Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Tony Marlon Teixeira Santos
Entrevistado por Tereza Ruiz
São Paulo 01/10/2014
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_19
Transcrito por Ana Carolina Ruiz
P/1 – Prim...Continuar leitura
Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Tony Marlon Teixeira Santos
Entrevistado por Tereza Ruiz
São Paulo 01/10/2014
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_19
Transcrito por Ana Carolina Ruiz
P/1 – Primeiro, Tony, eu vou pedir pra você dizer pra gente o seu nome completo, data e o local de nascimento.
R – O meu nome completo é Tony Marlon Teixeira Santos. Data de nascimento é 4 de outubro de 1984 e a cidade que eu fui registrado se chama Salinas, no norte de Minas Gerais.
P/1 – Agora o nome completo da sua mãe e do seu pai e se você lembrar também data e local de nascimento.
R – Tá. Bom, local é essa mesma cidade. Da minha mãe é Marileide Teixeira da Silva e o do meu pai é José Barbosa dos Santos. O nascimento da minha mãe é hoje, dia 1º de outubro, e o do meu pai é dia 20 de setembro.
P/1 – O que os seus pais fazem profissionalmente, Tony?
R – Agora profissionalmente eles estão sendo felizes. Eles depois de 20 anos, 20 e poucos anos fora da minha cidade eles voltaram pra lá agora no começo de 2014. E lá a minha mãe está sem um trabalho fixo, porque é uma cidade muito pequena e o meu pai pegou um dinheirinho que ele conseguiu guardar ao longo dessa jornada Belo Horizonte/São Paulo pra poder comprar um terreno lá pra ele. Ele está plantando, tá criando alguns bichos lá, uns animais lá. Então é isso aí que eles dois estão fazendo nesse momento assim.
P/1 – E eles trabalhavam com o que antes?
R – A minha mãe começou a trabalhar nos últimos dez anos. Ela sempre cuidou dos filhos, ela trabalhava como auxiliar de serviços gerais nos prédios e o meu pai, ele já fez de tudo na vida, absolutamente tudo. Construiu a nossa própria casa inclusive, mas nos últimos anos, ele era porteiro de prédio e depois ele se tornou zelador e aí ele começou a trabalhar só com zeladoria de prédios mesmo que os últimos três trabalhos dele foram todos nessa área.
P/1 – Conta um pouco pra gente como é que eles são assim como pessoas, se você fosse descrever o seu pai e a sua mãe, a personalidade, o jeito deles.
R – Bom, se eu fosse descrever a minha mãe é o amor porque ela tem um senso de cuidado absurdo, absurdo mesmo. Eu não acredito muito em signo, mas ela é a Libriana perfeita pelo cuidado excessivo. Ela vai perguntar 30 vezes se você precisa de alguma coisa, e ela vai fazer a comida que você quer se ela souber que você vai lá. Então a representação da minha mãe é a representação do cuidado. Eu não consigo não dar exemplos, então pra mim a minha mãe é a pessoa se você perguntar como você descreve?”. A minha mãe é a pessoa que mesmo tendo que trabalhar o dia inteiro ela vai levantar uma hora antes pra fazer café pra todo mundo porque na hora que todo mundo levantar todo mundo tem que tomar café. Porque foi assim que ela aprendeu desde criança. Então pra mim a representação da minha mãe é o cuidado, é o amor, eu acho que é esse símbolo assim muito forte dela. Do meu pai tem duas coisas assim que eu uso muito pra representá-lo que um é a paixão pelo Flamengo, que ele transferiu pra mim e me fez amar profundamente o Flamengo, e a outra é que o meu pai tem um senso de justiça que eu acho incrível. É superduro quando precisa ser duro, mas eu nunca senti o meu pai cometendo uma injustiça com quem quer que seja. Se ele acha que aquilo é o certo e de alguma forma ele vai ter que, sei lá... Se um porteiro faltou, mas ele viu que, meu, não tinha como esse porteiro não faltar, ok, ele vai perder a noite de sono dele, vai lá pro lugar desse cara por mais que ele esteja cansado, mas se ele achou que aquilo foi o justo ele não vai reclamar. Ele não vai ficar reclamando, ele vai fazer e fim. Então eu acho que dos dois assim as duas coisas que são muito fortes pra mim é esse senso de amor que eu acho que o senso de amor quando o amor é muito, muito, muito ele encobre um pouco o senso de justiça, porque ele deixa a gente bonzinho demais e a questão não é ser bom, pra mim não existem pessoas boas nem ruins, e aí o meu pai eu acho que ele equilibra um pouco então ele é a justiça. Ele é um senso um pouco mais, uma coisa um pouco mais pragmática, mas muito cuidadoso também, mas o símbolo dele assim pra mim é a justiça. Então fica esse equilíbrio o tempo todo assim dentro da minha casa.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Tenho. Eu tenho duas irmãs. Tem a Leda que tem 24 anos e tem a Helen que tem 15, que estão junto com eles também lá em Minas. Foi todo mundo embora, só ficou eu aqui.
P/1 – Você sabe qual é a origem da sua família, ascendência assim? Avós, bisavós, tetravós.
R – Não faço a mínima ideia. Aliás, é uma coisa que já me interessou bastante assim tentar descobrir. Infelizmente ano passado eu perdi o meu avô então queria muito ter conseguido fazer isso antes. E agora, só agora no final de 2014 que eu vou passar umas férias lá, vou voltar depois de muito tempo, eu vou levar uma câmera e vou tentar resgatar um pouquinho isso assim. Mas é uma coisa que é bem curiosa pra mim, não sei. Quando alguém me pergunta: “Você é descendente de que?”. Eu falo de mineiro, porque não tenho nenhuma... Não conheço, não tem nada da minha raiz que eu saiba.
P/1 – Com quantos anos você saiu de Minas?
R – Eu saí de Minas com cinco anos de idade e aí a gente foi para o sul de Minas Gerais, o meu pai e a minha mãe acharam que lá já tinha dado, já deu. Aí eles foram pro sul de Minas Gerais pra trabalhar em plantações de café, de cana, essas coisas todas. Aí depois eles foram pra Belo Horizonte. Eles ficaram acho que seis meses, um ano assim, eu era muito criança, lembro-me de uma ou outra coisa, e aí depois eles foram pra Belo Horizonte, mas eu saí com cinco.
P/1 – E você sabe por que eles mudaram? Você saiu com cinco de Salinas?
R – Isso. Exatamente. É que Salinas é a cidade maior de lá, cidade satélite digamos assim, e eu sou na verdade de um povoadinho pequenininho, superpequenininho que na verdade é o subpovoado do povoado, que é muito pequenininho mesmo. Tem um lugarzinho que chama Santo Antônio da Itinga, que é aquele clássico povoado daqueles filmes assim, então é uma igreja no centro e toda a comunidade se constrói ao redor, que é onde meu pai e os irmãos dele jogavam bola quando eles eram crianças e eles pediram lá aquele espaço pra jogar bola. Na verdade construíram um monte de casa e aí virou um povoado e hoje é um povoado que é Santo Antônio. E aí onde eu morava de fato era outro lugar que é... Eu esqueci agora o nome, mas que é 20 minutos de lá, que aí é no meio da roça mesmo. É uma casinha de adobe ainda, é super-rural, rural, rural mesmo. Mas na verdade, óbvio, quando a gente nasce lá, como lá não é cidade, nenhum desses dois espaços são cidades constituídas, a gente é registrado como Salinas. Você me perguntou por que eles saíram, olha, eu não me lembro de nunca a gente ter tido esse papo de qual foi a motivação, mas assim do que eu entendo a motivação era que de fato eles acharam que era aquilo mesmo, que já tinha oferecido tudo que tinha a oferecer. Salinas é no norte de Minas Gerais, então Minas Gerais do nordeste já. Eu sei que tinha um problema muito sério de seca, dos anos 70, por exemplo, você poder plantar e colher de absolutamente tudo e depois não ter mais nada, os negócios não fluírem muito. Meu avô, por exemplo, tinha uma fazenda lá e tal. Então eu acredito que deva ser alguma coisa nesse sentido. Eu sei que a motivação é: “Aqui não está dando mais, a gente vai procurar outra coisa”. E o meu pai já tinha morado em São Paulo, eu lembro, eles me contam que a vontade deles na verdade era vir pra São Paulo, mas eles fizeram todo um caminho até chegar aqui.
P/1 – Você tem alguma recordação desse povoado?
R – Eu tenho. Tenho recordação do dia que eu fui embora com cinco anos. Lembro-me do meu tio, tio Deimar, que ele é muito engraçado e eu me lembro dele... Bom, como era um povoado muito pequenininho não tinha ônibus, nada disso, era um caminhão que levava as pessoas pra cidade, pra Salinas. Eu lembro claramente que colocava todo mundo lá em cima, aquela clássica cena dos retirantes, e aí você ia na chuva como fosse. Eu lembro que a gente tava saindo, o caminhão tava saindo assim e ele comprou - em Minas se fala chuvinha - mas é um tipo de bombinha que na verdade você só liga tipo vela de aniversário e ela faz aquela luz toda. Ele me deu aquilo de presente, falou que era pra eu acender no caminho que era pra me lembrar dele e tal, mas como tava meio garoando, chovendo, não ligou assim, eu coloquei fogo e ela não pegou. Isso me marcou profundamente assim, profundamente. Lembro-me dessa cena, lembro-me da cena desse negocinho não pegando, lembro-me da cena dele me entregando isso, isso pra mim foi muito forte porque eu já estava no caminhão, o caminhão já tava ligado, a gente já tava saindo e aí no último segundo assim ele foi e me deu isso de presente como se ele quisesse deixar um pouquinho dele comigo. Eu sempre fui muito apegado porque ele sempre foi muito divertido e animado. Os meus pais sempre falaram que quando eu era criança era meio animadão, gostava da bagunça. Então eu lembro muito bem dessa cena, eu lembro que eu tinha um cachorro que, enfim, tiveram que matar lá porque ele não ficou bem de lá saúde, eu lembro claramente dele também. Deixa-me tentar lembrar outra cena que pra mim é muito marcante. Eu lembro muito, ao lado desse povoado, ele é assim, e aqui ao lado passa um rio que é o Rio da Itinga, por isso Santo Antônio da Itinga, e quando você vai pra casa do meu avô você sobe muito pra depois descer pra ir pro vale que é a casa do meu avô. E lá de cima da pra ver esse rio, a curva desse rio, e essa imagem fica muito na minha cabeça porque ela é linda. O sol reflete totalmente nele e aí você consegue enxergá-lo assim até sumir, muito longe assim. Então é uma imagem que plasticamente fica muito forte na minha cabeça, muito bonita.
P/1 – Você se lembra da casa em que vocês moravam lá?
R – Lembro-me. Lembro-me da casa, faz uns cinco, seis anos eu fiz uma jornada pessoal de passar por todos os lugares onde eu morei na minha vida e aí eu revisitei. Ela já, tadinha, está quase caindo já porque é de adobe, depois o meu tio morou lá, outro tio morou lá, mas lembro claramente da casinha, lembro-me do desenho. Ela é a mesma coisa até hoje, o mesmo formato, não tem fogão, o fogão é de lenha mesmo, tem um forno de adobe também feito que depois eu falei: “Pai, como você fez esse forno?”. Porque o negócio é circular assim e ele fica, sabe? Eu não sei qual a engenharia que criaram, nem existia construtora naquela época e os caras faziam um negócio desses. Eu lembro, tem plantação de... Tem um clássico pé de laranja lima no fundo da casa, lembro-me disso também. Enfim, eu lembro claramente assim tem um caminho oficial e um caminho oficioso que é no fundo da casa, que aí você corta caminho, passa por dentro do rio, que tem um riozinho assim, e aí chega à casa do meu avô do outro lado. Lembro claramente também desse caminho, de como era legal passar por esse caminho, de como lá é silencioso, não tem nada, não tem barulho de nada e tal. Lembro com muito carinho assim desse espaço, desse caminho.
P/1 – E dessa viagem quando vocês saíram de lá? Você mencionou pra gente que vocês saíram num caminhão por que não tinha ônibus. Da viagem você lembra? E como é que foi chegar ao novo destino, à nova cidade?
R – Da viagem eu só me lembro dessa cena desse luminoso, digamos assim, que o meu tio me deu. Depois a minha memória já corta pro sul de Minas e aí esse meio tempo aí de como eu cheguei ao sul de Minas eu não me lembro de nada, talvez porque não tenha sido tão prazeroso eu dei uma apagada um pouco da minha cabeça, mas eu lembro já do sul de Minas assim. Eu já me lembro da gente morando lá, dessa plantação de café, eu me lembro da plantação de cana e tinha um avião que ficava passando lá meio que fiscalizando, alguma coisa assim, o trabalho das pessoas, mas da viagem propriamente eu não consigo me recordar, não.
P/1 – E onde era esse sul de Minas? Qual que era a cidade?
R – Então, eu não... Sabe que é engraçado, até hoje eu não sei, nunca perguntei pros meus pais assim, eu acho que é um movimento inconsciente inclusive. Nunca perguntei. Eu só me lembro desse lugar, lembro que era muito chato, muito chato. Teve um momento, por exemplo, que a gente começou a morar com várias famílias ao mesmo tempo numa mesma casa. Não foi uma experiência muito prazerosa acho que porque eu era criança. Lembro que nessa época, por exemplo, nesse lugar chovia muito e muito forte. Muito, muito forte mesmo diariamente assim, e eu fiquei com medo de chuva a partir daí e era muito engraçado. Depois eu fiquei com medo de chuva assim, fiquei com isso na cabeça.
P/1 – Mas vocês passaram por alguma situação delicada assim?
R – Não. Eu acho que foi mais a imagem de juntar aquele lugar que não era legal, de querer voltar pra minha família, pros meus tios e tal. E aí eu acho que eu transferi isso pra essa imagem assim, eu precisava de alguma coisa pra me lembrar desse momento, falar: “Ok. Eu não quero viver isso nunca mais”. Acho que eu transferi isso um pouco pra chuva assim. Mas de lá, por exemplo, eu me lembro dessa época de a gente ter que morar com várias famílias ao mesmo tempo. Isso foi chato. Isso foi muito chato. Era muita gente, era muito chato. Depois a gente se mudou, foi pra outra casa que era uma casa muito antiga e também era muito chata essa casa. Depois minha memória dá outro salto e eu já me lembro do dia que a gente tava na rodoviária pra ir embora pra Belo Horizonte. Só.
P/1 – E como é que foi essa ida pra Belo Horizonte? O que você se recorda da viagem?
R – Eu me recordo, bom, de fato da viagem eu me recordo que eu estava na rodoviária aí meu pai falou: “Bom, agora a gente vai pra Belo Horizonte.” “Mas isso é longe, é perto?” “Um pouco longe e tal.” “Mas por que a gente não vai ficar aqui?” “Aqui não. A gente vai pra lá. Tem um monte de parente lá, a gente vai pra lá”. E eu lembro que eu tava meio tipo de saco cheio assim: “Esse ônibus que não chega”. Aí meu pai comprou um doce que era um doce verde maior estranho lá e eu lembro que esse doce estava maior gostoso. E aí eu peguei esse doce e aí o ônibus chegou, aí eu falei: “Ah, deve ser esse doce que fez o ônibus chegar”. E aí eu peguei o ônibus e a gente já foi pra Belo Horizonte, não me lembro da gente chegando lá. É, não me lembro da gente chegando lá, mas fisicamente desse processo, dessa transição mesmo eu me lembro desse doce. Então hoje em dia onde eu vejo um doce verde, sei lá, qualquer coisa que tenha essa cor esverdeada eu me lembro desse momento específico assim. A minha cabeça funciona muito criando memória, eu sou muito visual, então o tempo todo tudo que tem imagem, por exemplo, o ambiente era chato, eu transfiro isso pra chuva. Ah, foi um momento de transição importante, eu transfiro isso pro doce. Então o tempo todo eu estou criando essas memórias eu acho que na minha cabeça.
P/1 – E você se lembra do que você achou de BH quando vocês chegaram? Onde vocês foram morar e qual que foi a sua sensação, sua impressão da cidade?
R – Lembro que os meus tios me receberam. Eu gostei da cidade. Bom, era bem melhor do que onde a gente tava porque lá era um lugar meio isolado, sentia-me meio preso lá dentro. E aí quando a gente chegou a Belo Horizonte já tinha tios, primos, era uma coisa muito mais acolhedora. Eu me lembro disso, lembro-me dessa sensação muito boa de: “Ok. Eu estou num ambiente mais seguro agora, beleza, tranquilo”. O primeiro lugar que a gente foi morar... Nossa, eu não lembro muito bem qual foi o primeiro lugar, mas eu me lembro de todos os lugares que a gente morou em BH. Bairro Letícia, o Serra Verde, Vespasiano que é outro município ao lado de BH. Lembro-me de todos esses lugares assim, mas do primeiro lugar especificamente eu não me recordo, não.
P/1 – Que idade você tinha quando você chegou a BH?
R – Acho que se eu saí de lá com cinco, acho que seis, sete, alguma coisa assim. Eu acho que foi nesse nível.
P/1 – E nessa fase de infância assim do que você se recorda, quais que eram as brincadeiras? Do que você brincava? Com quem que você brincava?
R – Eu tenho um primo que eu gosto muito e que sempre foi uma referência porque ele é um ano mais velho que eu, que é o Leandro, já é pai inclusive de duas filhas. O Leo sempre foi muito a minha referência assim pra tudo. Ele já morava lá há muito tempo, ele era mais descoladão e tal, eu era muito tímido, então na verdade eu brincava muito com ele, muito com os meus dois outros primos que eram o Arley e o Wallace. A gente brincava sempre os quatro muito juntos aos fins de semana que é quando as famílias se encontravam, morava todo mundo muito próximo. Eu sou uma pessoa eu quase nunca brinquei na rua, essas coisas, sempre tive quintal então sempre me relacionei com as pessoas desse quintal quando a gente era criança, senão era no ambiente escolar. Eu acho que ter me relacionado tanto com o ambiente escolar diz muito sobre o trabalho que eu faço hoje. Então eu sempre brincava... Eu lembro muito da gente brincando fins de semana assim, jogando futebol, assistindo algum filme ou coisa do tipo. A família é muito próxima, todo mundo é muito junto, né? Mas eu não lembro... Lembro muito claramente de futebol porque a gente gostava muito de futebol, o Wallace e o Arley um é cruzeirense o outro é flamenguista, eu era flamenguista e o Leandro era cruzeirense, então tinha essa brincadeira de jogar dois contra dois, eu lembro claramente disso. Com a minha irmã, minha irmã tinha acho que três anos mais ou menos, então cuidava um pouco dela, brincava um pouco com ela, mas de brincadeira especificamente era muito futebol, muito futebol mesmo na escola. Eu só vim sair de casa pra brincar na rua mesmo acho que com 16 anos de idade, já muito, muito, muito tempo depois.
