eles eram tipo artista, não é? Eles tocavam violão, cantavam, gostavam de proporcionar som das festas e a minha mãe achava que pessoas assim não podiam ser chefe de família. (risos) Aí eu falei: “Não, eu vou casar com ele sim”.
P/1 – Como foi o seu casamento?
R – Foi bom, foi muito bonito. Foi na casa do meu pai, foi bonito. A minha mãe veio para o casamento, todo mundo se juntou e foi muito bom.
P/2 – Teve cantoria?
R – Teve dança, teve tudo, foi muito bonito.
P/1 – Hum... Hum...
R – Apesar de que choveu muito...
P/1 – Choveu?
R – No dia do meu casamento choveu muito e era num sítio, um lugar muito bonito, era difícil de chegar até lá, mas todo mundo foi, ninguém faltou.
P/2 – E os seus filhos?
R – Logo que eu casei eu tive a minha primeira filha. Ela nasceu prematura e aí eu fiquei um mês internada aqui, foi um horror e emagreci. Teve o peso baixo e ainda deu infecção intestinal e ela diminuiu muito o peso. Ela ficou lá tomando sangue, tomando... Transfusão de sangue, tomando vitamina, ficou na incubadora, foi difícil, foi muito difícil para salvar ela e tudo, mas eu fiquei feliz, conseguimos e aí ela é minha primeira filha; hoje é como se fosse o guia da família, sempre tem as ideias brilhantes, sabe? Ajuda a gente, é muito inteligente.
P/1 – Qual o nome dela?
R – Neusa.
P/1 – Que é mãe do Rafael?
R – Não. A Neusa é mãe do Francisco, o nenezinho dela tem um mês.
P/1 – Hum... Hum...
R – É Francisco...
P/2 – E depois que você casou você continuou trabalhando? Como é que foi? Como foi a vida de casada, o cotidiano? Dona de casa?
R – Foi complicado, porque depois que eu casei o meu marido realmente não era uma pessoa muito assídua para trabalhar, estava mais querendo se divertir, ficar num lugar agradável, jogar uma partida de dominó, ter muitos amigos em volta. Mas eu, eu não sabia me precaver, controlar a família, planejar a quantidade de filhos... E, como se diz? Na dieta da primeira filha eu já engravidei da segunda e assim foram todos. Eu tive seis filhos em dez anos, doze anos. E então, foi difícil. Eu brigava com ele... E eu trabalhava por dia, porque o meu trabalho... Eu tinha
que ir para as casas de família trabalhar; deixava as crianças com o meu pai e com ele mesmo. Ele trabalhava de vez em quando um pouco e ele também... Aí ele começou a trabalhar por conta. Ele fazia poço, furava poço. Então ele empreitava um poço, fazia aquilo, acabava e ele ficava mais uma semana, umas três semanas, o tanto de tempo que precisava para ficar sem trabalhar ele não ligava. Mas foi lindo, não é?
P/2 – Hum... Hum...
R – Cada vez mais aumentando a família. Conforme foi passando o tempo, ele também foi, não sei se pela idade, a bebida começou a atrapalhar o relacionamento da gente em casa. Chegou um dia que... Ajuntou as minhas próprias filhas, a Neusa, a Nívea e eu... Ele estava muito relaxado, ficava só no bar o dia todo e as meninas sentiram-se até envergonhadas, porque passava para a escola ele estava lá, voltava da escola, ele estava lá. Chegaram em casa, precisava de umas coisas, um pão, um sabão para lavar roupa, em falta. E elas também como eu, revoltadas. Aí um dia elas falaram assim: “Ou a senhora se separa do papai ou nós vamos embora”. E ela estava com dez anos, a Lívia e a Neusa estavam com onze, nessa idade. Aí eu falei: “Então eu vou tomar uma providência”. Fui na delegacia e chamei a assistente social, falei o caso que era e eles me passaram para a assistente social, que naquela época tinha uma assistente social lá. Eu relatei o caso para ela e ela intimou ele para ir lá depor. Quando ele recebeu a intimação ele ficou tão nervoso... “O que foi? Quem será?”. E eu não falei nada. Aí chegou no dia eu fui lá, cheguei e ele estava lá. Ele ficou tão nervoso. E ela falou assim: “Então, seu Expedito, a sua esposa veio aqui, falou que o senhor anda bebendo, o senhor não está trabalhando e ainda é violento com os seus filhos, ainda fica ameaçando de cortar o pescoço de seus filhos... Então, o que o senhor me diz disso?”. Ele falou assim: “Olha, como eu não sou homem de porta de delegacia, eu vou embora então dessa casa, eu vou largar”. Aí ela falou: “Então o senhor que sabe, quer mesmo isso?”. E ele falou: “Eu nunca fui em delegacia”. Para ele era uma desonra ir em delegacia, (risos) nem que fosse para tomar um conselho, ele achava o fim do mundo. Aí ele foi embora para a casa dos irmãos dele e pronto. Eu achei que foi bom, porque daí pra frente eu fui trabalhando com mais cuidado e logo os meninos foram crescendo, começaram a trabalhar também e hoje a gente tem uma vida melhor, mais independente.
