Entrevista de Wilson Paes de Pádua
Entrevistado por Sofia Tapajós e Teresa de Carvalho
São Paulo, 03 de abril de 2023
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV1378
Transcrita por Lucas Silva Pamio
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:17) P/1 – Então você fala seu nome, local e data de nascimento.
R/1 – Bom, meu nome é Wilson Paes de Pádua. Nasci na cidade de São Paulo, estado de São Paulo, Zona Norte de São Paulo, e no bairro do Cachoeirinha. Nasci em casa; naquela época, imagina, 1963, 11 de abril de 1963, né? E quem conta muito sobre essas histórias é minha irmã mais velha. Minha mãe também contava, mas ela ficava meio assim pra contar, não sei porquê, acho que é parte da intimidade dela, né? Mas minha irmã mais velha contava, que eu nasci em casa e minha mãe tinha uma amiga, uma das amigas, vizinha, alguma coisa assim, que quando eu estava pra nascer: “Levem as crianças - que eram meus irmãos - para fazer feira”. Enquanto a minha irmã foi na feira, junto com a vizinha e tal, quando voltou, eu já tinha nascido em casa, que chamaram uma parteira, uma mulher que fazia parto em casa e eu nasci, né, vim ao mundo. Recebi o nome de Wilson e assim fui seguindo a vida.
(01:45) P/1 – Você sabe por que te deram o nome de Wilson?
R/1 – Eu não sei, mas meu tio se chamava Wilson também. Tive um tio chamado Wilson, né? Fiquei de perguntar para a minha mãe, mas eu não quis entrar muito em detalhe do porquê, meu tio também se chamava Wilson. Fiquei meio com medo de perguntar e arrumar confusão na família. Deixa pra lá essas coisas. (risos) A minha mãe já estava, sabe, idosa. Quando eu comecei a me ligar nessas coisas, eu: “Deixa essa coisa pra lá, que não vale a pena”, né? Mas, não sei porquê me chamou Wilson. Meu irmão se chamava Eduardo, a outra é Janete [e a] Claudete. Não sei porquê, mas eu gosto de Wilson. Meio americanizado. (risos) Não que eu goste de americanos, né, mas pelo menos abre as...
Continuar leituraEntrevista de Wilson Paes de Pádua
Entrevistado por Sofia Tapajós e Teresa de Carvalho
São Paulo, 03 de abril de 2023
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV1378
Transcrita por Lucas Silva Pamio
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:17) P/1 – Então você fala seu nome, local e data de nascimento.
R/1 – Bom, meu nome é Wilson Paes de Pádua. Nasci na cidade de São Paulo, estado de São Paulo, Zona Norte de São Paulo, e no bairro do Cachoeirinha. Nasci em casa; naquela época, imagina, 1963, 11 de abril de 1963, né? E quem conta muito sobre essas histórias é minha irmã mais velha. Minha mãe também contava, mas ela ficava meio assim pra contar, não sei porquê, acho que é parte da intimidade dela, né? Mas minha irmã mais velha contava, que eu nasci em casa e minha mãe tinha uma amiga, uma das amigas, vizinha, alguma coisa assim, que quando eu estava pra nascer: “Levem as crianças - que eram meus irmãos - para fazer feira”. Enquanto a minha irmã foi na feira, junto com a vizinha e tal, quando voltou, eu já tinha nascido em casa, que chamaram uma parteira, uma mulher que fazia parto em casa e eu nasci, né, vim ao mundo. Recebi o nome de Wilson e assim fui seguindo a vida.
(01:45) P/1 – Você sabe por que te deram o nome de Wilson?
R/1 – Eu não sei, mas meu tio se chamava Wilson também. Tive um tio chamado Wilson, né? Fiquei de perguntar para a minha mãe, mas eu não quis entrar muito em detalhe do porquê, meu tio também se chamava Wilson. Fiquei meio com medo de perguntar e arrumar confusão na família. Deixa pra lá essas coisas. (risos) A minha mãe já estava, sabe, idosa. Quando eu comecei a me ligar nessas coisas, eu: “Deixa essa coisa pra lá, que não vale a pena”, né? Mas, não sei porquê me chamou Wilson. Meu irmão se chamava Eduardo, a outra é Janete [e a] Claudete. Não sei porquê, mas eu gosto de Wilson. Meio americanizado. (risos) Não que eu goste de americanos, né, mas pelo menos abre as portas para algumas coisas. Tem uns que se chamam Mustafá, aí (risos) fica complicado, né?
(02:46) P/1 – E sua mãe, como que ela era? Como você lembra dela?
R/1 – Ah, eu lembro dela [como] uma guerreira. Eu, hoje, mais velho, né, (respiração funda) fico imaginando como era duro pra ela criar quatro filhos, sem marido, né, porque meu pai separou, são separados, mulher negra, anos sessenta, um preconceito gigante: como é que ia fazer para deixar essas crianças e ela ter que ir trabalhar. Hoje eu entendo que ela não era mulher de dar muito carinho, ela não tinha tempo para dar carinho, ela tinha tempo para trabalhar e pôr comida dentro de casa. (choro)
(03:49) P/1 – Com o que ela trabalhava?
R/1 – Ela conta que era doméstica, né? Trabalhava nas casas da, numas casas de gente que podia pagar, né, mas a parte que ela começou a ter mais condições de criar a gente foi quando ela entrou no hospital, né, foi ser funcionária pública. Entrou como atendente de enfermagem, depois fez o curso de enfermagem, foi onde ela teve mais condições de criar a gente. Mas não era uma mulher de muito carinho, não; era uma mulher determinada, de luta, que queria as coisas feitas. Contam que… eu era um molecão, seis, sete anos, a gente queria brincar, brincar na rua, pega-pega, esconde-esconde, bolinha de gude, essas coisas de criança, né? A parte que eu mais me lembro da minha infância foi quando a gente saiu do Cachoeirinha e foi pro Mandaqui, né, numa casa que não estava tudo construído: a gente dormia olhando pro céu, a gente tinha sorte que não chovia, né? Então, cama? Nem pensar. Jogava uns colchões, umas coisas no chão, e todo mundo deitava ali. E em construção. O bairro estava em construção também, tinha muito mato. Hoje você vai pra lá e só rico consegue comprar, mas naquela época era mato pra lá, mato pra cá. E eu adorava isso, porque eu gostava de brincar na rua. Minha mãe ia trabalhar e depois da escola, eu chegava da escola e minha mãe estava trabalhando, e eu queria ir brincar, mas quando dava o horário dela chegar, né, meia hora antes, corre pra casa, para arrumar a casa, porque se chegar em casa e a casa não estiver arrumada, o coro comia. Aí todo mundo corria PÁ, PÁ, PÁ, pra fazer as coisas. Hoje eu sei que ela percebia. Achava que não percebia nada, né, (risos) achava que estava tudo certo, mas hoje eu sei que ela percebia e muitas coisas deixava para lá. Mas era assim a minha infância. Então foi uma infância comum, né, que eu lembro muito da parte que a gente mudou pro Mandaqui, lá eu comecei… acho que tinha mais espaço para brincar. Essas coisas marcam a vida da gente, né? E brinquei de tudo. Tudo que uma criança pode brincar, eu brinquei: carrinho de rolimã, pega-pega, esconde-esconde, corrida, pulei corda, pulei no mato. Engraçado, né, hoje eu trabalho lá no Instituto Butantã, às vezes vou fazer uns plantões lá, o que eu vejo de picada de cobra, escorpião e me remete ao tempo de infância, quanto que eu pulei naqueles mato lá, nunca encontrei uma cobrinha, um escorpião, nada, né? Aí que eu fico pensando: “Deus protege as crianças”, porque quanto que eu entrei naqueles matos tudo… tem uma avenida lá no Mandaqui que tava canalizando o rio, eu via a canalização, entrava naqueles tubo lá, brincando com os colegas, na terra, entrava numa ponta, saía na outra ponta, onde estavam os maquinários. Eu brincava… os caras da obra, da construção, mandavam a gente sair e brigava com a gente: “Sai daí moleque!”, (risos) e saía correndo. Nunca aconteceu nada! Deus protege as crianças, não é?
(07:57) P/1 – E com quem que você brincava nessa época?
R/1 – Então, eu não fui uma criança que teve muitos amigos, não, mas eu lembro que tinha ali… eu tenho a memória muito curta. Tinha um menino que morava ali perto da avenida e eu saía de casa e ia lá chamar ele pra brincar, e a mãe dele falava: “Só depois de fazer as lições”. Eu já tinha feito a minha lição, mas chegava lá e ele ainda estava fazendo, e ela falava: “Primeiro o dever e depois o lazer”. Essa era a frase da mãe dele e eu gravei isso: “Primeiro o dever"... e eu falava até para os meus filhos também. Então ficava lá na porta da casa dele, né, esperando ele acabar de fazer a lição; depois acabava, a gente ia lá brincar de pega-pega, de correr na terra. Minha casa, como estava construindo ainda, né, [tinha] muito barranco, barro, tal, lembro que a gente ia no fundo da minha casa e tinha um barranco, assim, era um terreno lá, aí a gente colocava: jogava um pouco de água na terra, sentava numa madeira, madeirite (som de escorregar) e escorregava BRUM, BRUM, BRUM e caía, rolava com a terra toda lá e voltava todo sujo de terra vermelha. Minha mãe ficava louca da vida para lavar aquela roupa lá, e ela que lavava a roupa. No tanque! Não tinha máquina de lavar, tinha que puxar a água do poço, que não tinha água encanada. Às vezes a gente puxava água pra ela lá não sair. Tô falando que Deus protege as crianças! (risos) Minha mãe saía para trabalhar e a gente ia pegar água do tanque e, vira e mexe, o balde caía lá no fundo, eu e meu irmão ficávamos pendurados na boca do poço, pescando o balde, e meu irmão me segurava - ele era mais velho, mais forte - pelo pé e eu ficava pendurado lá pescando e tudo mais. Que loucura! (risos) Nunca aconteceu nada! E tinha que pegar, porque minha mãe ia chegar e o tanque, tinha que estar lá o balde para poder pegar a água, né? Se não pegasse lá, a gente ia tomar uma surra. E pegava, sempre pegamos. E assim a gente fazia essas trapalhadas todas. Pusemos fogo embaixo da cama, que acendemos uma vela debaixo da cama, brincando. Estava muito escuro, acendemos uma vela lá para iluminar embaixo da cama e pegou fogo no colchão tudo, saímos correndo, apagamos tudo. (risos) Estava muito escuro. Ah, mas não foi uma criança fácil de se criar, não, minha mãe lutou muito com a gente. Eu era muito teimoso, só queria brincar. Fui pra escola, normal. Não precisava me chamar pra ir pra escola, sempre gostei de ir pra escola. Tinha umas coisas que eu aprendia [mais] facilmente, outras coisas eu tinha mais dificuldade, mas eu ia pra escola direitinho. Eu lembro que ela levou eu no primeiro dia do primeiro ano - primeiro dia de escola, primário -, me levou na porta da escola, bonitinho. Depois falei pra ela que não queria que ela me levasse mais não, também já sabia o caminho. Aí ia sozinho.
(11:24) P/1 – E como era essa escola?