P/1 – Você falou algumas vezes já do Flamengo, que o seu pai era flamenguista, que ele passou isso pra você. Queria saber assim se você lembra quando é que você decidiu que seria flamenguista ou se, bom, talvez já tenha nascido desde o começo, mas se teve algum momento mais marcante assim da relação com o futebol.
R – Sim. Como eu disse, como Salinas é uma Minas Gerais muito do nordeste, a influência é muito da Globo Rio assim, né? Então a minha família inteira, 90% é flamenguista e os outros dez torcem pra times do Rio. Um ou outro acabou torcendo... Vai, nove. Um ou outro acabou torcendo pra time de Minas. Então todos os meus tios são botafoguenses ou flamenguistas ou tricolores. Graças a Deus não tem nenhum vascaíno. Eu me lembro desde criança, com três anos de idade, o meu pai tem essa foto, ele levou, tem eu vestido com a camisa do Flamengo, vestido lá com a chuteira, aquela coisa toda. Eu lembro claramente que em 95 o Flamengo fez cem anos de vida e eu acho que foi a primeira vez que eu tomei consciência de que eu amava profundamente... Futebol eu sei que eu amava, falava que era flamenguista, mas aquela coisa de tomar consciência, de trazer pra consciência eu acho que foi em 95 por dois motivos. Um, porque o Flamengo tava fazendo cem anos e o Flamengo foi jogar em Belo Horizonte e a torcida do Cruzeiro cantou parabéns pro Flamengo. Eu achei aquilo incrível, falei: “Nossa, meu, a torcida do outro time cantar parabéns pro meu time. Mano, isso é muito incrível”. Achei aquilo bonito, forte, então isso ficou na minha cabeça. E em 95 também o Flamengo perdeu um título, que é o campeonato carioca, em cima pro Fluminense que é o maior rival na época, o Fla-Flu que eles chamaram de Fla-Flu do século, era uma imagem lindíssima, todo mundo tava esperando esse jogo. Então o Flamengo completando cem anos, o Flamengo o time de maior torcida do Brasil completando cem anos com um jogo com o maior rival com cem mil pessoas no Maracanã e tal. Se eu não me engano o Flamengo virou o primeiro tempo vencendo de dois a zero e depois o Fluminense empatou de dois a dois e, se eu não me engano o empate era... Ou o Fluminense empatou ou ele virou, se eu não me engano o empate era do Fluminense e o Renato Gaúcho, eterno carrasco do Flamengo, fez um gol de barriga aos 40 do segundo tempo. Aí eu falei: “Não é possível que esse cara fez esse gol de barriga”. Eu lembro que foi a primeira vez que eu chorei muito de raiva e de não entender aquilo. Eu tinha oito anos, nove anos. Eu lembro que eu fui, passaram os gols assim no Fantástico e passou aquele gol assim de barriga do Renato Gaúcho em todos os ângulos e a torcida do Fluminense gritando, eu falei: “Mano, não é possível, tem alguma coisa errada. Esse cara fez esse gol de mão. Não é possível”. Eu lembro que eu virei pro meu pai e falei assim: “Existe a possibilidade desse jogo ser anulado?”. Meu pai falou: “Não”. Meu pai ficou muito triste também. E a gente ficou olhando pra TV e eu chorando falei: “Não é possível que esse cara fez esse gol de barriga assim. Não é possível que a gente tenha perdido com 90% da torcida a nosso favor e tal”. Lembro que nesse dia eu dormia assim muito desolado. Muito desolado: “Cara, não. Não é possível, não é possível”. E aí eu até brinquei, eu fale eu ainda quero trabalhar de alguma coisa na minha vida que eu consiga reverter essa dor assim, sabe? Depois, muito tempo depois eu descobri que o Pelé pensou a mesma coisa da Copa, né? Então, e aí eu lembro que foi isso. Essa foi a vez que eu tomei pra consciência, esses dois fatos, quando o Flamengo perdeu esse campeonato carioca e quando a torcida do Cruzeiro cantou parabéns. E aí nesses dois fatos, um pela dor e outro pela alegria, um pela alegria extrema, outro pela dor extrema, eu olhei e falei: “Nossa, isso me marcou profundamente”. Eu acho que se intensificou, eu trouxe pra consciência essa história do amor pelo Flamengo que hoje é um amor muito mais racional, tranquilo, eu sou sócio do clube mesmo não usufruindo de nada dele, mas a minha questão é com o que o Flamengo me proporciona como afetivo assim. Minha ligação é com o afetivo do time, não tem nada a ver com se ele ganha 30 campeonatos ou não. A minha questão não é essa, a minha questão é o que ele significa afetivamente pra mim.
P/1 – Quando você era criança você lembra o que você queria ser quando crescesse?
R – Jornalista. Sempre quis ser jornalista, sempre quis trabalhar em rádio, sempre quis trabalhar de madrugada. Sempre. Eu não me lembro de querer fazer outra coisa da minha vida. A minha irmã e eu a gente pegava dois rádios e a gente gravava fita, você descobre que você está ficando velho quando fita K7 é uma referência. Então tinham dois gravadores, a gente colocava música num gravador e ela e eu ficávamos fazendo um programa de rádio, então a gente falava: “E agora com vocês vai tocar tal música, não sei o que, não sei o que”. Então a gente fazia as notícias. Nossa, ela é quatro, cinco anos mais velha que eu, então a gente ficava brincando disso. Então ela falava: “E agora a previsão do tempo”. Ela falava a previsão do tempo e tal. Então a minha referência sempre foi de jornalismo, sempre gostei muito de histórias de vida, sempre fui encantado pela história das pessoas e a referência do rádio foi que desde Minas Gerais lá tinha um Motorádio oito faixas que era a única coisa que pegava lá. Então só a noite pegava que é quando as interferências diminuíam, então pegava a rádio Globo Rio, pegava a Itatiaia, Rádio Itatiaia e pegava a Jovem Pan. Então eram essas as referências. Eu cresci, por exemplo, toda a minha referência afetiva de narração de rádio sempre foi do José Carlos Araujo que é do Rio de Janeiro. Nunca tive referência nenhuma de Minas Gerais. E hoje quando eu ouço José Carlos Araujo a narração, o tipo de narração dele é como se eu tivesse voltando, é como se eu criasse essa imagem toda na minha cabeça. Aliás, é um sonho super conhecê-lo, eu o acho incrível. Então desde sempre na verdade sempre foi o meu sonho fazer rádio especificamente, sempre foi o meu sonho trabalhar com jornalismo, entrevistar pessoas, e depois de determinado tempo sempre ficou muito forte essa vontade de trabalhar de madrugada, não sei muito bem por que. Talvez isso tenha ficado forte porque eu tenha começado a ouvir muito rádio de madrugada e depois de algum tempo quando o meu pai virou porteiro às vezes ele trabalhava à noite e aí ele falava que ele virava a noite ouvindo rádio, eu falava: “Pô, eu quero trabalhar com rádio à noite porque tem muita gente que fica sozinha à noite”. Aliás, ontem eu estava falando com uma amiga minha que trabalha à noite em rádio, eu estava falando pra ela se ela tem noção do que eles significam na vida das pessoas assim, eu contei um pouco dessa história pra ela. Então é incrível saber que uma pessoa está sozinha no estúdio e tem muita gente em todos os lugares, e tem o Tony no interior, do interior, do interior de Minas Gerais que sem querer pegou aquela rádio e aquela pessoa está fazendo companhia pra ele. Então pra mim isso é incrível, sempre foi meu sonho fazer essas coisas.
P/1 – Quando você ouvia rádio na madrugada ou quando o seu pai escutava rádio na madrugada trabalhando você sabe o que ele escutava ou o que você escutava?
R – Nossa, eu não lembro muito bem, não. Do meu pai especificamente eu não lembro muito bem, lembro que ele ouvia um pouquinho de notícia, bastante notícia, né? E depois devia colocar em alguma música. Tem um programa que é muito engraçado que era da Band FM, que era o Marcelo Batista que e era o Band Coruja que sempre foi referência muito legal, começava meia noite, terminava às quatro da manhã. Sempre ia pra escola morrendo de sono porque eu ouvia esse programa e o meu pai também ouvia, depois que eu descobri, ele era muito divertido, Marcelo Batista. E em seguida já vinham dois caras na própria Band também que era o Mano Véio, Mano Novo, que fazia um programa de músicas nordestinas especificamente. Ele fazia um resgate da cultura nordestina muito forte, mas o mais legal de tudo é que eles contavam histórias o tempo todo e eles tinham um sotaque muito legal. Incrível. Então eles faziam um jogral, tinha toda uma brincadeirinha que eu me lembro de ouvir bastante, o meu pai também. Durante toda a minha vida sempre foi muito esporte, futebol, e tinha um programa muito interessante, lá em Minas, que chamava Hora do Fazendeiro, começava às seis da tarde, que era um programa sobre a cultura caipira, tocava moda de viola que eu acho incrível, que eu sou apaixonado até hoje. Contava histórias, recebia cartas de todos os cantos de Minas Gerais e contava um pouco das histórias, meio que um Globo Rural assim no rádio. E eu me lembro de ouvir muito isso. Eu gostava muito do rádio AM, nunca gostei muito de FM. Minha referência sempre foi rádio AM por conta dessa coisa dos 10% música e 90% vamos sentar pra conversar. Então quando eu cheguei a São Paulo, por exemplo, eu ouvia muito a Nova Difusora que é uma rádio de Osasco, é uma rádio de prestação de serviço. Então quando eu lembro, quando eu estava na quarta série, quinta série, sexta série eu me lembro da minha mãe preparando comida pra eu ir pra escola, ela ouvindo a Nova Difusora. Por sorte no decorrer dessa história eu acabei fazendo um trabalho na Nova Difusora, acabei conhecendo os donos da Nova Difusora então pra mim foi uma relação pessoal muito legal saber que eu estava num lugar onde era super-referência pra minha mãe.
P1 – Voltar um pouquinho, queria saber assim, você comentou da escola já mais de uma vez, quais são as primeiras lembranças que você tem da escola?
R – Todas ruins. Tem uma música da Legião Urbana que chama O Reggae que ele fala, eu lembro ele fala dos primeiros contatos dele com a escola e a narração é péssima. Então ele falava: “Eu lembro que eu tive vontade de ir embora, eu lembro que eram todas cheias de grades e eu não entendia muito sobre isso e tal, que as pessoas sempre me falavam o que eu deveria ser e que eu deveria crescer, não sei o que, não sei o que”. Então as minhas referências da infância especificamente, depois não, mas as minhas referências da infância a maioria assim são referências não negativas, mas a maioria são referências muito não tinha muito assim de coisa legal, sabe? Eu lembro que, sei lá, eu, por exemplo, sempre fui muito curioso, extremamente curioso, e eu lembro que eu tinha um repertório um pouco diferente do restante da turma. Então qualquer coisa que me mandassem pedir assim pra fazer eu lembro que sempre me mandavam, mandavam a Eufrasia que era uma menina muito engraçada que agora eu me lembrei dela, que era bem magrinha, bem magrinha, e sempre mandavam a gente. E aí depois foi um menino que era o Bruno que foi de São Paulo pra lá, e aí éramos sempre nós três assim. Qualquer coisa que pedissem pra fazer éramos sempre nós três. Quando ele chegou inclusive eu fui super: “Nossa, como é em São Paulo? Conta pra mim”. Então quando ele chegou, por exemplo, era uma referência totalmente fora da curva. Muito fora da curva mesmo. Eu lembro muito do Cristóvão. Eu me lembro de pessoas, eu me lembro do Cristóvão que era um amigo que morava muito próximo da minha casa, que era uma pessoa que ele tinha uma condição social um pouco mais complicada e eu gostava muito dele. Muito. Muito mesmo. A gente era muito amigo, eu acho que justamente por isso. Eu acho que eu olhava pras brincadeiras que os outros faziam sobre ele na frente dele e nas costas e não achava justo aquilo. Então eu super me juntei a ele e ele virou um amigo muito querido de eu conhecer a casa dele, da minha família conhece-lo e toda vez que tinha alguma coisa que, sei lá, precisasse de algum tipo de ajuda a gente sempre fazia junto porque eu sabia que não dava muito pra ele conseguir fazer determinadas coisas. Ele sempre foi uma pessoa muito simples, muito, absolutamente simples, e eu sempre vi nele uma referência moral muito forte assim, ele sempre foi uma referência muito legal pra mim. E da escola propriamente dita eu fui visitar essa escola que foi a que mais me marcou, que é a Getúlio Vargas, se eu não me engano. Ou Getúlio Vargas ou Vicente Guimarães, não me lembro desses dois. Eu lembro muito claramente de uma escada que tinha lá, que era uma escada que eu sempre ficava sentado conversando com os meus amigos e eu tirei uma foto exatamente nessa escada. Queria muito ter essa sensação de novo, pedi pra diretora, ela não queria deixar, eu falei que era muito importante pra mim, fui lá, recuperei. Fui à quadra. Bom, de verdade eu não lembro muito. Eu me lembro de uma poesia uma vez, uma poesia de um raio de uma primavera lá que me pediram pra declamar que até hoje eu me lembro dessa poesia na minha cabeça. Naquela época eu achava poesia um saco. De professor, que engraçado, eu não me lembro de nenhum professor dessa época. Nenhum, nenhum, nenhum. A minha memória foi toda construída em cima dos meus amigos assim, todas.
P/1 – Isso foi em BH?
R – Isso foi em BH. Exatamente. Foi num bairro que chama Rio Branco. Então a minha memória foi toda construída em cima dos meus amigos, nunca foi em cima de professor, diretora. Estou tentando fazer uma nova busca aqui pra não ser injusto com ninguém. Não lembro. Eu lembro que eu tinha uma professora de português que falava sobre uma tal de morfossintaxe, que ela só falava disso, eu não entendia que raio era isso, mas eu não lembro o nome dela, eu não lembro como ela era, mas eu me lembro dos meus amigos. Lembro-me da Eufrásia, lembro-me do Bruno, lembro-me da Talita, lembro-me de todos daquela época.
P/1 – E como é que você ia e voltava pra escola?
R – Ia a pé. Saía do Serra Verde o meu pai me levava ou a minha mãe, era rapidinho, eram sete ou oito minutos. Passava pelo mesmo caminho de sempre, então às vezes eu ia com a Talita, que era uma menina que morava ao lado da minha casa, que tem uma história bem legal sobre ela, passava lá, a gente passava pelo... A Talita, por exemplo, era uma pessoa que tinha uma condição social inversamente proporcional a nós dois. Não sei a minha referência na época é que ela era rica, mas óbvio, criança tem referência totalmente torta, mas ela tinha uma casa muito legal, o pai dela tinha carro, então era uma referência completamente diferente da nossa. E aí quando eu não ia com a Talita, por exemplo, eu passava pela casa do Cristóvão, ia com ele, mas às vezes a gente passava juntos e ia todo mundo junto. Depois de determinado momento minha família me deixou ir sozinho, então passava sozinho na casa da Talita, passava na casa do Cristóvão, ia junto. A gente ia a pé, tinha uma besteira de fazer uma fila do lado de fora da escola, ficar todo mundo esperando o portão abrir, aquele som que era ueeeeee, que era ridículo aquele som, que me dá pavor até hoje daquilo. E era esse o caminho que a gente fazia, sempre a pé assim, nunca foi de carro, nada dessas coisas. Um dia eu tava indo pra escola correndo muito meu pai: “Para de correr.” correndo muito “Para de correr”. Aí eu caí, tomei um rola absurdo, tenho uma marca até hoje no meu joelho que é uma cicatriz. E o meu pai falou assim: “Eu falei pra você que era pra parar de correr, né?” “É.”. Ele falou: “Então agora você vai ficar assim até a gente voltar pra casa”. Eu lembro que eu cheguei lá superlimpei chorando, limpei lá o machucado. Eu só enfaixei, essas coisas tudo, só quando eu voltei pra casa. Então ele falou assim: “Da próxima vez quando alguém disser pra você não fazer uma coisa, você não faça, ok?” “Ok”. Depois disso eu tomei muito mais cuidado na hora que ele falou alguma coisa.
P/1 – Você falou que você tinha uma história boa com a Talita, conta pra gente.
R – É. A Talita sempre foi de um universo muito diferente assim de nós. Ela sempre foi muito fora da curva de referência assim. E eu lembro que, bom, a gente jogava futebol e a bola sempre caía ao lado da casa dela. Aí determinado momento quando a gente se encontrava na escola ela falava assim: “Olha, a bola caiu lá de novo, que você e os seus primos estavam jogando. Não me pede mais porque agora eu vou jogar”. Aí a bola caía, no outro domingo final de tarde que a gente estava jogando, segunda de manhã a bola aparecia lá no nosso quintal. Eu achava isso muito engraçado, tanto que durante essa jornada que eu fiz de recuperar os espaços, de passar pelos lugares, durante muito tempo depois que eu saí de Minas eu sonhava com esse lugar e eu sonhava com o mesmo movimento. Eu sonhava com o movimento que eu estava onde eu morava no Rio Branco, pegava a escada, colocava no muro, subia até o muro, olhava do outro lado e o meu sonho acabava. Era muito engraçado porque esse sonho sempre se repetiu. E aí quando eu fui fazer esse caminho todo eu passei por esse lugar e fiz esse movimento, peguei a escada... Nunca mais eu sonhei. Então não sei o que isso significa, mas eu acho que a Talita foi uma referência muito forte assim, absurdamente forte, eu aprendia muito com ela, um fim de semana antes dos Mamonas Assassinas morrerem, por exemplo, ela me chamou pra ir no show junto com ela e eu: “Nossa, eu preciso ir nesse show”. Mas aí tinha um amigo, que era o Luciano, que era vizinho também, era o aniversário dele e eu falei: “Eu quero muito ir.” e eu não tinha dinheiro pra ir, não tinha condições “Mas o Luciano já me chamou primeiro, então o que eu faço?”. Eu lembro que eu fiquei com essa dúvida uma semana e eu decidi ficar na festa porque eu tinha dado a minha palavra primeiro pra ele. Aí ela foi ao show, ela falou que foi incrível e na mesma semana os Mamonas Assassinas morreram. Então isso pra mim foi muito forte também, ficou como referência assim na minha cabeça.
