Correios 350 anos
Depoimento de M. F. S.
Entrevistado por Karen Worcman
São Paulo, 19 de Julho de 2013
Realização Museu da Pessoa
HVC_046
MW Transcrições
R – No Canindé, foi o primeiro marido que eu tive como homem.
P/1 – Mas você estava na rua nessa época ou não?
R – Não, com...Continuar leitura
Correios 350 anos
Depoimento de M. F. S.
Entrevistado por Karen Worcman
São Paulo, 19 de Julho de 2013
Realização Museu da Pessoa
HVC_046
MW Transcrições
R –
No Canindé, foi o primeiro marido que eu tive como homem.
P/1 – Mas você estava na rua nessa época ou não?
R – Não, como eu falei pra senhora, eu já estava de vento em popa, registrada, tenho meus cartões de crédito, graças a Deus, ainda tenho minhas coisas. Então minha vida não era mais... o crime pra mim ficou pra trás, uma vida legal, pra frente. E o W.. Eu tive três parceiros na minha vida. O W. era craqueiro, então eu tinha que comprar crack pra ele, trabalhava, trabalhava, e poxa vida, eu tinha que ir buscar crack pra ele. Não dava e a dona Hilda mesmo dizia pra mim: “Não faça isso”. Só que eu ficava com dó porque lá atrás eu também fui. E eu acabava ficando com dó e comprava crack pra ele. Mas chegou uma hora que eu falei: “Eu não quero mais não, W., você está me chamando de novo pra droga que um dia eu deixei pra trás”. Aí foi onde eu larguei dele, por causa do crack. E agora o mais novo que eu fugi da casa de padim Ciço.
P/1 – E o A. usa crack também ou não?
R – O A.? Personal trainer.
P/1 – Ah? Ah, ele é personal trainer
R – Ele saiu da casa dele pra fugir comigo (risos).
P/1 – Foi paixão mesmo.
R – Ele fugiu da casa dele e deixou tudo, até documento, tudo. Tirou agora no Poupatempo, novo. Deixou tudo e fugiu. E fomos pra debaixo da ponte.
P/1 – E ele te escreve, te visita?
R – Não. Primeiro, eu não sei o endereço dele porque no dia que eu mudei não deu pra tirar porque foi muito rápida a minha prisão, muito rápido. Foi um golpe fatal porque eu tinha ganhado tudo, eu tinha feito tudo, as pessoas da loja. O Brás a senhora conhece. Eu sou muito assim dada, né, então ganhei muitas coisas, até enxoval cheguei a ganhar. Mudamos, arrumei, o Arnaldo ainda estava lá fazendo o bar do seu Fernando e eu arrumando lá. Só que eu não prestava atenção na rua, em nada, só queria sair da rua. “Vem menor, vem ajudar pra pegar as coisas pra poder levar aí nessa casa”. Quando foi no outro dia, que eu fui trabalhar, era noite, foi à noite, deu dez horas da noite e eu: “Caramba, mas o bar foi entregue, o seu F. já tinha pago o A.”, porque estava cobrando os dois mil que estava na rua, então o que é bom, só de hotel foi quase mil reais de hotel porque a gente não queria, a gente quis já trabalhar e sair da rua porque a gente viu que a rua já não dava mais, estava muita crocodilagem na rua. Crocodilagem é traição, a senhora sabe. E a gente acabou dez horas da noite, só que eu não cheguei no bar do seu F. porque tava fechado, nós já tinha entregue o bar pra ele. Aí eu parei, quando eu parei não vi mais nada, só vi coisa preta na minha frente, disse assim: “Você está presa”. Eles ainda entraram dentro de minha casa, eu mostrei pra eles. “Não faça isso, não” “Nós somos obrigados a fazer sim” “Não faço isso, não, cabo” “Você está preso”, de 2012. Eu só baixei a cabeça e falei: “É isso mesmo, eu errei”. Eu vou fazer o quê, é verdade.
P/1 – E o A. nem sabe disso?
R – Não estava, eu não sei. Ou estava alcoolizado e trancado no bar, eu não sei. Só sei que ninguém viu, ninguém viu nada. Só os menores, mas eu falei: “Ô menor, avisa o A. lá que a casa caiu”. Mas eu acho que não foi avisado, não sei dele até hoje.