P/1 – Hum... Hum...
R – Uma vida mais honesta, mais tranquila.
P/1 – Você mora no Jaraguá?
R – Agora eu moro em Pirituba.
P/1 – Como é que era o bairro do Jaraguá? Essa região, Jaraguá, Pirituba, Lapa... Você se lembra, você tem essa memória?
R – Na época que eu ainda era menina o Jaraguá não tinha transporte, só tinha o trem para a gente... Inclusive uma vez eu estava com... Porque meu pai era assim, ele trabalhava na Bombril, numa pedreira que tinha lá, mas independente disso ele sempre teve uma roça. Tinha uma roça lá na beira da estrada que a gente capinava, plantava mandioca, milho, e um dia eu estava lá com ele capinando e daqui a pouco uma aranha caranguejeira me mordeu o pé e inchou depressa, na mesma hora inchou todo o meu rosto. E para ir até o Butantã? Nossa, foi um horror! Eu gritava de dor, aí apareceu uma carroça, me botaram em uma carroça, levaram até a estação, chamaram a polícia! (risos) Enquanto a polícia chegava eu estava indo na carroça. A polícia levou acho que até a estação ou levou até lá, sei lá. Só sei que não tinha condução naquela época. A condução era o trem.
P/1 – Hum... Hum...
R – Agora que tem ônibus, tem lotação, tem mais carros, mas naquela época até um carro era difícil.
P/2 – Era pouco habitado lá?
R – Pouco habitado também.
P/2 – Você tocou no fato da sua irmã, a Mara. É Mara, não é? Que veio a falecer.
R – É.
P/2 – Você gostaria de falar dessa história?
R – Então, a história dela... O meu pai era muito, muito rígido, ela também. Ela e a Valdeci. A gente morava tudo na Chica Luíza, num sítio que tinha lá. A Mara foi lá à Igreja e falou para o padre que ela gostaria de sair de casa, mas ela não queria dar desgosto para ele, porque ele já tinha criado a gente desde pequenininho, então o padre falou: “Qualquer coisa que eu posso fazer por vocês é deixar vocês trabalhando aqui”. Então ela foi trabalhar na casa paroquial; cozinhava, arrumava a casa dele e aí teve uma vida mais tranquila. As freiras iam lá, elas também passaram a ser da irmandade das Filhas de Maria. Tinha muitas atividades lá na Igreja, elas eram muito contentes. Nessa época eu já estava trabalhando nas casas de família. Aos domingos eu ia lá para Igreja para ficar com ela. Mas aí chegou um domingo que a freira tinha marcado um encontro lá no outro convento, lá na cidade e elas estavam indo para lá; como elas eram muito pontuais, se perdesse aquele trem elas iam se atrasar... Mas nem foi por isso. É que aí, acho que aquele dia era o dia delas morrerem, por que como é que pode? A estação estava fechada a porteira e elas foram e passaram as duas. Aí veio o outro trem que passa direto, que já tinha um parado na estação, que elas queriam pegar. Por causa disso elas foram atravessar lá e nisso veio um outro expresso que... O pessoal conta que viu na hora que... Todo mundo gritava: “Olha o trem! Olha o trem!” e ela não ouviu nada, de tão obstinada que estava para pegar aquele que estava parado lá. Entraram na linha e o trem apanhou elas e cortou todas em pedaços, foi horrível. Foi o primeiro contato que a gente teve com a morte assim na família. Foi terrível... E a mãe dessa outra menina também, ela já morreu até, ela ficou tão desgostosa que ela não aguentou. E teve também o meu irmão, o Paulinho, também que foi morto, assassinado. Ele namorou com uma menina que ela já tinha um namorado. O namorado ameaçava ele, sabe? Não quis deixar de namorar com a moça por causa do outro namorado. Aí o homem um dia tocaiou ele na estação do metrô e matou ele. Não matou assim... Deu um tiro nele para matar. Ele foi para o hospital, ficou lá. A namorada não foi na nossa casa avisar que ele tinha sido assassinado, atacado por esse rapaz; só quando ele morreu