R/1 – Até hoje está lá. Voto nela, né, vou votar. Era na escola primária, bem primeira série mesmo, bem primário. Hoje tá bem mais bonita, melhor. Melhoraram bastante, né, pintaram a escola. Era na época da ditadura, regime militar, então tinha que fazer fila, chegar cedo, um braço de distância, e tinha lá, 1º A, 1º B. Nem lembro qual era a minha classe, a gente só sabia onde era a fila, né, primeira, segunda e a terceira. E eu ficava lá [com] o braço, por ordem de tamanho. Ouvia o hino nacional primeiro, cantava o hino nacional e depois a gente saía, cada um saía para a sala de aula. E hoje eu voto numa das salas de aula que eu estudei. Entro lá, dá uma saudade! Me pergunto por que a gente cresce: para pagar conta? Mas era uma infância relativamente tranquila.
(12:47) P/1 – E nessa escola primária, teve alguma professora ou professor que te marcou?
R/1 – Minha professora de francês, Dona Cléia. Tinha francês naquela época, era a língua que predominava; não era inglês. E eu gostava muito dela, acho que é por isso que eu sonho [em] ir pra França. Já consegui ir até o aeroporto da França, não quis… quando nós fomos viajar, ver minha sobrinha na Espanha, então fez uma ‘baldeação’ - sei lá como fala - lá no aeroporto da França, depois pegamos outro para ir pra Espanha. Deu uma vontade de parar por ali mesmo, (risos) mas e o medo de se perder? Ai, mas eu estou me preparando, que, em 2024, ano que vem, vou juntar minhas malas e antes de morrer, ‘cair’ pra França. Acho que essa professora me marcou, porque eu gostava de francês, acho que até hoje eu pego umas coisinhas de francês e começo a falar. Acho legal a história da França, de luta, de liberdade, de guerra e de tentar se libertar, né?
(14:05) P/1 – E os seus colegas nessa escola, como eles eram?
R/1 – Então, aí que é o problema. Hoje eu começo a analisar porquê era assim, né? Eu tinha um temperamento muito tímido. Hoje eu sou mais cara de pau, então: “Ah, que se dane”, mas na época eu tinha vergonha de tudo. Ah, vergonha de falar, de fazer. Tinha poucos amigos pra conversar, porque eu tinha muita vergonha de falar, de me expor, essa era a verdade, de me colocar na frente. Hoje não, não tô nem aí. Mas, com isso, eu fiz poucas amizades na escola. O pessoal fala de bullying hoje, o que eu fui ‘bullynado’: preto, que usa óculos, preconceito racial. Preconceito de tudo naquela época. Anos setenta era muito preconceito, era “neguinho” pra lá, “neguinho” pra cá, “frango de macumba”. Lembro até hoje essas coisas horrorosas que fazem com a criança, né? E isso vai… eu já tinha um comportamento, assim, mais tímido, ainda mais com essa pressão em cima, foi diminuindo mais ainda o meu… como se fala? Meu… a vontade de não querer me expor. Aí eu me retraía muito mais. Aí fazia o que dava: jogava bola… eu tinha mais amizades não na escola, mas na rua. Eu tinha os colegas da rua, os vizinhos. Parece que os da escola tinha uma vontade de querer, coisa de moleque, hoje eu sei que é coisa de menino - se impor em frente às meninas, querer ser mais, o super herói, o mais forte, de aparecer. Então, isso, eles gostavam de aparecer e diminuir os outros, não se colocando, mostrando quem ele é, e sim diminuindo o outro: “Diminui ele, eu sou o bom”. Então eles faziam muito isso na minha infância. Não reclamo da instituição, não, a escola em si era tranquila, foi onde eu peguei meu primeiro óculos. Nessa época eles davam essas coisas na prefeitura e davam óculos. E eu uso óculos desde pequeno, desde aquela época. Às vezes eu brinco com os colegas: “Parece que eu nasci de óculos”. (risos) E assim foi. Mas minhas amizades eram mais dos vizinhos, né? Os vizinhos, sim, tinha uma amizade legal. Lembro do Nelson, do Nilson, o Cadão, o Adel - eu vejo ele de vez em quando, vejo bastante a família dele -, o Tadeu, o Valter, o Zezinho, Luís. Por todo canto a gente fazia, jogava bola. A rua, colocava uma rua contra a outra, então a gente ia jogar contra o povo do morrão - a gente chamava de morrão -, [que] era um pasto. Hoje tem um prédio construído. A gente ia jogar bola lá, e fazia ‘contra’ de futebol. A gente jogava muita bola.
(17:44) P/1 – Que posição você jogava?
R/1 – Ah, ‘grosso’, (risos) era o último a ser chamado. (risos) Era assim, né, aquelas coisas de criança, [que] fica tudo na parede e o ‘bom de bola’, que era o dez, que escolhia: “Quero você, quero você, quero você!”. Eu era o quarto, quinto a ser chamado, sempre. (risos) Nunca era o primeiro. Quarto, quinto, né? Mas tinha gente pior que eu, graças a Deus, (risos) aí ficava no gol, que na época ninguém queria pegar gol. Aquele ‘grossão’, ruinzão, ficava no gol, né, e o melhor era o camisa dez, que era o Pelé do time. Mas eu nunca fui o pior, também não era o melhor de todos, sempre ficava ali no intermediário. Mas gostava de jogar bola, jogava muita bola. Como o bairro estava em construção, não tinha só o Morrão pra jogar, tinha muito terreno vazio por lá, a gente fazia… qualquer espaço era espaço para jogar bola, [então] jogava, brincava, né, empinava pipa. (som da pipa) Cada um fazia pipa. A gente fazia, montava, afiava a vareta, colava. Hoje as pipas já estão prontas, só falta comprar e voar já, né? Hoje tá tranquilo. A gente fazia cortante, que hoje é perigoso, né? A gente passava cortante na linha e ficava empinando. Tempo de férias era uma delícia, a gente passava o dia inteiro fazendo essas coisas: de manhã, empinava pipa; de tarde, jogava bola; à noite, ficava na rua batendo papo; de final de semana, tinha os bailinhos, que era na garagem das casas. A gente ia pros bailinhos, e ficava lá ‘cantando’ as menininhas, né, pra dançar. E a infância foi assim.
(19:48) P/1 – O que tocava nesses bailinhos?
R/1 – Muita música americana, né, dos anos setenta, começo dos oitenta. Muita música americana: Elton John… ah, eu esqueci os outros. Às vezes entro no Youtube e escuto, mas lembro muito do Elton John, Jackson Five, que tocava bastante, The Manhattans tocava bastante. E a gente se divertia assim. Era disco, LP, né, vinil. Agora, que eu lembro da infância eram as festas juninas. Como tinha bastante terreno, e tinha um terreno que era bem do lado da minha casa, tava vazio, a gente jogava bola lá e o gol era na parede da minha casa e PÁ, PÁ, PÁ, bolada na parede. Minha mãe nunca reclamou, não, muito pelo contrário; ela sabia que a gente estava ali e estava tranquila. Os vizinhos olhavam muito a gente, cuidavam, davam bronca, aconselhavam, e sabiam da condição da minha mãe, então cuidavam muito da gente. Não só de mim, como também de toda a molecada que cresceu junto. Chegava no meio do ano e tinham as festas juninas… puxa vida, que delícia! Os homens iam tudo - os homens, [digo], moleques, chamava de homem - pegar bambu, que tinha bastante bambu, pra poder fazer as armações. As meninas ficavam fazendo bandeirinhas. Então a gente chegava com aqueles bambus, já estavam as bandeirinhas prontos, e as mães, as vizinhas, faziam quentão, pipoca, batata doce. Fazia tudo isso pra festa, que começava à noite. E, ah, o som era da minha casa, uma vitrolinha antiga, bem rústica mesmo, que a gente emendava a caixa, pendurava na parede de fora e a gente ficava tocando disco lá de festa junina, que era da minha casa, e ficava se divertindo lá. Tinha ano que saía quadrilha e outras vezes não, mas a gente brincava quase a noite toda lá, até a hora que os pais mandavam ir embora mesmo: “Acabou, acabou”. Os pais iam pra casa depois, chegava uma hora… a gente ficava, ficava na fogueira conversando e depois chegava uma hora que acabava, mas era muito divertido. Acho que a infância era até melhor que hoje. Hoje as pessoas ficam no celular, no computador, não tem essa interação com a natureza, com o outro, olho no olho. Até brigar: “Vamos brigar!”, a gente brigava, depois estava estudando na mesma sala de aula, normal. Jogava bola, arrumava confusão lá e depois tava tudo junto de novo. No sábado, final de semana, a gente jogava bola, arrumava confusão, brigava, depois ia tudo nas festinhas; os colegas estavam todos juntos na mesma festa, brincando, conversando, namorando. Tudo junto, né? Então era uma infância comum. (risos) Mas a relação com a minha mãe… ela foi, assim, uma vida meio dura pra ela. Acho que ela teve uma vida mais tranquila quando ela se aposentou mesmo. Mesmo depois que se aposentou, ela ainda tentou trabalhar em algumas coisas. Depois ela parou de vez, arrumamos uma pessoa pra cuidar da casa. A princípio era só pra limpar a casa. Umas coisas ela fazia questão, [como], lavar roupa; minha mãe sempre gostou de lavar roupa. Achava estranho isso, mas em parte eu entendo. Minha irmã mais velha não gosta de arrumar a casa, ela nunca foi dona de casa; ela saía pra trabalhar, pagava alguém pra arrumar a casa. Falava que era pra arrumar a casa e ela não queria, não. Cada um tem seu cada um, né? Aí teve uma situação que ela (mãe) não aguentava mais pegar o balde de roupa, tava muito pesado pra ela, aí parou de vez. [Contratamos] uma pessoa pra fazer tudo dentro de casa. Aí demos o conforto que ela merecia. Não faltou nada pra ela quando ela parou mesmo. Ficava dentro de casa, era tudo, tudo era feito para ela, a menina fazia tudo. Só que a vida foi complicando. O tempo é implacável, né? Não somos jovens para sempre. E pra ela também. Eu me lembro [que] quando eu me separei, eu fui pra casa da minha mãe: “Olha, mãe, tô aqui, só que de madrugada não dá pra sair”, né? Como o clima com a minha ex-mulher ficou um pouco tenso, fiquei um pouco na casa dela. Aí, nos primeiros dias, ela falou: “Fica aqui, então, comigo. Eu te ajudo, você me ajuda. Tô precisando de alguém aqui”, ela ficava sozinha. Na verdade, não achei ruim não, achei até legal. A menina já estava lá ajudando a casa, falei: “Bom, aí eu ajudo então”, dividi umas despesas de casa, tudo divididinho. Saía de manhã e voltava à noite, daí ficava na dúvida: eu tava morando com ela ou ela comigo? Porque eu saía de manhã e voltava à noite: “Quem tá morando com quem?”. Mas, sei lá, eu ficava por lá mesmo e aquilo começou a me incomodar. Engraçado essa vida, né, a gente se casa, pensa que vai ser pra sempre, depois separa. Aí quando separa, quer ganhar o mundo. Homem é assim, quer ganhar o mundo: “Agora eu tô livre! Tô livre, vou pegar tudo! Vou pegar todas, ninguém me segura”, né? E naquela época até comecei assim, mas depois, não sei, eu tava ali conversando, não sei qual parente que eu tava conversando, me deu um negócio no coração, olhei pra minha mãe, pensei: “Caramba, se a minha mãe fechar o olho, para onde que eu vou? A casa não é minha, é da família, da minha mãe e dos meus irmãos. Não tenho casa, para onde que eu vou?”