Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Pedro Alves de Souza
Entrevistado por Winny Choe e Júlia Basso
Açailândia, 01/11/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MB_HV_079
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 21/05/2010
P1 – Seu Pedro, para a gente começar, eu queria que o senhor falasse seu nome completo, a cidade e a data de nascimento.
R – Meu nome é Pedro Alves de Souza, sou de Oeiras de Piauí, nasci em 18 de novembro de 1942.
P1 – E você poderia falar o nome dos seus pais?
R – José Bento de Souza e Romana Alves de Souza, ambos da mesma cidade.
P1 – Oeiras?
R – Oeiras de Piauí.
P1 – O senhor teve irmãos?
R – Treze irmãos.
P1 – E, desses 13, o senhor é o mais velho, mais novo, do meio?
R – Sou o mais novo, caçula.
P1 – Devia ter bastante irmão, então, para cuidar do senhor?
R – É. Morreram. Morreram 11, já morreram 11.
P1 – De pequeno?
R – Morreram de pequeno, e os outros morreram depois de grande. Só tem eu e outro irmão.
P1 – Mas vocês devem ter brincado bastante junto, né? De pequeno, lá em Oeiras?
R – Ah, brincamos.
P1 – Como era lá?
R – Bem divertido. Que criança sempre... Na adolescência da gente, era uma vida à vontade, principalmente no interior, porque a gente vivia uma vida, como se diz, banhando no rio, correndo de animal na praia, correndo atrás de gado. Muito bom.
P1 – E como era a sua casa, o senhor se lembra?
R – Lembro-me. Era uma casa de taipa, mas era bem ajeitadinha, coberta de telha. No interior, mas muito boa.
P1 – Você dormia junto dos seus irmãos?
R – Era. Nós dormíamos juntos. Só nós. As mulheres dormiam num quarto, nós dormíamos em outro, à vontade. Nós brincávamos até tarde, era muito bom.
P1 – Você se lembra do que o senhor gostava de brincar?
R - Nós brincávamos de esconde-esconde, cavalinho, correr cavalinho de pau. Brincadeira de criança, menino homem é sempre atrapalhado.
P1 – Subia em árvore?
R – Assobiar, tocar borá, aquele de “pó, pó, pó”. E era engraçado.
P1 – E o senhor, lá em Oeiras, ajudava os seus pais? Eles plantavam, o que eles faziam?
R – Ajudava. Lá, plantavam arroz, milho, mandioca. O plantio de lá era só esse mesmo. Algodão.
P1 – E quem cozinhava lá na casa do senhor?
R – A velha, minha mãe. Lá, a dona da história era ela, o fogão era com ela mesma.
P1 – Era no fogão a lenha?
R – Era fogão a lenha, aquelas fornalhas, como se diz. Tocado a lenha mesmo.
P1 – Devia ser bastante comida, com os irmãos, né?
R – Muito. A gente criava bastante porco, bode, ovelha, as cabecinhas de gado, para tomar um leite. Era uma vida sossegada.
P1 – E o senhor cresceu em Oeiras até quando?
R – Até 53, mais ou menos essa data.
P1 – Passou uns bons anos lá.
R – Passei. Depois viemos para Pedreiras, no Maranhão, cidadezinha que tem aqui no interior do Maranhão, no Alto Mearim. Lá, eu regi uma temporada, me casei no Bom Jardim, quando não era cidade, pertencia a Monção nessa época, que era cidade. Eu me casei lá. E, de lá, mudei para Imperatriz e estou aqui agora na Açailândia.
P1 – O senhor começou a estudar lá em Oeiras?
R – Estudei, mas não tive oportunidade. Estudei pouquinho, até a segunda série.
P1 – Mas você se lembra de como era a escola lá? Você gostava? Era longe?
R – Para mim, era a uma légua, 6 quilômetros. Às vezes, era de noite, porque a professora também trabalhava, interior, você sabe como é a vida. E os que moravam pertinho tinham que levar o seu banquinho. Escolinha particular, paga mesmo, os pais pagavam. Banquinho de pau muito fraquinho. Mas ainda dou graças a Deus por ter aprendido um pouco, assinar o nome.
P1 – Quando a sua família foi para o Maranhão, os seus pais foram para trabalhar?
R – Meu pai morreu ainda no Piauí. Minha mãe já morreu aqui no Maranhão.
P1 – Mas vocês conheciam alguém no Maranhão?
R – Conhecemos bastante.
P1 – Como é que foi essa cidade nova, depois de Oeiras?
R – Depois de Oeiras, nós viemos para Pedreiras. Lá, era muito bom, um povoadozinho bom, porque nós não morávamos dentro da cidade, era no interior, que a gente vivia de roça, de agricultura. E os vizinhos, saía aquele bando de meninos para brincar, os pais para conversar com os outros, tudo era compadre uns com os outros. Não tinha desavença, não tinha intriga. Era muito bom, sossegado.
P1 – Assim que é bom, né?
R – É ótimo. Hoje, a vida está muito difícil, principalmente numa cidade como essas para cá, em que a violência é terrível, um exagero. O filho não pode nem sair para a rua que você já espera o pior.
P1 – Conta para mim: lá em Pedreiras, o que o senhor fez lá? Trabalhou, ajudou, brincou?
R – Trabalhei, brinquei e plantei. Trabalhei “tropeando”, carregando gênero para Pedreiras, algodão, arroz, milho, babaçu. Era uma vida corrida. Nós tínhamos duas tangidas de burro para sobreviver, ganhar um dinheirinho. Naquele tempo, quem tinha uma tangida de burro já era meio preço de um caminhão. Em certas épocas, ganhava um dinheirinho de manutenção de casa.
P1 – E você foi de Pedreiras... Você ficou quanto tempo lá?
R – Em Pedreiras, nós passamos 14 anos, mais ou menos.
P1 – Seus irmãos todos cresceram?
R – Tudo. Casaram. Casaram duas em Pedreiras, e os outros já casaram para cá, para o Bom Jardim, teve Vitória do Mearim.
P1 – E, Seu Pedro, quando o senhor era menino ainda, o senhor escutava muita história aqui da região? Histórias de fantasma?
R – Assuntava. Aqueles mais velhos sempre tinham uma história para contar, aquelas lendas que contavam para as crianças, falavam que existia lobisomem, que corria. Essas coisas que tudo é lenda. Do caipora, a gente que caça de noite vê. Eu mesmo, pelo menos, nunca vi, mas, de eu ir caçar, do cachorro, e o cachorro estar mordendo a caça, mesmo assim a gente olhar alumiado de lanterna, nunca vi nada. Cachorro apanhando. Diz que ele é o dono das caças, sempre acontece isso na vida de quem caça. Por sinal, todo bichinho do mato, inclusive o tatu, eu digo que ele tem dono, porque tem um sinalzinho na orelha dele, é rachadinha. Todos eles que a gente mata são assinados. É o dono deles quem cuida, com certeza.