que a polícia foi lá na minha casa avisar para a minha mãe que ele tinha morrido. E a moça já tinha ido na casa da minha mãe e tudo, mas o homem que deu o tiro segurou a moça, não deixou ela ir avisar. E ele pegou infecção hospitalar e morreu por causa disso, de estar abandonado lá no Pronto-Socorro. Poderia ter salvado. Minha mãe, a partir desses dois, todas essas coisas, aos 53 anos a pressão dela... Já começou a dar derrame. Ela já teve bem oito derrames, desde que começou a dar derrame nela. Assim, o braço e a perna direita não funcionam mais. Ela só fica sentada. Faz vinte anos já que ela é doente, acamada, porque não anda.
P/1 – Hum... Hum... Mais alguma pergunta?
P/2 – Mas ela conversa?
R – Conversa. É nítida, tem a mente bem, mas não anda.
P/2 – O seu pai já faleceu?
R – Meu pai já faleceu.
P/1 – Beatriz, atualmente você faz o quê?
R – Atualmente eu trabalho na Secretaria de Habitação, lá na Prefeitura.
P/1 – Hum... Hum...
R – E o que eu acho mais importante que eu faço é que eu estou estudando, não é? Eu estou fazendo o curso de Serviço Social e eu acho que vai ser muito útil.
P/1 – É a partir daí que eu quero conversar com você. Como é que começou essa mudança na sua vida? Você era casada, trabalhava por dia, agora você trabalha já na Secretaria de Habitação, está estudando... Você sabe o momento que essas coisas começaram a mudar na sua vida?
R – Eu sei o momento que mudou, porque eu sempre fui assim, todo mundo sempre fala: “Olha, como você é uma pessoa tão forte, tão...”, meu pai falava: “Você é o meu braço direito, se não fosse essa menina eu não sei o que seria de mim”, meu pai sempre falava. Aí eu casei. Logo não deu certo com o meu marido e eu fiquei sozinha, mas eu consegui dar conta dos meus filhos, da alimentação deles, alugar uma casa para morar, pagar o aluguel. Quando eu via que eu conseguia fazer tudo isso eu pensava: “Eu posso fazer muito mais”. Como eu tinha parado de estudar no terceiro ano quando eu era pequena, na idade de estudar, eu parei no terceiro ano, aí eu voltei a estudar quando eu já estava com quarenta e poucos anos, eu fui para o colégio de novo. Lá onde eu moro, em Pirituba, tinha uma escola à noite; eu comecei a estudar à noite e fiz o meu ginasial, (risos) até a oitava série, estudei. Nessa época eu já estava trabalhando na Prefeitura e aconteceu o seguinte: eu comecei a trabalhar numa limpadora e eu estava acostumada a trabalhar de doméstica, aí eu fui procurar uma limpadora, porque eu queria trabalhar numa empresa de carteira registrada, eu fui trabalhar numa limpadora que chamava Brasanitas e ela prestava serviço no hospital de Pirituba. A encarregada gostava muito de mim e elogiava o meu trabalho e eu ia limpar a sala da diretora do hospital, ela gostava, aí eu falei para ela: “Eu gostaria mesmo era de trabalhar na Prefeitura, não de trabalhar na empresa. Na Prefeitura eu acho que eu ia mais direito, ganhar melhor”. Aí ela falou: “Ah, eu vou arrumar para você”. Aí a Brasanita me suspendeu de trabalhar no hospital porque eu estava com a barriga grande e não podia trabalhar com a barriga grande perto do público e ficamos num depósito por aqui, num lugar, até quando ganhasse o neném. Quando eu ganhei o neném, um mês depois eu voltei lá no hospital. Eu fui mostrar o neném para as mulheres do hospital e ela falou: “Ah, você veio, eu vou te dar a sua vaga. Vem aqui amanhã que eu vou te dar um papel para você ir lá para fazer a admissão”. Nossa, eu fiquei tão feliz! O neném estava com um mês de idade e eu já comecei a trabalhar na Prefeitura. Fui lá, fiz todos os exames que precisava, exame de vista, todos os exames, passei em tudo e fui admitida. Aquela época não era concurso, era admissão.