. Isso me preocupou. Não demorou muito… na época, a gente gostava muito… hoje meu filho não faz isso muito, mas, na época, meu filho e eu, a gente saía pra ver loja de carro, aí eu passei em frente de um, ali na Freguesia do Ó, uma obra que ia construir um prédio: “Ou, filho, vamos parar aqui e ver como funciona esse apartamento?”, e foi ali que eu dei entrada num apartamento pra mim. Pensando nisso também: “Preciso ter as minhas coisas”. E a minha mãe sempre falava pra mim, para todos os irmãos: “Aqui é a casa de todos, mas cada um tem que ter a sua. Não tô expulsando ninguém, mas cada um tem que ter sua casa”. Minha irmã tinha casa, meu irmão correu atrás e conseguiu a casa dele, meu outro irmão também. Só eu tava ali de bobeira, então corri atrás, fui pagando prestação e fui conquistando enquanto morava com a minha mãe. Quando pensei: “Vou mudar”, que a condição em casa não tinha [mais] como. Eu tava solteiro, né, pagando minhas coisas, dois empregos, ganhando bem? “Não posso nem andar pelado ali em casa, que a minha mãe ia achar ruim. (risos) Quero a minha liberdade. Vou reformar o apartamento e vou mudar”, quando fui lá no apartamento cheio de pó, papel, comecei a reformar lá, arrumei pedreiro, pintor, móveis, aqueles móveis planejados, todo aquele processo, fui pagando, ajeitando as coisas. Aí um belo dia eu tô trabalhando, minha irmã Janete me liga: “Não sei [o que aconteceu] lá em casa, ligaram aqui pra mim que a mãe caiu e tô aqui na Vila Alpina, num enterro de uma amiga. Até eu chegar lá, não vai dar tempo. Você está mais perto”. Então falei com a minha chefe, pedi licença e fui pra casa. Quando chego lá, minha mãe está toda ‘budegada’ na sala, cheia de sangue no rosto, na perna. Diz que ela foi mexer nas plantas, ela é obesa, foi abaixar pra mexer nas plantinhas, caiu de rosto, tudo. Ela é fortinha, caiu… na época eu estava mais forte, pesava cem quilos ou um pouco mais, com muito sacrifício, luta, pra levantar minha mãe, que ela não conseguia dobrar o joelho dela. Ninguém dá nada pro joelho, mas se estourar o joelho, é cadeira de rodas, não anda mais. E eu fazendo força, carregando ela, pus ela numa poltrona, cama, sofá e não sabia o que estava acontecendo. Depois, aí começou a ‘afundar’: levou um tombo, depois outro tombo. Vai num médico, outro médico: diabética, cardiopata, coração grande, né? E vai essa luta toda. Aí chegou numa hora, eu falei: “Ou eu alugo o apartamento lá, ou vou abortar essa história de ir embora”, porque chegou uma hora que eu não estava mais aguentando pagar apartamento, reforma, ajudar em casa, não tava vencendo, então era mais fácil alugar lá, pelo menos era uma despesa a menos. Com essa história, acabei ficando lá em casa, com a minha mãe. eu e ela e, dia sim, dia não, vinha a menina pra limpar a casa, arrumar tudo. E nessa vida foi. Ela foi complicando, que o tempo não perdoa, né? Era idas e vindas pro hospital. Ela ficava boa, piorava, ficava boa, piorava e a gente tentava evitar de levar no médico e cuidava em casa. Eu era enfermeiro, meus sobrinhos eram enfermeiros também. Bom, a família toda era da área da saúde, fazia as reuniões, falava: “Olha, a avó está mal. Se levar pro hospital, ela fica e não volta. Vamos fazer o máximo pra ficar com ela aqui”. Bom e fomos indo assim: montamos quarto na sala, fizemos um hospital, montei um armário só de medicação e material de hospital para a gente cuidar dela e funcionava certo, corria um sorinho, seguia as prescrições médicas e ia tratando dela ali mesmo. E durante meses é que eu subia pra descansar e descia, para não encontrar minha mãe morta. Muitas vezes eu jogava um colchão, nem na sala, jogava na copa, no cômodo do lado, porque, apesar da minha mãe ser idosa, era lúcida de tudo, e tinha os pudores dela. E fazer xixi na frente do filho, abaixar a calcinha… não, era lúcida. Então eu dormia na copa: “Mãe, tô aqui. Precisando de mim, só chamar”, fincava o colchão no chão e dormia ali, pra despertar e levantar e ir trabalhar. E muitas vezes eu fiz isso. Só quando estava muito cansado mesmo, destruído, que cuidava dela e ia pro quarto e dormia na cama. E assim foi. Teve um dia que ela tava tão ruim que eu chamei a minha irmã, que ninguém assumia a responsabilidade sozinho, e ela foi lá. Ela tava com muita falta de ar, muita, muita, chamamos o Samu. E e Samu, pode esquecer. Chamar Samu já era. Aí vamos pôr no carro e levar [no Hospital do] Servidor Público e ali foram os últimos degraus que ela desceu. Graças a Deus, ela desceu. Por isso falo que ela é uma batalhadora, (suspiro) mesmo sem (choro) ar. Descemos ela na escada, colocamos ela no carro, levamos no Servidor Público. Não foi Covid, quem pegou Covid foi eu, mas não pegou Covid, foi obstrução, típico de quem… idosa. Nunca fez atividade física, minha mãe nunca gostou de andar. As vizinhas chamavam ela pra andar, andar com a terceira idade. Andar, ela não ia, não. Ela passeava, andava no carro. Não era de caminhar, não. Agora, gente idosa… e a gente se acostuma, nosso corpo acostuma de acordo com as nossas atividades: se ficar sentado o tempo todo, ele acha normal, o metabolismo vai diminuindo mais ainda. Quem fica no computador, né? Por mais que a gente falasse, ia mudar uma pessoa idosa de oitenta anos? Minha mãe morreu com 86. Vai mudar? Não muda, então deixava. Única coisa que eu fazia, de sacanagem… ela falava: “Deixa os remédio perto de mim”, eu deixava na mesa do lado, mas na outra ponta, só pra ela levantar e pegar. Tinha que levantar da cadeira um pouco. “É, tá ali, mas se quiser, vai pegar”. [Caso quisesse] água, tal, então levantava, tomava remédio. Ia no banheiro sem ficar preocupado; pra não levantar, usava fralda, que era outra preocupação nossa. Então ela morreu lúcida, tinha o pudor dela. Quando ela passou a utilizar fralda, eram as minhas sobrinhas e irmã que trocavam ela mais à noite. E assim foi, ela faleceu. Levamos no hospital, deixamos bem claro, assim, [que] a chance era bem pouca. Eu trabalho no hospital, então eu sei que as chances eram poucas. Se operasse, a chance era milagrosa, isso era um milagre de Deus. Opera e vai morrer aqui. Se não fizesse nada, a gente sabia que ia acontecer. Ela foi pra UTI, teve uma melhora… deu um aperto no coração, era a melhora da morte. Foi num domingo. Eu gosto de mexer no fundo da minha casa, tem ferramenta, madeira, gosto de mexer com isso, com meu filho mais novo. Quando recebi mensagem dela do hospital, aí avisei a família. E assim foi, ela faleceu. (choro) Acho que podia ter feito mais por ela, (choro) podia dormir mais um pouco no chão lá, ter tido um pouco mais de paciência, tentar ajudar um pouco mais. As coisas que eu me arrependo. Bom, faleceu. Nisso, ela não viu o [meu] irmão falecendo. Depois foi meu irmão, que [se] foi devido a Covid. E acho que Deus me quer, ou o Capeta não me quer, porque eu peguei Covid, foi forte no começo, tinha hora que eu nem conseguia respirar e controlando minha respiração, fui ruim, aí melhorava. Qualquer movimento que eu fazia na cama, aí ficava com aquela falta de ar. Essa coisa de Covid é muito ingrata. As doenças, qualquer, você tem visita da família né, dos amigos, [mas] Covid não permite. Então quem é… quando tava ruim, a minha ex mulher falava: “Ó, vamos no Mandaqui ou vamos pro Servidor”. Hoje em dia, eu me dou muito bem com a minha ex-mulher, Graças a Deus. A gente parou pra conversar e hoje se entende mais do que quando tava junto. Nada de querer voltar não, cada um na sua, mas se respeita mais. E eu que peguei Covid, ela me ajudou bastante. Sinceramente, nem sei como peguei Covid, porque podemos pegar de qualquer lugar, conversando ou mão suja. Nem sei como peguei. E eu tava naquela dúvida: vamos no Mandaqui, ou Servidor, ou o hospital que eu trabalhava, na Vila Penteado. Na época, eu nem tava na posição de opinar, né, sei que eu fui, meu filho mais velho me levou lá onde eu trabalho. Lá, os amigos que me acolheram, assim, me carregaram no colo, já me levaram pro quarto lá, tal, quarto de isolamento. Aí eu tava avaliando depois, né, depois que passou tudo, tava avaliando o que aconteceu comigo e se eu tivesse ido pra um outro hospital, acho que eu tinha morrido, porque eu não tinha a presença dos amigos. Porque, nessas horas, os amigos fazem a diferença. O tratamento é o mesmo, mas a presença dos amigos faz diferença. A família não teria jeito mesmo, os amigos eram os colegas de trabalho, que iam lá, conversavam, davam conforto, cuidavam de mim, então. Mas eu agradeço muito a eles, a todos eles, agradeço. Alguns faleceram, outros pediram demissão porque não aguentaram. É uma pressão enorme, o Covid acaba com o psicológico de todos. Outros aposentaram, aproveitaram o embalo: “Deixa eu [me] aposentar logo”. E assim foi. Passou e fui pra casa. Voltei com mais medo, né, um pouco mais de cuidado. Não tava tão de peito aberto assim, tomando mais cuidado aí. Mas Covid, se não são os amigos que tão ali perto, que eu nem tinha medicação pra dar direito, ninguém sabia como se tratava Covid. Hoje está mais apurado, mas, na época, ninguém sabia como que tratava Covid. Tanto que me deram aquela medicação Cloroquina, e o médico chegou e ofereceu: “Você quer Cloroquina, você aceita?”... e se chegar e falar: “Quer água com açúcar, que faz bem?”. Eu vou falar: “Eu quero”. E na época tava um bafafá de tomar, não tomar. É claro que ele explicou as complicações, né, [que] tinha que fazer um eletrocardiograma. E acabei até tomando também, não tinha muita condições de opinar [sobre] qual que seria o tratamento, nem sabia se os médicos estavam colocando. Quem seria eu, que tava lá com falta de ar, [pra] saber alguma coisa. Ia opinar no quê? E acabei passando por essa. A minha mãe faleceu… o meu irmão faleceu de Covid, né? Meu irmão, teimoso também, faleceu de Covid e sobrou só eu, a minha irmã mais velha e a Janete, somos três agora. Esperando a hora que for a minha vez, né? ‘Pegaram’ a minha vez, né? (risos) Quase morro de Covid, se eu não fui, alguém foi. (risos) ‘Pegaram’ a minha vez. E assim foi.