P1 – Conta essa história para a gente, do caipora, que você escutou.
R – Eles contavam que o caipora batia na gente, tinha que levar fumo para o mato para deixar na cabeça de um toco. Ele vinha para apanhar. E tinha um cabra, uma vez, que vivia só de caçar. E ele saiu para caçar, e os filhos esperando que ele levasse alguma coisa. Ele andou, e nada. Depois, ele olhou e disse que viu: estava uma anta olhando para ele. Ele foi e atirou na anta, a anta caiu. Ele disse: “Já vou levar para os meus filhos.” Aí, o que ele fez? Tirou o couro da anta e tinha carne demais, porque uma anta dá 18 arrobas, muito grande. Ele foi, tirou um olho de palha e fez um embornal para botar a carne dentro. Ele andou foi longe, pegou uns cinco ou seis quilos de carne. Ele disse: “Meu Deus, como é que eu vou fazer agora? Estou longe de casa, como é que eu vou levar essa carne?” Dali a pouco, chegou um rapaz forte, pequeno. Era realmente o dono da caça. “Bom dia, meu amigo.” “Bom dia.” “Matou uma antinha por aí, né?” Ele disse: “Foi.” “E agora, como é que você leva essa carne?” “Rapaz, é nisso que eu estou pensando. A carne, eu não queria deixar meus filhos com fome.” “Vai lá, tira aquele olho de palha ali.” Ele foi lá, tirou. Ele fez um “tiracolozinho” menor do que ele tinha feito o dono que matou a anta. Ajeitou ali, ajeitou. Pegou a carne todinha e empilhou dentro do embornal. “Pega, vai-te embora.” Ele ficou na cabeça, ele não confia, né? Ele saiu, viajou, olhou para trás: “Rapaz, aquele cabra me enrolou, ficou com a carne todinha.” Tinha um lajeiro ali no chão, uma grota de pedra naquelas lajes. Aí, ele foi tirando a carne e jogando em cima, desconfiado que ele tinha ficado com a carne. Ele empilhou a carne e foi empilhando a carne e disse: “Meu Deus, a carne está toda aqui! Como foi uma coisa dessas?” Ele foi, tornou a pegar a carne, três pedacinhos de carne encheram o embornal, que era bastante que ele tinha tirado. Ele disse: “E agora?” Daqui a pouco, o cabra ouviu pisar assim na folha. Ele olhou para trás e disse: “Rapaz, você botou abaixo?” Ele disse: “Foi, sim senhor.” Ele disse: “O senhor desconfiou de mim, que eu tinha tirado a tua carne, não foi? Passou isso na sua cabeça?” Ele disse: “Não senhor.” “Foi, rapaz. Olha, eu vou arrumar essa carne aí dentro de novo, mas tu vai ver...” Arrumou todinha, pã, pã, ligeiro, entregou: “Vai-te embora daqui para os seus filhos.” Ele seguiu. Poucas horas, ele botou abaixo de novo, fez o mesmo serviço. Tirou a carne todinha: “Ele não botou essa carne toda aqui dentro.” Ele foi lá, pegou: “Rapaz, tu está desconfiado de mim mesmo, não tá?” Ele: “Não senhor, eu estou aqui olhando.” “Olhando, não. Eu vou arrumar de novo.” Arrumou a carne lá todinha, tirou um cipó e deu uma pisa nele, ajeitada, cortou aquilo e trançou. Quando ele chegou em casa, ainda se arrastando, jogou o embornal de carne em cima da mesa: “Mas, homem, tu passou o dia todinho e a carne que tu traz é essa? Teus vizinhos tudo com fome, os meninos. Isso aí não dá para nada, não!” Ele disse: “Olha, por causa do diabo de teima, olha como é que estão as minhas costas aqui de taco. Mexe na carne, tira daí de dentro.” A mulher foi tirando a carne e jogando em cima da mesa e tirando. “Mas, menino, que diabo de embornal é esse? É mágico?” A carne da anta estava todinha lá, esparramada na mesa. “Não estou te dizendo? Não teima com quem tu não conhece. E foi o homem lá que arrumou, fez essa carne aí.” É assim que acontece. Quem tem as dúvidas, quem duvida, dele apanha.
P1 – Seu Pedro, para um caçador entrar na floresta com permissão, o que ele tem que fazer? Para o curupira não ficar bravo com ele?
R – Não, tem que ir nos dias certos. Dia de sexta não presta, quinta também não. E a gente, se vai caçar de cachorro, tem que ter o alho ali para passar no cachorro, senão, ele bate. E é assim que tem que fazer. Aí, não acontece nada, ele permite. Os dias consonados. Dia de sexta, não vá, que não presta.
P1 – E, quando era menino, davam medo essas histórias do curupira?
R – Eu tinha medo, eu tinha medo paca, muito medo.
P1 – O que você gostava de fazer?
R – Eu gostava muito de caçar tatu mais aqueles vizinhos mais antigos, que tinham os cachorros bons de caçar tatu, paca. Para mim, o divertimento maior, eu achava. Achava bonito o cachorro ganindo atrás da caça, de noite. Descia lá para cavar direito, matava e trazia para casa. Era muito divertido.
P1 – Seus irmãos gostavam também de caçar?
R – Tinha uns que não iam para o mato de jeito nenhum, de jeito nenhum. Mas eu toda vida gostei. Mamãe dizia: “Porque tu nasceu em novembro, tu é um caboclo “brabo”, que caboclo “brabo” gosta do mato.” Eu não sei também, diz que é o signo, e fiquei. Hoje, eu não caço mais porque não aguento, as pernas velhas não dão mais. Mas aqui eu matei muito tatu, veado, nunca matei anta. Onde eu morava ali, no tempo dessa ferrovia, no desmatamento da Amza – que, antigamente, na estrada de ferro, a linha de frente, quem fez o desmatamento era a Amza, uma firmazinha. Mas era difícil. Eu comprei uma terra lá, era muito difícil para gente tirar o legume. Tirava o animal até na beira dessa BR-222, eram dez quilômetros para a gente tirar o animal. E, depois, quando essa estrada de ferro passou, melhorou 100%, porque logo, logo tinha estrada. Apareceu estrada espichada para todo lado, foi ótimo. Aqueles tanques que eles faziam para a gente abasteciam água para a gente. Mandaram eles fazer tanques de cimento. Eles vinham e jogavam 10 mil litros de água dentro. Era ótimo para a gente, que lá era difícil a água. A minha terra mesmo eram 5.800 metros para a água apanhar para beber, para dar água para os porcos, para os animais. Tudo tinha que vir do brejo do Pequiá.