P/1 – Hum... Hum...
R – Eu entrei como admitida na Prefeitura e fui trabalhando. Passaram muitos anos, quatro, seis anos e eles abriram um concurso. Eu fiz o concurso e fui efetivada na Prefeitura. E a escola... Eu voltei a estudar, fiz o colegial, deixei lá, passei dois ou três anos, eu nem estava pensando em estudar mais. Aí chegou um dia, a minha filha: “Olha mãe, tem a inscrição lá na... Você podia prestar o vestibular”. Eu falei: “É, sabe que é mesmo?”. E fui prestar e passei. Aí eu estou fazendo.
P/1 – E como é que foi para você voltar para a sala de aula?
R – É, foi uma alegria só. (risos)
P/1 – Mas a educação mudou muito? Assim, de quando você ia lá para a escola, que tinha sua professora... O que você acha que mudou? Como você vê essa mudança?
R – Ah, eu acho bom. Tem mais recursos agora. Naquela época a professora era como uma mãe, porque a gente era muita carência e ela trazia até o almoço para dar para as crianças. Era muito trabalho para ela. Hoje, não. Hoje os professores já têm mais recursos, tem computador, tem vários recursos. Tem apostilas, antes era o livro, tinha que comprar aquela cartilha ou a criança não ia poder estudar. A professora era quem comprava a cartilha para dar para várias crianças, que os pais não tinham como comprar.
P/1 – E por que você escolheu Serviço Social?
R – Porque eu achei que com o Serviço Social eu ia poder estar em contato com pessoas muito carentes e eu ia poder passar mensagem de esperança, fazer com que as pessoas acreditem em si, eu achei que ia ser muito... Eu acho, ainda acredito. (risos) Eu estou com a esperança. Sem contar que, independente disso, eu acho que eu faço serviço social já, aplico esse serviço voluntariamente, porque sempre que tem alguém perto de mim que eu posso ajudar, uma boa orientação, eu faço. Dou exemplos de como a gente vencer as dificuldades para as pessoas e tem dado muito efeito. A minha vizinha, a Lurdinha, também, quando ela mudou para lá ela tinha estudado só até o terceiro ano; hoje em dia ela já está no terceiro ano do curso superior, ela estuda Economia Administrativa. Como que é? O curso dela é de Economia mesmo, Economia. Eu sei que ela já está no terceiro ano, se formando já. Então, não é bom a gente poder ser ajudar? Falar: “Vamos sim para a escola! Por que nós vamos dormir às sete, oito horas da noite sendo que nós podemos ter uma escola grátis? Vamos estudar!”. Eu levei muitas pessoas para a escola também.
P/2 – E quais são os conselhos que você mais dá normalmente?
R – Ah, para as pessoas acreditarem no seu potencial. Sempre acreditem em si. Não tenha autopiedade, porque a autopiedade não ajuda ninguém. As pessoas têm que acreditar que ele vai procurar os meios, os caminhos e ser honesto. Com honestidade eu acho que... A verdade... Então eu acho que isso é um conselho que se possa dar para as pessoas, é ser original, verdadeiro e acreditar em si, no seu potencial, porque potencial é uma coisa que é interna, todo mundo traz consigo.
P/2 – Quando a senhora falou da escola de graça...
R – A escola pública.
P/2 – Como é essa escola?