P/1 – Isso tudo aconteceu em BH, né? O que você tá contando pra gente. E aí quando que você se muda pra São Paulo?
R – Mudo-me pra São Paulo acho que em 98. Os meus pais falaram: “Bom, agora vamos procurar outra coisa, já deu aqui também”. A gente foi pra casa do meu tio que fica em Campinas, eu me lembro desse caminho, lembro-me da gente indo pra rodoviária, de tudo. Eu me lembro da gente passando pela Fernão Dias, se eu não me engano, que tava toda esburacada, de como aquilo era uma coisa muito nova pra mim: “Mano, eu vou pra São Paulo”. Na verdade nem era pra São Paulo, era pra Campinas. Então eu falava, bom, está mais próximo dos meus sonhos se realizarem, né? Trabalhar numa rádio em São Paulo, morar na Avenida Paulista. Está ficando próximo, está ficando próximo. E aí a gente foi pra Campinas morar na casa do meu tio Manoel até a gente conseguir se acertar. Foi uma experiência ruim também, bem ruim. Naquela época e naquele momento, não que a galera de lá seja assim, mas naquela época, naquele momento eu fui pra uma escola que eu tive umas experiências muito ruins de não ser acolhido nessa escola, de brincarem muito com o meu sotaque, por exemplo. Eu perdi o meu sotaque muito rápido, um mês assim, que era uma forma de eu me defender um pouco disso. Eu me lembro de tudo que eu falava os meninos zoavam um pouco. Eu me lembro de não ser acolhido mesmo, acho que é essa expressão assim. De como era tudo... Eu lembro claramente de um dos meninos, eu não lembro quem foi, numa discussão ele falando que o fato de pessoas de fora de São Paulo virem pra São Paulo fazia com que as pessoas de São Paulo perdessem os seus empregos. Era muito conservador. Muito conservador. E eu lembro que por algum motivo que eu não lembro por que era esse motivo, um menino numa saída me empurrou, que não era da minha sala, um menino de outra sala me empurrou e me deu um soco assim. Eu não entendi muito aquilo e aí os meninos da minha sala viram, eu falei pro meu pai, eu virei pra minha mãe e pro meu pai e falei: “Eu não quero mais ficar nessa escola, eu não estou a fim”. Era uma tortura ir pra escola, era uma tortura segunda-feira. E aí os meus pais foram lá, conversaram com a diretora, não sei o que, não sei o que, identificaram o menino, não sei o que. Até hoje eu não sei por que foi, apaguei isso da minha cabeça, mas eu lembro que nesse momento, por exemplo, foi a curva positiva. Os meninos da minha sala, por exemplo, falaram: “Não. Não vai bater nele, não”. E queriam bater nesse menino, devolver pra ele e tal. Eu falei: “Que interessante”. Virou um pouco o jogo, né? Talvez seja uma lógica do: “Não, a gente zoa com ele, você não”. Pode ser isso também, mas depois disso eu lembro que eu não queria mais ficar nessa escola, não me interessava, não estava a fim. Falei com os meus pais, fiquei pesando muito nos meus pais, meu pai trabalhava em São Paulo e finais de semana ia pra Campinas e aí determinado momento meu pai falou: “Não. A gente vai pra São Paulo agora.” Taboão da Serra, na verdade, duas ruas depois, divide São Paulo “A gente vai pra lá”. Aí o meu pai falou: “Nós vamos pra São Paulo”. Falei: “Aê. Vou mudar de escola. Aê”. Isso no mesmo ano. Aí eu falei: “Beleza” “Nós vamos pra um lugar chamado Taboão da Serra.” “Jura que a gente vai pra um lugar chamado Taboão da Serra? A gente tem que ir pra um lugar... A gente não falou que ia pra São Paulo? Vamos pra São Paulo. Vamos na Avenida Paulista”. Eu achava o nome, Taboão da Serra, pô, que nome é esse? E aí depois Taboão da Serra, por exemplo, São Paulo, Taboão, essas duas ruas que dividem é o lugar onde é a minha comunidade para todo o sempre e como eu resignifiquei esse espaço, como foi importante pra mim. Aí a gente foi morar lá, a gente saiu, então nesse ano eu troquei de escola três vezes. Estudei no primeiro semestre em BH, estudei três meses em Campinas e mais dois meses em Taboão numa escola chamada Zeicy Apparecida Nogueira Baptista, se eu não me engano. E aí eu lembro que foi muito confuso isso na minha cabeça. Eram muitas pessoas e eu não me apegava a nenhumas delas porque era um monte de gente. E aí eu passei de ano muito tranquilamente e eu lembro que eu olhei e falei assim: “Cara, eu passei de ano mudando três vezes de escola. Que porcaria é isso? Como assim eu não tive dificuldade pra poder passar de ano? Tem alguma coisa muito errada nessa história, eu deveria ter dificuldade”. Mas depois de algum tempo eu descobri que o ensino de Belo Horizonte, de Minas, era muito mais forte do que o ensino de São Paulo, ele era muito mais provocativo. Então na verdade eu fiz a curva descendente naquela época do ensino. Se eu tivesse feito o inverso certamente eu teria dificuldade de passar de ano. Mas na escola aqui em São Paulo, por exemplo, era muito tranquilo. Eu falava: “Nossa, mas isso eu já vi. Isso eu já sei”. Aí pra mim foi muito sossegado. Aí o que eu fiz? Concentrei-me na aula de literatura e português, escrevi história. Lembro-me de um caderninho de história que eu criei e aí tipo um livrinho, eu falei: “Vou lançar esse livrinho de historinhas”. Eu comecei a criar muita história, então professor tava explicando uma coisa eu falava beleza, isso aqui eu já vi, então eu vou me concentrar em escrever uma história. E foi a época que eu escrevi muita coisa, muita coisa, muita coisa. Uma pena que eu perdi esse caderno nessas mudanças da vida, mas eram historinhas com moral da história, aí eu colocava a moral da história assim. Tinha 11 anos, 12 anos.
P/1 – Quando você chegou ao Taboão você tinha mais ou menos essa idade?
R – Isso.
P/1 – Uns 11, 12 anos. E a impressão que você teve assim do Taboão da Serra como é que foi a sua sensação, sua primeira impressão?
R – A minha sensação era de a gente veio, não entendi esse conceito, mas a gente veio pra periferia de São Paulo, não era isso que eu imaginava, não era esse o meu sonho. Eu olhei tudo aquilo e falei: “Nossa, não é como eu imaginava”. Mas ao mesmo tempo por outro lado o meu pai super me deixou brincar, foi numa época que a gente podia brincar na rua até as duas, três da manhã de pique esconde. Eu lembro muito claramente disso. Existia vida naquele lugar, isso me encantou profundamente. Então as pessoas andavam, as pessoas ficavam na rua até tarde, a gente jogava muito futebol na rua, perdia o pedaço do dedo quase todo dia no asfalto. A gente fazia muito uma rua contra a outra, ajudou-me muito a entender esse senso de comunidade. Nossa, fizemos umas amizades que eram incríveis assim. Então num primeiro momento foi: “Nossa, jura que foi pra isso que a gente veio pra São Paulo? Não era isso que eu estava imaginando”. E num segundo momento era a liberdade que os meus pais me deixaram, colocavam hora, você vai fazer os trabalhos de escola depois você pode brincar. Então abria o portão, ficava lá na Rua João Antônio da Fonseca número 512 e brincava muito na rua assim com toda essa galera. E aí que eu vim entender várias coisas que eu não tinha aprendido durante toda a minha infância, a me defender um pouco das brigas de rua, como evitar esse tipo de coisa. Esse senso de comunidade mesmo, a tomar cuidado com todas as coisas que a rua vai te oferecendo, mas os meus pais me deixaram superlivre. Eu achei isso incrível assim. Eu nunca tive, por isso que eu falo, eu só vim sair pra rua mesmo de fato com 14, 15 anos assim. O restante do tempo eu sempre fiquei, sempre foi um ambiente familiar pra mim ambiente familiar / escola. Sempre.
P/1 – E você fala que quando você chegou a sensação foi: “Ah, isso não era o que eu imaginava.”. Por quê?
R – Era porque quando eu via São Paulo eu imaginava um monte de prédio, um monte de casa incrível, um monte de rua asfaltada e quando eu cheguei em Taboão a rua em frente a minha casa era uma rua de pedra. E eu falei, mano, tipo não, né? Não era isso que eu tava imaginando assim, vamos voltar pra BH, lá tava mais bacana. Na época de pipa, por exemplo, tinha um monte de pipa enroscada nos fios, era uma coisa visualmente, sou visual, era uma coisa visualmente muito estranha pra mim. A minha referência de São Paulo, comunicação aí a gente vai juntando as peças, a minha referência de São Paulo sempre foi uma narrativa da Avenida Paulista. Eu vou dar essa referência, sempre foi essa narrativa, e desconsiderando todo o restante. Quando considerava todo o restante era sempre um aspecto negativo esse todo restante. Aí pronto, construí esse imaginário na minha cabeça. O bom é a Avenida Paulista, o péssimo é tudo que está ao redor. E aí quando eu vou pra um lugar que é periferia eu falo: “Nossa, então a gente veio pro pior”. Essa foi a narrativa que foi construída na minha cabeça.
P/1 – E você chega aqui bem nesse momento de transição da infância pra adolescência, né? Você tá 11, 12 anos. Queria saber assim, entrando na adolescência o que mudou na sua vida em termos de prática, de lazer, de amigos. O que se transformou assim no seu cotidiano?
R – Eu acho que em termos de amizade, por exemplo, a coisa mais considerável foi de que eu descobri que eu podia expandir o meu ciclo de amizade, que não era só a minha família. Fui conviver com pessoas completamente diferentes, completamente diferentes. Eu aprendi que a gente se constrói na divergência. Essa experiência, por exemplo, na escola em Campinas foi muito importante pra entender que o trabalho que eu faço hoje é um trabalho de renegar esse tipo de ambiente que ofereça dor pras pessoas. É um processo de aprendizagem. Mas eu lembro que em termos de amizade eu acho que foi isso, mais essa mudança. Em termos de vida propriamente assim...
P/1 – De lazer assim. Se você saía, o que você fazia pra se divertir?
R – Eu sempre gostei muito de ler. Meu universo sempre girou em torno disso e jogar futebol. Isso não mudou durante a minha adolescência. O que mudou foi não jogo mais com a minha família, agora eu vou jogar campeonato, vou jogar um contra o outro, vou jogar na rua, vou ficar sábado e domingo o dia inteiro jogando futebol, o dia inteiro jogando futebol. Em termos de lazer não mudou quase nada assim.
P/1 – Festas tinha? Você teve festas na fase da adolescência, juventude?
R – Não.
P/1 – Não?
R – Não. Por exemplo, a primeira festa de aniversário que eu fiz pra mim mesmo, nunca tive, que eu lembre e os meus pais também não lembram, foi há três anos. Nunca tive, nunca participei muito, eu nunca saí muito, eu sempre fiquei muito nesse ambiente familiar acho que de proteção assim, de cuidado e tal.
P/1 – De frequentar baile, nada desse tipo discoteca?
R – Nada desse tipo de coisas. Pra mim na verdade era uma coisa muito distante assim, muito distante mesmo. Durante a minha adolescência a coisa que mais eu fazia muito fora da curva de sair era festa na escola, festa julina, junina, esse tipo de coisa. E eu lembro na virada de Ano Novo que aí a gente, todo mundo, os meninos todos da rua super se arrumavam, ia lá pra rua e ficava esperando virar o ano novo e ficava tomando refrigerante, depois ia pingando na casa de todo mundo e comendo um pouquinho. É a única referência que eu tenho dessa primeira fase da adolescência.
P/1 – E aí você falou de leitura que você gostava de ler, queria saber se você lembra quando que surgiu esse gosto assim pela leitura, se teve algum livro marcante, um momento marcante.
R – Sempre gostei desde criança, talvez por falta de opção de outras coisas de lazer. Então jogava futebol e ia pra escola, ok. O que eu faço com o restante do tempo? Lembro muito claramente quando era criança de amar profundamente o livro.
P/1 – Seus pais liam? Como é que você teve acesso a livro, começou a ter acesso a livro?
R – Então, isso que é engraçado, os meus pais não têm a cultura da leitura. Eles têm a cultura do você tem que estudar, mas eles não têm a cultura da leitura. O meu pai se eu não me engano parou na terceira, minha mãe parou na quarta, então eles... Mas sempre me cobraram absurdamente isso e eu fui criando esse hábito. Eu me lembro de quando criança, por exemplo... É que eu lembro um pouco da história, mas não lembro como era, de quem era... Ah, um dos primeiros livros que eu lembro foi um livro que veio com dicionário, que eu não lembro qual dicionário era também, que era Ifê, que era a história de um cara que ele resolvia criar uma palavra que era ifê para trocar no lugar do amor. Ele falou: “Quem disse que só amor define o amor? Eu quero criar minha própria expressão pro amor”. E aí a historinha gira um pouco, um livrinho desse tamanhinho, vinha colado no dicionário assim pra gente entender o poder das palavras e tal. E aí ele roda o mundo tentando provar pras pessoas que além de amor ele também tinha outra palavra pra simbolizar o mesmo sentimento e amor está aqui também, né? Então eu lembro muito desse livro, mas eu lembro muito de livros mais de fantasia assim, sabe? Dos animais que falavam, esse tipo de coisa, achava isso muito incrível. Eu lembro que eu passava horas e horas e horas lendo. Esse era super meu recanto, então o meu lado lúdico hoje em dia eu acho que muito se deve a isso, eu vou muito pro lúdico. Muito. O tempo todo. Eu trabalho muito com metáfora, esse tipo de coisa hoje em dia e eu acho que tem muito a ver com esse repertório que eu fui construindo assim nessa primeira infância. Na segunda um livro que foi muito marcante foi O Mundo de Sofia. Eu lembro que eu tentei umas três vezes até conseguir ler O Mundo de Sofia assim e era um livro denso, gigante, que tinha umas referências que eu não tinha, precisava ficar pesquisando. Eu lembro que eu já estava trabalhando já, já era na segunda fase da adolescência, já tava trabalhando e eu lembro que o ônibus ficava lá balançando e eu lá lendo, mantive-me firme lá lendo. Vidas Secas também foi um clássico que eu também li, que eu tinha uma preguiça de ler que o professor Jairo, incrível o professor Jairo. Toda aula ele falava assim, ele era de Minas Gerais, então ele falava meio caipira também, né? Ele: “Gente, agora a sala inteira vai...” todo mundo bagunçava muito, quando chegava a vez dele “Vamos ler agora?”. Aí a gente leu Macunaíma e Vidas Secas. Eu só estudei nessa escola seis meses e aí a gente leu Macunaíma e Vidas Secas e foi uma experiência incrível também pra mim, porque o Jairo decodificava as coisas que eu não entendia e aí ele é um ponto de luz como eu vivo dizendo assim. Não por acaso hoje em dia o meu trabalho é focado em educação e é focado também em professores pontos de luz, eu acho que é um pouco homenagem ao Jairo.
P/1 – Você tinha falado que no primário, fundamental um você não teve nenhum professor marcante ou você não lembra, né? Aí você citou o Jairo agora, tem algum outro professor do ensino básico que tenha te marcado além do Jairo e por quê?
R – Muito. Professor Nelson de Física. Da quinta até o terceiro ano eu sempre estudei na mesma escola, Maria José Antunes Ferraz lá no Parque Marabá em Taboão. Nossa, muitos professores. Eu lembro na verdade da maioria, mas eu me lembro de dois especificamente com muito carinho, que é o professor Nelson que é o professor de Física, que é um barbudinho, sempre fui péssimo de física, matemática, qualquer coisa que fosse de exatas e trabalhasse com números e coisa do tipo. Muito ruim, muito ruim. E o professor Nelson foi o primeiro professor que eu lembro que fugia da curva. Então ele chegava: “Galera, e aí? Tudo bem?”. Zoando com todo mundo, brincando com todo mundo e eu me encantei pelo jeito dele e isso fez com que eu prestasse atenção nas aulas dele de física. Eu melhorei um pouquinho em física, mas não porque eu gostava de física, eu gostava dele. E depois de muito tempo, depois de um monte de conversa quando era aula vaga, ele me contou que ele tinha feito jornalismo não como matéria principal. Ele falou que a irmã dele, se não me engano, fazia jornalismo e ele frequentava as aulas. Aí eu falei: “Ah, então isso diz muito”. E ele era muito zoeira. Ele não tava nem aí, zoava com todo mundo e eu lembro que eu fiquei encantado por ele então para todo o sempre. Professor Nelson, professor Jairo são duas das pessoas. Tem um terceiro que é o professor Cassanho que é o professor de geografia, que era um professor mais gordinho muito engraçado. Zoava também com todo mundo, muito, muito e ele é o professor que mais propunha coisas fora da curva. Tudo fora da curva. Lembro que na época que o Brasil tava discutindo a Aliança do Livre Comércio entre as Américas, a ALCA, ele foi o único professor da escola que fez um plebiscito na nossa sala fingindo que a gente iria votar e o que a gente votaria. E eu achei aquilo incrível, incrível. Ninguém mais tinha feito aquilo. Ele foi o único professor que fez um debate sobre a ditadura militar. A escola nunca me ensinou o que era ditadura militar, eu só aprendi isso na faculdade, mas ele foi a única pessoa que mencionou isso durante toda a minha jornada. Todo mundo só falava: “É, nos anos 60 a gente teve um período difícil”. Ok. Mas que período difícil é esse? E ele veio, ele trouxe tudo, ele trouxe... Ele foi o único professor que eu não sei até hoje por que ele fez isso que foi discutir o aborto na sala de aula. Então ele postou um vídeo, ele mostrou um vídeo pró e um vídeo contra que era um vídeo dos processos de abortos clandestinos. Ele mostrou esse vídeo, todo mundo: “Urgh”. Uma menina passou mal, ele: “Nós vamos trabalhar com a realidade, gente”. Então ele era incrível assim. Incrível, incrível, incrível. Então tem esses três, o professor Jairo porque era uma coisa muito: “Vamos falar sobre isso.” e o professor Cassanho porque era uma coisa muito de conteúdo de fora da curva e o professor Nelson porque a matéria era ele pra mim. Então eu sempre o estudei, nunca era física. Física não me interessava nada.