P1 – Lá em Oeiras?
R – Aqui no Maranhão. Aqui em Açailândia. Depois do Pequiá, era a minha terra. Daqui lá dão 22 quilômetros. É muito bom.
P1 – Conta alguma história de alguma caça que o senhor tenha feito que foi engraçada ou perigosa?
R – Só a perigosa mesmo que eu fiz. De eu matar essa onça porque eu não enxerguei nem as pintas delas, eu pensei que fosse um gato. Depois que eu matei, fiquei com medo, porque, no que eu atirei nela, ela caiu, e um cachorro que eu tinha partiu em cima, e ela pegou o cachorro assim, e rasgou desse tanto a cabeça do cachorro. E eu estava na mata, cinco horas da manhã, eu arranquei o facão da cintura para bater no pé de pau que ela estava em cima, ela virou a cara e rosnou. Eu disse: “Vixe, isso é um gato.” Quando ela caiu no chão é que eu vi que era uma onça. Aí que me deu o medo. Mas já estava morta, não teve mais jeito. O jeito era apear e trazer para cá para tirar o couro. Foi só o susto que eu tomei.
P1 – Deve ser pesada uma onça. É grande?
R – É grande, dá mais de 60 quilos. Essa era pequena. Mas ela, sendo, como se diz, adulta, um homem só não traz. Muito grande.
P1 – E como foi quando você chegou com a onça, mostrando?
R – Ah, lá foi um assombro. “Rapaz, você matar onça uma hora dessa.” Vinha vindo um colega meu, que trabalhava de vigia na fazenda de um cara, da Estrela, ele chegou, disse, me chamava de velho: “Velho, rapaz, tu matou foi uma onça.” “Rapaz, deixe de brincadeira, está até me doendo a barriga.” Mas era brincadeira, ele sorriu: “Não, isso aí é uma onça.” Eu digo: “É, depois dela morta que eu fiquei com medo, mas na hora lá eu não conheci que era onça e atirei, e, por sorte, ela morreu.” Infelicidade dela, sorte minha, porque senão ela partia para cima de mim para me comer.
P1 – O senhor preparou ela?
R – Não, eu não como, não comi.
P1 – O pessoal não come onça, não?
R – Fede muito, mas tem gente que come. A vizinhança bateu em cima e comeu toda.
P1 – E a pele dela, não aproveitou, não?
R- Não, a pele não vende. Não vendia mais. Foi proibido vender essas coisas.
P1 – Isso aí é a presa dela?
R – A presa da onça. Tirei para não ficar por mentiroso. Cabra diz: “Não, isso aí você não matou.” Então, eu tirei a presa para mostrar. E os vizinhos todos viram também, acreditaram.
P1 – O senhor guarda ela no bolso?
R – Guardo no bolso, quando terminar, guardo ali. Aí, os netos vão crescendo e vão vendo. “Esse foi o meu avô que matou.” Prossegue a história, passando, como se diz, de geração para geração, se tiver cuidado de guardar, como eu guardei, né? “Não, isso aqui é a presa de uma onça. E foi meu avó que matou.” O outro diz: “Ah, foi meu bisavô.”
P1 – O que os seus netos acharam quando você contou a história?
R – Eles acham pequeno. Uma das minhas netas falou: “Você é danado, vô. Você matar essa onça.” Elas já estão tudo casadas, essas meninas. Eu tenho cinco bisnetos, cinco bisnetos.
P1 – Ah, os bisnetos escutam essa história da onça?
R – Ficam observando. Vão acompanhando e vendo, né?
P1 – Seu Pedro, quando o senhor estava em Pedreiras, o senhor trabalhou com o que lá?
R – Trabalhei de roça e de tropa, tropeando burro, tangendo burro do interior para a cidade.
P1 – O senhor tocava os burros?
R – Era, montado num jegue, na pinhola, para chegar ligeiro.
P1 – Era estrada de terra?
R – Estrada de terra. Poeira que era um absurdo.
P1 – Sozinho?
R – Sozinho. Não era só, porque tinha vários amigos, vários tropeiros, era muito. A gente ia, viajava de muitos. Eles chamavam comboio, na época.
P1 – Os tropeiros?
R – É, os tropeiros. Mesma coisa que eles transportavam gado aqui de Goiás, por dentro, por estrada de boiada, saía no arame, Santa Inês, para levar para Belém. É uma vida muito cruel. Tanger gado a pé, porque os bichos não andam nada.
P1 – O que vocês levavam nos burros?
R – Arroz, algodão.
P1 – Produzia lá em Pedreiras?
R – E babaçu. Era.
P1 – E levavam para lá?
R – Para lá, para Pedreiras. Algodão se vendia, só tinha um motor de tábua que comprava, a fábrica de lã. Muito ruim deles carregarem o algodão. O fardo fica muito grande para se arrumar a carga. Fica ruim, difícil.
P1 – Eu já ouvi muita história de tropeiro. Eles sentam para fazer a comida e ficam contando. Você escutou muita história?
R – Assuntei. Tropeiro é como caminhoneiro. Caminhoneiro, onde ele para, tem que fazer a comida. Às vezes, as coisas, não dá para alcançar o destino, o ponto certo da rancharia, como se diz. Porque o tropeiro chama de rancharia aquele ponto determinado que tem para a gente pôr os animais, para comer à noite. É o ponto de rancharia. E, aí, você vai fazer a janta, e tem um lugarzinho determinado de colocar os animais, para comer. De madrugadinha, passa o café, põe as cangalhas em cima de novo e acelera a carga em cima. E tome pedra!
P1 – O que vocês costumavam comer?
R – Mas era só arroz com carne, misturado, que é o mais rápido que tem. Maria Isabel. Fez ali, cortou a carne, passou na gordura, jogou arroz dentro. Ou frito com farinha, que é mais rápido. Às vezes, é bom.
P1 – O senhor chegou a fazer comida para o pessoal ou só comeu?
R – Não, comia. Eu faço também. Ah, faço na hora. Todo filho criado sem pai não tem moleza para ele, ele tem que fazer a comida, tem que lavar a roupa, se precisar. Não tem mordomia.
P1 – Conta uma viagem boa que você fez, de tropeiro, ou alguma que você passou algum apuro.
R – Passei. Eu transportava. Essa já foi aqui em Açailândia, dali do sertão dos Montes Altos, aqui para Açailândia. Eu trazia 42 animais, eu e outro companheiro. E um determinado animal espantou, não sei o que foi, e voltou no rumo detrás, que ia voando. Eu passei a taca no cavalo para alcançar a “pataia”, para não deixar escapulir no mato, e ele terminou disparando comigo. E, se eu saio da sela, ele tinha me matado, porque minhas pernas daqui para cá ficaram pretas, o sangue ficou pisado. Só aguentei viagem 2 quilômetros, e de lá vim de carro, porque não aguentava mais vir montado. Mas, graças a Deus, não deu para eu cair, escapar da sela, que o meu pé ficou enroscado no estribo da sela.