(47:25) P/1 – Voltando um pouco: quando você escolheu estudar Enfermagem?
R/1 – Na verdade, não foi bem uma escolha minha. Eu gostava muito de bater perna por aí, de andar, de fazer… não tinha uma definição. Quando a minha mãe via, me via, ela me colocou no Senai, não sei, fiz, acabei o colégio no Senai, no Senai da Barra Funda, e fiz Tornearia Mecânica. Acho que não me dei muito bem nessa profissão, mas tentei! Acabei todo o curso, entrei na profissão, trabalhei em umas duas fábricas, de torneiro mecânico. Não era um bom profissional, hoje avalio não era um bom profissional, mas trabalhei, fazia as coisas ali do jeito que o chefe pedia, né? Daí teve aquela crise… bom, teve uma crise de demissão, que demitiu todo mundo, em 1979, 1980 ______________ o Brasil viveu uma época muito triste de demissão e eu fui junto, no embalo, não conseguia emprego ali, não conseguia emprego aqui. Consegui emprego como auxiliar de escritório, né, no centro da cidade, fiquei ali alguns anos. Vida nova, tudo novo. Saí de uma fábrica, de peão, onde os termos lá eram bem diferentes, de tratamento. (risos) Então a gente tinha que se habituar ao meio. Saí de lá e fui ser auxiliar de escritório, onde as maneiras de ser tratado eram outras, era: por favor; com licença; boa tarde, senhora. Tanto que foi um choque de ambiente, né, e fui me adaptando. Sempre tive a capacidade de me adaptar de acordo com o meio onde tô. E fui me adaptando, fui vendo conforme as coisas funcionam, fiquei por lá mesmo. Também teve outra, a empresa… ____ faliu… não, ela foi vendida pra um banco, e acabaram com essa empresa porque essa empresa era concorrente da outra. Fiquei desempregado de novo. Tô eu lá em casa - lembro até hoje -, minha mãe lavando roupa: “Wilsinho, abriu concurso no Estado pra atendente de Enfermagem! Vai lá fazer!”, “Puxa vida. - eu pensei - Caramba, eu vou ter que ir até lá?”, tá bom. Dia seguinte, acordei cedo e fui lá fazer inscrição. Nem sabia o que era isso, na minha cabeça atendendente é você atender, eu ficar no balcão - pensando eu - atendendo as pessoas. Fiz uma provinha lá do corpo humano, tirei primeiro lugar. Do corpo humano, falando lá de osso, corpo, membro, umas coisinhas bobas lá. Passei e fui pro treinamento, o que é, e começou a explicar o que era Atendente de Enfermagem. E entrei no hospital dessa forma, a princípio [como] Atendente de Enfermagem. Atendente de Enfermagem é basicamente dar banho, comida, faz limpeza com corrente, encaminhamento. Na época era isso? Mudou bastante, né? Tô falando o que era. Mas fazia essas coisas, porque, na época, a Enfermagem era dividida no enfermeiro, técnico era muito pouco, quase nada, quase não se falava em técnico de enfermagem: era enfermeiro, auxiliar e atendente de Enfermagem. Entrei no hospital, Hospital do Mandaqui, hospital grande, como Atendente de Enfermagem e ali abracei a causa, era o meu caminho pra sempre. Fiz Atendente de Enfermagem, fiz Auxiliar de Enfermagem lá dentro mesmo, no hospital, tinha um programa. Não sei porquê o Estado não faz mais isso. Acho que até faz. Parou, né, nesse governo parou. Até uns anos atrás estavam fazendo. Estavam dando um curso pra profissionais que queriam mudar de categoria. Então, de Atendente, fiz curso de Auxiliar lá dentro e passei pra Auxiliar de Enfermagem. Aí o meu sorriso foi até a orelha, porque eu vi que tava [me] dando dinheiro, [e] quem não gosta? Daí me formei, fiz um concurso pra Auxiliar de Enfermagem, lá mesmo, no Mandaqui, passei. Esse concurso serviu pra outras unidades do Hospital: fui pro Cachoeirinha, depois fui trabalhar no Sorocabana, depois fui trabalhar na Maternidade Cachoeira, que era da prefeitura. E fui rodando de hospital em hospital como Atendente de Enfermagem. Nessa época, já tava casado. E fui ganhando o mundo, fui achando que ali era meu caminho. Não foi meu sonho: “Ah, vou entrar na Enfermagem”, é que tudo que tento fazer, tento fazer direito, procuro fazer bem e aprender. Aí fui aprendendo, desenvolvendo, peguei o gostinho e fui fazendo. Até que um dia, tava trabalhando no Hospital Sorocabana… pô, pra ser bem sincero, nunca gostei trabalhar lá, tinha umas coisas… tava em falência, né? O hospital tava falindo e atrasando salário. Quando entrei lá, recebi o primeiro salário, mas tinha gente que tava com dois, três meses sem receber. Eu já fiquei preocupado, falei: “Ué, o que eu tenho de especial, que eu recebi o salário e ela não? Tem coisa errada aqui”. E tinha uma moça que tava trabalhando lá… aí eu fiz o vestibular na faculdade pra fazer Enfermagem, na Uniban, mas eu fiz por fazer. Naquela época, eu fazia muito concurso: concurso pra lá, concurso pra cá. Porque eu sabia que eu não tinha condições nenhuma de pagar faculdade. Não tinha condições ne-nhu-ma. [Tinha] filho pequeno, pagando apartamento, mulher na orelha, PI, PI, PI e tal. Quando fui lá na Uniban, olhei meu nome na lista, tava aprovado: “Opa, que legal, mas deixa quieto”. Aí voltei pra casa. Voltei pra casa e fui trabalhar, tal, aí comentei lá no Sorocabana, com uma colega lá, com a Vânia, parece, que eu tinha passado, mas que não ia fazer não. Aí veio outra colega e falou: “Ouvi falar que você passou”, “Passei, mas não tem condições de pagar a faculdade”. Sei que ela saiu e voltou com uma folha de cheque assinado em branco. (respira fundo) Essa folha de cheque era de uma médica obstetra. Eu não sei o nome dela, a gente chamava muito ela de Teca. Se Deus me permitir reencontrar com ela por aí um dia, eu até agradeço a ela. Uma folha assinada em branco pra eu ir lá e fazer a matrícula. Aí eu fui lá, preenchi. Fui lá saber quanto era, preenchi. Tava assinado, ela que pagou pra mim essa matrícula da faculdade. E ali começou a minha luta, né? Outra luta, porque não foi fácil, porque tinha meses… não foi um mês, dois meses, foram meses. [Durante] toda faculdade ficava naquela de ou fazia compra pra casa ou pagava a faculdade, ou comprava um chinelo, tênis pro menino, ou pagava a faculdade. E o que eu falava pra mulher?! Que não tinha dinheiro pra comprar um ovo, uma compra, fazer uma feira, porque eu tinha que pagar a faculdade?! Várias vezes eu pensei: “Nossa, vou parar com isso. Vou parar a faculdade, não tá dando certo”. Mas quando eu via que eu ia parar, ficar pra trás, e todos os meus colegas iam se formar, eu falava: “Ah, mais um mês, só mais um mês”, e assim foi. (risos) E no começo da faculdade, primeiro ano, a gente é muito prepotente, né? Eu ia pra aula, ouvia o professor falar, pralálá, pralálá, anotava umas coisas. No dia da prova, Nossa Senhora… a prova valia de zero a dez, né? Aí peguei, fiz a prova de Anatomia. Quando pego a prova: dois. “Dois? Como dois? A prova valia dez, tirei dois. Como pode?”. Aí eu olhava… o professor sempre fazia uma revisão da prova: essa pergunta, a resposta era essa. Aí puta, era mesmo. Errei, errei. Só acertei duas: “Caramba, que absurdo”. Aí teve uma outra prova também, não sei que matéria era, quem não tava contente com a prova, ficava na fila e o professor esclareceu ali, né, então quando faltava umas três pessoas, comecei a ouvir o que o professor falava, e tinha uma pessoa lá e ouvi o professor falar: “É, realmente, você não merece essa nota aqui, vou baixar. Realmente isso aqui tá errado, você merece menos ainda pá, pá, tum”. Aquilo lá me assustou: “O quê?!”. (risos) “Eu vou ficar com essa nota mesmo”, saí da fila, “O cara vai tirar mais nota minha”. Aí caiu a ficha: “Eu tenho que estudar. Se não estudar eu não vou bem. Não tem jeito, (risos) tem que estudar”. Eu trabalhava lá em Santo Amaro, no Hospital São Luís, um excelente hospital, então saía por volta das dezesseis horas e chegava cedo na faculdade. Então, nesse período, eu ia pra biblioteca e aí eu pegava livro… era livrão mesmo, não é esse negócio de internet, celular. Era livro mesmo! Naquela época era difícil de estudar, hoje é tranquilo. E ficava estudando, estudando, estudando. Puxa vida, aquilo ali foi tudo pra mim, eu tinha que me conscientizar das minhas deficiências, onde eu tô errando, só assim eu comecei a melhorar, ir atrás de onde estava pecando, onde eu tava errando, foi onde eu comecei a melhorar e as matérias foram passando e não podia ficar de recuperação, sei lá, revisão, porque paga a faculdade tudo, né? Se dá um passo, paga. Se vai de recuperação de uma matéria, se paga. Eu não tinha condição de pagar mais nada, então eu tinha que ir bem, tinha que estudar, então colocava isso como objetivo. Então teve muita pressão pra estudar, não foi fácil. Mesmo trabalhando como auxiliar de enfermagem, as coisas que aprendi lá, então não foi tão tranquilo, não. Sei lá, tem tantas pessoas que tem uma carreira de vida tão suave e tranquila, todo mundo ajuda, todo mundo faz não sei o que, pra mim não foi fácil, pra mim não. Eu lembro que eu entrei no São Camilo pra ser auxiliar de centro cirúrgico e a gente sai, entra não sabendo tudo, né, e o médico pedia as coisas lá, eu lembro que ele pedia pra mim assim: “Ah, quero um dreno ferroso número três”, meu, bizarro, o que é isso?! “Onde que tá?”, “Tá na sala, vai lá pegar!”, eu olhava aquela sala, cheia de materiais, nossa, um monte de material: o que é dreno ferroso? É de comer? É de beber? Que diabo que é isso? Gritando na sala, um médico doido lá e as enfermeiras ouviam esse escândalo todo, daí: “O dreno ferroso é aqui ó, tal”. E isso é uma síntese, mas teve muitas coisas terríveis que foi na base do grito que eu tive que aprender, porque eles não tinham paciência de explicar, de ensinar, foi no grito: (som de grito) “Pega aquela caixa lá! Pega!”, fui aprendendo assim, que a ala hospitalar tem muito material, áreas específicas que é aquele material, tem que ser aquela medida, aquele número. Hoje eu conheço, já tô até a tantos anos, falta até três, quatro anos pra aposentar, então eu conheço. E se não conheço, sei procurar, sei encontrar. Tem que procurar saber. Hoje já sei o caminho mais tranquilo pra ir, mesmo numa área que a gente não domina tanto. Mas não foi fácil pra mim, trilhar nessa estrada, né, foi na base do grito, do xingo. Ou é assim ou largava tudo, e se eu largar tudo, vou fazer o que depois? Tinha essas duas opções: se não tá contente, vai embora; se eu for embora, eu vou pra onde? Então tinha que ficar, aceitar as regras do jogo: “Então vamos aprender a regra do jogo”, dessa forma. Não foi tão fácil, né? Fiz coisas erradas na vida? Fiz. Acho que fui muito teimoso com a minha mãe quando pequeno, depois [quando] fiquei mais adolescente, mais velho, daí ficou mais tranquilo. Hoje eu entendo que minha mãe era um ser humano, também tinha seus erros, seus acertos, sua maneira de pensar, né? Hoje, compreendo, sou mais, consigo compreender as atitudes que ela tomou, mas a gente [quando] adolescente, criança, acha que é o dono do mundo, que tem razão, acha que vai abraçar o mundo e não é bem assim, né, não é assim que funciona. Hoje tenho dois filhos e eu também conto pra eles os erros que eu cometi e eu não quero que eles sejam iguais a mim: “Vocês tem que ser melhor do que eu, mais esperto que eu, mais inteligente”, tudo, né? Igual a mim não, [não] vamos [me] colocar como exemplo, não. Tem que ser melhor, melhor. Eu conto sobre meus erros, meus filhos, abertamente, em todos os aspectos, no erro enquanto filho, no erro enquanto esposo, pra que eles não cometam os mesmos erros. A gente sempre quer o melhor pros filhos, né, então dá pra… (choro) acho que eu fui um pouco teimoso, né? E é isso aí.