P/1 – Você está aqui há quanto tempo dessa vez?
R – Eu estou há quatro meses, mas eu estou indo embora.
P/1 – Você vai sair?
R – Eu vou!
P/1 – Quando?
R – Setembro, dia 15 de setembro, eu sou analfabeta, mas eu dou uma gravadinha, está bom? Dia 15 de setembro de 2013. Não, dia 15 do novembro de 2013. Seria um ano e três meses de exame toxicológico.
P/1 – Você está fazendo aqui esse exame?
R – Não. Aqui já não faz mais
P/1 – Você já está?
R – Já já, agora já ganhei. Na verdade a minha cadeia caducou, mas a senhora sabe a Justiça! Então, vou ter que pagar.
P/1 – Aí você vai sair, você sabe o que você vai fazer?
R – Já sei.
P/1 – O que você vai fazer?
R – Vou nos advogados, porque tem umas coisas de serviço pra resolver.
P/1 – Você botou os patrões na perícia?
R – Botei na perícia. Até falei isso pro polícia, eu falei pra ele: “Olha, minha carteira aí, senhor, eu mudei. Eu mudei, não faça isso não. Hoje eu não sou mais a Nega Tchan, eu sou a M., o senhor acha que eu esto achando bom ficar aqui? Eu não estou, mas eu sei o que eu fiz. Eu errei! Eu sei. Era para eu ter saindo do serviço agora, suada, cansada e dando glória a Deus pelo meu salário. O senhor acha que eu gosto de roubar?” Eu não gosto de roubar. Hoje eu não aceito roubar, sabe por que eu não aceito roubar? Porque eu senti na pele que o dinheiro trabalhado é o dinheiro abençoado, e o dinheiro roubado não leva a nada. Hoje eu senti que eu roubei tanto, eu trafiquei tanto, eu nunca tive um cartão. Nunca tive chance de fazer um empréstimo e hoje eu tenho. Então hoje eu dou valor pro emprego, sim, e faço sem fazer cara feia. Porque o emprego, na verdade, minha querida, deixa a gente grande. O crime não, o crime não. Os meus amigos todos morreram, muitos de Aids, muitos de morte, hoje eu só quero viver e eu vou viver. Porque saindo daqui...
P/1 – O que você vai fazer, M.?
R – Primeiramente eu vou atrás dos meus documentos porque se eles me prenderam e eu estou aqui pagando pelos meus erros, eu vou até o fim, eu quero a minha carteira. Eu quero minha carteira, eu quero meu PIS que estava dentro da carteira, eu quero tudo que estava dentro da carteira. Diretora já foi atrás, diretora não achou. E sem a minha carteira eu não... eu já estou me sentindo, sabia que eu estou me sentindo vazia sem a minha carteira?
P/1 – Carteira de trabalho?
R – É, minha carteira de trabalho! Eu sinto falta da minha carteira de trabalho aqui dentro, eu sinto falta. E eu pus na cabeça que eu vou atrás, eu pus na cabeça que eu vou trocar ideia com o delegado como gente, porque eu quero o que é meu. Porque eu estou pagando, já não paguei? Minha carteira não é fria, minha carteira é de verdade. E eu quero buscar o que é meu. E quando eu sair daqui eu estou pronta pra sociedade de novo. Por quê? Porque eu tenho várias agências a meu favor, minha querida, umas agências chiques, patroas de verdade eu tenho. Mas com minha carteira na mão porque sem minha carteira eu não sou ninguém. E vou até a delegacia, vou buscar essa carteira. Eu vou ter meus advogados, eu vou ver como está sendo essa perícia, se eu ganhei ou não. E bola pra frente. E o mundo do crime acabou. Já tinha acabado, agora que piorou. Depois que eu aprendi tudo o que eu vi na rua, acabou. Principalmente o meu marido. Porque na verdade, se eu escutasse um pouco o A. eu não tinha parado aqui, porque eu também já estava muito assim, já estava vendo....na verdade eu gostava que o meu marido, a gente dormindo lá embaixo da ponte, bebendo sua cerveja. Eu gostava que ele tinha dinheiro na carteira dele, então eu roubava pra por na carteira dele. Ele dizia: “Não faz isso não, não vai precisar disso, a gente vai sair daqui” “Não, meu querido, fique em paz”.