R – A escola pública, porque não é tudo que nós precisamos para a gente se desenvolver, não é? Mas pelo menos dar os primeiros passos, que tem muitas pessoas que vão... Agora mesmo tem um menino lá, que mora perto da minha casa, que ele praticamente entrou umas dez vezes na escola e saiu, ele entrou lá pelo começo do ano e lá para fevereiro, lá para abril, maio, no meio do ano ele já está parando e aí ele para. Ele: “Ah, mas eu vou voltar!”. E eu: “Vai para a escola meu filho, você só vai ser feliz quando você puder estudar e resolver suas coisas. Você não tem que deixar as suas coisas para a escola, mal resolvido, tem que aprender a ler pelo menos, para você ficar mais apto, para você se preparar para a vida”. E agora ele terminou o ginásio dele, mas demorou, viu? Foi muito difícil. Por isso que eu falo: “A escola é de graça porque ele não paga nada para estudar lá”, a não ser que tenha um material que a professora peça, mas ele não tem que pagar uma mensalidade; da primeira à oitava série lá na escola pública é gratuito e o medo, assim, é uma dificuldade para as pessoas, aproveitar esse estudo grátis.
P/1 – Beatriz, você trabalha na Prefeitura, não é? Em qual gestão você entrou na Prefeitura de São Paulo? Quem estava administrando a cidade nessa época?
R – (risos) Foi antes do Jânio Quadros.
P/1 – Hum... Hum...
R – Era o Mário Covas, não é?
P/2 – Antes do Jânio agora na segunda administração dele...
P/1 – Foi no início dos anos 1980, é isso?
R – É, 1981.
P/1 – Você viu algumas gestões da Prefeitura de São Paulo, qual gestão que você mais gostou?
R – (risos) Olha, como eu sou uma pessoa trabalhadora de São Paulo... (risos) Eu gostei demais do trabalho da Marta Suplicy, do governo dela. Eu acho ótimo, eu acho tão bonito ela poder fazer esses CEUs [Centros Educacionais Unificados], pensar na periferia, dar um corredor de ônibus para o pessoal, que eu moro lá em Pirituba, até hoje nunca ninguém tinha se preocupado com o trânsito lá...
P/1 – Hum... Hum...
R – Transporte... Agora tem o corredor de ônibus lá e eu acho que a intenção era melhorar 100% o tráfego dos ônibus, pelo menos, a vida do trabalhador. Então eu acho maravilhoso isso. Foi o que eu mais gostei até agora, da Marta Suplicy.
P/1 – Na sua perspectiva de uma funcionária do município, qual administração você acha que acabou prejudicando vocês?
R – Olha, prejudicando, foi a do Maluf, porque o Maluf não deu aumento e ainda debochava. Ele dizia: “Bom, o funcionário finge que trabalha, eu finjo que pago”. Poxa, quanto tempo perdido na vida de uma pessoa, não é? Ele ficar ali, trabalhando e ainda falar isso: “finge que trabalha”. Aí as pessoas que já não gostam de trabalhar pensam: “O prefeito falou que não gostamos de trabalhar, aí é que não trabalhamos mesmo”, não é? É muito sério isso, eu achei que prejudicou.
P/2 – Tem uma coisa interessante que nessa sua trajetória dentro da Prefeitura, uma das prefeitas era companheira tua de profissão que era assistente social...
R – A Erundina? Parece um exemplo, não é?
P/2 – Alguma coisa te marcou nessa época?
R – Desculpe, eu interrompi você perguntando...
P/2 – É que essa coisa da assistência social começou bem marcante quando a Erundina assumiu a Prefeitura. Você se lembra de alguma ação que foi interessante na época e esse exemplo te levou até a fazer Assistência Social, alguma coisa assim...
R – Eu acho que não tem nada relacionado direto com isso não. Eu acho que não. Inclusive eu tenho uma irmã também que já é formada em Serviço Social. Mas eu acho que o que me... E antes eu achava assim, que o assistente social era uma pessoa que tinha uma autonomia para ajudar pessoas carentes, tirando da situação difícil, tirando da rua, levando para um albergue. Isso era minha visão de Serviço Social, por isso que eu tinha o maior sonho de ser uma assistente social atuante, eu achava que eu ia atuar muito. E eu não sei se sempre a gente vai ter essa condição, mas pelo menos a minha intenção foi essa, ajudar pessoas.
P/1 – Beatriz, hoje qual o seu maior projeto? Ao que você tem se dedicado mais?