(01:05:31) P/1 – Voltando um pouco: você lembra o dia da sua formatura?
R/1 – Ah, a minha formatura de Auxiliar de Enfermagem… tinha uma professora lá que eu gostava muito dela, enfermeira Maria Teresa, ela gostava muito da minha mãe, e ela foi minha professora. Engraçado, né, anos depois, estava formado, trabalhando como enfermeiro, conheço um rapaz, o Dijair, ele me chamou: “Wilson, vamos lá no meu sítio tomar uma cerveja, cair na piscina. Vai na sexta-feira, porque a gente já bebe tudo na sexta e sábado, e só descansa no domingo, pra voltar”, “Ah, tá bom”. Fui na sexta à noite, fiquei lá. Quando foi no sábado, chegou mais gente, os convidados, né, e eu passava pra lá, passava pra cá, cumprimentava um, aí tinham duas senhoras, cumprimentei também e tal, e ela falou: “Nossa, você me lembra alguém, uma senhora que eu conheci chamada Zilda”, “Minha mãe se chama Zilda”, “Ah, é? De onde você é?”, “Eu sou do Mandaqui. E qual o seu nome?”, “Ah, eu sou a Maria Teresa”, “Nossa, Dona Maria Teresa! Eu sou o Wilsinho!”, nos abraçamos e tal, que ela foi minha professora, ela trabalhava no Mandaqui também e dava aula nesse curso que eu fiz de Auxiliar. Ela foi minha professora e me chamou no dia da formatura, [que] foi no salão de convenções ali da Rebouças, naquele complexo em frente ao Incor, [que] tem o Centro de Convenções Rebouças em frente ao Incor, e ela me chamou pra carregar a lâmpada da Enfermagem, que o símbolo da Enfermagem é uma lâmpada. Uma lâmpada daquelas de esfregar, do Simbá lá, né? É parecido [com] aquelas lâmpadas. Porque na história da Enfermagem, era a enfermeira que passava a noite com essa lâmpada pra iluminar e verificar se os pacientes - no ‘tempo da onça’ lá - tão bem, então a lâmpada é o símbolo da Enfermagem. Aquela lâmpada era a enfermeira que tava fazendo ronda, cuidando dos pacientes. E eu fui o enfermeiro… o auxiliar que fui carregando, da turma toda, representando a turma toda. Gosto muito dela. Essa formatura foi de auxiliar. A minha formatura de Enfermeiro, na verdade, eu não tive, apenas concluí o curso. Peguei o meu canudo lá e fui pra casa, porque não tinha aquelas condições de fazer festa, né? Teve uma festa em casa, foi meu aniversário, um evento que teve em casa que foi (lembrado?) da minha formatura. Mas uma coisa que eu gravei foi a formatura do meu filho, de Engenharia, ele se formou, que foi um grande presente, que eu adoro esse rapaz, né? Agora é um homem formado, cuida do nariz dele. Ele se formou na data do meu aniversário, meu aniversário foi a formatura dele, foi o grande presente que eu ganhei, que ele me deu. Depois de tanto trabalhar, consegui formar ele. Ele sempre estudou em colégio particular, acho que só dois anos, acho que dois ou três anos em colégio público, daí teve um problema sério na escola pública, um menino queria matar ele, puxou a faca pra ele, daí meu coração apertou [e] mandei o menino pra escola. Puxar faca… sei que era final do ano, já tava pra encerrar o ano letivo da escola, eu tirei ele de lá e coloquei num colégio adventista e fiquei mais tranquilo. Daí sempre estudou em colégio particular, eu paguei, por isso ficava essa loucura de trabalhar que nem louco. Aí tenho outro mais novo, agora ele tá com dezenove anos, sempre estudou em colégio particular, nunca foi pra colégio público. Aí ele, agora, esse tá mais complicadinho pra decidir o que ele quer pra vida, né, e eu falei até pra mãe dele que, colocamos ele, quis, demos a sugestão dele fazer técnico de Raio-X, ele gostou, abraçou, tá gostando, então dois anos de curso. Então, só mais três, quatro anos que tô trabalhando em dois empregos, o corpo não tá mais aguentando, vou fazer sessenta anos já. Às vezes fico ilhando pro espelho: “Puxa vida, sessenta anos”, às vezes bate saudades dos meus 25, puxa vida, lembrando as coisas que eu fazia. Vou fazer sessenta anos, mas o corpo já tá sentindo, você acorda já com dores: “Eita, caramba”, não tem mais pegada de fazer as coisa em casa. Falei pra minha ex-esposa: “Mais dois aninhos, vou puxar o freio de mão”, vamos viver com o que tem. Porque, na verdade, sou eu, né, eu pago o curso dele através da pensão, então quanto mais, como é 80% do valor do vencimento, quanto mais eu ganho, mais tem o valor da pensão, né, então procuro fazer bastante para ele fazer o curso bem tranquilo; e minha ex-mulher sempre foi muito honesta com essa questão do dinheiro, ela é honesta em tudo, então ela sempre pegou e falou: “Esse dinheiro é dele, pra pagar isso tudo”. E mesmo com o outro, pra fazer faculdade, tive que trabalhar muito, dois, três empregos, acho que por isso que meu casamento foi pra míngua. Casalzinho? Não tinha. Mulher quer casal dentro de casa. Mesma coisa o homem: o homem quer trabalhar, trabalhar, trabalhar. Uma coisa, ganha de um lado, perde do outro. E foi isso. Eu não tô aguentando mais trabalhar tanto, tô puxando freio de mão, mais uns anos eu vou viver só com o que tenho, cortar internet, corta TV a cabo, corta aquilo, fui viver dentro do meu quadrado. O corpo não tá obedecendo mais, o corpo não obedece mais o que eu quero, então não aguento mais. Mas o objetivo final agora é o mais novo, né, [e] pagando o curso do mais novo, aí quero viver na praia.
(01:13:32) P/1 – E você lembra o dia do nascimento dos seus filhos?
R/1 – O mais velho eu lembro, porque no dia que ele nasceu era a luta do Mike Tyson - Mike Tyson no auge - e todo mundo queria ver a luta do Mike Tyson transmitindo direto na Globo. (som de luta) Coloquei cerveja ali do lado, a mulher no sofá reclamando de dor e tá pra começar a luta e eu ali, eu olhava pra ela e ela reclamando de dor: “Ai meu Pai do Céu, hora que começar essa luta, essa mulher vai querer dar a luz”. Teve uma hora, eu pensei: “Nem vou começar a assistir, senão vai sobrar pra mim”. Querendo assistir, chegou uma hora [que] eu apaguei a TV, falei: “Vamos pro hospital, no Mandaqui mesmo”. Por lá ela entrou e ficou lá no pré parto, daí não levamos a sacolinha, a sacola de bolsa, que mulher leva pra nascer, né, e ela falou “Vai lá, Wilson, pegar a sacola. - era perto do hospital - Vou precisar da sacola aqui. Tá lá no quarto, em cima da cama, certinho”. Falei pra enfermeira: “Vou pegar a sacola, aqui pertinho, já volto, tá?”. Pensei até em ir a pé, porque era pertinho, ir correndo, fui pegar. Quando voltei com a sacola, cadê a barriga da mulher? (som com a boca), Nasceu, nasceu o bichinho. Aí, todo feliz, fui lá no berçário conhecer a criança, peguei no colo, né, chamou [de] Wilson Jr. Ela que quis pôr esse nome mesmo, né? Foi um momento muito feliz, que eu tava esperando isso mesmo, que ele viesse, (ficou em casa?). Aí ele foi crescendo, ficamos um tempo na casa da minha mãe, aí depois nós fomos, mudamos pra Guarulhos, ficamos morando lá um tempo. Aí, o que aconteceu? Compramos outro apartamento, na Freguesia do Ó… não é Freguesia, eles venderam como Freguesia, mas ali não é Freguesia, não, ali é Brasilândia, mas a propaganda tava como Freguesia, ué. Fui lá e eu consegui aquele apartamento lá e mudamos, saímos de Guarulhos e fomos pra lá, na Brasilândia, né e lá a ‘coisa’ foi crescendo, ficou um rapagão, dono do seu nariz, dando as cabeçada dele na vida, que agora é com ele ,né, acertando ou errando, faz parte da vida. Ele corre atrás, né, ele já tem um apartamento dele, com as coisas dele, tá aí namorando, diz que não quer filho. Tá certo ele, só dá despesa. (risos) O mais novo, o mais novo nasceu lá no Hospital do Servidor Público Municipal, né, e a gente já não tava com uma relação muito boa, mas nunca me desfiz, nunca neguei a minha responsabilidade enquanto pai, né, então tudo que ela precisou, o que ela quis que eu ajudasse… tinha um pouco de mágoa, né? Isso interfere um pouco no relacionamento, tinha que ter um pouco de sabedoria pra separar as coisas. Mas isso é de cada um, né, ter essa sapiência. E aquilo que deu pra ajudar, eu fui ajudando: fazer, correr atrás. Nasceu lá, mais um, o Rafael, né? E com o tempo, nós começamos a perceber que não tava tão normal assim, o QI dele, né, e percebemos que ele tinha uma certa deficiência. Eu esqueci o CID nele, mas a idade cronológica dele não é a mesma idade mental, ele tem dois anos de atraso mental. E eu falo uma coisa pra vocês, se hoje ele tá bom, vocês vão amar ele, nossa, um rapaz educado, bonzinho, tal, a cabeça avoada da idade dele, da época que ele vive hoje, né, mas a gente percebe quem, que se ele tá bom hoje é graças a mãe dele, graças a mãe, que ela lutou muito com esse menino, porque o grau de aprendizado dele era um caso complicado pra ele gravar as coisas, tem que ser tipo decoreba mesmo, tem que ler várias vezes, várias vezes mesmo. Mas ele tem que ter essa consciência que ele tem esse problema, já explicamos pra ele, então ele sabe que ele tem esse problema, então ele tem que ler, entender, ler, pra caminhar nesse processo todo que ele tá fazendo, né? E isso que é paciência, não só de quem ensina, mas de quem aprende também. Mas quem aprende é duro, às vezes é difícil dele entender isso. Fala que entendeu, [mas] tem que falar duas, três vezes, [porque não] entendeu nada, tá tudo… Não entende, mas tem que. E essa foi a luta nossa, né, pra minha [ex-mulher], porque como eles viveram junto e eu ficava mais à parte, o que eu podia era estar presente numas épocas de crise, porque tem hora que, só carinho não dava jeito, tava crescendo, tava ficando mal criado, então eu tinha que ir lá, fazer a presença de pai: “Olha, tem um homem aqui, que é homem. [É] com [um] homem que você tá falando”, impor respeito, né? [Ia] em cima dele e ele abaixava a bola, passava aquela crise, entrava em choro e tal, daí passava aquela fase e voltava a normalidade, e eu tinha que sair pra trabalhar pra poder ver a questão financeira. Infelizmente tudo é financeiro, tudo é dinheiro. Você não consegue dar uma criação bem se você não tiver dinheiro pra colocar dentro de casa. Como eu é quem ganhava mais que ela, tinha que sair pra trabalhar pra ajudar, além da pensão, eu dividia metade do valor da escola, porque a pensão não cobria, então mais metade, mais a pensão, mais o dinheiro e quando dava, saía com ele. Era passeio no parque, passeio no zoológico. Aquilo tudo era eu que fazia, por isso tinha que sair pra trabalhar. E até brinco com os colegas: “Só consigo ganhar dinheiro trabalhando”, porque tem tanta gente ganhando dinheiro fácil, [e] eu não consigo ganhar dinheiro fácil. Não consigo. Pra eu ganhar dinheiro é doze horas de trabalho, doze horas de trabalho mesmo, passo o dedo lá, o sistema computa lá, se sair mais cedo, o sistema tá caguetando, qualquer coisa cagueta, então tô lá das sete às dezenove horas. E se ele tá bom hoje, que eu posso falar que tá bom, que tá bem melhor, é graças a ela, à mãe, ela que tirou leite de pedra.