P1 – O senhor escapou da sela porque o cavalo pisou em cima?
R – Não pisou. Eu escapei da sela, saí da sela, fiquei entre a sela e o cangote dele, e o pé enganchou no estribo. Aí, se eu caio, e a outra perna sai da sela, ele me arrasta. Essa foi para valer, mas também foi só esse o vexame que eu passei de animal. Andando em animal montado foi só esse.
P1 – E você se lembra de uma história que você escutou nessas rodas com os tropeiros mesmo?
R – Tropeiro sempre mente demais, conta muita piada para os outros. Eu nunca fui um desses, não, de contar, não. Eu só ouvia. Mas sempre a gente não recorda mais, já faz muito tempo. Fica um bocado delas que eu não me recordo.
P1 – O senhor gosta de contar história, não de contar mentira, né?
R – Mentira sempre está no meio porque faz o povo sorrir, não é? Piada, vamos supor, dizer versos. A Dona Raimunda mais Marieta gostavam de botar os meninos para cantar cantiga de roda, para eu dizer os versos, os versinhos que eles achavam bom. Diziam que ela cantava: “Cadê o meu anel...” Era bom, engraçado.
P1 – Canta aí para nós, canta!
R – Mas, rapaz... É assim: “Coloquei o meu anel no buraco da parede, quem achou me entregue, meu anel de pedra verde...” Era bom. As meninas achavam bom.
P1 – Foi um tempo de aventuras, hein?
R – É. Naquele tempo que se brincava de roda. Hoje, as crianças não brincam mais. É só festa, querem ir para a balada. Naquele tempo, não tinha isso, tinha que ir brincar. À noite de lua, botava aquelas mocinhas, rapazinhos para dizer verso, brincar de roda, um grande divertimento. É tarde, 11 horas, dez horas, os pais: “Tá bom, vem dormir.”
P2 – Essa cantiga que o senhor cantou foi você que fez?
R – Foi um verso que eu tirei.
P1 – Você se lembra de mais alguma cantiga de roda?
R – Tem um bocado delas, não sei se me recordo. Tem a Ciranda, Cirandinha, que a gente brincava muito. Você também conhece, todos conhecem. A Jardineira.
P1 – Qual é a da jardineira?
R – Essa tinha... Sabiá, tinha Sabiá? “Alevanta sabiá, sabiá, eu não posso alevantar, sabiá, minha perna é muito fina, sabiá, tenho medo de quebrar...” Como é o seu nome?
P1 – Winny.
R – Winny? Aí diz o verso: “Senhora Dona Winny, que entrou na roda agora, diga um verso bem bonito, diga adeus e saia fora.” E pega aquela pessoa, põe na roda e vai. Aí prossegue, né?
P1 – Seu Pedro, depois dessa vida toda de tropeiro, viajou bastante, conheceu bastante, se virou bastante... Como é que foi depois, o que você fez?
R – Depois que eu me casei, eu tomei conta da responsabilidade, que é a velha, que ainda hoje eu vivo com ela, 44 anos. E fui trabalhar de roça. Na mocidade, eu trabalhei de alfaiate uma temporada. E, depois que eu me casei, trabalhei outros tempos e, depois que eu mudei para Açailândia, eu deixei de novo e parti para a roça de novo. Abusei.
P1 – Como foi que o senhor conheceu a sua esposa?
R – Eu a conheci ainda pequeno. Eu sou mais velho que ela dez anos.
P1 – Lá em Oeiras?
R – Aqui no Bom Jardim, na Pará-Maranhão. Eu mudei para lá e fui vendo ela, de pequeno, e ficou bonitinha. E eu achei que dava de casar e casei (risos). Foi desse jeito.
P1 – Mas como o senhor falou com ela, a chamou, falou com a família dela, como é que foi?
R – Falei. O pai dela já tinha morrido também, então era só a mãe. A mãe dela era viva, minha sogra. Eu cheguei lá de leve, falei com ela que queria me casar com ela, que eu também não tinha pai, não tinha mãe mais. E ela também não tinha pai. Dei uma queixada na velha lá, e a velha concordou que sim. Naquele tempo, o povo tinha um negócio de dizer: “Não, o filho de Fulano de Tal é filho de família, é pessoa trabalhadora, vai dar certo.” É certo que ela não se enganou, não. Até hoje estamos juntos, comendo feijão junto. Quarenta e quatro anos são muitos dias, não é? Hoje, dessa turma nova, para chegar onde eu já cheguei junto com a sua mulher, é difícil. Mas tem.
P1 – Quantos filhos, Seu Pedro?
R – Nunca teve. Minha esposa nunca concebeu um filho. Os que eu tenho aí, tudo foi criado, adotado. Adotei quatro. Quatro criei como capão chocador. Tem capão chocador que cria os frangos da galinha, aí eu boto nele lá. Eu sou também, criando filho alheio, né?
P2 – Seu Pedro, como chama sua esposa?
R – Nerci da Conceição Souza.
P1 – E me conta como é que foi que você trabalhou na estrada de ferro. O senhor contou que ficou um tempo trabalhando?
R – Passei uma temporada. Conheço desde aí de Santa Inês, do desmatamento, até sair aqui. Não, praticamente conheço até Carajás, porque já viajei de trem até Parauapebas, que é pertinho. Isso aqui, naquele tempo, ela veio rasgando na Mata Atlântica mesmo. Muito pouco desmatamento aí para o meio. Depois que foram surgindo, beirando ferrovia, essas fazendas e pegaram a terra que era titulada, eles indenizavam e pagavam. Foi bom.
P1 – Era uma mata bonita, Seu Pedro?
R – Mata bonita, mata limpa. Mata seca. Você pegava trecho que não tinha água. Bebia de cipó, de taboca, raiz de umbaúba. E pegamos esse trecho de Buriti, tinha o chapadão da Reta, do João Grande, rasgando até chegar aqui. Não tem água, não.
P1 – Devia ser difícil trabalhar.
R – Difícil trabalhar. Às vezes, eles faziam o tanque de cimento para aparar a água da chuva para beber. Quando dava, eles punham o arroz, a água estava grossa, bebia e não matava a sede, muito ruim. Aí, não sei quem vinha buscar no poço, muito longe, 4 quilômetros, cinco, seis, oito. Onde hoje tem o brejo, nós andamos de carro por dentro, beirando a ferrovia, andar de carro. E hoje é brejo beirando a ferrovia. Essa ponte dá 37 e dá 38 chegando aí no Pequiá. Aqueles dois corregozinhos não tinham, não. O rio era por dentro do “baixão”, de carro. Hoje, está tudo mais fácil. Com o desmatamento, a água sobe, não tem mais mata. Aí, fica água.