P/1 – Você ouvia música nessa fase de adolescência e juventude assim?
R – Muito. Sempre gostei muito de música. Nunca gostei de Legião Urbana e aí nessa fase, por exemplo, eu passei a curtir muito Legião Urbana porque tinha uma menininha que ela gostava de Legião Urbana, eu era muito tímido, eu não sabia o que falar com ela, aí eu comecei a ouvir Legião Urbana pra ter o que falar com ela. E ela parou de curtir Legião Urbana. Eu falei: “Ok, né? Obrigado”. E depois de dez anos sem vê-la a gente se encontrou... A gente se encontrou não, a gente se viu, eu a vi na real no meio de dez mil pessoas no Espaço das Américas. Ela era a quarta da fila pra ver o Wagner Moura e os meninos tocarem no Espaço das Américas. Eu achei isso incrível, falei: “Nossa, a gente nunca mais se viu e como é que a gente se encontra na fila, cara. Na fila”. Histórias. Por isso que eu gosto das histórias. Mas eu me lembro de música, eu sempre gostei muito de música caipira de raiz, moda de viola, Tonico e Tinoco, Trio Parada Dura, esse tipo de coisa. Faço um trabalho absurdo de cuidar dessa memória. Então alguns alunos, adolescentes principalmente falam: “Nossa, mas isso é música brega”. Eu falo: “Ah, é? Pois é. Justin Bieber pra mim é brega. Quem define o que é brega? Quem foram os seis velhinhos que sentaram e falaram ‘Muito bem, gente, a partir de agora nós vamos decidir quem é o mundo. O Mundo é isso e tudo isso é brega e tudo isso é errado’. Então não. A gente está construindo o mundo”. E eu brinco muito com eles por conta disso. Sempre ouvi muito Legião, muito claramente, moda de viola muito claramente porque tinha uma referência muito forte com Minas. Eu ouço de tudo na verdade, tudo, tudo, tudo. Era uma época que o funk, não esse funk de hoje, era o funk da Furacão 2000 de 94, 95, tava muito forte que era um funk que trabalhava muito com letras. Por exemplo, tinha um funk que falava do Betinho, da luta contra a fome, eu achava aquilo incrível. Era a época também do Rap da Felicidade: “Porque eu só quero é ser feliz, andar...”. Eu achava incrível também. Então eu ouvia de absolutamente tudo, tudo, tudo, não tinha nenhuma... Porque me falaram em algum momento que jornalista não podia discriminar nada, ele precisava ouvir, viver de tudo. Eu falei: “Ótimo. Então ok. Então eu vou fazer isso”.
P/1 – E tem alguma canção que tenha te marcado em especial? Você tem alguma história com uma música?
R – Eu acho que a maioria das músicas da Legião assim por conta dessa pessoa. Tem uma música que ela gostava muito que chamava Eu Sei, essa música é muito forte pra mim, eu gosto muito dela, acho ela muito legal. Essa música muito tempo depois a música O Reggae da Legião fez muito sentido pra mim. Depois o Racionais surgiu muito na zona sul, muito forte, muito forte. O Racionais deu uma contribuição incrível para a construção de identidade da periferia porque a gente parou de cantar o amplo e a gente passou a cantar a rua onde a gente estava, eu acho isso incrível. Então começamos a falar de Jardim Maria Sampaio, do Campo Limpo, do Jardim Helga, que eram os lugares onde eu ia jogar bola, cara. Achava isso incrível. Não só eu estava cantando isso porque estava passando na rádio, o Brasil inteiro estava cantando isso. Eu falava: “Nossa, então a gente inverteu, né? A gente não vai cantar mais só Ipanema, Copacabana, sei lá”. As músicas da Legião cantava Brasília. A gente está cantando o lugar onde eu moro. Então Racionais veio muito forte. Uma época que eu comecei a ouvir muito rap também e o Wagner Gabriel me apresentou um dia um cara, que é o GOG, Genival Oliveira Gonçalves, que é um rapper de Brasília, um cara incrível que tinha uma música chamada O Amor Venceu a Guerra que era um rap, é um rap. E depois ele me apresentou outra música chamada... Nossa, O Amor Venceu a Guerra era muito forte, depois ele me apresentou Quando o Pai se Vai, que é uma música lindíssima também. Mas tem uma específica Rua Sem Nome, Barraco Sem Número, esse é o nome da música. O GOG tinha uma construção do rapper é o cara que não sabe falar direito e não sei o que, eu achava aquilo ridículo, era aquela discussão toda, eu ainda não tinha entrado no Projeto Arrastão, então toda a minha formação crítica era uma formação só eu mesmo, eu, eu mesmo e o ego. Aí quando eu ouvi essa música Rua Sem Nome, Barraco Sem Número o GOG falava de um mundo onde as ruas não precisassem ter nome e as casas não precisavam ter número porque todo mundo se conheceria. E aí ele fala que o suco de cajá iria vencer os refrigerantes industrializados. É uma música linda, incrível, e o GOG é um cara, se eu não me engano, formado em Economia, ele é um cientista social, alguma coisa nesse sentido, na UNB, se eu não me engano. Morou o tempo todo na periferia, formou-se e continuou fazendo trabalho de base. E aí eu me encantei pelo GOG. Falei: “Nossa, é isso”. E ele ampliou o rap, a discussão. Ele começou a falar de Brasília, ele começou a falar de política, ele não falava só da violência policial, ele ampliou o debate, como eu digo. E aí quando o Wagner me apresentou isso eu pirei, eu falei: “Nossa, cara, que incrível.” “Não, tem um monte de gente fazendo isso.” “Nossa, eu quero ouvir”. Aí ele começou a apresentar muito rap, muito rap. Apresentou o SNJ que era o hip hop futurista, não falou nenhum palavrão, que tinha Amor Sentimento Abstrato que era uma música incrível. Aí foi. Aí conheci o RZO, conheci... Vish, conheci muita, muita gente que fazia rap aí foi. Aí eu construí... Nesse momento eu já tava desconstruindo essa coisa da periferia, eu já estava no movimento inverso que é um lugar que me oferece tranquilidade, acolhimento, um lugar onde eu me encontro com pessoas que são parecidas comigo, que vieram de todos os lugares do mundo, porque lá não existem pessoas que nasceram em São Paulo. Um lugar que está me apresentando tudo isso, um lugar onde eu posso brincar de esconde-esconde até as duas da manhã não é um lugar ruim. Não é. E aí depois vem o Racionais e todos os raps e começam a contar sobre esse lugar e resignificar esse lugar eu falo: “Cara, nossa, que orgulho de morar num lugar onde o Mano Brown está contando pro mundo inteiro”. Aí pronto, eu acho que é o ponto de virada do aspecto positivo assim.
P/1 – Eu queria retomar, você começou a contar um pouco lá fora a história daquela foto da primeira comunhão que tem uma garota do seu lado que tem uma história importante. Eu queria que você localizasse um pouco pra gente assim a sua relação com a religião ali, que momento que é aquele, qual que era a importância daquela pessoa na sua vida e desse uma localizada assim tempo e espaço, porque eu não sei onde é que aquela foto tá nessa...
R – Aquela foto tá em 95 se eu não me engano, que é a data que está lá. Aquela pessoa é a Carla, mas antes de eu falar da Carla a gente pode falar de religião. Aquela época eu participava muito da igreja porque no interior de Minas até meados dos anos 90 só existia a igreja católica, agora não mais. Então eu sempre participei muito da religião, da igreja católica, não lembro nunca de ter sido um movimento espontâneo, sempre foi: “Olha, você precisa fazer a primeira comunhão, você precisa fazer a primeira eucaristia”. Essa coisa toda, crisma, essa coisa toda. A minha religião é Deus Futebol Clube, eu acho que Deus não está nas igrejas, eu acho que Deus não está no espaço físico. Respeito e acolho quem acredita nisso porque nós somos diferentes e a gente se encontra na diferença e existe na diferença, mas eu descobri ao longo do tempo que a minha realização, o meu entendimento do que é Deus não está nesse espaço, nunca esteve. Mesmo porque esses espaços são geridos por pessoas e essas pessoas sempre têm interesses por trás, motivações. Não interesses, motivações pessoais, né? Então eu fico pensando que se eu... Eu fiquei pensando determinado momento se eu vou a essa igreja e algum dia esse padre que está nessa igreja ou esse pastor, quem quer que seja, não está num dia bom, ele vai fazer com que o meu processo espiritual inteiro se adeque ao processo pessoal dele. Ok. Não preciso disso porque se ele fizer isso ele está interferindo no meu processo de dialogar diretamente com nosso querido mano Deus aí. Então eu uso muito essa expressão do Deus Futebol Clube pra dar uma brincada com isso e eu já fui muito questionado sobre isso, já fui questionado por uma pessoa de: “Tony, desculpa, mas eu acho isso desrespeitoso”. Eu falo: “Depende. Por que é desrespeitoso?” “Porque Deus, né, você misturar isso com futebol e tal.” “Então vamos lá.” “É essa provocação que eu queria. Por isso que eu falo isso, eu quero provocar pra gente conversar sobre isso. Você não sabe qual é a minha ligação com o futebol, ou seja, qual é a importância simbolicamente que ele tem na minha vida. Colocar Deus dessa forma e nesse contexto e sendo dito por mim, você não sabe qual é a minha trajetória pra descobrir se isso é desrespeitoso ou não, não sabe qual o tipo de palavra que no meu vocabulário traz desrespeito ou não. E a terceira coisa é que se Deus é um pra cada pessoa de nós, eu posso falar com ele da forma que eu quiser”. Ele é da igreja, até brinquei com ele, eu falei assim: “Deus não é o pai de tudo isso? Não é esse o discurso?” “É.” “Ele não é o seu amigo? Não é esse o discurso que a gente sempre ouviu?” “É.” “Então eu falo com o meu pai do jeito que eu quiser”.
Porque o senhor nunca foi sinal de respeito. Eu conheço pessoas que tratam as pessoas, político, por vossa excelência, no entanto eles estão sendo extremamente irônicos e agressivos. Então a palavra não quer dizer absolutamente nada nesse contexto. Então a religião pra mim é isso, eu acho que Deus está nas pessoas, acredito em Deus, nessa força, não acho que ele tenha olhos azuis e barbas brancas, mesmo porque o lugar onde ele nasceu dificilmente ele teria esse biotipo. Acho bem complicado como a nossa cultura foi construída em cima da religião e de como a religião influencia nos nossos processos de aceitação da realidade, da questão da sexualidade, por exemplo, né? Enfim, é outra questão. Mas é isso assim. Então Deus pra mim está nas pessoas, Deus pra mim está na árvore bonita, no vento, está no bom dia que as pessoas dão, porque não adianta adorar Deus e não dar bom dia ao porteiro, parafraseando uma frase que eu vi outro dia “Não adianta fazer ioga e não dar bom dia ao porteiro”. Então Deus se manifesta no detalhe. Eu falei isso segunda-feira na oficina que eu dei, Deus mora no detalhe. Deixou a mulher sentar no ônibus e ela não está grávida, não, ela não é mais velha. Não, eu não acho que ela está mais cansada do que eu, mas por algum motivo eu achei, meu coração pediu que eu deveria dar lugar pra ela sentar. Então é Deus. Isso é Deus se manifestando. Todo o restante é discurso pra mim. Respeito, tenho vários amigos, inclusive companheiros de trabalho que são da igreja e eles trazem outra visão pra mim que eu acho incrível também. Durante determinado momento da minha vida eu achei que a igreja era a realização que depois os projetos sociais me deram, que era o senso de comunidade, o senso de humanidade, a humanização das pessoas, cuidar das pessoas, criar um ambiente amoroso. Eu sempre achei que a igreja fosse isso e depois de determinado momento eu achei que não era, descobri que não era e aí eu fico brincando que as organizações sociais passaram a ocupar esse espaço de afeto, cuidado, amor e de cuidar do próximo, de olhar pro próximo que eu achei que o ambiente da igreja não tinha. Pra falar da Carla rapidinho, a Carla ela fez primeira comunhão comigo, fez primeira comunhão comigo, fez todo o processo comigo. Eu lembro que a primeira pessoa que eu gostei na minha vida assim foi ela. Um gostar de: “Nossa, como ela é linda”. Tudo que ela falava era incrível e tal. Ela fez primeira comunhão comigo, eu nunca mais encontrei. Aliás, se ela assistir esse vídeo, tomara que a gente pudesse se encontrar. E eu me encantei por ela absurdamente e eu me lembro de uma cena, na verdade eu nunca falei isso pra ela, mas eu me lembro de uma cena que o meu primo, o Leo, estava no meu lado. Um dia antes de eu vir embora pra São Paulo e ela passou, ela passou na rua, minha família inteira estava se despedindo, ela passou na rua com a mãe, a tia, alguém assim, morava perto de uma curva e tinha uma luz amarela, olha eu criando o cenário, tinha uma luz amarela assim e ela passou e falou assim: “Nossa, falaram-me que você ia embora.” “É.” “Dá tchau pra você, boa sorte”. Ela é muito educadinha, muito fininha e tal. Aí ela me deu tchau, deu boa sorte e tal e eu sentei, ela foi pra cá e aí na hora que ela tava passando nessa luz assim, todo esse ambiente romântico meu primo virou e falou assim: “Você não vai falar pra ela que você gosta dela?” “Não. Não vou falar.” “Fala cara”. Eu falei: “Eu não consigo. Eu não tenho como falar isso”. Isso pra mim foi muito forte, muito marcante, então todas as apresentações ou workshops que eu vou falar sobre a história do projeto do qual eu faço parte hoje eu cito isso. Que ligação isso tem? Bom, a ligação que isso tem é que eu prometi pra mim mesmo que nenhuma pessoa dobraria as esquinas da minha vida sem eu contar pra elas exatamente o que elas significavam pra mim e a importância que elas ocupavam, pro bem e pro mal. Então quando alguém me machuca de alguma forma, quando alguém é grosso comigo eu falo: “Olha, desculpa, mas você foi grosso comigo e eu acho que isso não é uma forma de tratar as pessoas”. Porque assim, se ela virar a esquina e eu não disser pra ela que ela foi grossa ou que ela me tratou mal, eu acho que na próxima rua ela vai fazer a mesma coisa com a pessoa e às vezes, eu acho que na maioria das vezes ela nunca vai fazer isso de maldade, sempre vai ser um processo inconsciente. Então a minha contribuição, o meu presente é provocar, fazer essa pergunta da mesma forma que eu tenho vários amigos hoje em dia que no primeiro dia eu falei pra eles: “Cara, você é incrível”. Eles olham e falam assim: “Está tudo bem com você?” “Você é incrível. Deixa eu te dizer que você é incrível”. E essas pessoas estão na minha vida até hoje. Por quê? Porque elas são incríveis e eu queria dizer isso pra elas e talvez eu não tivesse mais chance ou dizer isso em outro contexto não faria sentido. Um amigo meu apresentou uma peça de teatro, conhecido, apresentou a peça de teatro, desceu, ele foi incrível, eu falei pra ele que ele é incrível e hoje eu sou padrinho de casamento dele. Então eu não quero que as pessoas virem essas esquinas sem dizer pro bem e pro mal. Então hoje quando... A menina do caixa do banco, fui segunda-feira ao banco e a menina tava: “Próximo”. Aí eu entreguei, falei o que ia acontecer, eu falei: “Posso fazer uma pergunta pra você?” “Ahã.” “Você está brava?” “Não. Eu estou parecendo brava?” “Está um pouquinho. Mas, não, eu só quero saber se você está brava”. Aí ela deu uma risada, falou: “Não. Desculpa, eu não quis ser grossa.” “Não. Você não foi grossa, só foi direta demais. Só queria saber se você está brava. Eu gosto de saber se as pessoas estão bravas”. Então isso sempre se manifesta assim na minha vida.
P/1 – E a menina que te ajudou a gostar de Legião Urbana que você falou várias vezes que é alguém significativo na sua vida, qual que é a sua história com ela?
R – É isso assim. Ela é outra pessoa que eu super me encantei assim porque ela é muito fora da curva também. Ela sabia de todas as coisas que eu não sabia e eu achava isso incrível, incrível e eu aprendia muito com ela. A gente foi participar de um projeto juntos e aí determinado momento o projeto estava muito chato e eu só ia porque ela existia naquele lugar e eu aprendi muito, muito. Então ela falava de umas coisas assim: “Não sei o que, não sei o que... Você sabe o que está acontecendo no mundo?” “Gente, que menina incrível”. E eu super me encantei absurdamente por ela. Bom, e aí ela curtia Legião Urbana e eu não sabia, ela tinha um monte de repertório, eu tava saindo pra rua agora, eu não tinha muito repertório aí eu falei: “Eu vou ouvir Legião Urbana porque eu preciso ter o que conversar com ela”. E aí eu comecei, tudo que ela falava de Legião Urbana eu dava uma anotadinha depois ia ouvir, ouvir, ouvir. Aí pronto. Aí a gente tinha conversa, a gente tinha diálogo. E eu me lembro de uma história especificamente que era assim, não tinha telefone, telefone em 99, cara, telefone era uma coisa meio rara assim, né? E aí o meu pai pediu telefone. O telefone não vinha, meu pai pedia o telefone, o telefone não vinha e ela tinha telefone na casa dela e eu ficava o dia inteiro lá, já era no Projeto Arrastão isso. Ficava o dia inteiro lá. Quando meu pai falou assim: “Eu desisto. Eu não vou mais pedir esse telefone. Vou ligar lá cancelando”. Eu falei: “Deixa-me ligar pra lá pedindo o telefone?” “Tá. Toma aqui os meus dados e liga pra lá”. Era no orelhão, né? Eu lembro que eu fiquei uma semana todos os dias, todos os dias, todos os dias até eles instalarem o telefone e a primeira pessoa que me ligou foi ela. Aí eu brinquei, meu pai e minha mãe nem sabiam disso, eu falei eu só instalei o telefone porque eu queria conversar com ela, porque depois que a gente saía do projeto ela passava em casa, ela dava uma ligada e contava um pouco do dia como foi. Eu falei: “Essa foi a minha motivação”. Não tinha nenhuma motivação de vamos falar com o mundo. Não. Só queria falar com ela, o mundo era ela só.