(01:22:55) P/1 – Durante essa época da pandemia, como foi a rotina de trabalho?
R/1 – O hospital se transformou por causa da pandemia, né? O hospital geral tinha pediatria, berçário, maternidade, cirurgia, centro cirúrgico. Era um hospital geral, o hospital acabou tudo só pra virar Covid, só pra virar, então, fechou pediatria… você colocar na cabeça dos funcionários que não vai ter pediatria, aquelas meninas, enfermeiras, vida toda [de] trabalho com criança e falar: “Não vai ter mais pediatria”, caíram num choro tremendo. Adoravam crianças. E pra contar com o emocional dessas enfermeiras? “Vocês vão ter que trabalhar com adulto [com] Covid”. Não é fácil sair de uma rotina, onde sabe fazer, sabe trabalhar. Mesma coisa berçário: acabou, fechou, terceirizou [o] berçário, né? Uma empresa veio de fora pra trabalhar com berçário. “Vocês vão ter que parar de cuidar dos pequeninhos, pra cuidar de idoso de setenta, oitenta anos”, pra elas é o fim, era o fim. Umas [saíram] fora, outras adoeceram, outra aposentaram, né? Essa é a vida que o sistema impõe pra nós: terceirizou a maternidade, saiu a maternidade por causa do Covid. Se sai a maternidade, sai o berçário também. Onde vai a maternidade, vai o berçário, põe o Covid. E foi fechando. Cirurgia não tem mais, cirurgia fechou lá, eu falo lá, mas em vários hospitais tá, parou por causa do Covid, quatrocentos leitos de Covid, quatrocentos leitos. Teve que introduzir protocolos, rotinas, muitos estudos, né? Alguém falou: “Você lê?”, eu leio coisas da minha profissão, né, que isso impõe a gente a se atualizar [sobre] como vai cuidar de uma doença. Se a gente não sabe como cuidar, tem que se atualizar, tem que ler muito. Hoje a gente vê muitos vídeos, conversa com outros profissionais, faz esse cenário e vai se atualizando [sobre] como cuidar desse Covid. E sempre tem um colega ou outro com uma novidade, uma história, “lá tá fazendo isso e aquilo”, como se paramentar. Tem que treinar paramentação pra cuidar de Covid, coisa mais simples do mundo, como colocar máscara, mas até isso tem técnica, pra colocar máscara, pra não se contaminar, né? Pessoal da limpeza também, teve que treinar bastante. Então a gente ralou muito, muito, muito. Então hoje eu me revolto, não só eu, não revolta, uma certa decepção, porque a população vinha muito com chocolatinho, palminha, parabéns, chocolatinho, presentinho, [mas a] Enfermagem não quer isso, Enfermagem quer condições de vida, de trabalho, de salário. Agora pra aprovar salário da Enfermagem fica com essa palhaçada, mas quantos que a Enfermagem salvou? E ainda vem dar chocolatinho. Quer dizer, as vidas que nós salvamos, é [com] chocolatinho que você compensa, então é muito decepcionante esse tipo de situação, né? A Enfermagem trabalhou muito, muito, na época do Covid, né, muitos até saíram, [se] aposentaram, saíram. Foi se aumentando os leitos, com o mesmo número de funcionários, então o risco de se contaminar era muito. Cuidar de muitos pacientes… então, eu era como um goleiro de futebol: ele pode ser o bom que for, melhor goleiro do mundo, uma hora toma gol; uma jogada, já tomou. É que nem Enfermagem: a gente cuida, um, dois, dez, vai o plantão, cuidou, uma hora você se contamina, então tinha que se diminuir os riscos de contaminação, né? Pra diminuir, vocês têm que cuidar com menos pacientes, não com muitos pacientes, mas o que está acontecendo é isso, dando cada vez mais pacientes pra Enfermagem, então o risco de contaminar na Enfermagem e o profissional é grande. E contaminou, depois fica quantos meses fora, né? Isso não se avalia. Eles querem é terceirizar tudo, como se a terceirização fosse a solução da qualidade, não é. Bom, o que entristece nesse Covid é que nós perdemos alguns colegas, né? Isso entristece bastante, faz parte da profissão e estamos aí, né, foi a profissão que escolhemos. Ninguém obrigou a gente a fazer o que estamos fazendo, ninguém está aqui obrigado, está porque foi escolha própria, né? Aqueles que não quiseram, saíram.
(01:29:18) P/2 – E tem alguma história, episódio, uma cancha, nesse período da pandemia, que você acha que representa um pouco disso que você tá falando?
R/1 – Ah, são as histórias gratificantes dos pacientes que entraram lá quase morrendo, não lembro os nomes exatamente, mas a gente tem vídeo no hospital, alguns nós batemos palma, eu mesmo, (risos) eu tava lá, né, e eu tava muito ruim: “Você quer alguma coisa?”, “Ah, põe uma televisãozinha aí pra eu distrair”. Eu tava tão ruim, sabe o que eles trouxeram pra mim? Um ventilador e colocaram do lado, o ventilador mecânico, monitor, porque eles não queriam que eu fosse para a UTI. Eu fiquei no isolamento. O carinho que recebi lá dentro foi enorme, por isso que eu falo [que] se eu tivesse em outro hospital, eu não estaria aqui não, tava morto. Se tivesse em outro hospital, acho que… porque o carinho, atenção, que não deram só pra mim, deram pra outros também, porque nesse momento que o paciente quer, quer atenção, se sente solitário, abandonado, isso é o sentimento de abandono, mas na verdade não tá, [e] a gente tem que cuidar dele, tem que cuidar do outro, né, ele tem que estar dos outros. Então quando ele olha e vê a pessoa toda de avental, parece um astronauta, máscara, capacete, visor, parece que o cara é de outro mundo, um ET, ele não reconhece a que a pessoa ali, parece que tá em outro mundo, não tá vendo, que se fosse um parente também tinha que estar assim, então ali ele se sente meio abandonado mesmo, né? Então o que faz você ficar tranquilo é essa interação de conversa. Se conversava muito, com esses pacientes, né? A posição, o ideal para você cuidar do paciente Covid, para melhorar o padrão, respirar, é você fazer colocar em prona, né, que é de barriga para baixo, né, coisa muito incômoda: você tem que ficar com a cabeça para baixo ou a cabeça do lado. Gente, isso aí é muito incomodo, muitos não conseguiam ficar direito. Eu pedi até para dar alguma coisa para eu dormir. Quando acordava queria sair, é muito incômodo. É muito trabalho, muita atenção, é remédio, pai toda hora cuidando, dando assistência e que uns não resistiram. Eu falo uns, para não falar a verdade, que muitos morreram, muitos foram, se tem relatos que foram até por falta de leito, né? Usava-se muito oxigênio, que é [pra] respirar. Imagina você sem respirar, se afogar no seco, você puxar e não vim o ar. Eu fico imaginando esse pessoal do Amazonas sem oxigênio, sabe, se eu ainda tive oxigênio, que eu pedia mais… (som microfone caindo) mesmo tendo oxigênio, né, eu queria mais, mas essas pessoas que morreram por falta de ar, afogado no seco, não teve como respirar. Nossa, me dá vontade de chorar. Ouvir isso na televisão, assim, eu confesso que até chorei, (som de choro) que eu passei por isso, eu passei, [de] querer respirar e não consegui, e saber que é o oxigênio que alivia essa agonia… e eu, graças a Deus, tinha oxigênio. Aqui em São Paulo não faltou, não faltou não. Lá no hospital não faltou também, o pessoal da manutenção, da estrutura, corria para que não faltasse pra ninguém. Uma correria, dois anos de luta mesmo, de todo mundo, todos, administrativo, a limpeza, do médico, do enfermeiro… isso deu uma certa, um pouco mais de amizade, cooperação, lembro de ter tido a visita do José Luiz, o outro Dr. Luiz também, Carlos, que me ajudaram muito, Doutora Élida, que vinha sempre. O Carlos, que era o diretor do hospital, [vinha] saber como eu estava. As minhas chefes, todos meus amigos, pessoal da limpeza, pessoal da copa, vinha e falava: “Olha, Wilson, eu sei que não pode, mas come essa frutinha aqui, ó, escondida”, levava pra eu comer e tal. Toda hora vinham me ver, toda hora que podia, né? Mas eu falo para vocês, assim, o Covid isola muito as pessoas, se você não tiver alguém para você ficar do lado, apertar sua mão, viu, é difícil. Dando uma força, você vai mais rápido. E se eu não tivesse lá acho que eu tinha partido. E a Cloroquina não ajudou em nada, se pelo menos dissessem que ajudasse no sistema psicológico, melhorava; se falassem que água com açúcar faz bem, eu iria querer tomar. Eu tenho uma filosofia de vida que é a seguinte: quem salva é Deus, medicina só alivia a dor. Você tá com dor, vai lá e vou te aliviar. No momento, quem vai salvar será Deus, está boa pode ser uma outra coisa muito mais, eu lembro das minhas passagens de vida, trabalhando no pronto-socorro, né, chegava pacientes e tem uma doença que chama DNV, desvio degenerativo, a gente chama popularmente de piripaque: começa a torcer, briga com marido, homem que ficava com aquele papo, essas coisas, né? Então, o que falava? Faz um placebo, fala que é o remedinho que vai melhorar. Placebo é nada, é uma aguinha. Agora fala que o remédio vai melhorar e funciona, cara, aí a pessoa acredita que vai melhorar, melhora. (E me passado plantão assim olha eu dele ver hein desse jeito aqui tô recebendo?). No plantão passava uma média de vinte a 25 pacientes, e eu ia passando de porta em porta fazendo as visitas, falando “boa noite”, perguntando como estava, aquele só que o cardiopata essa aqui tá bom, tchau, tchau do dia foi embora já estou à noite passava os cara fez seus colega tô trabalhando tá fiscal começa a minha visita nos paciente é tudo de nivelar, Seu José, como você tá Seu José, responde, pega o pulso, pulso fraco, foi só pega essa casa ou vai passar de emergência começa a trabalhar com ele, concluímos que ele morreu, passado com ninguém me vê como ele tá então essas coisas que eu falo, quem salva é Deus, não pede a morte, bom não se faz um bom avaliação, às vezes ouvia: “Eu quero morrer, me leva, eu quero morrer”, “Não pede, que Deus ouve e leva. Se ficar pedindo com força, com fé, não vai adiantar médico aqui não, Deus leva, hein?”. Muitos e muitos. Aí outros que falavam assim: “Ah, eu tô vendo a luz!”, “Tá vendo a luz? É porque eles vieram te buscar. Você quer ir?”, “Não! Não quero ir”, “Então, meu filho, fala para eles não te levarem, porque se você quiser, eles te levam”. Presenciei muito dessas situações, o pessoal pedia: “Quero morrer!”. A minha mulher [estava] desempregada - minha ex-mulher, né -: “Ah, não consigo emprego”, “Pede com fé, ajoelha antes de dormir, pede com fé que Deus dá. Não deu uma semana, tava empregada, pra trabalhar na biblioteca - até hoje - lá do Mandaqui. Entrou na prefeitura e foi trabalhar na biblioteca lá. Não deu dois meses, já tava reclamando que tinha que trabalhar, [eu falei]: “Pô, você não pediu para Deus?! Lembra que você se ajoelhou, pediu para Deus? Agora tá reclamando?”. (risos) Eu vejo… esses dois exemplos que eu presenciei, esses tipos de coisas, né? Quem salva é Deus, medicina alivia a dor. Eu tô com sessenta anos, sou diabético, tem cura para diabetes? Medicina só alivia o processo, assim como aliviou o processo da minha mãe, como vai aliviar o processo de todo mundo. Deus quando quiser levar, aí leva.