P1 – Perigoso isso, né?
R – Muito perigoso. A água é vida, né?
P1 – O senhor trabalhou, fazia o quê?
R – Com roça, plantando, brocava, derrubava. Ia plantar arroz, milho, mandioca.
P1 – Na construção da estrada de ferro, o senhor já fazia outra coisa, né?
R – É.
P1 – Como é que era, montava os trilhos lá na estrada?
R – Montava. Tinham as matas que pegavam os trilhos, para colocar ali, botavam os dormentes. Aí, ia aquele povo para parafusar ali, para apertar. Pesado.
P1 – Era muita gente, Seu Pedro, que trabalhava?
R – Muita gente, muita gente.
P1 – E quem pagava, contratava vocês?
R – Tinham os empreiteiros gerais, que pegavam aquelas firmazinhas. Tinham que ter aquelas firmas para ter que pegar um trecho para trabalhar, botar o peão para trabalhar, assinar carteira do contratado.
P1 – Mas era do governo?
R – Do governo... Não, a Vale do Rio Doce era multinacional, né?
P1 – Seu Pedro, me conta, essas matas que vocês tiveram que ir abrindo para pôr a estrada, tinham muito índio? Como é que era?
R – Não, aqui nessa região não tinha índio.
P1 – Lá em Pedreiras?
R – No Alto Alegre tinha índio, aqui no Maranhão. Tinha não, tem. Tem a aldeia do Guajá e do Guajajara e, lá na Pará-Maranhão, tem o Timbira e tem o índio Urubu. Eu convivi com eles muito tempo.
P1 – Como eles eram, explica para a gente?
R – Eles vivem mesmo só da caça e da pesca, os índios. Pedacinho de roça pequenininho que ele põe. Quebra coco, ia vender lá. Meu irmão tinha um comerciozinho lá. Nesse tempo, eu era solteiro, eu ficava de cinco horas da tarde até as oito da noite pesando babaçu, que eles traziam para vender, para comprar farinha e o arroz, para ele levar para comer. Lá era proibido vender cachaça para eles, não vendia, porque não era na área deles, mas era extremando, né? Então, a gente não vendia cachaça para eles. Mas eles iam comprar em Santa Inês, no Alto do Bode, que era pertinho. Bebiam sempre. Não tinha jeito, o índio gosta muito de cachaça. Mas foi bom.
P1 – Mas ele era muito diferente, como é que foi que você encontrou?
R – Quando eu encontrei eles lá, meu irmão já era acostumado com eles. Aí, até eles acostumarem comigo, foi difícil. Diziam que eu não sabia pesar o coco, não sabia vender nada, que eles me chamavam. Eles, lá na linguagem deles, diziam que eu era “racorero”, que é menos de um olho. “Racorero”, ele diz que é piloto do olho. Diz que eu era “monaro pitaro”, não sabia pesar. Diz que eu era ladrão, não sabia, ia roubar o coco deles. Uma vez, eu fiz, porque a balança era de dois pratos, eu coloquei um pedacinho de borracha para aquele ferro não bater no outro. Batia fofo. Eu tive que tirar, porque ele dizia que era só para roubar. “Racorero monaro pitaro.”
P1 – Eles eram bem desconfiados, hein?
R – Bem desconfiados. Depois que acostumaram comigo, foram me deixar em Santa Inês, comprei cachaça lá para eles, que lá era liberado para vender para eles, eles ficaram chorando lá. Aí, quando eu voltei, pronto. Todo lugar que eles me topam: “Seja bem-vindo.” Chego lá na aldeia, estou em casa. Sou bem recebido na aldeia da Pará-Maranhão, graças a Deus.
P1 – Como chama a aldeia?
R – A aldeia lá fica na beira da Pará-Maranhão, é dos Guajás. Eu não sei... Ah, o Porto dos Índios que chama. Na beira do rio.
P1 – Seu Pedro, o que você achou de como eles vivem, de como eles faziam as festas? Conta um pouco do que você viu.
R – Eles fazem aquelas festas, mangaba, terecô. São muito, acreditam muito nessa parte deles. Tem o curandeiro. Toda aldeia tem um curandeiro que faz o remédio para eles, o “acaroara”, como eles dizem, que é feitiço, eles chamam “acaroara”. Ele vai lá, benze, tira. Eles ficam bons.
P1 – E funcionava?
R – Ih, com certeza.
P1 – Você já viu o curandeiro preparando alguma coisa?
R – Já vi benzendo, dando fumador, é o truque que eles fazem. Não é claro, não. Bota o enfermo lá e fica benzendo, dão aquele cigarro. Só que eles cantam, e a gente não entende. Eles ensinam o idioma deles de um jeito e falam de outro para eles mesmos. Eles são malandros.
P1 – São espertos, né?
R – É, são.
P1 – E as crianças, o que as crianças ficam fazendo?
R – As crianças só brincando mesmo em casa e comendo chibé de farinha.
P1 – Você gostou do jeito que eles vivem? O que você achou?
R – A gente convive lá no meio. Tem que concordar com aquilo que eles são mesmo, né? São selvagens mesmo. Mas lá, até hoje, os índios são educados. Hoje, está tudo civilizado, as casinhas tudo construídas, tem deles formado, modificou demais. Nos anos 60, era demais. Morria muito índio de sarampo, que o que mais mata índio é sarampo, porque não tem dieta. Eles comem de tudo, aí morrem avexados demais.
P1 – O senhor foi lá para trabalhar com babaçu. O que o pessoal faz com o babaçu?
R – Eles fazem o óleo, sabão. Do babaçu, eles aproveitam tudo. E, hoje, principalmente. Até do babaçu pronto já estão fazendo carvão e, da borra, eles fazem a ração. A palha serve para cobrir casa, ou eles vendem na feira para fazer aqueles “cofrinho” para apanhar arroz. Não perde nada do babaçu, né? Da palmeira da onde morre, é o adubo. Aproveita tudo do babaçu.
P1 – Seu Pedro, você estava contando para a gente como foi sua experiência na aldeia, que o senhor trabalhou com o babaçu. Eu queria saber o que eles plantavam nessa roça e o que vocês comiam, preparavam?