P/1 – Você roubava pra dar pra ele?
R – Pra ver ele bem. Porque eu tirei o A. da casa dele, o A. não era um homem de rua, não morava na rua. Na verdade, eu cheguei a prejudicar o A., cara! E eu cheguei a dar o crack pro A. usar. Você acha que isso é legal? Eu não encontrei meu marido daquele jeito (chorando), você acha que eu penso o que quando eu durmo? Eu penso, será que o A.... Eu pus o crack na boca dele. Porque a gente estava na rua e eu falei que estava tudo acabado. Minhas irmãs de criação ficaram com raiva porque independente de qualquer coisa eles me criaram um pouco lá em São Miguel e tudo. Será que eu levei meu marido pra essa droga? Eu me culpo porque ele não era desse jeito. Ele era personal trainer, ele trabalhava, era o tamanho de um homem, um cara bonito, vestido bem, com cavanhaque, sabe assim calvo, fortão, roupa boa, sapato bom, unhas feitas. Eu tirei ele pra debaixo da ponte. Brigou com o vizinho por causa de mim, então às vezes eu me sinto culpada. Eu espero que não, eu espero que aqueles dois pegas que ele deu no crack, que não fez nada com ele, eu só peço a Deus por isso. Se ele arrumou uma pessoa lá fora, se está bem pra ele, que beleza, que Deus abençoa ele porque eu não fui mulher certa, eu fui uma drogada. Ele amou eu, eu sou uma bandida. Porque ele falava mesmo: “Eu arrumei uma mulher bandida, ladrona e traficante”, ele falava desse jeito. Eu digo: “Sou isso mesmo, meu querido, eu não vou mentir, você não casou com uma inocente, eu sou mesmo”. Eu estou falando pra você, eu tenho dez cadeias com essa.
Porque na verdade, onde eu conheci o A., o dia que ele conheceu a minha casa ele falou: “Nossa nega, sua casa é muito bonita”. Eu digo: “Mas a casa não é minha, é de padim Ciço” “Nossa, bonito aqui” “É”. Ele andou, olhou. Eu falei: “E sua casa? Como que é sua casa?”. Ele falou: “Você não vai gostar”. E eu não gostei. Ah, era horrível, era horrível, eu nunca tinha entrado numa casa que nem aquela.
P/1 – Mas por quê? Era suja?
R – Ah, era uma imundície demais, na frente muito carro do dono da casa, muito carro, muita sujeira, do lado era a casa do dono. No que eu olhei assim eu digo: “Nossa, aquele homem com duas crianças, todo aquele monte de coisa, meu Deus do céu!” Fiquei passada de ver, mas fiquei mais passada quando entrei na casa dele.
P/1 – Por quê?
R – Porque eu conheci o A. distinto, pra mim ele não morava naquele lugar nunca! Conheci um cara com dois celulares na mão, um cara cheio do dinheiro! Que quando eu olhei eu falei: “Nossa senhora!” Ele morava num moquifo! Eu falei: “Nossa, A.!” “É, é onde o dinheiro dá, só dá aqui”. Aí esse cara chegou, não ele chegou drogado, porque não vem falar pra mim que ele não estava drogado, que eu fui drogada e eu sei como é já. E aí invocou com o A., e como o A. é grandão, e pra não perder a razão ele teve que se defender e o cara dando. Até ele explicar que focinho de porco não era tomada, aí o que aconteceu? Nós acabamos fugindo, fomos embora. Acabamos fugindo e até hoje, eu estou na cadeia e eu não sei a vida dele lá fora, eu não sei. Só sei que eu estou viva.
P/1 – M., fora o A., o seu padrinho Ciço, essas suas irmãs, esse pessoal. Você se comunica com eles?
R – Olha, eu acho que eles estão com raiva de mim. O meu padinho não, o meu padinho é um velhinho que eu sei que ele entende tudo, mas a J. e a A. não estão muito bem comigo, não.
P/1 – Elas alguma vez te escreveram, te mandaram uma carta?
R – Não, quando eu fui presa, eles vinham ver, não mandavam carta. Eles nunca deixaram de vir, meu padim principalmente, podia estar a chuva que for meu padinho ia. A. ia também, menos J., J. não ia.
P/1 – Essas são suas irmãs?
R – Sim, onde eu fui adotada.