R – À minha família. Projeto por enquanto é a minha família, porque a minha família continua em fase de formação. Você vê que dificuldade para começar essa formação da minha família. E eu não posso dizer para você que eu vou ter um projeto grande para fazer se eu não conseguir a independência da minha família, não é? Um suporte, uma independência da minha família. Eu acho assim: eu tive seis filhos, ainda não tem um que fale: “Olha, eu estou com a vida estabilizada, já tenho isso ou aquilo meu, já estou...”. Só o meu filho que eu digo que está estabilizado porque ele tem a mulher dele, igual o meu pai, não é? O filho dele... Então ninguém está estabilizado ainda. Não tem um curso, não tem uma profissão definida. Eu acho por isso que a gente ainda está em fase de formação.
P/2 – Como é que é ter netos, Beatriz?
R – Ah, é maravilhoso. É... (risos) Sonhei com o Rafael essa noite. Eu tinha o Francisco, que é um fofinho, tem um mês de idade, lindo ele.
P/1 – Você criou seus irmãos, criou seus filhos e agora tem seus netos. Muda a relação?
R – Olha, não. Eu acho que não, viu? Muda o afeto, não é? O neto é um amor, não sei como alguém consegue amar tanto a avó. Ele fica longe de mim, mas quando ele me vê ele fica tão feliz. Então eu retribuo esse amor. Eu adoro ele, porque ele é uma coisa assim... Genuíno. Ele nasce assim e mora longe, mas tem aquele amor pela avó. É muito bacana e eu adoro ele.
P/1 – Qual a mensagem que você deixaria para a sua família?
R – Ah, para continuar, não é? Continuar essa luta que nós começamos, pra ver se um dia não vamos nos envergonhar ninguém um do outro, porque por ser pobre a gente não é muito bem quisto pela sociedade; por ser negro, piorou. E a minha família, a maioria das famílias também, não é? De pessoas pobres, não tem assim aquela regra de ter o pai e a mãe. É sempre a mulher. A mulher é que tem que aguentar o peso da responsabilidade. E então que as mulheres sejam fortes, para aguentar mesmo, continuar carregando essa responsabilidade, essa consciência.
P/1 – Você é uma mulher de vanguarda, não é? (risos) Quer fazer alguma pergunta, Eduardo?
P/2 – Você colocou uma questão aí: a questão de ser negra. Como é que você percebe a questão do racismo, como que você observa isso? Vamos pegar você, na sua infância, você fala da sua professora, você fala de uma série de coisas. Como que você viu a evolução do racismo ao longo da sua vida? Você acha que a gente vive uma situação mais... Como é que está essa situação para você?
R – Quer saber? (risos)
P/2 – Eu gostaria de saber qual é a sua visão, como você percebe isso.
R – Bom, a minha visão é que agora as pessoas têm mais consciência de que há o racismo. A partir daí já é um passo. É um pequeno passo, mas é um passo. As pessoas têm consciência que há racismo, então elas ficam na delas, não é? Por exemplo: eu tenho consciência de que existe racismo, porque o racismo não é uma coisa declarada, é uma coisa disfarçada.
P/2 – Hum... Hum...
R – E eu trabalhei num departamento da Prefeitura, fiquei cinco anos lá. Pessoas de alto nível, pessoas de formação... Então, eu fiquei cinco anos trabalhando nesse lugar. Eu pedi para sair de lá porque eu não suportava ver aquilo; cinco anos você encontrando as pessoas todos os dias e fala: “Bom dia!”, e a pessoa não responde... Então, né? Só pode ser racismo isso. Aí eu falei: “Não, eu não vou ficar mais trabalhando aqui”. Eu fiquei cinco anos só para observar. Qual é? Eu não fiz nada para ninguém, eu não fiz mal nenhum. Então, se as pessoas não se dirigem a mim só pode ser por causa da cor. Eu não comentava, mas era uma pesquisa interna que eu fazia no meu interior...
P/2 – Hum... Hum...
R – Só para ver. E isso aconteceu, sim. Eu fiquei cinco anos e teve pessoas que ficaram cinco anos sem olhar para a minha cara para falar: “Bom dia!”. E não eram muitas pessoas nesse lugar, então é uma coisa bem declarada, não é? Apesar de que a gente não... Bom, o mundo é grande, tem espaço para todo mundo e cada um tem que viver no seu espaço, então é uma coisa que não me atinge, mas é uma experiência para a gente observar.