R – Os índios mesmos plantam mais. Plantam só mandioca e milho, só mais o que eles plantam. Eles não gostam de mexer com arroz, bem pouquinho. Lá o forte deles mesmo é a farinha. O Raimundo Viana tinha um forno de cobre. Ele mesmo me contou que trouxe a família dele dentro desse forno, dentro do forno, tinha quatro dedos assim. Quatro homens tocando massa nele dá. Muito grande. Naquela época de 60, veio um cabra do Zé Doca para comprar ele. Fez o negócio, 60 contos naquela época, e não era o preço ideal. E o Júlio foi lá, que nesse tempo era o chefe dos índios. E só não prendeu o cara porque ele se humilhou. Porque eles estavam enrolando os índios, eles eram uns inocentes, não sabiam de nada. Perguntou para ele: “Você sabe quanto é um quilo de cobre? Você quer pagar esse forno com 60 contos.” Ele: “Não, esse foi o preço que ele pediu.” “Mas ele não sabe.” É, não sabe o preço de nada. “Você, para comprar um objeto desse aqui, você tem que falar com o chefe. E realmente sou eu que sou o chefe. Ele aqui é o cacique, mas eu sou o chefe deles, que eles não sabem administrar nada.” Uma confusão medonha lá. Mas ele não comprou. Ficou com o forno. Não sei se ainda hoje ainda existe, faz tempo que eu me afastei de lá e passei lá só de passagem mesmo na aldeia, nem desci. Mas uma horinha dessas eu vou lá. Acho que agora em dezembro eu vou lá pessoalmente. No tempo que eu trabalhava no colégio, a mulher, as professoras ali, queriam para nós irmos lá, entrevistar eles lá, que eu era conhecido da aldeia. Eu digo: “Eu vou, se quiser, eu vou qualquer hora. Só arrumar o ônibus que nós vamos na hora.” Mas nunca deu certo, então nunca fomos.
P1 – E, então, quando você saiu de lá, os índios ficaram tristes com você, né?
R – Ficou. Ficaram chorando, que eu era muito bom para eles. E eu disse: “Mas eu tenho que ir embora, vocês que moram aqui, eu não.” Eu estava só passando uns tempos. Ainda hoje, hora por outra que eu vou para Santa Inês, eu vejo eles. É uma palestra amuada. Eles gostaram de mim.
P1 – Ainda hoje, você encontra seus amigos lá?
R – Encontro. Já estão velhos, um bocado já morreu. Mas os mais novos ainda me conhecem. De “racorero” que eles chamam. Era onde eu era “racorero”.
P1 – Seu Pedro, me conta uma coisa: de lá, o senhor veio para cá?
R – De lá, eu vim para Açailândia. De Imperatriz, vim para Açailândia.
P1 – Aí, em Açailândia, o senhor trabalhou na estrada de ferro?
R – Foi. Trabalhei na estrada de ferro.
P1 – E como é que o senhor começou a trabalhar na escola?
R – Na escola, depois que eu vim de lá, dali do centro dos pretos, eu vim de lá e eu vim para cá. Foi antes que terminaram a ferrovia. Todo mundo, aqueles que não quiseram empregar ali nas firmas, na siderúrgica, vieram para a cidade, que nem eu, outro. Em 82, em 80, surgiu a Serra Pelada, e muita gente debandou do emprego aí. Foi o meu caso também, que eu vim por lá. Nunca ganhei dinheiro, mas investi um dinheirinho que eu tinha lá. Nunca recebi nada. Nunca peguei ouro, nem nada. Que a vontade de ganhar tira o medo de perder, com certeza absoluta. Você vai investindo numa coisa, num objeto, pensando que dá certo e às vezes não dá. Você só investe uma coisa no sentido de ter resultado naquilo. E, às vezes, a coisa dá diferente. É o que acontece com muitos garimpeiros. Dá bom para uns, o ouro não é para todos. Que só o barranco do Marlon, um dois por dois, dois assim, dois assim, dois assim, oito metros de enquadro deu 1.800 quilos de ouro, fora o que o povo desviou. Muito ouro, com certeza.
P1 – Conta para a gente de quando o senhor trabalhou em Serra Pelada?
R – Eu trabalhava como britador, o que quebra o curimã, que quebra o cascalho para apurar o ouro. Aqui mesmo tem um rapaz, ele é o Zé Luiz da Ótica Paiva, 50 pás de terra que eu quebrei para ele como britador, eu tirei 37 quilos e 800 gramas, em 50 pás de terra. Para ver como o ouro era bom. Dez saquinhos de cinco pás cada um. E dos que trabalharam com ele, só ele que teve a custa, os outros tudo acabaram com mixaria em cadeira, bebendo. Ele e outro têm, o Zezinho Riograndense. Mas os outros jogaram tudo fora.
P1 – Era muita gente lá?
R – São dez “meia praças” trabalhando, 50% é dos “meia praça” e 50% é de quem fornece. Inclusive, o que dá o almoço, a janta e a merenda. Sai caro, porque garimpeiro...
P1 – Conta para a gente como era um dia de trabalho lá? Você acordava...
R – Não, lá era na produção. Lá, vamos supor, eu. Se eu estou trabalhando de “meia praça” para ganhar aquela porcentagem, eu tenho que dar dez viagens de dez pás, são 40 viagens. Se eu carregar dez pás, uma viagem vale duas. Se eu der 20 viagens até oito horas, dez horas, eu estou liberado.
P1 – Nossa, é um trabalho forte, né?
R – É, trabalho forte. E subindo escada, subindo barranco, foi muito pesado. Para mim mesmo, eu nunca carreguei saco. Só mesmo no trabalho como britador, mudando de terreno para outro. Que eu ganhei mesmo lá foi isso, quebrar minhas veias, tudo quebrada.
P1 – De tanto subir?
R – De tanto subir.
P1 – E eles pagavam direito?
R – Não, porque a gente trabalhava era grelhando a “meia praça”, porque, se desse o ouro, você pensava que saía rico. Não tinha carteira assinada, não tinha nada. “Eu lhe dou almoço e janta, e você dá tantos por cento desse barranco, você vai trabalhar cativo.” Aí, no meu caso, nessa porcentagem, tudo hoje é livre lá. Hoje, não funciona, foi cancelado. Mas ficou livre, porque eu trabalhei e comprei porcentagem também. Livre, para não trabalhar, né? E os anos que eu trabalhei lá foi sustentando minhas porcentagens e passei para outros e a minha parte ficou livre lá. Se tivesse dado ouro, tinha sido bom. Mas não deu.
P1 – E deu para alguém lá?
R – Deu. Eu conheço muitos que pegaram muito ouro lá. Serra Pelada deu muito ouro e tem ainda. Só que o garimpeiro não tem o maquinário para chegar até lá. Falta isso, né?
P1 – Você acha que estraga muito o meio ambiente?
R – Ave Maria! Demais, demais. Onde você mexe com garimpo, ali não presta para mais nada. A água, para você beber, não presta, para o gado beber, não presta. Inclusive, onde mexe com o azul, o mercúrio, mata o peixe, o gado bebe e morre. É assim, fica a água poluída. O garimpeiro é pior do que trator.