(01:41:24) P/1 – E a vacina, você lembra quando você tomou?
R/1 – Lógico, fui o segundo a tomar! (risos) Depois do Covid, eu já tava trabalhando, na área mais administrativa do hospital, não tava mais na assistência. Só se faltasse um e enfermeiro ou outro, aí eu ia lá na assistência direta. Mas eu tava trabalhando no administrativa, foi quando uma das chefe me falou: “Wilson, a secretaria tá chamando alguém que queira tomar as vacinas quando sair, você quer ir?”, “Põe meu nome aí! Quase morri por causa disso aí, vou tomar tudo quanto é vacina”, colocou. Aí passa um dia, passa outro, passou uns dias aí e eu recebi um telefonema da Secretaria de Saúde, que iam fazer o lançamento da vacina, né, se eu queria participar: “Ah sim, claro!”. Foi lá no complexos, ali, em frente ao Incor, na Secretaria da Saúde. E lá fui eu. Ela me deu um horário, acho que tipo um hora da tarde lá, né? Aí parei no estacionamento ali, tem um estacionamento gigante lá, parei lá, quando eu tô saindo, peguei o celular - acho que todo mundo faz isso quando vai sair, né, pega o celular para saber um pouco das mensagens antes de sair -, aí tava vendo as mensagens e tava falando: “Olha, foi alterado para às quatorze horas”, “Poxa. Tá bom. Já que tô aqui, vou, né?”, e fui entrando, fui chegando, fiquei esperando, obedecendo as orientações do pessoal lá. Eu não tinha certeza o que era, mas durante a minha espera apareceu mais duas colegas lá do hospital, foi um pessoal do _____, um pouco de cada hospital, de intituição, foi aparecendo. Um pessoal de lá, uns chefia, outros não. Ficamos conversando um com o outro. Tem gente que foi entendendo o processo, né? Na época tava o Dória brigando com Bolsonaro por causa de quem ia lançar a vacina, né? “Ah, então é isso, Dória queria puxar o tapete do Bolsonaro, (risos) vai lançar a vacina primeiro com ele. Tá esperando a aprovação da Anvisa”, que a Anvisa ia dar o resultado da aprovação naquele dia, num sábado, eu acho. E ficamos esperando. “Quem chegou tal hora, vem pra cá” e fomos para lá. Consegui, sobe pra lá e pra cá. Foram orientando a gente. A gente parou no salão gigante, a imprensa acho que do mundo estava lá, muito terno e gravata. A gente ficou tudo sentado numas cadeiras assim e tinha o Dória, apareceu com toda aquela pompa, cerimônia e tudo, que já tinha sido aprovada a vacina e foi dada a primeira vacina naquela enfermeira, não sei o nome dela, uma enfermeira negra, né? Foi aplicado, [aí] foi aquela festa: “São Paulo, primeira vacina do Covid”. O povo olhava pra cara do outro e falava: “Tá bom, né?”. Aí tô quietinho, de repente falam: “Wilson Paes de Pádua”, “Opa, sou eu”, fui lá, fui o segundo a tomar. Tchã, tchã, tchã, (risos) aquelas foto todas. (risos) Parecia filme! Nunca tinha tido nesse tipo de situação, [de] quando chega um artista, monte de foto. Fiquei meio assustado, um perguntando de onde sou, isso e aquilo, tal: saí de lá tipo uma ‘estrela’, tive meus cinco minutos de fama. E eu fui o segundo a tomar a vacina do Covid. Fui uma celebridade no hospital, né? (risos) Mas tem que tomar a vacina, não tem jeito. Eu acho até que peguei Covid de novo. Eu já tomei quatro vacinas, vou tomar a quinta quando [em] São Paulo for liberado, porque é por idade, mas eu vou tomar a quinta. Acho que até peguei, porque eu estava meio resfriado, com o corpo meio cansado, mas deu pra trabalhar tranquilo, não se pega Covid mais [no nível em] que derruba [a pessoa] e, [consequentemente], sem condições de trabalhar. Você segue a vida, com Covid, tudo. Mas foi muito legal essa história da vacina. Celebridade!
(01:46:19) P/1 – E seu Wilson, como é hoje sua rotina?
R/1 – Eu tô na parte administrativa. O hospital tá… a gente sempre pisa em ovos toda vez que muda o governo, né, ninguém sabe muito bem quem vai dirigir, quem que vai ser, qual que é a proposta real de quem vem. O Tarcísio assumiu, muitos, muitas fofocas, muitos questionamentos, a diretora tá se aposentando, diretora do Hospital de Enfermagem, né, e toda vez que muda o governo, muda a direção também, vai mudando as direções. A gente se pergunta: estaremos aqui depois do carnaval? Que tudo começa depois do carnaval, né? Um olha pra cara do outro, fala: “Não sabemos”. Graças a Deus eu tô como supervisor de Enfermagem lá. E eu sempre falo pra mim e pra todos: “Eu não sou supervisor, eu estou na supervisão, porque o cargo eu não vou levar pra casa, né, o cargo fica”. Se amanhã [ou] depois chega uma direção, um superior e falar: “Olha, Wilson, você não é mais supervisor e vai pra assistente”, ou pra lá, pra cá, ele tem o direito de dar o cargo pra quem quiser, mas enquanto eu estiver, faço o melhor que dá pra fazer. Minha rotina, eu sou supervisor de um plantão: chego sete horas, bato o ponto eletrônico e começo a fazer a minha chamada, né, saber como que tá o hospital. Tenho uns cinco unidades pra cuidar, duas alas de clínica médica, duas alas de cirurgia, uma masculina e outra feminina, e uma unidade de queimados. Eu tenho que pôr funcionários lá pra trabalhar e supervisionar todas as atividades que os enfermeiros fazem, né? Então, logo cedo, eu me preocupo com isso. Depois do almoço, já começa a ‘queimar minha cabeça’: o que eu vou encontrar lá? Acho que [com] o “zapzap” já fica mais fácil, a pessoa fica caguetando um ou outro lá: (risos) “A coisa tá assim, tá assado. Tem uma saída. Não tem funcionário. Amanhã não venho, tô com atestado”, “Ih, lascou, como é que eu vou fazer?”, com “zapzap” dá pra caguetar. Mas eu chego com essa preocupação de ter que fazer o hospital andar. O hospital funciona, tem que funcionar comigo ou sem mim, tem que funcionar. Me lembro que quando peguei Covid, um pouco antes, eu tinha muitos coisas em acerto: tinha funcionário que eu transferi de setor, outro funcionário que eu ia colocar ali, documento que eu tinha que mandar pro DP, relatório que eu tinha que fazer, muitas coisinhas pra fazer. De repente: PUM, caí numa cama. E eu caí preocupado numa cama: “Caramba, eu tinha tanta coisa pra fazer. Como é que eu vou ficar aqui numa cama, sem ar? Eu vou morrer. Como vão fazer as coisas?”. E os colegas: “Meu, calma que a coisa vai continuar. Vamos cuidar de você agora”. Você sabe que depois eu saí, pensando comigo: “Comigo ou sem ‘migo’, o hospital toca”, não é porque um ficou doente que tudo para, né? Por isso que eu falo: eu estou na supervisão, não vou levar esse cargo pra casa. Se eu não estiver, outro toca. Por isso que as coisas têm que funcionar. Se vai tocar bem ou mal, aí já é outra coisa. (risos) Aí eu faço meu plantão, tenho um bom relacionamento com as chefias, em alguns momentos enfermeiro-chefia é portador de más notícias, porque você comandar várias pessoas, né, uma média de oitenta a cem pessoas, é complicado, porque cada um tem um temperamento e cada um quer fazer do jeito que ele acha que tem que ser feito, muitas vezes não quer seguir rotina. A rotina é essa, a norma é essa, né, então eu tenho que dar bronca, e ninguém quer receber bronca. Eu falo: “Se você não quer receber bronca, faça as coisas direito, faça as coisas segundo as normas do hospital”. E eu sou muito simples, eu falo: “Eu também não gosto de receber bronca, por isso que eu procuro fazer as coisas conforme as regras. Eu sou seu chefe, mas eu também tenho chefia, também tenho chefia, alguém por trás que está me fiscalizando, né, e eu obedeço as orientações da chefia. E eu não quero levar bronca; se eu quero levar bronca, eu faço tudo isso errado. Aí eu vou tomar bronca”. Por isso que eu procuro fazer as coisas corretas, certinhas, pra evitar problemas. E tem que ter conversa, conversa aqui, ali, ajeita a vida lá, tem que ser um pouco humano também, entender os problemas. A gente lida com ser humano, né, então tem que ouvir, sentar: “Vem cá, vamos tomar um café”, ouvir os problemas, entender a situação, né? “Onde eu posso te ajudar? Você não tá bem pra trabalhar hoje? Vai pra casa, eu falo pros outros colegas. Gente, quem não tá bem emocionalmente, ‘com cabeça’, vai pra casa”, você tá lidando com vida aqui dentro. Os pacientes precisam da gente aqui, se você não tá bem emocionalmente, você vai fazer bobagem com esse paciente. Então essa é a primeira regra que eu falo pra todo mundo: você veio pra cá pra trabalhar, você tem que tá bem, bem pra trabalhar; se não tiver, vai pra casa, amanhã é outro dia. Não se preocupa com o ponto, você paga essas horas depois, mas eu preciso de um profissional bem pra trabalhar aqui dentro. Outro dia, não faz muito tempo, eu tava com uma dor de barriga terrível, gente, eu não pensava em outra coisa a não ser ir pro banheiro, (risos) a chefia me chamava: “Pera aí”, chegou uma hora que eu precisei ir pra casa, não teve jeito. “Não tô trabalhando, não tô produzindo, sabe, preciso tomar um remédio, preciso descansar, tomar um banho, não tô bem”. Então é coisa que falo lá no hospital, principalmente mulher, porque mulher varia muito o temperamento, né, tem seus dias - e eu trabalho com quase 100% de mulheres, poucos homens -: “Se você não tá legal pra trabalhar hoje, vai pra casa, vai de boa”. Não se preocupa não, se você não tá boa pra trabalhar, então vamo fazer a nossa obrigação que a gente tem que fazer: faço a supervisão, cuido dos pontos, corro atrás de material, ajudo as enfermeiras quando dá nas unidades, quando precisa de um apoio ou outro, ajudo a chefia. Quando as coisas passam da minha ossada, passo o problema pra chefia: “Ó, tá acontecendo isso e já não é comigo, daí tem que ser com vocês”. E assim vai o dia. Aí rezo pra dar o horário, passa o plantão e chega pro outro dia. Quando vou pra casa, chego pensando no amanhã, onde vou estar amanhã.