P/1 – Você contou dessas duas, que são duas paixões, acho que dá pra dizer assim, né? Duas paixões. E queria saber se nessa fase de adolescência e juventude se teve algum relacionamento marcante assim.
R – Sim. Eu namorei uma pessoa que é super minha amiga e que eu admiro profundamente até hoje, que já está casada e tal. Nossa! Foi incrível assim a vivência com ela. A gente ficou junto pouquíssimo tempo, mas, meu, com 15 anos, 16 anos qualquer uma semana são dez anos assim. E foi muito legal. A gente é amigo até hoje, a gente se conversa até hoje, a gente se achou outro dia no Facebook. Nossa, a gente se conta, não vou falar o nome dela, mas a gente se conta sobre a nossa vida. Ela acompanha toda a trajetória que está acontecendo agora dos projetos que eu participo. Postei uma foto segunda-feira de uma campanha que estão fazendo agora que eu estou participando e ela: “Meu, que orgulho de você, meu. Que legal. Muito legal. A minha família vai adorar saber disso”. Então a gente tem uma relação muito, muito legal. Ela foi a minha primeira namoradinha assim, então eu a adoro profundamente, eu quero muito que ela esteja na minha vida pra sempre assim.
P/1 – E você mencionou também que você começou a trabalhar em algum momento nessa... Queria saber quando é que surgiu, que idade você tinha e quando é que surgiu o trabalho e que trabalho que era esse.
R – Na verdade o Projeto Arrastão surge antes, o trabalho surge depois.
P/1 – Você quer me falar do Arrastão antes? Então a gente pode trocar. Como é que você conheceu então o Arrastão? Conta-me isso. Como é que você descobriu que o Arrastão existia e como é que foi o primeiro contato com o projeto?
R – O Projeto Arrastão é uma organização assim, pra todo o sempre ela vai ser o quintal da minha casa, eu sempre digo isso. O Projeto Arrastão me ensinou muito. O que eu sou hoje é a soma de tudo que eu fui vivendo, mas tem muito a contribuição do Projeto Arrastão. Muito.
P/1 – Como é que você conheceu o Arrastão?
R – Eu conheci o Projeto Arrastão... Já existe há muito tempo, 48, 49 anos é muito tempo. Sempre passei em frente pra levar a minha irmã a escola e eu sempre via aquele símbolo do peixinho, né? Eu falava: “Gente, o que é isso? Que lugar é esse assim?”. Durante três anos eu nunca me interessei. E aí a Andréia que era uma pessoa que morava na rua onde eu morava, ela fazia um curso de jardinagem lá. E ela falava: “Tony, tem um curso de jardinagem.” “Nossa, eu quero muito entrar nesse lugar, gente. Muito, muito”. Ela falou: “No ano que vem vai ter um curso de gastronomia estão me falando. Eu acho que você deveria ficar atento, você quer?” “Quero.” “E o melhor de tudo, tem uma bolsa auxílio.” “Sério que tem uma ajuda de custo.” “Tem”. Na época era, sei lá, 50 reais que, nossa, cinco mil reais pra gente. E eu falei: “Jura que eu vou aprender e ainda vou ganhar? Nossa, incrível”. Aí eu fui jogar bola, ela passou: “Não esquece. É hoje que tem a inscrição”. Aí eu fui fazer a inscrição do curso. Primeira vez que eu entrei, fui lá, fiz a inscrição, tinha um monte de gente, falei: “Preciso muito passar. Muito, muito, muito”. E aí pronto. Aí eu conheci o Projeto Arrastão, entrei pra fazer o curso de gastronomia, no mesmo dia falaram que tinha um monte de coisa. Eu me lembro desse dia, por exemplo, tinha a tia Selma que é a gestora até hoje de lá, eu me lembro dela, superitaliana. Então ela falando alto, ela: “Preenche a ficha direito porque senão nós não vamos conseguir chamar. Não vamos conseguir chamar, esquece o futebol, pensa só na ficha agora. Dá umas respostas boas aí”. Eu lembro muito dela falando essas coisas, ela é incrível. E aí eu conheci dessa forma e aí nesse mesmo dia em algum momento alguém falou que tinha outros cursos, que outros voluntários iam lá e que tinha um curso de jornalismo que era com a Lu Garbin, que é do Estadão e tinha um curso de vídeo que era com o Thomas, que era um cara que produzia um monte de filme. Eu falei: “Nossa, agora é que eu vou ficar aqui mesmo”. Porque gastronomia nunca foi o meu forte, até hoje eu não sei fritar nem um ovo direito, mas eu queria estar naquele lugar, ele me interessava. E aí eu entrei, fui aprovado no processo seletivo, da minha rua o Wilton, o Cláudio, a Andréia e eu passamos, então a gente sempre ia junto. E aí começou a minha vivência dentro do Projeto Arrastão de me encantar assim profundamente. Tenho um registro muito legal, tem muita coisa, mas tem um registro muito legal que assim, primeira vez que eu acessei internet na minha vida foi no Projeto Arrastão. Eu me lembro desse dia, eu me lembro do dia, aula de informática, eu me lembro do Fabinho dando aula de informática, o Fábio Julio e falando: “Muito bem, gente. Agora eu vou apresentar pra vocês a internet”. Aí ele deu todo o conceito e aí ele clicou lá no Internet Explorer, e todo mundo assim, eu particularmente olhei e falei: “Gente, que incrível. Fabinho, eu posso ir pra qualquer lugar com esse negócio?”. Ele falou: “Claro. Pensa uma coisa”. Eu fui, pensei uma coisa aí ele: “Então vamos procurar isso na internet”. Aí sabe? Ele: “Sei lá, um museu, qualquer coisa que você queria saber”. Falei: “Gente, isso é incrível. Isso é um livro infinito”. Então o livro pra mim era incrível, falei a internet é mais incrível ainda. Eu posso saber qualquer coisa a qualquer hora. Lembro-me desse caso. Lembro-me da Dora que era uma professora de cidadania que depois virou professora de informática, mas pra gente ela é de cidadania e aí quando ela era de informática uma oficina que ela deu todo mundo ficava com supermedo de travar o computador ela falou assim, eu lembro claramente dela virando e falando: “Gente, o computador só faz o que vocês pedirem. Se vocês não pedirem nada, não acontece nada”. Eu falei: “É isso”. Ela falou: “Pode fazer. Pede.” “É isso”. Eu lembro claramente porque eu achei incrível essa forma dela explicar. Da Neide, a Neide tem uma importância muito grande na minha vida, Neide Oliveira, que foi quem me apresentou 90% das coisas que eu conheci. A gente foi ver cordel, a gente foi visitar, nossa, lojas de alimentação. Primeiro ano no Projeto Arrastão assim foi incrível, fui insano na minha vida. Então esse é o primeiro ponto de virada na minha vida, eu tenho dois, três, esse é o primeiro assim. O primeiro ano pra mim foi surreal. Surreal. De como eu aprendi coisa, de como eu... Aí vem a outra questão da escola, eu sempre achei que tirar dez, nove e meio na escola era incrível e era aquilo que me construía como pessoa. Quando eu entrei no Projeto Arrastão eu descobri que ser turma do fundão era o que me construía como pessoa, porque a turma do fundão sempre foi demonizada em todos os cantos e lá todo mundo era turma do fundão. Turma do fundão é agitada, energia lá em cima, brinca com tudo. Eu falei: “É isso que eu quero pra minha vida”. É um lugar, um ambiente dessa forma. Aí as minhas notas caíram um pouco na escola porque eu falei isso não vai me levar absolutamente nada, a lugar nenhum. Nessa época também aconteceu um fato muito louco na escola, um fato muito importante, mas então o Projeto Arrastão expandiu a minha cabeça de tal forma assim, foi como se fizesse um caminho assim de carro, filmasse e acelerasse essa imagem. É isso assim. É isso. E foi lá que, meu, eu conheci os meus amigos que são amigos até hoje, a Neide Oliveira, o Fabinho, a tia Selma que vai ser para todo o sempre a tia Selma. E assim, tomei bronca, muita bronca. Eu me lembro da Solange que nem era nossa professora diretamente nem coordenadora pedagógica nem nada, que eu fiz um curso de mosaico, eu falei vou fazer esse curso de mosaico que eu achei bonito e eu comecei a faltar nas aulas. A Solange um dia sentou em frente a... Sentou-me no ateliê, sentou em cima da cadeira, olhou pra mim e falou assim: “Você acha que na vida você pode começar as coisas e não pode terminar?”. Eu fiz assim: “Mas eu não quero.” “Quando a gente não quer a gente diz não quero e fecha o processo.” “Desculpa.” “Então você vai lá pra professora” que eu lembro quem era, Renata Dallari “Você fala pra Renata Dallari que você não quer participar e sai, mas nunca pare porque tem outra pessoa do outro lado esperando você”. Então ela falou: “Na vida a gente precisa abrir, fazer e fechar os processos. Não se esquece disso”. Nunca me esqueço disso. Foi no primeiro semestre de 2001. Nunca me esqueço disso. Então na minha vida hoje é fechar processos sempre, para todo sempre. Foi a Solange que me ensinou, Solange está no Projeto Arrastão até hoje. E ela nem lembrava que ela tinha me falado isso, outro dia eu recuperei. Então é isso assim, eu conheci o Projeto Arrastão dessa forma, entrei dessa maneira e aí eu fui entrando nessas outras oficinas. A Lu Garbin veio, começou a oficina, o Renato veio com a oficina de construção de narrativa de cinema mostrando um monte de filme pra gente, fui também, o Tomás veio com a oficina de vídeo de forma prática, fui também e aí eu fui me metendo dentro da área de comunicação. Culinária só era uma desculpa.
P1 – Você mencionou bem rapidinho que teve um fato interessante, marcante na escola nesse ano que você entrou no Arrastão. Queria que você contasse pra gente o que foi que te fez parar assim, aconteceu uma coisa forte na escola, depois no Arrastão você falou que aprendeu uma série de coisas, queria saber se tem algum episódio, alguma história, alguma coisa marcante que você pudesse destacar e dar pra gente como exemplo pra gente sentir um pouco essa coisa da sua experiência.
R – Claro. Bom, da escola foi assim, teve um dia que eu não lembro muito bem como foi a situação, mas que por algum motivo eu estava em pé na sala, a professora saiu, eu estava em pé na sala. Lembro-me que, não sei se foi a professora ou a inspetora, passou, como todo mundo tava assistindo filme, todo mundo teria que estar sentado e eu só tava em pé ou indo pra porta. Não lembro o que eu ia fazer. Essa inspetora me pegou e me levou pra diretoria. Eu falei pra ela: “Por quê? Eu só tava em pé”. Ela falou: “Você vai conversar com a diretora.” “Tá bom”. Aí veio outra pessoa que era professora também, era professora, mas estava cumprindo outro papel dentro da escola, começou a falar um monte pra mim. Um monte. Que vocês desobedecem as ordens, que a gente tá fazendo de tudo, a gente está passando um filme muito legal e você não está prestando atenção. Eu perguntei pra ela: “Mas quem disse que eu não to prestando atenção porque eu estou em pé?”. Ela assim: “Está vendo? E vocês respondem. Vocês respondem...”. E aí a conversa foi nesse sentido, ela falou que ia me dar uma advertência, aí eu falei que eu não iria assinar a advertência, falei: “Eu não vou assinar porque eu não fiz nada.” “Então eu vou chamar os seus pais.” “Tudo bem”. E eu tinha muito medo dos meus pais porque eles falaram que se eu tomar advertência nós vamos conversar. A gente discutiu muito, muito e determinado momento como eu tava me justificando, falando: “Eu não fiz nada, cara”. Ela virou e falou assim: “Tony, são por laranjas podres iguais a você que a gente tem a escola desse jeito. Vocês contaminam todo o resto”. Ela falou dessa forma com essa expressão. Aí eu falei: “Então eu sou uma laranja podre porque eu estava em pé?”. Parou aí. Eu acho que eu não quero mais me lembrar da história então eu apaguei da minha cabeça. Falei pros meus pais, o meu pai foi lá, assinou a advertência, a inspetora falou que eu não tinha feito nada, ela falou: “Mas como faz?” “Mas já abriu o registro da advertência, então agora tem que assinar”. Meu pai: “Então eu vou assinar sem ele ter feito nada? Então está bom, eu assino, não tem nenhum problema, porém o mais importante pra mim é saber que ele não fez nada. Isso pra mim está ok”. Eu lembro muito claramente dessa mulher falando isso. Isso, por exemplo, fica muito forte na minha vida de lá pra cá porque todos os projetos, inclusive o projeto do qual eu faço parte hoje que chama Escola de Notícias, é um projeto onde pessoas desse tipo não entram. Onde pessoas que dentro do ambiente educativo de aprendizagem criam memórias ruins, desestimulam as pessoas a aprenderem, em que as pessoas não são cuidadas... Desculpa, não é pra isso que o Escola de Notícias existe. Então está vendo como tudo foi se conectando assim? Eu lembro, toda vez eu falo do caso dessa mulher porque eu falo sem querer talvez ela tenha dado o start pra eu... Falo assim, esse tipo não passarão. Essas pessoas não passarão, não vai vir, cara, não... O trabalho feito pelo Escola de Notícias é um trabalho que quer criar um ambiente onde as pessoas não sofram pra aprender. É isso. E sofrer em todos os sentidos, né? Com dinâmica, mas também com relacionamento. Então é isso, essa foi a história. E dentro do Projeto Arrastão que você me perguntou sobre coisas... Ah, primeira vez que eu comecei a escrever no jornalzinho foi lá, que foi O Sabor das Letras, que era a Neide que era a editora. Neide é uma pessoa apaixonada por literatura, por tudo, e ela me dava livros, ela me dava, nossa, tudo. Tudo, tudo, tudo. Quando a pessoa se mostrava interessada aí é ela pirava mesmo. Ela me dava muito livro, muita referência. Levou a gente pra literatura de cordel, apresentou-me literatura de cordel, não sei o que. Falou-me de um concurso de redação que ia rolar no Sesc sobre futebol e ela ficou muito nervosa comigo porque eu não me inscrevi. Aí ela virou e falou assim, outra coisa, várias frases, ela virou e falou assim: “Você é talentoso, viu, pra escrever, mas ter talento não resolve nada, não, viu? Tem um monte de gente talentosa aí no mundo”. Eu falo isso até hoje pra todo mundo. Então isso foi muito marcante pra mim porque ela falou: “Você é talentoso. Olha o texto do menino que foi primeiro lugar. Seu texto está muito igual o dele ou melhor. Por que você não foi?”. E eu não tinha nenhuma justificativa. Eu não fui porque foi preguiça, porque eu perdi. Eu virei pra ela e falei: “Desculpa, Neide”. E ela ficou muito nervosa, muito brava comigo porque ela acreditava nisso. Foi a primeira vez que eu fui à TV também, na TV Cultura no extinto programa RG, que era a Soninha Francine que apresentava, e foi Cláudio, eu, o Nino, a Cris, nós três fomos dar um depoimento sobre uma arte que a gente fez lá. A gente foi visitar o Tomie Ohtake e depois tinha que fazer uma releitura de alguns quadros e a gente fez esse e o meu foi sobre fome, aí a gente foi lá contar sobre isso. Na verdade muita coisa. O Projeto Arrastão durante seis anos... Estou ligado ao Projeto Arrastão há dez, mas durante cinco, seis anos tudo girou em torno do Projeto Arrastão, todas as memórias que eu tenho. Parei de ir pra casa e ficava... Ia de mochila pro Projeto Arrastão, o curso terminava meio dia, a gente almoçava e ficava o resto da tarde lá e ia direto pra escola. Minha mãe falava: “Menino, você não sai desse lugar?”. Aí era engraçado alguns amigos meus lá da rua viravam e falavam assim: “Pô, meu, você nem joga futebol mais. Você só fica nesse lugar”. Eu ficava pensando, mas físico eu acho que eu já trabalhei demais, lá eu tava trabalhando outras questões assim. E eu ia direto pra escola. Chegava atrasado na escola porque eu não queria ir pra escola. Eu não queria ficar em casa mais. Então o que era suficiente no momento que o ambiente da rua ia ensinando coisas já não era mais, agora era o Projeto Arrastão. E foi muito legal porque tudo que aparecia lá: “Tem que fazer tal coisa. Tony, Cláudio, Wilton, Rubens, vocês podem ajudar a gente?”. E nessa a gente foi conhecendo muita gente. Aí teve um momento que a tia Selma virou: “O que nós vamos fazer com vocês? Vocês não saem daqui”. Aí eles criaram um programa de monitor, que colocaram a gente pra ficar cuidando de algumas áreas e eu e o Rubens fomos cuidar da área de vídeo. Pronto. Eu falei: “Agora eu estou realizado”. E aí eu saí pra trabalhar em duas lojinhas, uma de fazer brinquedos educativos e a outra de fazer mosaico. E aí foi a minha primeira experiência de trabalho.
P/1 – E qual que era o seu trabalho nessas lojas?