P/1 – Pela H.?
R – Não, a H., depois eu saí da casa da madrinha H.. Aqui é madrinha e aqui é padrinho, então eu pulei da casa da madrinha pra casa do padim Ciço.
P/1 – Mas eles eram casados?
R – Não. Era casa porta a porta. Daí eu mudei de lá pra casa do padim Ciço. E fiquei até minha briga com meu padim Ciço.
P/1 – Quanto tempo você morou com eles?
R – Eu cheguei lá em 2003, fiquei até dois mil e...
P/1 – Então você chegou lá você tinha uns 20 e poucos anos, assim?
R – É. Eu não me lembro do primeiro bolo, mas acho que foi mais ou menos isso, sei lá. Faz muito tempo. E eu acabei ficando, aconteceu e essa é a minha vida.
P/1 – Mas só conta, eles então vinham te visitar no Dacar.
R – Eles vieram me visitar no Dacar, mas depois que eu fiquei com o A...
P/1 – Nem ele?
R – Não, meu padrinho não tem voz, minha querida. Sim, é o dono das casas, só que ele é muito velhinho. Mas tem uma mente muito forte, é só mesmo na idade, mas de mente ele ainda é um senhor bem... E é isso aí
P/1 – Ele sabe que você está aqui?
R – Ele sabe que eu sou ladrona, ele sabe que eu sou traficante. Ele sabe que eu não gosto de ficar sem dinheiro. Sabe. Mas eu não vou procurar sabe por quê? Porque eles não fizeram isso pra mim. Fui eu que fiz.
P/1 – E você nem vai voltar lá?
R – Não. Vou. Vou porque eu tenho meus documentos, tenho meus cartões. Tenho que voltar. Com a cara lavada, mas... Vou respirar. Vou escutar que eu sei, eu sei disso. A palavra que eu vou escutar e vai doer vai ser mal agradecida e eu vou aceitar. Sabe por quê? Porque eu tinha o dever te ter pensado antes de fazer o que eu fiz. Eu não me pensei, eu já me explodo na hora e já quero resolver o que tem que resolver na hora. Mas eu preciso chegar até lá, eu preciso. Porque tem uns papéis do Banco do Brasil, eu tenho minhas coisas pra resolver. Eu preciso só da minha maleta de documento porque aquela maleta ali, aqueles papéis que estão ali. Para eu sair dessa vida maldita, é minha maleta de documentos, aí eu vou até o fim. Encaro mesmo, por causa da maleta encaro. Roupa não, coisas materiais não, mas os meus documentos. Mas se estivesse escutado um pouquinho não estaria aqui, estaria na minha casa. Se eu não tivesse
escutado um pouquinho também não estaria aqui, não estaria embaixo da ponte. Estaria lá quietinha, trabalhando, estava chegando agora, feijãozinho gostoso que a minha
irmã faz, arrozinho da hora. Eu acho é bom, bem feito. Porque minha família não me chama pelo apelido. Minha família põe o apelido, mas não aceita, já reparou isso? (risos).
P/1 – Eles te chamam como?
R – M.. “M., pensa bem, M.”. Cabeça dura. E agora a senhora acha que eu vou voltar atrás e escrever pro padim Ciço? Eu vou ser muita cara de pau em fazer isso. Não, não, não, não, nunca que precisou, que é muito cara de pau falar: “Padinho, corre, me socorre!”. Ele levantava quatro horas da manhã pra vir pro fórum da Barra Funda, era três horas da manhã e o velhinho tava de pé. Durante toda a minha cadeia ele me ajudou a pagar a cadeia, pra hoje de novo? Não. Hoje de novo, não. Eu vou até o fim. Daqui a pouco está acabando e eu vou. E tem outra, todas as outras cadeias eu nunca tive visita. É! O padim Ciço, depois começou o padim Ciço que me visitou no Dacar, mas eu nunca tive visita. Cartas, tenho cartas de algumas amigas que hoje já não recebo mais.
P/1 – Quem são as amigas que te escreviam cartas?
R – São meninas que eu ajudo.
P/1 – Quem são elas?