(01:54:59) P/1 – E quais são as coisas mais importantes pra você hoje?
R/1 – Hoje, sinceramente, é tá em paz comigo, né? Já cansei de querer ter razão, sabe, cansei. O funcionário fala: “(barulho)”. Eu escuto e: “Tá bom. Já fez o serviço?”, “Já”, “Então tá bom”. (risos) Eu falo que só quero saber do serviço. Fez o serviço? Pode falar à vontade, tô aqui para ouvir, eu escuto, escuto, escuto: “Tá bom, você tá bem agora? Tá, então vamos trabalhar”. Uma vez teve uma colega que ela não aceitava trabalhar no dia de Natal: “Preciso do dia do Natal”, “ Mas, menina, faz três anos seguidos que você folga o Natal, esse ano você tem que trabalhar, tem que rodar os períodos”. Daí ela fala: “Blá, blá, blá, blá” - e a mulher fala, hein -, “Acabou?”, “Acabou”, “Tá. Vai trabalhar no Natal”pronto”, pronto. Mulher é fácil demais, eu tô pegando as técnicas. Convivendo muito com mulher, vou aprendendo as técnicas delas. Aí vai resolver uma coisa, ela puxa um outro assunto, lá do fundo, blá, blá, mistura com esse assunto aqui. Se tu não ficar esperto, você entra na dela. (risos) Mas são muito gente boas, as meninas lá. Mas o que eu quero é ficar em paz comigo mesmo, sentir tranquilidade, me sentir bem. Se eu tô com uma pessoa, num ambiente que eu não me sinto bem, hoje eu falo que não vou, que eu não quero e fico em casa, Netflix, fico em casa comigo mesmo, né? O que eu quero é isso, um pouco de paz, tranquilidade, me sentir bem comigo mesmo. Cansei de ficar com gente ruim, de coração ruim, de cabeça, descontentamento. [Isso] contamina a gente, contamina o ambiente, ambiente pesado, denso, não me faz bem isso. Até mesmo na família, viu? Vou te falar, começa uma discussão, um bate-boca, eu falo: “Gente, para com isso. Vem aqui pra almoçar, daí fica essa discussão toda. Não, não dá não”. Hoje, o que eu mais quero é estar bem. Acordei, bonitinho, tomo meu banho, _____, procuro chegar no horário, tomei um café antes. Acabou: tô bem. Daqui pra casa, já tô pensando o que eu vou fazer à tarde, sei lá, vou vivendo. Mesmo com a namorada, se ela não tá bem, começa a brigar demais: “Você vem aqui?”, “Não, não vou”, “(barulho)”, “Não, não quero”. É pra brigar? Vai ficar falando no meu ouvido? Não, fico em casa. Quero tá com a pessoa pra me sentir bem e que ela se sinta bem comigo também. Se a pessoa não tá bem, ela contamina. “Você quer eu vá aí pra gente conversar? Mesmo você estando triste, eu dou apoio, tudo mais. Quero ser companheiro, parceiro. Agora, pra ficar brigando, não quero. Se a pessoa tem essa compreensão, beleza; se ela não tem essa compreensão, se o foco dela é só brigar, então não adianta, não tem diálogo. Tem que ter diálogo, conversa, acho que é a chave da coisa. Mas eu preciso, quero estar bem. Isso é importante.
(01:59:30) P/1 – E você tem algum sonho, algum plano pro futuro?
R/1 – Ah, eu quero me aposentar e ter condições de me manter, acho que é o único sonho, que eu não queria ficar dependendo de filho. É um conselho até pra vocês: não acha não que vai fazer filho e que ele vai ser o futuro seu, sua aposentaria. O filho é sempre um outro ser humano e cabeça de ser humano, já sabe, filho é um quando é pequeno, é outro [quando] adolescente, outro adulto e quando fica mais velho é outra pessoa, a gente não sabe o futuro. Então o que eu gostaria, não sei se vou conseguir, uma coisa a gente quer, outras a gente vai conseguir, é ter uma renda que eu consiga me manter, né? Por enquanto tô trabalhando, me mantendo, tudo mais, né, tenho uns projetos aí no litoral, de ter uma casa, uma renda, um aluguelzinho no litoral, uma aposentadoria. E vou trabalhando com o dia a dia. Renda pra manter, eu tenho hoje, mantenho com dificuldade, mas eu queria ter uma renda [pra viver] com menos dificuldade ainda, né, me manter sem dificuldade. Queria ter uma renda pra pelo menos passear, viajar, né, que eu gosto de viajar, né? Esse ano, se Deus quiser, vou pra Grécia, as coisas vão sendo planejadas pra isso. Já tô pagando passagem pro ano que vem, Cancun, e vou planejando. Estamos vivos, não estamos?! Então vamos viver, vamos viajar, passear, planejando. Eu me conscientizei, vou ficar pensando: “Caramba, meu, auxiliar de enfermagem ganha o mesmo que eu, vive viajando, passeando. Como ele consegue? Eu aqui trabalhando que nem um louco, não consigo nada”. Lógico, ele planeja, já programa. Então, desde o ano passado, planejei a viagem, vou pra Grécia com o pessoal da família, ano que vem pra Cancun, vamos planejar, dinheirinho contadinho, certinho. Enquanto estiver vivo, vamos viver. Vivendo tá bom. Na minha vida, o dia a dia é assim, tranquilo, evito confusão, né? Não adianta discutir com Bolsonarista, por cair a ficha: “Ah, eu votei no Bolsonaro”, “Ah, tá bom, então fica aí”, não adianta. É que nem falar em mudar de time, o palmeirense, não, então pra que ficar discutindo? Não vai mudar de time. Vamos viver, só isso, né? Esse negócio de política, deixa pra lá, cada um tem o seu, você tem seu time, eu tenho meu time, cada um democraticamente briga pelo seu, sem violência, sem complicação. Isso que é importante, sem violência, né? Essa questão da violência é complicado e não é só violência física, é violência moral, espiritual, isso me afeta mais que a violência física. Se a pessoa me der uma porrada na cara, acho que dói menos que ofender, me ofender. Se me der uma porrada na cara, vou lá, dou outra nele e alivia, mas violência moral, complica. Isso dói demais, né? Dói demais. Mas, assim, por isso a gente tem que tomar cuidado com as palavras, né? Não posso dizer que nunca errei com as palavras, lógico que errei, mas errando que se aprende. Fala: “Puxa vida, pisei na bola, falei demais”. Acho que o reconhecimento do erro e a palavra “desculpe” tem que tá no dicionário de todo mundo, duas coisas, né, reconhecer o erro e pedir desculpas, tem que tá lá, pra gente continuar convivendo com o outro. Tem que ter isso, né, se não tiver isso, não tem condições de conviver com ninguém. Um dos motivos que já dispensei [e] outros fui dispensado, que não deu certo com as pessoas. As pessoas erram, mas nem reconhecem, acham que estão certíssimas. Nem meio certo: “Eu errei aqui, eu acertei ali”. Não existe desculpa [vindo dessas pessoas], não, não tem palavras, não tem abaixa a bola, sempre de nariz em pé. Então tá bom, fica ali, eu fico aqui, cada um segue sua vida.
(02:05:14) P/1 – E o que você achou de contar sua história hoje?
R/1 – Alívio, né? Uma experiência única. Ninguém nunca quis saber. (risos) Mas falar a minha história, eu reforço algo, que quando você tem um ente querido, faça tudo e mais um pouco, porque pra não ficar esse sentimento de: “Poxa vida, acho que eu podia ter feito isso, aquilo outro, podia ter feito mais”, né? E a coisa da minha mãe, toda vez que eu lembro dela eu fico pensando: “Caramba, aquele dia que fiquei nervoso, porque ela disse alguma coisa, não precisava ficar, não precisava fazer, tomar aquela atitude. Por que eu não tive mais paciência? Por que eu não fui dormir um pouco mais tarde? Por que não fiquei um pouco mais com ela, ouvindo”, né? Porque às vezes o ouvir, falar, estar perto, é melhor que o remédio, melhor que um comprimido. Às vezes, num fiz. (choro) Isso, me arrependo tanto. Aí eu errei, né? Mas, quando chegar a minha vez… não dizem que a vida é a lei do retorno? Acho que meus filhos vão fazer a mesma coisa comigo. Se eu não der o exemplo, eles não vão fazer; se eu errei com a minha mãe, eles também vão fazer o mesmo comigo e eu sou obrigado a aceitar. Eu errei com ela, podia ter tido mais paciência, mais ainda. Se eu tivesse paciência, podia ter ajudado um pouco mais. A vida é assim, tem que aceitar. (choro)
(02:07:58) P/1 – Tem mais alguma história, mais alguma coisa que você queira contar?
R/1 – Ah, eu tenho dois filhos maravilhosos, se Deus quiser eles vão seguir o caminho deles, né? Vão seguir o caminho deles. Já fiz tudo que eu podia fazer, agora é com eles. O pequeno tá acabando… eu tô acabando minha luta com eles, né, e eles tão começando, agora vão ter que continuar sozinhos. E vou viver, cada dia é um dia.
(02:08:57) P/1 – Muito obrigada, por passar esse tempo hoje com a gente.
R/1 – Obrigado por me ouvir! Eu falei, ninguém quis ouvir.
(02:09:08) P/1 – Foi um prazer.
R/1 – É um alívio, só acho que vocês me aliviaram.
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