R – Era criação. Era fazer coisa, trabalho manual, né? Depois disso eu tive uma experiência muito ruim com uma pessoa especificamente de um desses trabalhos, que nem era dona nem nada disso. Mas um dia eu não sei por que reclamei, eu falei, eu falei, sei lá, o patrão fez alguma coisa eu falei: “Mas isso está errado”. E a menina virou e falou assim: “Não. Tá certo. Eles são patrões, Tony.” “Não. Está errado”. Ela virou e falou assim: “Tony, nós somos pobres. Pobre não tem que reclamar. A gente já tem trabalho”. Aí eu virei e falei assim: “Não. Pobre não é assim. Você pode ser assim, eu não sou”. Eu acho que uma semana depois eu pedi demissão assim, eu virei pro meu pai e falei que eu não queria mais ficar, meu pai ficou bem nervoso comigo, falou: “O mundo não é assim, você não gosta e você não vai ficando.” “Não sei, pra mim é”. E eu saí e quando eu saí eu virei e falei que ia sair pra essa pessoa, ela virou e falou assim: “Por que você está saindo?” “Porque eu tive uma experiência, não foi prazerosa. Não fui ruim, nem ruim foi, não foi prazerosa. Eu quero o caminho do prazer assim”. Ela falou assim: “Foi alguma coisa que eu disse?”. Eu lembro claramente dessa conversa, eu tinha pedido demissão e eu conversei com ela no jardim, eu virei e falei assim: “Eu ouvi uma coisa que fez muito sentido pra mim ultimamente que é quem bate, esquece, quem apanha não esquece”. Essa professora, por exemplo, ela nem lembra que ela me falou isso, mas eu não esqueço nunca mais. Essa pessoa também falou isso, a gente é pobre, a gente já tem trabalho. Não. Isso pra mim não faz sentido, então esse ambiente eu não habito, pedi demissão. Depois outro lugar foi incrível, que foi trabalhar com um amigo meu pra fazer brinquedos educativos que foi divertidíssimo. Foi muito legal, eu me divertia muito, que era com o Leo. Nossa, foi muito divertido, foi uma época muito legal.
P/1 – Era uma loja ou uma pequena empresinha?
R – Era um apartamento na verdade e ela revendia, ela entregava. Maria Tereza Tabet, o nome dela, lembro-me até hoje. Era uma pessoa incrível, querida, muito querida, com uma visão de mundo maravilhoso assim. Eu fiquei muito encantado pelo jeito dela ver as coisas. Aí o Leo me chamou pra trabalhar, eu fui trabalhar feliz e depois eu saí porque o Projeto Arrastão me encantou muito mais, eu falei: “Eu quero voltar pra lá porque tem um monte de projeto legal”. Voltei e aí depois continuei várias atividades, eu participei de um movimento bem legal dentro do Projeto Arrastão de reorganização do Programa Juventude que foi muito louco, foi intenso durante todo o ano de 2006. E aí quando foi 2004, 2003 o Projeto Arrastão me indicou pro programa Virada de Futuro da Fundação Abrinq, que era um programa que custeava bolsas de estudo pra dez jovens no Estado de São Paulo. Eles iam selecionar dez jovens que durante quatro, cinco anos eles iriam custear toda essa bolsa de estudo, o Projeto Arrastão me indicou. E aí quando eles me indicaram eu fiquei quase um ano fazendo o processo seletivo, foi muito difícil. Meu pai e eu já estávamos pensando como é que nós vamos custear essa faculdade que você tanto quer, né, meu filho? Nós pegamos um financiamento lá na Caixa Econômica e aí eu passei no Virada de Futuro, eu fui um dos dez selecionados, aí eu passei em segundo lugar, então eu podia escolher qualquer faculdade, esse tipo de coisa, tinha um valor, um recurso muito bom disponível. No dia que eu passei, nossa, foi incrível, incrível. Eu contei pro Nelson, meu professor de Física, ele achou incrível, ele falou: “Agora fica na maciota na escola. Se concentra nos vestibulares, porque agora você vai ter que fazer vestibular”. Você passava na bolsa e depois você tinha que fazer vestibular, inscrevi-me num monte de faculdade, ele me deu dicas, o Cassanha também me deu dicas, a Neide me deu dicas. Quem fez a ponte com a Fundação Abrinq foi a Neide, que fez a ponte pro Rubens ir dançar no Ivaldo Bertazzo foi a Neide e quem fez a ponte faz um mês e meio pra fazer a minha pós, que nada me interessava, foi a Neide de novo. Incrível como a Neide se manifesta na minha vida assim. Então eu fui fazer o curso de Jornalismo, eu passei, tinha um monte de faculdade, escolhi a Universidade de Santo Amaro, Unisa, porque tinha uma pessoa da Rádio Jovem Pan, que era o Flávio Prado, que era diretor lá e era rádio que eu queria, não me interessava estudar em outra faculdade top que pagava dois mil reais, interessava-me chegar onde eu gostaria de estar e aí eu fui fazer curso de jornalismo lá na Unisa que foi incrível, um ambiente incrível. Eu falei: “Pai, está ao lado da minha casa, tem um conceito bom no MEC, tem professores muito bom, por que eu vou ficar três horas dentro de um ônibus?”. Aí vieram me provocar: “Tony, mas uma faculdade de ponta te dá...” “Não. Isso aqui já me oferece o que eu quero”. Então eu acho que eu sempre fui meio chatinho assim, sempre foi muito claro eu acho o caminho que eu gostaria muito de trilhar assim. Sempre tomei muita bronca por causa disso, mas tudo bem. E aí eu fui fazer a faculdade e aí eu fui trabalhar acho que pela terceira vez que foi aí quando eu fiquei mais tempo, que foi numa loja de administração de cartão de crédito, que a diretora era a Lu Paiva, que até hoje eu mantenho contato com ela. A motivação era uma só, precisava fazer faculdade e meu pai não tinha condições de comprar um computador. Eu fui numa loja, descobri que existia um computador em 18 vezes de não sei quantos reais. Entrei no trabalho, no dia que venceu a minha experiência, assinaram a minha carteira de telemarketing, assinaram a minha carteira, eu fui nesse lugar que é perto de casa, comprei o computador, paguei as 18 parcelas, eu paguei a última parcela no domingo e na segunda eu pedi demissão. E a Lu, por exemplo, foi uma pessoa que me incentivou sempre muito, ela era diretora, tinha toda uma relação ali, tinha vários outros coordenadores, mas não sei por que a gente criou um vínculo assim, sabe? E ela é mais durona assim, tal, mas no dia que eu pedi pra sair mais cedo pra ir fazer a prova, por exemplo, ela lembrou que eu ia fazer a prova, ela foi lá, subiu: “Parabéns, viu? Gente, ó, ele vai fazer uma prova, quero que todo mundo torça por ele e tal”. Ela foi uma pessoa tipo muito importante assim, muito. E aí trabalhei lá durante 18 meses, foi o primeiro ano e meio da faculdade que foi tenso, dormia três horas por dia, que todo mundo já tinha um repertório muito alto, a escola pública não tinha me dado quase nada naquela época. Eu trabalhei, 18 meses depois num domingo pedi demissão aí ela, a Lu, virou pra mim e falou assim: “Eu não posso te demitir”. Eu falei: “Por quê?” “Porque eu não posso. É política da empresa. Eu gostaria, mas eu não posso. Tony, mas a gente já tava pensando umas coisas aí pra você, de você ir pra outro lugar e tal, ocupar outro lugar aqui.” “Lu, meu sonho é trabalhar numa rádio, cara. Eu quero fazer isso da minha vida.” “Você sabe que é difícil? Por que você não continua aqui, vai tentando esse paralelo?” “Não. Quero agora no segundo ano”. E aí a gente ficou nessa discussão, ela falou: “Eu não posso te demitir”. Na verdade eu nem teria que ter ido conversar com ela porque ela era diretora do negócio, mas ela pediu pra me chamar, a gente conversou, conversou, conversou aí ela falou assim: “Desculpa, mas o único jeito de você sair daqui é você pedir demissão.” “Então está bom. Então está pedido.” “Mas você não pode fazer isso”. Ela tava falando isso pra ver se eu dava uma amolecida. Enfim, aí aconteceu isso e aí acho que 15, 20 dias depois eu mandei um e-mail pra ela, falei: “Lu, a Jovem Pan, o 620 AM, sábado agora eu vou começar a trabalhar na Jovem Pan. Se você quiser ouvir.” “Eu não acredito.” “Não disse pra você que eu ia conseguir? Eu disse pra você que eu ia conseguir”. E assim, é isso assim, esse período do trabalho me ensinou muito, do telemarketing todo mundo achava um porre telemarketing, mas eu achava incrível conversar com as pessoas, tanto é que eu só fui xingado uma vez na vida e assim mesmo a pessoa tinha razão, fui eu que errei. Errei, não, fui insensível com a pessoa. Mas foi uma escola incrível de como lidar com as pessoas. Então tinha gente que virava: “Que a minha fatura o cachorro comeu.” “Mas comeu mesmo? Nossa, não tem problema, eu mando outro pro senhor”. Ou: “Meu filho, eu estou passando por um momento difícil...”. Sabe, eram várias situações. Tinha uma senhorinha que um dia eu deixei de ligar e eu fui ser receptivo como eles falam, receber ligação, que ela ligou e falou assim: “Eu queria falar com o seu Antônio.” “Seu Antônio não tem, tem o Tony.” “O Tony. Ele me ligou pra me cobrar de tal loja.” “É.” “Oh, Tony...” me arrepio falando “Tony, eu quero te desejar feliz Natal. Eu queria te agradecer muito porque eu estava devendo e você não brigou comigo”. Muito bonitinha, muito bonitinha. Pronto. Isso me interessou, essa experiência humana. E aí foi isso assim, primeiro um ano e meio na faculdade foi roots e depois eu voltei um pouco pro Projeto Arrastão só aos fins de semana, uma vez durante a semana e fui fazer uns trabalhos assim muito pontuais na Jovem Pan no Jovem Pan no Mundo da Bola e no Plantão do Comentarista com o Flávio Prado que era o diretor da faculdade de onde eu fui. Um dia ele tava na semana de jornalismo, aí ele tava na minha frente, eu falei: “Muito bem. E agora?”. Eu tava com um gravador: “Oi, Flávio, tudo bem? O meu nome é Tony, posso fazer uma matéria com você porque o professor pediu e é meio urgente?”. Mentira. “Claro”. Aí eu fiz um monte de pergunta pra ele e depois eu fui e falei: “Eu posso conhecer a rádio um dia?” “Claro, pode conhecer e tal”. Aí foi toda uma historinha até num dia que ele me ligou, falei: “Mano, não acredito”. Ele me ligou e falou: “Tony, estou precisando de uma pessoa aqui pra produzir o programa. Você tem interesse? Você que já veio aqui, já conheceu, achei que você está muito interessado.” “Nossa, meu sonho. Muito interesse”. E aí eu comecei a produzir junto com outras pessoas o Jovem Pan no Mundo da Bola e o Plantão do Comentarista aos sábados e domingos durante acho que oito, nove meses que era meio que o combinado que ele tinha de várias pessoas irem passando por lá pra aprender. Mas eu tinha matado dois micros sonhos com uma cajadada só. A Jovem Pan é na Paulista e é uma rádio.
P/1 – A gente vai conversar um pouco sobre o que você faz hoje, o projeto que você participa, tudo, profissionalmente, só vou voltar um pouco pra fechar essa questão do Arrastão. Queria saber o que você sabe da relação... Primeiro o que você sabe sobre o Criança Esperança assim. Se você conhece o Criança Esperança, o que você conhece do Criança Esperança, como que você teve contato primeira vez?
R – Eu conheço por conta da campanha que rolava. A minha família sempre assistia, era meio que tradição assistir. Eu lembro que quando eu era criança teve uma época que o Renato Aragão subiu na mão do Cristo pra dar um beijo na mão do Cristo. Essa imagem é muito forte pra mim. Muito forte. Eu era muito criança, eu lembro muito dessa imagem, porque os trapalhões eram muito simbólicos pra mim, eu achava incrível. E eu me lembro do Renato Aragão chorando e ele jogando pétalas de rosa e eu olhei... Tanto é eu fui, só conheci o Rio de Janeiro o ano passado e eu fui ao Cristo e eu me lembrei dessa história. Falei: “Como é que esse cara teve coragem de subir ali, velho? Eu estou aqui eu já estou sentindo vertigem”. Então foi muito forte. Essa foi eu acho que a primeira imagem que eu tenho. Depois a gente assistindo e depois dentro do próprio Projeto Arrastão porque começou a se falar muito do Criança Esperança lá dentro porque ele apoiava os projetos, né? Depois de algum tempo depois também, já quando eu não era mais aluno, e dentro da história do Projeto Arrastão o primeiro ex-aluno que virou equipe técnica foi eu assim. E aí eu acabei virando coordenador de um núcleo de comunicação dentro do Projeto Arrastão que depois a história dele foi contada dentro do Criança Esperança. E eu contei toda essa história pro Fábio Assunção que estava lá e pra diretora externa. Falei: “Cara, vocês têm noção que eu estou fazendo o círculo inteirinho, todinho”. E na verdade o ciclo continua porque agora eu estou contando essa história, sabe? Lá eu estava facilitando pra contar a história de outros jovens que estavam sendo beneficiados pelo Criança Esperança como eu fui um dia. Nossa, que engraçado, né? Como a vida é muito circular. Então a minha relação sempre foi essa, eu sempre ouvi falar muito, eu já tinha a referência afetiva, mas eu sempre ouvi falar muito e eu lembro também de uma vez eles irem lá gravar e quando eles foram gravar tinha uma coisa chamada Minuto Criança Esperança, que eles começaram a passar na grade de programação antes do Bom Dia Brasil, antes do Jornal Hoje, que eu era aluno ainda. E aí eles me chamaram e eu fui falar o que significava pra mim aquele projeto, tenho esse vídeo até hoje guardado. Eu gravei e aí foi muito legal, ficou passando, então todo mundo: “Que legal você lá com a camisa do Projeto Arrastão passando em rede nacional”. E o meu avô em Minas, ligando uma coisa com a outra, meu avô em Minas estava meio doentinho, a minha avó falou assim que ele acordava cedinho, passava terça e quinta, lembro-me disso até hoje, ele levantava cedinho e passava esse comercial no intervalo e aí minha vó perguntou: “Por que você está acordando tão cedo?” “Porque eu quero ver o meu neto na TV”. Eu achei isso muito legal. Muito legal. Isso passou durante três meses, se eu não me engano, essa campanha, eram vários, né? E aí a minha avó contou isso, tal, eu falei nossa, que legal isso assim: “Eu quero ver o meu neto na TV”. Eu achei isso muito bonito. E ele falou que ele era todo orgulhoso e contava pra todo mundo: “Você tem que assistir o Bom Dia Brasil e o Jornal Hoje que vai passar. Terça passa antes do Bom Dia Brasil e quinta antes do Jornal Hoje”. Então eu me lembro dessas duas coisas assim. Mas essa foi a minha ligação, eu conheci como aluno, depois ajudando a produzir histórias de outras pessoas assim.
P/1 – E qual que você acha, Tony, que é a importância de um projeto como o Criança Esperança e aí especificamente pro Arrastão, que é o local, o projeto que você tem mais ligação, pro Arrastão desse recurso que chega do Criança Esperança dessa parceria com o Criança Esperança. Qual que é a importância dessa parceria?
R – Eu acho que assim, durante muito tempo eu fiquei pensando muito sobre como é que a gente tornava os projetos sociais um modelo mais sustentável financeiramente, essa é minha inquietação. A gente precisa pensar mecanismos a médio e longo prazo não só pra empreendimentos, pra empreendimentos sociais na verdade, não só projetos. Então durante muito tempo eu ficava pensando, nossa, receber recurso é importante, mas ele também cria uma dependência. E depois eu comecei a pensar que não, depois eu comecei a achar que eu estava pensando errado. O nosso modelo mental que criava dependência, não era o recurso, não era o apoio. Então nesse sentido, por exemplo, eu olho pro Criança Esperança e eu falo assim, talvez o Tony, Rubens, Cláudio, Wilton, só tiveram essa jornada construída, às vezes não, acho, acredito, só tiveram essa jornada construída porque esse recurso chegou. Como é que o Projeto Arrastão iria bancar a formação de 30 jovens durante 12 meses gastando um absurdo nesse projeto? Não existe essa condição financeira. As organizações sociais não conseguem bancar isso sozinhas. Então pra mim hoje a importância especificamente com o Projeto Arrastão é uma questão de um impulso. Ele é o impulso. Então tem uma provocação de não pode ser a única fonte, o nosso modelo mental não pode ficar nisso, mas, cara, ele é um impulso importantíssimo, importantíssimo que quem faz a doação... Por isso que eu acho incrível essa nova forma de comunicar como é que há transformação, porque ela não é uma transformação numérica, ela é uma transformação de histórias de vida, né? Então ano passado a campanha já foi um pouco nesse sentido, isso que a gente está fazendo é um pouco nesse sentido, é vamos dar rosto, RG e endereço pras transformações que vocês estão ajudando a fazer acontecer. Porque não é uma transformação de número, não são 30 pessoas, é o Tony, é o Wilton, é o Cláudio. E quando você coloca rosto nas pessoas, nas histórias, nas transformações, cara, isso se torna infinitamente mais poderoso, né? Porque aí se alguém, por exemplo, vier me perguntar e eu contar essa história inteira, que é uma história gigante, que a gente está cortando um monte de espaço aqui, um monte de trecho aqui, aí vai falar: “Então os 20 reais que eu doei geraram isso?” “Exatamente”. Não foram só os 20 reais, mas eles foram essenciais porque eles operacionalizaram tudo. Então você poderia doar o seu tempo, o seu talento como voluntário. Não, mas nesse caso especifico do Criança Esperança são 20 reais que se juntam a mais 20 reais, mais outros 20, que é a minha contribuição. Eu não tenho tempo pra ir até o Projeto Arrastão. O que eu faço? Eu dou a minha contribuição que são 20 reais. Essa é a minha contribuição, esse é o meu tempo e talento monetário e eu entrego. Se você pensar que é espalhado pelo Brasil inteiro, isso se potencializa ainda mais porque você imagina que esse recurso vai chegar numa comunidade ribeirinha. Cara, que lei de incentivo ou que tipo de fundo essa comunidade ribeirinha acessa? Nenhum porque não tem mecanismos de incentivo lá. No entanto, apesar de não ter os mecanismos de incentivo, existem pessoas que também precisam ter as suas histórias transformadas. Como é que a gente faz isso? Aí pra mim é que entra o Criança Esperança porque ele pega o barco e sobe o rio. Ele pega o barco e sobre o rio porque pode até ter uma lei de incentivo lá no município, mas não é interesse, não deve ser interesse de alguém divulgar e deve ser muito difícil e complicado colocar esse projeto nessa lei. No Criança Esperança está lá, na TV, é o Renato Aragão, é não sei quem, é o Luciano Huck, é a Angélica dizendo assim: “Então você doa pra cá e a gente piramida. Pode ficar tranquilo, a gente só vai piramidar, a gente não vai fazer nada, a gente só vai fazer isso aqui. No fundo, no fundo a gente só está impulsionando essa história”. Então pra mim a importância é essa assim, eu acho que ela materializa essa vontade de ajudar. Sempre com essa questão de tomando o cuidado pra isso não ser o único pensamento, mas que é importante os 20 reais que foram doados em 2000, vamos supor assim, são os 20 reais que compraram o caderno e a caneta e não sei o que, não sei o que eu usei em 2001 dentro do projeto que eu participei. Essa pessoa nunca vai saber se foram os 20 reais dela, na dúvida foram os 20 reais de todo mundo. Todo mundo ajudou, todo mundo contribuiu.