P1 – Faz um estrago bem grande, né?
R – Faz um estrago bem grande. Remover aquela terra toda, jogar em outro lugar, apanhar de lá, jogar noutro, e ali vai degradando tudo.
P2 – Seu Pedro, como é que era o processo de pegar o ouro, até ele virar ouro puro? Como que batia o ouro?
R – O processo era o seguinte: você pegava aquele cascalho, quebrava no britador, tinha a máquina, tinha aquele seca poço, você “tarisca” ela. Aí, vai jogando a terra dentro do britador, ele vai quebrando e vai caindo aqui. O ouro tem que ficar agarrado naquela escadinha, que é para o ouro ficar ali. Ali você vai, tira o curimã tudo e vai bater até apurar o ouro e levar até chegar ao ponto de queimar, na cooperativa ou na Caixa Econômica. Nesse tempo, era a Caixa que comprava na Serra. Depois inventaram a cooperativa, só para pegar o dinheiro do abestado. Desse jeito, é difícil.
P1 – É um trabalho forte, né?
R – É, mas é bom, é animado. Trabalhar onde tem ouro é animado demais da conta. O grama de ouro acho que deve estar uns 45 reais. Onde tem ouro, você pega cinco gramas mesmo só bateando na bateia.
P2 – E onde entra o mercúrio? Quando vocês colocavam o mercúrio?
R – Junto com o curimã. Era o ouro fininho, que o grosso não precisa, aquele ouro fino. Você mexia com ele, mas eu mesmo nunca mexi. Eu vi ele lá, aquele lá mexia com azul. Eu mesmo nunca, que era proibido. Lá na Serra era proibido.
P1 – Por que foi que o senhor parou de trabalhar, então? Como é que você decidiu?
R – É porque fechou. O governo não deu mais condição para o garimpeiro, que ele não ia rebaixar, né? Foi massacrando, foi indo, foi indo, até desistir, porque hoje é uma cidade. Serra Pelada é uma cidade, os cabras estão morando lá dentro. Mas a Vale acho que vai negociar, ou negociou, não sei, estão mexendo para ela. Diz que, para indenizar o garimpeiro, eu mesmo não tenho fé. Para mim, não existe, eu não trabalhei lá.
P1 – E depois do garimpo, o pessoal fechou. Aí, como é que você seguiu?
R – Fechou porque os que ficaram lá tornaram a entupir aquela mesma cava, lavando aquele todo com lima velha e jogando para dentro. Se ela fosse funcionar hoje, manual, era pior do que o ano que começou, que, quando começou, o cabra ia lavando tudo e ia pegando ouro. E hoje os que estão ainda lá dentro não têm mais nada, só para jogar lama fora. E garimpeiro não tem como fazer isso, por isso que está parado lá. Mas ouro lá tem muito.
P1 – Seu Pedro, depois que você parou de trabalhar no garimpo, o que o senhor fez aí? Veio para Açailândia, já estava por aqui, né?
R – Já estava por aqui mesmo, morando aqui, fui botando rocinha por aí, trabalhando. E surgiu uma vaga de vigia no colégio. “Ah, estou cansado mesmo, eu vou ficar é por aqui.” Trabalhei uns seis anos de vigia, adoeci, me aposentei, não aguento mais trabalhar. Estou em casa agora, só olhando para a velha, e vontade de trabalhar e não posso.
P1 – Dizem que o pessoal na escola gosta muito do senhor, né?
R – A parte das crianças, os pais de família, os meninos e as professoras, a diretora. Graças a Deus, fui bem aceito.
P1 – Como é que o senhor ganhou tanto carinho assim? É charme?
R – Eu não sei, só mesmo com aquela força de vontade, porque hoje quem está dependendo do salariozinho, ele tem que não esperar os outros fazerem para a gente. A gente mesmo é que se faz. Aí, foi que aconteceu.
P1 – Você fazia muita amizade lá, conversava muito?
R – Fiz muita amizade. A Dona Andrea, a que trabalhou com o projeto da Vale, Escola que Vale, parece. Eu trabalhava lá, eu e Seu Lídio. No dia que era o plantão que Seu Lídio é quem estava, e ela chegava, ela tinha que vir mandar me chamar. Dizia para a Dona Linda, Lindinalva, nesse tempo era a diretora, gente muito boa a baiana: “Não, é para chamar Seu Pedro, para ele ficar aqui, eu quero é ele hoje aqui.” “Não, ele está com sono.” “Não, mas ele tem que vir, depois ele dorme.” (risos) Era desse jeito que ela dizia. Andrea é o nome dela. Nesse tempo, até essa menina estava no projeto. Como é o nome dela?
P1 – Porque o senhor participou de um projeto, não foi?
R – Participei de um projeto, a Escola que Vale.
P1 – Conta para a gente como é que foi? O que o senhor sentiu de contar a sua história?
R – Eu senti bem, porque, quanto mais os dias passavam, mais amizade crescia. O povo acreditava na gente, gostava muito de mim, e as professoras: “Não, Seu Pedro, vamos fazer assim, isso e aquilo.” Foi muito bom.
P1 – O que o senhor contou para as crianças?
R – Eu contei muita historinha para eles.
P1 – Você se lembra de uma para nos contar?
R – Não estou lembrando agora, não me recordo, porque já faz tempo. A gente vai ficando velho, vai perdendo...
P1 – A gente ouviu muito falar que o senhor é um bom contador de histórias.
R – Pois é. Agora falta.
P1 – Se você se lembrar de uma em algum tempo, você conta para a gente.
R – É, deixa eu lembrar que eu conto.
P1 – Seu Pedro, você falou que tem quatro filhos de criação. Como é que você quis pegar os meninos? Como você os conheceu?
R – Eu, toda vida, gostei de criança. De muitos tempos, eu gostei de criança. E me casei. Quando estava com quatro anos: “Essa velha, essa mulher não vai ter filho.” Aí, eu criei a primeira, de uma irmã dela. Começou a andar por cá, eu digo: “Evinha, eu vou ficar com essa menina.” “Tá bom.” Ela era mulher nova também: “Pode ficar aí.” Foi embora, e eu criei. Registrei como filha legítima, eu disse: “Posso registrar?” “Pode.” Registrei como filha legítima. Quando foi em 74, tinha um rapaz que morava em Imperatriz, que, sempre, todos os anos, plantava arroz para mim. A sobrinha dele apareceu gestante, e ele disse que tinha arrumado um criador para o filho, homem ou mulher, menina. E é esse que está morando aqui em frente, é o Francisco. Deu certo, criei. Três dias de nascido, eu fui lá. E foi uma burocracia. Ela disse: “Vou lhe dar o menino, mas se você prometer, porque eu fiz uma promessa com São Francisco, para cortar o cabelo dele com sete anos, e o nome dele é para ser Francisco, e cortar no Canindé.” “Está bom, eu faço.” Aí fiz. Quando cheguei, levei lá para ela ver que estava feito o serviço: “Aqui, cumpri minha missão.” “Está bom, Seu Pedro. Eu acredito que você ia fazer. E fez, está provado.” “Está bom.” Até hoje, ele vai para a casa da mãe dele biológica, mas o forte mesmo dele é aqui com a mãe dele.