P/2 – Quando você teve consciência da questão da negritude em você? De você se assumir como uma mulher negra e gostar dos seus traços, sem querer se parecer com as brancas, sem assumir nenhum estereótipo que não fosse dado pela questão racial.
R – Então, isso é uma coisa super engraçada. Desde pequena eu fui descobrindo tudo sozinha praticamente. Uma que eu era meio calada, eu era muito tímida quando eu era menina, então... Eu olhava no espelho e sabia que eu era diferente das outras e eu me achava bonita. E os outros ficavam gritando, as crianças. Nessa época, quando você voltava da escola vinha aquela turma de meninos brincando e aí como era um longo caminho... Brincando, brigando, um debochando do outro e isso nunca me atingiu: “Ô neguinha feia!”. Aquilo nunca me atingiu, porque eu me achava bem como eu estava, eu achava... Era elogiada na escola, tinha notas boas, a letra a professora achava bonita. Eu até que não achava muito boa a minha letra, mas tinha notas boas, aprendia tudo o que ela ensinava. Portanto, quando os meninos falavam que eu era uma neguinha feia, aquilo... Eu não ligava, não, de jeito nenhum, porque tinha umas meninas que corriam atrás para bater, achavam que tinha que bater nos meninos, porque se não batesse ficava daquele jeito. E eu da minha parte não. Não era conformismo, é que eu achava que não tinha nada a ver.
P/2 – Quer fazer alguma pergunta?
P/1 – Beatriz, se você tivesse que mudar alguma coisa na sua vida, o que você mudaria? Ou você não mudaria nada? Ou você recomeçaria de novo? (risos) Ou seja, são três perguntas para você!
R – Ai, menino, olha! Seria tão bom se tivesse uma harmonia, não é? Entre as pessoas. Ninguém revoltado contra ninguém, ninguém cobrando ninguém. Então, teria que mudar sim... Se eu pudesse dar harmonia, compreensão em todas as pessoas. Na minha família mesmo, e onde eu passo. Tinha que ter mais compreensão entre as pessoas. Isso eu gostaria de mudar, se eu pudesse.
P/1 – Hum... Hum...
R – Queria que as pessoas tivessem mais compreensão uns aos outros.
P/1 – Beatriz, a gente está chegando ao fim da entrevista e eu gostaria de saber se você gostaria de falar mais alguma coisa, falar sobre alguma coisa em especial, tocar em algum assunto...
R – Ah, e agora? (risos)
P/1 – Você tem que ver se a entrevista atendeu a sua expectativa, se de repente tem algum assunto que você quer tratar...
R – Pois é. Eu gostaria sim de comentar, como eu ia falando aquela hora. Quando o meu marido foi embora de casa, aí eu me senti mais responsável, por quê? Antes você fica assim: “Eu vou fazer uma coisa, mas o outro vai me ajudar”. E o outro não te ajuda, então você fica cobrando e nem presta atenção no que você tinha que fazer. Agora se você é obrigado, está na responsabilidade para fazer uma determinada coisa, você sozinha já pega e faz, ou pega e não faz. E foi isso que aconteceu, quando eu fiquei sozinha com a responsabilidade da minha família eu já imediatamente procurei alugar um lugarzinho melhor para morar, um lugar mais perto da escola, mais confortável, onde eu pudesse colocar as crianças na escola, sem ser tão longe. E a casa era muito ruim, porque a minha condição para pagar um aluguel de uma casa era... E as pessoas não aceitavam alugar suas casas boas para uma família onde que tinha a mãe com seis filhos. Eles achavam que as crianças, os filhos, iam quebrar todas as paredes, riscar tudo, então não tinham confiança de alugar a casa. Eu tive que alugar um quarto que era de uma tia da minha irmã e ela tinha deficiência física, ela tinha paralisia infantil, então ela não andava, andava em cima das pernas, arrastando no chão. E tinha aquele quarto e tinha um porão embaixo, que eu botei o fogão lá e improvisei uma cozinha; eu morava só naquele quarto com todas as crianças e ali, quando pisava em cima, caia poeira na parte onde que era a cozinha, sujava as panelas, era muito ruim. Ali era uma condição que eu ficava desesperada, não tinha uma higiene. Pronto, aí eu fui lá... E além do mais a tia