P/1 – Quero que você conte agora pra gente então um pouco do trabalho que você faz hoje, como é que você chegou nisso e qual que é o trabalho, qual que é a sua função.
R – Bom, depois que eu fui fazer rádio eu fiquei apaixonado por rádio, conheci os meus ídolos do futebol que eu gostaria, porque era um programa esportivo. Muito bem, ok, é isso, próximo passo voltei pro Projeto Arrastão, o Thiago Vinícius de Paula, que é uma pessoa incrível, moleque incrível, falou: “Tony, tem um negócio chamado empreendedorismo social que eu estou estudando que, cara, isso é maior legal.” “Ah é?” “É. Vem aqui pro Projeto Arrastão que eu vou te contar”. E ele me puxou de novo pro Projeto Arrastão pra me explicar o que era empreendedorismo social, que ele tava aprendendo esse termo novo. E aí ele começou a falar umas palavras muito difíceis, stakeholders, não sei o que, fluxo de caixa. Eu falei: “Mas qual é o conceito disso?” “O conceito é de que a gente não fique esperando o dinheiro, a gente faz o dinheiro.” “Hum, legal isso, heim? Legal. Vou usar a comunicação... Legal, legal...”. Aí ele foi me apresentando muita gente, muita gente, então eu devo ao Thiago boa parte desse meu caminho dentro do empreendedorismo social também, que foi ele que me puxou literalmente: “Vem aqui segunda-feira que eu vou te explicar o que é isso”. Aí eu fui estudando sobre isso, depois o Projeto Arrastão passou por uma transformação incrível de juventude. Em 2005, não tinha quase nenhum jovem lá e eles elegeram dez jovens, que era o comitê de jovens gestores, selecionaram dez jovens, o Thiago e eu estávamos nesse grupo, pra co-construir junto com a gestão da organização, um processo que ninguém nunca tinha feito lá na região, como deveria ser a organização social de juventude dos nossos sonhos. E foi incrível porque eles deram muita liberdade pra gente viajar e a gente criou uma metodologia, que eu só descobri que chamava metodologia muito tempo depois, que chamava falação e a gente colocou gente que nunca teve contato com o Projeto Arrastão, ex-alunos, atuais alunos, comitê jovens gestores e funcionários pra juntos construírem um evento que a gente falou que é o evento onde as pessoas falavam o que elas quisessem do Projeto Arrastão, qualquer tipo. E foi incrível porque a gente colocou 350 jovens pra discutir sobre o Projeto Arrastão. Por isso que eu digo que o Projeto Arrastão é o quintal lá de casa, porque onde que tem uma liberdade como essa assim? Foi maravilhoso. Um dia inteiro, um dia inteiro, um dia inteiro. Nós viramos assim numa das reuniões: “A gente quer falar mal, viu? Tem algum problema?” “Pode falar”. Então nós vamos criar a sala do falar mal que é tudo que você acha de ruim, coloca lá. Foi um processo maravilhoso, a gente sistematizou tudo isso, 350 jovens, a gente descobriu na época juntos, jovens do comitê e a gestão institucional, que o Projeto Arrastão não estava no caminho certo com relação à juventude do Campo Limpo. Cerca de um mês, dois meses depois a gente chamou esses jovens de novo e a gente apresentou um plano de trabalho de juventude que era o Programa de Formação de Juventude do Projeto Arrastão baseado no que a gente pegou nessa pesquisa de mercado. A partir daí o Projeto Arrastão ficou com 280 jovens em dez, 12 cursos diferentes e até hoje o Projeto Arrastão funciona nessa mesma estrutura do Programa Juventude. Hoje tem 200 e tantos também, 290 se eu não me engano, e assim é muito legal ter feito parte disso porque antes tinha 20, 20 e poucos, 17, sei lá, e não tinha nada estruturado, sabe? Não tinha um caminho estruturado e esse, a gente tudo com 16, 17 anos, a gente criou. Gente, hip hop, por que não tem hip hop? Vamos ter hip hop sim e lá, lá, lá. O Projeto Arrastão abriu as portas pra comunidade aí a juventude se empoderou daquele espaço e foi maravilhoso. Depois de seis meses dentro do comitê de jovens, que era uma experiência de um ano, a gestão me chamou pra eu ser estagiário e aí eu falei: “Nossa, quero”. Estagiário da área de comunicação. Um ano e meio depois de estagiário, um ano depois de estagiário eu descobri que o Projeto Arrastão ia fazer um projeto de comunicação e juventude e aí eu me candidatei pra ser coordenador. Eles: “Você é muito novinho, 22, como é que você vai ser coordenador?” “Não, deixa, vocês ficam cuidando de mim, se eu fizer qualquer porcaria.” “Está bom, vai, deixa. Mas vai ficar uma coordenação te ajudando.” “Não tem problema”. Se eu não me engano foi a Solange me ajudando. Mano, 22 anos não tinha nem noção. Aí eu falei: “Mas eu tenho um pedido, todos os educadores têm que ser na mesma faixa de idade que eu tenho”. Aí eles deixaram. Eu só fui atrás de pessoas que tivessem 22, 23 anos. Tudo molecada. E a gente construiu o Núcleo de Comunicação Maré Alta, que existe até hoje, fizemos a rádio, construímos estúdio, fizemos tudo, tudo. Formamos 90 jovens em um ano dentro do Núcleo de Comunicação Maré Alta. A Carol que hoje trabalha no Escola de Notícia é minha ex-aluna desse núcleo. Vários jovens estão hoje em produtoras e conduzindo aí seus projetos de vida. Depois desse um ano acabou o patrocínio, o apoio, aí eu fiz uma proposta da gente pegar só 15 e fazer um trabalho muito focado com eles tentando criar uma agência de comunicação, o Projeto Arrastão mais uma vez topou, foi muito legal. E dentro desses 15 tem várias pessoas que hoje dentro do Campo Limpo estão fazendo coisas. Então foi uma mini-incubadora. Depois desse um ano, por exemplo, formando esses 90 jovens a gente foi pro Prêmio Itaú-Unicef, a gente foi um dos finalistas, o Projeto Arrastão depois de dez anos tinha sido finalista. Foi muito legal, foi um momento muito importante de valorização e reconhecimento do trabalho que a gente tava fazendo. A gente foi pra um caminho pedagógico completamente diferente, completamente diferente. Isso fez com que o resultado fosse muito legal. Esse núcleo de comunicação, os meninos tinham a chave do espaço. Quem tinha a chave do espaço era só o caseiro e os meninos tinham a chave do espaço. A nossa lógica era uma lógica completamente diferente. E depois de um ano fazendo agência de comunicação eu achei que a minha contribuição era aquela, eu tinha conhecido Geração MudaMundo da Ashoka em 2006 e eu queria criar uma produtora, mas não tinha muito claro. Falei: “Produtora todo mundo tem”. Guardei essa ideia da produtora numa gaveta literalmente, quando foi no final de 2010 eu saí do Projeto Arrastão, pedi demissão de novo, eu e as minhas demissões, só que dessa vez eu consegui ficar os cinco meses lá de seguro desemprego. Peguei esse dinheiro, comprei duas câmeras, dois computadores, chamei dois ex-alunos meus pra trabalhar, peguei o dinheiro da rescisão e dei uma bolsa de estudo pra eles. E fiquei uma semana em casa imaginando uma organização que fosse construída de baixo pra cima, uma organização que usasse a comunicação pra gerar a transformação social e uma comunicação que nascesse pra morrer, que tivesse uma data pra começar, terminar. Uma organização onde não existisse, esse foi o texto que eu escrevi no dia que eu pedi demissão, uma organização onde não existissem pessoas que servissem ninguém, todo mundo se cuidasse, uma organização onde todo mundo tivesse a chave... Então eu fui elencando umas coisas. Engraçado que eu sonhei de fato com esse lugar, era dezembro. Tem uma casa aqui na Avenida Rebouças, que é uma casa que agora é de um escritório de plano de saúde, que eu sonhei com essa casa nessa semana aí da demissão, que eu já estava pensando. E aí eu sonhei que esse lugar era o Escola de Notícias, era um projeto que já tinha o nome da minha cabeça. Eu falei: “Então beleza. Então acho que eu preciso seguir esse meu intuito, esse meu coração”. E aí eu pedi demissão, demorou um tempo até eles aceitarem, afinal de contas eu tinha feito toda a trajetória e não sei o que, e aí eu fiquei lá essa uma semana, misturei tudo que eu tinha visto de 2006 até 2010, tudo, qualquer coisa. O que aparecesse nesse período, partida de dominó, eu ia, interessava-me. Misturei tudo isso e propus um caminho metodológico pra Escola de Notícias, que é um caminho para formar contadores de história. São jovens que trabalham com comunicação, vídeo, jornalismo, rádio, mas o nosso foco não é o técnico, a gente quer formar o contador da história. Ele nos interessa. Por quê? Porque eu senti muita falta disso durante toda a minha vida, de pessoas que se preocupavam... Antes de perguntar o que você quer ser, perguntassem pra você quem você era, de onde veio. Senti muita falta disso, então desenhei uma metodologia que parte do processo antroposófico e aí vai subindo os níveis de comunidade em que nós estamos inseridos quando nós somos jovens e, a medida que essa metodologia vai sendo desenvolvida esses jovens vão estudando comunicação e produzindo, fazendo produtos de comunicação em cima dessas comunidades. E aí tem toda uma metodologia pra isso, que é uma formação de 400 horas e a gente formou... Aí o Escola de Notícias nasceu, a gente ainda não tinha grana pra poder fazer esse piloto dessa escola de comunicação comunitária, a gente só fez a primeira turma ano passado, a gente formou 20 jovens, esses 20 jovens hoje são do conselho de gestão da Escola de Notícias, todos eles foram convidados para serem do conselho e esses jovens tiveram uma formação muito intensa, muito intensa. Tanto é que no mês de janeiro, por exemplo, não tinha ninguém, eles tinham a chave e eles continuaram se encontrando no espaço, exatamente como no sonho, pra jogar vídeo game, pra fazer piquenique, pra comer pizza, pra olhar a lua. O espaço é deles, o espaço não é do Escola de Notícias.
P/1 – Quem que são, qual que é esse público? Qual que é o perfil?
R – O perfil? Eles têm 16 e 17 anos, eles são de escolas particulares e públicas, porque se a gente quer transformação social a gente precisa colocar todo mundo pra sentar junto. Esse processo dura dez meses, a metodologia desenhada em quatro passos que provoca as pessoas a perguntarem quem elas são e de onde elas vieram. Depois provoca as pessoas a terem aulas comunitárias, ou seja, com os Griôs da comunidade e nesse momento a gente está discutindo sobre como a gente aprende ensinando o mundo e de quem é o conhecimento. Então os níveis de provocação são muito profundos, primeiro módulo que, aliás, eu acho que dialoga muito com o processo de vocês, o primeiro módulo são histórias de vida. Então através da jornada do herói, através do processo antroposófico a gente resgata a história de cada um dos alunos, eles se resgatam pra gente falar, por exemplo, de ética. Como é que se fala de ética em comunicação se você não está na faculdade? Trocando as histórias de vidas de uns e dos outros, uns contra as histórias dos outros. Quando eu não conto a história que é do jeito que você me contou eu preciso ser mais cuidadoso com a sua história. Então é toda uma lógica que é construída focada sempre no contador. Os meninos tecnicamente o ano passado a turma produziu uma web-série. Tecnicamente eles avançam, mas não é o nosso foco. O nosso foco é o contador da história. Pra gente apertar o botão interessa, mas apertar as pessoas interessa muito mais. Porque se a gente tem uma crise na comunicação que é uma crise de narrativa, narrativa não é equipamento, narrativa é narrativa. São as pessoas que desenvolvem as narrativas. Então o que eu imagino da Escola de Notícias é daqui a 20 anos nós teremos essa geração chegando nas redações em lugares estratégicos, processos decisórios, chefe de reportagem, chefe de redação e coisa do tipo. A gente está formando essa geração. A gente está formando essa geração. Então a gente está formando uma geração que não vai falar que tal revista ou tal emissora manipula, porque manipula é... Por exemplo, dentro do Escola de Notícias no primeiro dia a gente diz assim, se você veio aqui pra esperar que a gente, já que é uma escola de comunicação, vá dizer que tal emissora manipula você, não é aqui. Não é. Porque a palavra manipula é muito forte, alguém criou essa palavra porque ela queria superconvencer as outras pessoas de determinado ponto de vista, porque o tempo todo nós estamos negociando nosso ponto de vista com as pessoas. Então a gente brinca assim, aqui a gente não veio colonizar ninguém. Então nós vamos contar sobre essa emissora, sobre esse caso, sobre esse jornal, a decisão é de vocês. A decisão é sempre de vocês. E a gente acredita que formando uma geração dessa forma daqui a 20 anos essas pessoas estarão nesses processos decisórios e como a mudança é uma questão cultural, ela não é um passo de mágica e nem uma luz que aparece no céu, é só assim que a transformação vai acontecer dentro do mundo da comunicação. Então a Escola de Notícias funcionou 2011, 2012 de outro modelo, e aí 2013 a gente criou a escola de comunicação. Nesses três anos a gente já trabalhou com 1500 pessoas, nunca tivemos apoiadores nem financiadores, nossa lógica sempre foi a lógica do reinvestimento. Passamos perrengue danado, mas ok. Queremos sim o investimento, estamos atrás escrevendo edital, esse tipo de coisa, mas de novo, a lógica não é só, é também. A gente quer criar uma sustentabilidade econômica pra isso, porque a sustentabilidade afetiva já existe. Eu amo o que eu faço.
P/1 – Mas como é que vocês se mantêm?
R – A gente vende serviço. Todos os serviços na área de comunicação e formação de público a gente vende, paga-se e reinveste esse recurso no pagamento dos educadores, na compra dos equipamentos e tudo isso. Ano passado nós formamos esses 20 jovens de 17 escolas, 380 horas de formação, a galera pirou nessa formação, a galera não sai do espaço, eles têm a chave do espaço, eles são o nosso conselho de gestão. A médio e a longo prazo eles que vão mandar no Escola de Notícias, porque eles vão ser o conselho consultivo de fato, que delibera. Esse ano dia 3 de abril de 2014 é a data de fundação do Escola de Notícias juridicamente. Então nós somos uma associação. O Escola de Notícias vai existir num primeiro momento até o dia 3 de abril de 2024. A nossa provocação pra isso é que nós não saberemos se essa comunidade precisa desse tipo de serviço daqui a dez anos. Por que a gente não tem que se provocar o tempo todo a fazer pesquisa de mercado, talvez não faça nenhum sentido mais, nenhum sentido. Simbolicamente a gente coloca data e está escrito no estatuto que em dez anos o conselho de gestão e a comunidade local com todos os seus representantes deverão se reunir pra deliberar se faz sentido ou não o Escola de Notícias continuar existindo. A gente já está colocando isso no estatuto pra que o próximo gestor, já que eu só vou ficar dois anos e eu vou embora do Escola de Notícias, já que o próximo gestor possa ocupar esse espaço e ele não mude isso de uma forma que... Depois que uma organização existe há 50 anos ela começa a se perguntar por que ela existe. Depois que o Criança Esperança existe a, sei lá...
P/1 – Trinta e tantos.
R – Trinta anos.
P/1 – Vinte e novo anos, né? 29 anos agora.
R – Foi em 85, né? Depois que o Criança Esperança existe depois de 85 anos, o processo que está acontecendo aqui é um processo de resignificação da própria história dessa campanha, dessa organização que é, ok, nós sempre mostramos pras pessoas números, vamos mostrar história de vida agora? Vamos mostrar uma geração que foi transformada por esse movimento que a gente faz? É o que eu tava imaginando, o que a Carol também tava imaginando quando a gente coloca isso no estatuto, que é, depois de dez anos por que mesmo que a gente existe? O que nos motivou a existir? Essa motivação ainda é válida? Não? Já cumprimos todos os nossos objetivos ou contribuímos de forma efetiva? Ou comunidade agora quer meio ambiente, agora o tema é meio ambiente, aí eu vou evocar uma pessoa que uma vez disse assim: “Eu não quero ter razão, eu quero ser feliz”. Então nesse sentido eu acho que o Escola de Notícias está sendo construído pra ser feliz, não pra ter razão. Ter razão é, tá, eu sei que essa comunidade continua precisando de um trabalho de educomunicação, tá, mas as escolas públicas já estão bem melhores. Por que, se o objetivo era entrar na escola pública, por que eu preciso continuar? Então a gente brinca o tempo todo que o Escola de Notícias é feito pra acabar. Quem vai decidir isso? Comércio, moradores e conselho, que serão esses meninos que hoje estão com 17 e que vão estar com 27, 28, no auge de sua potência econômica, social, principalmente com a consciência absurda de que tipo de organização eles ajudaram a criar. Porque dia 11 eles têm outra reunião de conselho e tudo que chega pra gente a gente coloca na mão deles pra eles ajudarem a gente a decidir. Óbvio, tem 17 anos, né? Não podemos deixar essa bomba na mão deles, mas estudar governança, processo de gestão. É isso. Daqui a dez anos esses caras, o Escola de Notícias vai ser o quintal da casa deles como o Arrastão é o quintal da minha casa assim. Então hoje o Escola de Notícias trabalha formando pessoas, crianças, adolescentes, jovens e adultos pensando as tecnologias de informação e comunicação como ferramentas de transformação social, exceção os projetos que a gente vende, comercializa, e a gente tem alguns projetos próprios que são nossos, que a gente se autofinancia. O sonho, o nosso sonho, motivação maior é a escola de comunicação comunitária que é essa jornada de aprendizagem, autoconhecimento e comunicação, que é antes de apertar botão, a gente precisa aprender a apertar as pessoas assim.