P1 – E os outros?
R – Os outros, tem uma morando no Pará, e esse outro que está aqui, e morreu uma. Linda, muito bonita.
P1 – Como ela chamava?
R – Maria. Morreu pequena ainda.
P1 – E eles tiveram filhos e já está com netinhos.
R – A de lá teve quatro, e esse aqui está em véspera de três. Está em véspera de três. E tem outro, esse outro não quer, que é aquele ali. Esse aí não vai casar, porque ele não é certo também.
P1 – E, depois que o senhor trabalhou lá na escola, o que o senhor gostava de fazer no tempo livre?
R – No tempo livre?
P1 – Conversar com os amigos, jogar uma...
R – Era uma bolinha, mais. Só isso mesmo.
P1 – Ficar aqui fora de casa por causa do calor, né?
R – É, está bom.
P1 – Aqui é muito quente, não é, não?
R – Aqui é quente. Já São Paulo é frio. Em São Paulo e Santa Catarina, faz um frio, né? Outra coisa que eu vou lhe dizer, a senhora não pode andar na aldeia, porque parece muito com índio, não parece? Quem aí já viu índio? Coreano parece com índio (risos). Japonês.
P1 – A sua esposa tem o olhinho meio puxado, né?
R – Tem, tem. Tem a garra das paiakans.
P1 – E ela, me conta alguma aventura que vocês tenham passado juntos?
R – A nossa aventura mesmo, o nosso forte mesmo foi só trabalhar, coitada. Ela também foi criada sem pai e estudou pouquinho, não teve oportunidade. Até também porque não deu tempo, porque, com 12 anos, eu tomei conta dela logo. Não deu tempo de estudar. Maranhense é bicho danado, casa cedo. E não teve filho, eu criei os filhos ali e estamos vivendo até hoje assim mesmo, sossegados. Nós não somos ricos, mas dá para viver. Porque somos pobres, mas isso não é defeito, não. Pobre também vive bem.
P1 – Seu Pedro, de quando você chegou em Açailândia para agora, você acha que mudou muito?
R – Mudou demais, evoluiu bastante. Açailândia existia só de lá da Tácito de Caldas para lá. Para cá, não tinha nada, isso tudo era mato. Tem 30 anos, 33, 34 que eu cheguei aqui, que eu estou aqui. Aqui tudo era mato. Não existia, não. Aí, foi crescendo, já existe a Vila Ildemar, que está quase maior que o centro aqui. É quase uma cidade, a Vila Ildemar. É grande, vocês conhecem a Vila Ildemar?
P1 – Maior vila, dizem.
R – Maior vila. Praticamente, eu acho que seja a maior vila do Estado do Maranhão, a Vila Ildemar. Não tem outra.
P1 – E o açaí de Açailândia?
R – É bom. Tem pouco, mas é gostoso. Mas tem ainda.
P1 – Seu Pedro, aqui tem muita siderúrgica, né? O que você acha dessas siderúrgicas que tem aqui?
R – Eu acho uma grande vantagem porque gera o emprego para muitos que estão desempregados. E, aqui, antigamente não existia. Era serraria, foi acabando as matas, acabando as madeiras e foram mudando as serrarias. E já apareceram as siderúrgicas, fazendo emprego para muita gente. Então, o forte daqui é a siderúrgica. Saiu daqui, acabou-se.
P1 – E as carvoarias?
R – As carvoarias também estão ficando difíceis, porque estão acabando com a mata. Tem o eucalipto. Quem planta eucalipto tem como fazer o carvão, emprega muita gente também. Tem uma grande vantagem, porque hoje, sem emprego, não tem como sobreviver. Falta o dinheiro, aí é fraco.
P1 – A gente ouviu falar um pouquinho de uma coisa de trabalho escravo. O senhor já ouviu falar alguma coisa?
R – Existia muito isso aqui. Inclusive o Bradesco, onde hoje é a Ciquel, lá existia muito isso. Botava o povo para trabalhar. Lá era escravo mesmo, que não tinha como sair, não. De pé não dava para vir, não. Para Goianésia, era muito longe, e não eram os patrões, eram aqueles “gatos”, que pegavam as empreitadas e vinham aqui pegar os peões. Às vezes, até matavam para não pagar, para ficar com o dinheiro da empreita, e iam embora. Mas, graças a Deus, isso acabou, lá não existe mais isso.
P1 – Terrível, né?
R – Não existe mais. É muito bom lá agora.
P1 – A gente falou um pouquinho da sua história, desde o começo. O senhor já foi tropeiro, já foi garimpeiro, já trabalhou em tribo indígena, já trabalhou em escola, já contou muita história, já ouviu muitas outras...
R – É, minha vida é um romance.
P1 – E o que o senhor fala da sua vida, tudo isso que você passou?
R – É, apertado, mas, para mim, foi bom, porque ainda estou contando a história até hoje.
P1 – E ainda tem muito para viver, né?
R – Com fé em Jesus Cristo. Nós todos vamos muito longe ainda. Apesar de eu já estar chegando aos 70.
P1 – Você sabe que esse dentinho de onça, ele deve te proteger bastante.
R – Será (risos)? É, vamos ver, né?
P1 – E o que o senhor achou de contar a sua história, relembrar algumas coisas com a gente?
R – Muitos dizem que recordar o passado é sofrer duas vezes, mas, para mim, não. Eu digo que não. Para mim, eu acho, é divertimento, porque estou recordando o que eu já fiz, o que eu já fui, o que eu já passei, eu acho bom. Quando chega a oportunidade, eu não me acanho em contar aquilo que já foi, aquilo que eu passei. É divertido.
P1 – Para a gente, é muito bom, porque a gente vai tentar contar essa história do senhor para outras pessoas ouvirem também, saberem como é que é.
P1 – Seu Pedro, a gente queria agradecer muito essa oportunidade de estar conhecendo o senhor, conversando, conhecendo a sua casa. Hoje de manhã, a gente encontrou sua esposa. Foi um prazer muito grande para a gente.
R – O prazer foi meu.
P1 – Pelo Museu da Pessoa, a gente queria agradecer.
R – Agradeço vocês e esse trabalho de vir conhecer esse velho tão feio que nem eu, de tão longe. Mas, para mim, a palestra está muito boa, muito divertida.
P1 – Muito obrigado.
R – Obrigado a senhora.
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