R – São meninas de rua que estão presas e que eu ajudo. A senhora chega dentro de um... aqui já não, aqui é diferente, por isso que eu pedi meu bonde até o fim pra vir pra cá. Então vamos esquecer a pé e vamos catar o lixo. Então a senhora chega sem calcinha, você chega sem nada e aí eu estava de prontidão pra te ajudar. Chega uma doente, uma enferma e eu estou ali pra ajudar a limpar. Essas são as amigas que eu arrumo na cadeia. Eu sou o que eu sou na rua, eu sou M. F., meu coração é brando, não posso mudar em nada. Então é onde que a gente faz aquela amizade e acaba sendo amiga pro resto da vida como essa que me escreve agora, escrevia, mas porque eu mandei uma carta bem malcriada a ela.
P/1 – Mas por quê? Ela te escrevia o quê?
R – Por quê? Porque quando ela chegou, ela é muito bonita, branca, muito bonita, nunca tirou uma cadeia. E ela foi muito humilhada. Lá existe Cadeia do 15, por isso que eu falo, o meu negócio é o sistema.
P/1 – Você está falando do Dacar?
R – Não, do Franco da Rocha. Lá é a Cadeia do 15.
P/1 – O que é Cadeia do 15?
R – Cadeia do 15 é, senhora, eu não posso te xingar, eu não posso te maltratar, eu não posso fazer isso.
P/1 – Por quê?
R – Porque é inadmissível, não pode te ofender, não pode, lá nessa cadeia a senhora não pode.
P/1 – Mas por que é chamada 15?
R – Porque se a senhora arrancar sangue não pode.
P/1 – O que te acontece? Você morre?
R – Pega o 15 (risos). O 15 é um couro que você toma se você estiver errada. Vamos supor, a senhora errou, eu não posso errar no seu erro, então você pode vir em cima de mim que eu vou ficar parada porque pra mim não vai sobrar, vai sobrar pra você porque você está mentindo. Então são pessoas que chegam lá em não têm nada, não tem roupa pra vestir, não tem um Prestobarba porque a cadeia é humilhação, não o sistema. Cadeia! Franco do Osso, que eu odeio aquela cadeia! Ali é humilhação total. Então, eu enfrento bandida mesmo por causa das humildes, não estou nem aí. Pode ser a pior bandida, se eu achar que está catando uma humilde eu não quero saber, até aqui dentro mesmo, se eu achar que ela não tem que por a mão na senhora, não vai por a mão, que eu não aceito, eu já apanhei muito. Já apanhei também por coisas que eu não cometi, já fui julgada por coisas que eu não fiz. Então hoje eu não aceito. Porque eu sou Nega Tchan, mãe de rua, então eu limpo, chega doente que rouba por causa de um xampu, vai pra cadeia louca, eu vou, eu limpo, eu dou banho, eu depilo, eu ensino a se limpar. É onde que elas me fazem de amiga, e a gente acaba tendo uma amizade, e é onde acaba ajudando a outra, ontem tem os contatos, escrevemos, nós conversamos sobre os bafões que estão acontecendo, hoje mesmo vou escrever que comprei uma televisão porque a diretora dá espaço pra gente, graças a Deus, comprar a nossa televisãozinha. Não é ruim aqui, não é ruim. Às vezes, nós somos malcriadas, somos, mas é a cadeia melhor de se tirar, é o sistema, chama PFC, e aqui é meu sistema de origem. Muitas senhoras aí que eu conheço há muitos anos, tem até colega que eu falo assim: “Acho que a senhora já está com cem anos” (risos). Ela falou: “Ai, M., você não mudou nada” “Fica quieta, não fala nada” (risos). E é isso aí. Aí eu escrevo, hoje eu estou olhando um pouco pra televisão: “Ai nega você não sabe o que a tia comprou. Olha, eu comprei uma televisão. Uhu, hein? Ela é a prazo, mas, risos”. A gente manda”. Aí assim. “Ai!”, porque quando a gente compra tênis, compra essas coisas que a diretora dá esses espaços, não quero por a PFC lá no luxo não, mas a PFC é a PFC e independe de qualquer participação maltratar elas. Porque preso é neurótico, agora a polícia também é mais neurótica ainda, mas é muito bom. Se tiver doente leva. Tem carro pra socorrer a gente, lá não tem carro pra socorrer. O limpei o vômito de um HIV morrendo no pátio e gritando: “Polícia, polícia, polícia! A mulher está morrendo”, e os policiais nada. Morreu. E aqui já não, aqui já não. Mesmo se o carro não atravessa até lá, mas elas tiram a gente. Acode. Abre as portas, manda a gente ajudar as barrigudas porque aqui tem um monte de barriguda. O sistema aqui tem isso, essa irmandade, sim. Tem. A gente também é um pouco ignorante, elas não têm culpa. Ninguém tem culpa de nada. Maltratar as pessoas, nós somos erradas porque ninguém escolhe a nossa vida (choro), não era para eu estar aqui. Elas não têm culpa. Quando me chamaram lá eu fiquei nervosa, pra senhora ver. “Ai, eu não vou”.