P/1 – Nesse tempo, nessa experiência com esse grupo de jovens que você citou agora pra gente, teve algum episódio ou alguma situação assim, uma história que tenha te marcado? De convivência, de aula, de construção.
R – Todas. Aliás, tem uma que... Esses 20 primeiros jovens que são da primeira turma da escola confiaram na gente, um bando de moleque lá no espaço público falando: “A gente vai fazer uma jornada incrível com vocês”. Eles precisaram confiar muito na gente, os pais então, Nossa Senhora, que a metodologia também ajuda os pais a chegarem perto, mas o pai olhava: “Você está descalço? Jura que você vai ser o professor da minha filha?”. E um monte de molecada, todo mundo com 20 anos, 21, 22. Todo educador. O mais velho educador que tinha, tinha 24. Imagina. Pra dar aula pra quem tem 17. Cinco, seis, sete anos de diferença. Histórias. Você perguntou se tem histórias que marcaram, sim. Elas, todos esses 20 jovens inclusive vão marcar fisicamente, porque sábado agora é o meu aniversário e eu vou me dar de presente em 2014 uma tatuagem com eles 20 assim. A minha amiga está fazendo, são 20 passarinhos e passarinhos com personalidade, e aí eu vou fazer aqui. Essa é a minha forma de agradecê-los por essa confiança assim que eles tiveram e pra provar que todas as histórias são marcantes assim, todas. Procurando uma específica, nossa...
P/1 – Um episódio mesmo, um momento.
R – Ano passado nós participamos do Prêmio Empreendedor Social de Futuro da Folha e a gente foi finalista e eles tiveram que dar depoimentos sobre o Escola de Notícias. Os depoimentos foram muito surreais de como o Tony, a Carol, a Camila, a Ana, o Nilson, a Fran, como todos os educadores não eram mais do que eles. Não eram. Isso tava claro no discurso deles. Isso pra mim é importantíssimo. Ninguém é mais do que ninguém nesse espaço. Eu vou pegar um episódio, talvez não do... É que eu estou procurando, são tantas histórias que agora eu me perdi, mas talvez não da escola de comunicação, vou pegar outro episódio de um trabalho que a gente fez. A gente foi fazer um trabalho com um menino que ele tem dez anos de idade e ele tem um problema grande de aprendizagem. Ele não sabe ler direito, não sabe escrever, tem uma situação familiar supercomplicada e uma das primeiras coisas que foi dita pra gente quando a gente começou o trabalho é de que ele era uma pessoa que atrapalhava a aula. Lógico, nós olhamos e falamos: “É esse que a gente quer, a turma do fundão”. E ele foi participar, ele era o único menino num processo só com meninas. Quando a gente começou a fazer o processo ele realmente tinha muita dificuldade, dez anos, tinha muita dificuldade de acessar o tipo de conteúdo por mais que a nossa metodologia fosse totalmente adaptada pro universo deles. Muita dificuldade. Então quando eu pedia alguma coisa ele desenhava. Tá, só desenhava. Desenhava ou colocava uma palavra e fazia um desenho e tal. No mundo externo, no mundo que infelizmente ainda existe, que tem parte de pessoas que não acreditam mais nesse modelo mental, mas no modelo mental vigente dentro do processo educativo ele é o cara que atrapalha, ele é o cara que não aprendeu porque ele é preguiçoso. Ninguém considera que ele perdeu a mãe, ninguém considera que ele perdeu a avó, tudo isso em 15 dias, ninguém considera que ele tem uma madrasta, que o pai dele passa a maior parte do tempo viajando e que ele só fica com a madrasta. Ninguém considera que esse contexto quando ele tem seis anos, sete anos, influencia no processo de como ele aprende. Pedir pra uma pessoa aprender a escrever o A quando ele se lembra de como a mãe foi assassinada na frente dele, desculpa, é um processo muito desumano. Ele precisa se curar disso primeiro, ele precisa cuidar disso primeiro. Uma educação centrada em pessoas, né? Então com esse menino, por exemplo, o trabalho foi muito mais específico e quando chegou na parte de fazer... E ele sempre com muita dificuldade, ele teve um momento que ele tava sofrendo bullying das meninas e ele me chamou chorando e falou assim: “Eu não quero mais fazer parte da oficina de vídeo.” “Por quê?” “Porque as meninas zoam muito comigo.” “Por que elas zoam?”. Ele parou, limpou a lágrima e falou: “Porque eu encho o saco um pouco delas, né?” “E o que mais?” “E eu também pergunto muito”. Tá, perguntar muito é porque ele não entende, então tem que perguntar muito. Falei: “Então eu vou dizer uma coisa pra você” falando isso pra ele e ele chorando “Isso que está acontecendo com você de 19 meninas se juntarem pra zoarem com você que é o único menino, foi o que a gente, nós homens sempre fizemos com as mulheres durante toda a vida. Nosso processo machista.” “Mas eu não fiz isso.” “Então, a gente está pagando. Eu também não sou machista, mas a gente está pagando.” “Mas e se eu não zoar com elas?” “Então, porque na escola quando se junta cinco meninos e tem uma menina, essa menina sempre é zoada, não é?” “É.” “Na escola não é assim?” “É.” “Então, só está acontecendo o inverso aqui. Segura a onda.” “Não, eu posso chamar dois amigos pra fazer parte também pra não ficar sozinho?” “Claro”. Ele chamou dois amigos e os meninos fizeram o processo até o final. Por que eu estou contando a história dele? Porque quando chegou na parte de fazer um storyboard ele: “Deixa eu fazer”. Eu expliquei pra ele o que era o storyboard, pra todo mundo, ele levantou a mão: “Deixa-me fazer”. E ele fez o storyboard inteirinho, eram 19 páginas. Fez o processo inteiro. Todo mundo lia o texto pra ele e ele desenhava. Talento dele é o desenho. É isso. A gente precisa... Nossa, que visão romântica, Tony, então quer dizer que o menino não precisa ler e escrever? Precisa, mas a gente não pode julgá-lo só pela leitura e escrita. É a mesma coisa quando você está na escola a professora vira e fala assim, ou na faculdade ou qualquer outro ambiente de aprendizagem, o professor vira e fala assim: “Escuta, gente, olha pra mim, eu estou explicando”. Eu já falei isso pra um grupo de educadores que a gente vai dar formação, desde quando olhar pra você significa que eu estou prestando atenção em você? Posso estar olhando pra você e prestando atenção no debate que eu ouvi ontem. Da mesma forma que eu estou aqui mexendo no meu celular e você está falando e eu estou te ouvindo, porque a minha referência não é visual. Então no dia do prêmio da Folha, foi uma quarta à noite, quinta-feira eu tinha aula com eles aí estamos lá, eu falei: “Gente, eu queria muito, Carol e eu queremos muito, do Escola de Notícias, queremos muito levar vocês pro prêmio”. Porque a gente levou todos os parceiros nossos, quem comprava nosso serviço, todo mundo. Porque o Escola de Notícias é todo mundo junto. Eu falei: “Mas eu não posso, né? Os pais de vocês nunca vão deixar. Nunca. E também a gente é contratado de uma organização, então é pior ainda. Se sair à noite com uma organização já é difícil, imagina de um educador contratado. Mas não se preocupem, estaremos todos lá. Vai transmitir lá no UOL à noite e tal”. Não foram eles, mas o grupo dos meninos todo mundo no Whatsapp: “Nossa, vai começar, vai começar, que ansiedade”. A gente não ganhou o prêmio porque a gente não ia ganhar mesmo, criança, projeto maior pequenininho, porra, nem patrocinador não tem. Mas foi uma noite linda, linda, linda, foi muito bonito saber que no meio de 1700 projetos o Escola de Notícias que não tinha nem onde deitar à noite foi um dos três considerados mais inovadores de educação e negócio no país. Incrível. Fiquei muito feliz com isso. E aí no outro dia quando eu cheguei de manhã na organização esse menino virou pra mim e falou assim: “Tony...”. Todo mundo tava eufórico porque afinal de contas era Folha, era o jornal, era a mídia e todo mundo tava eufórico e aí eu cheguei: “Eu vou contar daqui a pouco”. Na hora que ele sentou ele: “Tony, Tony, nós ganhamos o prêmio?”. Nós ganhamos o prêmio. Eu contei tudo isso pra falar do nós. Nós ganhamos o prêmio. Isso pra mim faz muita diferença. Nós ganhamos o prêmio, sabe? Quando a gente tá lá no prêmio lá no Masp, os meninos todos no Whatsapp, todo mundo no UOL acompanhando ao vivo. Não é a organização, porque a organização é feita de pessoas, não é a Escola de Notícias, não é o Tony, não é a Carol, somos todos nós. E quando essa consciência consegue chegar pra um menino de dez anos, cara, depois de sete meses trabalhando com ele, ele vira e fala: “Nós ganhamos?”. Mano, é incrível. Isso pra mim é incrível. Então essa é a materialização de toda essa narrativa, de tudo isso que foi vivido que era nós não somos organizações, não somos coisas, aliás, tenho uma tatuagem nas minhas costas que é um poema do Drummond que fala isso, né? “São tão fortes as coisas, mas eu não sou as coisas e me revolto”. Então nós vamos descoisificar a vida e descoisificar as pessoas, então a organização ela engole as pessoas eu acho de um modo geral, e a gente quer construir uma organização de baixo pra cima que ela não engula, que saiba que o Escola de Notícias é o Tony, mas também é a Carol e é também a Demi, que é uma das cachorrinhas que ocupa o espaço. Ela também é do Escola de Notícias. Mas que discursinho romântico. Não é, não. É um discurso de reconhecimento de todo mundo. Quando vem uma revista de negócios e fala: “Esse empresário é incrível”. Eu falo ok, mas tem uma dona Clotilde que limpa a mesa dele, né? Cadê ela? Onde ela está nessa reportagem? Ou onde ela está sendo valorizada e reconhecida ali no dia a dia? Porque se não limpasse a mesa dele ele nunca teria condições de se reunir com o ministério da educação pra poder negociar um projeto novo porque a mesa estaria suja e porca. Então, e aí? Como é que a gente reconhece e valoriza essas pessoas? Como é que a gente visibiliza essas pessoas? Como é que elas deixam de ser invisíveis no dia a dia? Então a Escola de Notícias é isso, esse processo inteiro e eu vou ficar, o projeto inicial é eu ficar lá até o fim de 2016, aí depois eu saio e vou fazer outra coisa da minha vida. Aí terão mais oito anos pra essa primeira fase, a gente vai descobrir quem vai ser o próximo gestor, vai ser o próximo diretor e coisa do tipo.
P/1 – Tá certo, Tony. Eu vou encaminhar então agora pras nossas perguntas finais, são duas questões finais assim de fechamento. Antes de fazer as perguntas eu quero saber se tem alguma coisa que eu não tenha perguntado e que você gostaria de deixar registrado.
R – Não. Nossa, nós estamos falando há dois dias.
P/1 – Então a penúltima pergunta é quais são seus sonhos.
R- Meus sonhos? Bom, são vários, né? Meu próximo sonho, são micro sonhos, meu próximo sonho é ir viajar 2016, ir pra uma cidadezinha chamada El Kiosko, que é no interior do Chile, ficar dois anos viajando pela América do Sul pra buscar histórias de amor de pessoas com pessoas e de pessoas com coisas.
P/1 – Por que essa cidadezinha?
R – Eu a conheci o ano passado por conta de uma viagem que eu tive que fazer, um trabalho que foi na Universidade do Chile e aí eu passei por lá. Essa cidade é a última cidade onde o Pablo Neruda morou e lá fica a casa dele, última casa. Uma cidade que chama Isla Negra. Lá é um lugar lindo. É uma praia gelada. Eu acho engraçado, todo mundo de blusa deitado na areia. Achei muito engraçado. E eu fiquei encantado por esse lugar. Na verdade eu passei por Águas Calientes, por exemplo, aos pés de Machu Picchu, também é um lugar... Quando eu falo assim qual é o lugar do seu sonho? Eu falo, mano, Copacabana, lá na Bolívia, El Kiosco e Águas Calientes. São lugares assim que às vezes quando eu paro pra pensar eu falo: “Eu não passei nesse lugares, eu sonhei. Não é possível, cara. Elas são muito sonho assim”. Águas Calientes é um lugarzinho desse tamanho aos pés de Machu Picchu que tem um riozinho, as pessoas passam assim, atravessam... Meu, como que aquilo... Aí você olha tem cinco colinas gigantes, ela está no meio da colina. Copacabana, lago Titicaca em frente assim. Mano, como é isso? Não existem essas cidades. Então eu acho que um sonho meu, um micro sonho aí, é fazer essa viagem. Outro micro sonho é que o Escola de Notícias seja efetivo no que ele se propõe a fazer, seja lá o que isso queira dizer, que se tiver que acabar que acabe, todo mundo fecha lá o portão, tranca o cadeado, volta pra casa feliz e contente. Cumprimos. Era isso, cara. Precisamos ter razão, não, só precisamos ser feliz. Outro sonho ter uma filha. Nossa, mas aí tem um processo. Ter uma filha, Eduarda. Tem até nome. Eduarda. Ter uma filha, esse é um sonho. Engraçado, eu não tenho muito essa... Por isso que eu falo dos micros sonhos assim, porque na hora que eu sair daqui alguém pode me falar uma coisa, eu achar que aquilo é super meu sonho de momento assim, não tem uma coisa... Quando eu era criança eu queria me formar em jornalismo. Esse era o grande sonho, né? Trabalhar no Flamengo é um micro sonho, trabalhar na comunicação do Flamengo, eu estaria realizando um supermicro sonho. Levar o meu pai pra conhecer o Pantanal, ele é apaixonado pelo Pantanal. Eu brinco com ele, eu falo: “Se algum dia eu tiver dinheiro na vida, o que é pouquíssimo provável, pai, eu vou virar amigo do Almir Sater pra você passar um final de semana na fazenda dele”. Deixa-me ver o que mais... Ter casa não é um sonho. A família propriamente constituída, não necessariamente, apesar de que seria bem divertido encontrar uma pessoa. Viajar, viajar é um sonho. Aprender italiano talvez seja um micro sonho, inglês não, perdi a vontade, mas italiano talvez... Conhecer Veneza que é um micro sonho. Ah, minto, tem um sonho, eu acho que esse está na categoria sonho mesmo, I have a dream, está lá em cima, que é, eu sempre brinco, se isso acontecer eu posso morrer no outro dia que eu vou estar feliz, tranquilo, que é ver a Aurora Boreal ao vivo. Pronto. É isso. Esse é um micro sonho. Esse é um sonho mega máster. Se eu puder acompanhar aquilo ao vivo e depois, do jeito que eu sou friorento eu vou morrer congelado lá, ótimo. Porque se Deus existe, acredito que ele exista, aquilo é ele. Assim como eu vivo dizendo, se Deus existe Leonardo Boff é a voz de Deus, porque eu olho pra lá e falo: “Nossa, é Deus falando”. Mas a Aurora Boreal, aquilo é absurdo. Ok. Os físicos explicam não sei o que da energia. Não me interessa, mas o céu ficar verde, azul, vermelho, aquilo é surreal pra mim, é muito surreal. Então pra mim, resumindo, o meu grande sonho talvez seja essa Aurora Boreal.
P/1 – E por fim como é que foi contar sua história?
R – Nossa, estou meio cansado. Estou meio cansado e olha que eu preciso fazer um trabalho da pós ainda. Eu gostei muito porque eu gosto muito dessa ideia da gente valorizar a história das pessoas, né? Eu acho que o tempo todo a gente está contando a nossa história de diversas formas. Quando eu fico descalço eu estou contando a minha história, talvez você não saiba o porquê e eu não tenha contado, mas tem uma motivação, isso é contar história. Você não conta só verbalmente, né? Então pra mim foi uma experiência muito legal de poder revisitar tudo isso, que, putz, algumas coisas nem lembrava mais, de conseguir dar uma linearidade pra isso. Tem coisa, por exemplo, que eu lembrei só agora que era muito importante e que eu acho que construiu muito quem eu sou agora. Ok. Passou, mas que esse eu já falei lá no TED, então está tudo bem. Mas assim, foi incrível. Foi uma experiência legal de afirmar inclusive pra mim mesmo o quanto é importante a gente não esquecer qual o caminho que a gente fez. Esse negócio de se esquecer de onde a gente vem é um discurso muito eu acho... Como é que fala? Candidato. Eu vim de família humilde. Eu falo, ok, eu tenho amigos que são ricos e a família deles são humildes do mesmo jeito. Nunca fui mal tratado, nunca fui colocado de lado. Na verdade não tem nada a ver com de onde você vem, na verdade é processo, é pessoa. Então esse discursinho pra mim já foi meio comprado pra legitimar determinada... Eu sou pobre, então vota em mim. Não. Isso não faz de você uma pessoa de bom caráter. De modo algum. Isso não faz você merecedora da minha confiança e nem do meu voto. Então foi uma experiência linda, agradecer vocês de verdade por essa possibilidade. Foi uma experiência muito bonita e eu queria muito também vir, conhecer mais a fundo o Museu da Pessoa, porque acho que o primeiro módulo tem tudo a ver com o Museu da Pessoa e eu tava imaginando em 2011 a metodologia, eu falei assim, eu fui linkando assim, falei parceiros estratégicos. Aí eu coloquei Museu da Pessoa no primeiro, a galera do mapeamento afetivo no segundo, a galera do co-learning educação entre pares no terceiro. E vocês foram a primeira assim porque eu já conhecia o trabalho de vocês de ouvir falar e de vir aqui, que eu nem lembro mais pra que, mas eu vim aqui um dia. Então é isso. Agradecer, muito obrigado a vocês dois. Foi muito legal.
P/1 – A gente que agradece. Obrigada, Tony.
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