sempre falava: “Por que você não vai morar num terreno público? Arranja um terreno aí, vai morar numa favela”, aí ela falava para mim, não é? “Porque você com essas crianças, ninguém vai alugar casa para você”. Ao invés de achar ruim dela falar assim eu achei foi bom. Pensando bem eu resolvi mesmo procurar um lugar desocupado por aí e vou sim construir uma casa para morar e foi isso que eu fiz. Peguei, lá em Pirituba tinha muito terreno público à toa, vazio, sabe? Sem uso. Fui lá, tinha um senhor lá que plantava bananeiras no terreno e aí morava também no terreno. Eu pedi para ele e ele falou que se o pessoal deixasse eu construir ali, os moradores, não é? Porque se formasse favela nesse lugar. Ele falou que se eu conseguisse fazer eu poderia fazer do tamanho que quiser. Foi o que eu fiz. Comecei a construir uma casa num terreno público e lá estou até hoje. Só que a casa que eu comecei era pequenininha com dois cômodos, hoje já é um sobradinho. Já está toda em acabamento, porque os filhos, eles cresceram e trabalharam. Cada vez que eles têm um ajuste, qualquer acerto que eles têm onde eles trabalham, eles aplicam lá. E agora está muradinho o terreno, está direitinho, muito bonitinho, eu acho que todo mundo deveria fazer desse jeito. Não é pegar dinheiro público, mas sim improvisar alguma forma para sobressair, porque ficar brigando com o dono da casa porque está xingando seu filho não é a condição. Quando eu morava lá, essa senhora que era paralítica pegava um pauzinho assim (risos) e pregava um prego; quando os meninos passavam lá, ela falava: “Vou te bater na sua bunda com esse prego aqui se você fizer barulho, viu?”. Então, seis crianças dentro de um quintal, eles fazem barulho, não é? E eles até sonhavam que ela estava correndo atrás deles. (risos) Tanto medo que eles passaram dela. Mas foi bom. Ela me ajudou muito, porque ela me deu essa orientação: “Você não vai poder pagar a prestação de um terreno e mais a construção de uma casa, então vai para um terreno público, faz um ranchinho lá até quando você puder ver os teus filhos crescerem para você construir uma casa”.
P/1 – E você trabalha lá junto com a comunidade no seu bairro?
R – Hum... Hum... Eu trabalho junto com a comunidade, ajudo todos.
P/1 – Como é que é a comunidade lá?
R – Ah, lá agora moram bem umas 150 pessoas nesse terreno público.
P/1 – Você foi uma das primeiras moradoras?
R – Fui. Moram 150 pessoas nesse terreno público. Foi aceito já pela Prefeitura, já está sendo regularizado, está em processo de regularização. Por isso também que eu gosto muito da administração da Marta, (risos) porque ela vê essas partes. Ela vê, pessoas que trabalharam com muito sacrifício, dividiu o dinheiro do pão com a construção, agora mora lá. Se ela não fizesse esses decretos que ela está fazendo para regularizar, dar o título para a pessoa como dono, a pessoa nunca seria dona de um lugar, porque já vai ficando velho, mais abatido, não tem condições de voltar atrás e comprar outro lote e construir outra casa. Se ela não regularizasse, a pessoa nunca teria o gosto de falar: “Olha, eu tenho a minha casa para eu morar”. Invadimos a área, trabalhamos para comprar tijolo e fazer e ainda não iria ter o prazer de ter a casa. Então isso é uma coisa que só quem vive sabe valorizar. Por isso que eu falo: “Eu gosto da administração da prefeita Marta Suplicy”. Porque eles pensam nessas partes, a pessoa não... Os desamparados, não é? (risos)
P/1 – Só um pequeno comentário: quando você fala disso seu olho brilha!
R – É... Jura? (risos)
P/1 – Isso é muito bonito. Mais alguma coisa?
R – Não, acho que é só isso. Acho que até eu já falei demais. (risos)
P/1 – Beatriz, eu quero te agradecer, em nome do Instituto Museu da Pessoa, pela sua simpatia.
R – Obrigada.
P/1 – Muito obrigada, viu?
R – Eu também agradeço vocês pela oportunidade que estão me dando de contar. É a primeira vez que eu faço um depoimento assim, talvez eu tenha sido um pouco embaraçada. (risos) Peço desculpas.
P/1 – Está ótimo.Recolher