P/1 – Passou?
R – Passou! (risos). Passou. Elas não têm culpa, né? Só que ela não escreve mais pra mim.
P/1 – Por que ela não escreve mais, o que aconteceu?
R – Porque ela falou que agora ela virou uma família.
P/1 – Ela virou uma família?
R – É, agora ela é uma família.
P/1 – Ela arrumou alguém?
R – Eu falei: “Depois de tudo, Bia?”. É. Depois de tudo, uma família agora, que Deus te abençoe, porque depois de tudo o que fizeram pra você aí dentro, é família. Beleza! Então eu acho que por isso que eu, uma dessas respostas já que ela arrumou família, porque foi que pisou muito nela, maltratou, uma menininha, que não sabia, as coisinhas, bonitinhas, no corpo de uma mulher. E riram dela porque eu perguntei. Quando chegou o bonde eu perguntei: “Quem é do Brás?”, ela gritou: “Sou eu!”, eu digo: “Ôpa! Uma família do Brás, manda no G7! Pode pôr água no feijão que chegou mais um”. Mentira que não tem comida lá cozida, que o mundo é moderno. E ela foi parar no G7. Conversando com ela, bonita ela, simpática mesmo, eu não tinha visto ela na cidade ainda não, viu? Quando eu for embora eu vou até perguntar de onde saiu ela na cidade, nunca tinha visto ela lá, não. Ela entrou, tudo, eu falei: “Oi, tudo bem?”. Conversando, conversando. “De onde tu é?”, eu digo: “Sou do Brás”. Aí começou a falar do rapaz que me deu a casinha, mas eu conheço. Como era uma pessoa recatada, não era de rua, você vê que não era de rua, aí chegou daquela forma, só Deus misericórdia! E ela foi tomar seu bom banho e algumas pessoas viram, foi onde ela saiu chorando. Eu tava deitada, ela saiu chorando porque só no chão é 30. Só no chão pra dormir é 30, não vou enganar a senhora. Chorando, quietinha. “Por que você está chorando?” “Acabaram comigo” “Por que acabaram com você?” “Assim, assim e assim” “Ah”, já me virei no saco porque eu sou ignorante muito porque não acho que é rainha da cocada porque se meteu comigo. Com minha lixa eu metia a mão junto comigo, por que agora? Não. A humildade é carregada sempre. Aí onde encrencou todo mundo, me chamam pra briga mesmo, não gostei mesmo. Porque uma chega lá, sim senhora, ferrada, mal paga, sem onde cair morta, uma ali dá uma roupa, outra ali dá uma roupa, uma ajuda, uma dá um sabonete. Precisa ensinar. Porque eu fui ensinar. O gênio que eu carrego, independente de qualquer coisa eu fui ensinar. Aí eu fui lá, muitas tinham vergonha. Eu falei pra ela: “Eu sou casada, não fico” “Mas como é que é? Como funciona?”, eu digo: “Ó, aqui é sistema, é assim, assim e assim, você tem que ir lá. E como ela vem de uma família que não faz sua higiene embaixo, acharam mortal aquilo. E onde ela falou: “Mas, Tchan, minha mãe e meu marido não ligam”, eu digo: “Mas está na cadeia. O seu marido não liga, a sua família, na cadeia higiene é fundamental” “Mas eu não sei” “Você sabe sim. Porque você vai aprender agora, minha querida”. Fui, arrumei um Prestobarba, digo: “Venha aqui comigo”. E ela naquela vergonha dela, eu digo: “Não fica com vergonha, eu sou mulher que nem você”. Aí ensinei. Comecei a depilar. Ela: “É assim? Mas está coçando”, eu digo: “É. Porque é a primeira, você nunca fez isso, já?” “Não”, eu digo: “Então é assim, minha filha”
P/1 – Mas tem que depilar tudo?
R – Ah, tem que fazer uma higiene, umas coisas do corpo. Porque é cadeia! Muitas pessoas chegam com o cabelo duro, só porque esticam. Outra chega com o cabelo duro, que aí não ri não, porque eu sou humildade. Porque eu achei na rua. Tem uma lá que hoje ela não é mais minha amiga, pra mim ela não fede e não cheira. Mas encontrei ela ferrada no distrito, jogada no chão! E hoje por causa de um jumbo ela está achando que ela é maioral? E é onde criou os argumentos e confusão por causa disso. Porque a humildade carrega em qualquer lugar. E é isso aí, quer mais alguma coisa? (risos). Ah, é isso porque é muita história. E pode ter certeza, são todas verdadeiras, viu? Mais longo um pouquinho do que a minha prima, o patamar da minha prima, a minha é mais alta.
P/1 – Você fala com a E.?
R – Com a E.? Ah, eu vi uma vez só na Brasilândia, a E.. A tia R. até morreu depois que a E. foi. Porque a tia R. antes de morrer falou assim: “Você viu o que a E. fez, chuquinha?”. Tava saindo de dentro do mercado, do açougue, eu falei: “Não, tinha R.” “Você viu a E. na televisão, o que ela falou?”. Eu falei: “É, tia R., pra você ver”. E foi a última vez que eu vi a E., nunca mais. Deus abençoe ela porque ela usou a cabeça. A E. saiu da favela porque ela usou a cabeça, independente de qualquer coisa, ela foi guerreira, foi guerreira mesmo. Porque nós fomos naquela Praça da Sé, só na nossa vida, é guerreira e ela deu valor, enquanto eu nunca dei valor pra nada, tudo é banal.
P/1 – Mas ainda é ou quando você sair...
R – Acabou. Você vê como foi pra senhora, eu te dou a entrevista, mas meu rosto não. Isso aqui a sociedade precisa ver ainda, eu se fosse pra vencer na vida. E quando chega na minha idade, eu tenho pra terminar porque eu pago meu INSS. Sou guerreira e vou vencer. Pra quando chegar na minha idade eu tenho o meu caixão, vou pagar até no fim. Mundo do crime? Como eu disse, eu não gosto de ficar aqui. A senhora acha? Eu não gosto, não é bom. É ruim. A gente está fechada em quatro paredes, mas aqui dentro também existe família. Eu vou logo dizer porque eu sou original, desde as guarda-presa, não tenho nada com nenhuma delas, respeito elas como elas me respeitam. Às vezes sou malcriada, quando eu estou assim, às vezes eu sou um pouco malcriada, sabe? Mas eu tento me conter pra não ofender, pra não prejudicar porque a senhora sabe que tem castigo. (risos). É, aqui tem castigo, então tem que se conter. É brigando com a guarda e ao mesmo tempo não brigando com a guarda. Porque eu brigo com ela e ao mesmo tempo já abraço e beijo pra ficar bonitinho (risos). Porque castigo ninguém merece. Porque tem outra, elas não têm culpa, gente, as guardas não têm culpa. Se hoje eu tenho um tênis pra por no pé quando tiver frio eu falo na cara de qualquer presa: “Foram as guardas que me deram”. Se hoje eu tenho um chinelo pra por no pé, foram elas que me deram, foi a casa que me pagou. Porque todo dia, dia de neurose ninguém aguenta. Por isso que eu falo, eu gosto de todas as guardas mesmo, às vezes eu sou malcriada mesmo, elas: “Olha, M.”, eu digo: “Espera um pouco, cinco minutos porque vai passar”. E assim vai acabando a minha cadeia assim, e aí eu vou tirando. Não tenho perda de regalia nenhuma, principalmente com as guardas. Eu cato as presas, mas eu não cato as guardas. Mas é verdade! Eu cato a presa. Por que eu vou catar a guarda? Eu ajudo elas, se for na minha portinha sabe que eu ajudo. Já as guardas já não, com as guardas eu tenho que ser mais amiga delas ainda porque é com elas que eu vou pegar essa porta, vou embora daqui pra nunca mais voltar. E vou sentar de novo na mesa da diretora e ganhar meu parabéns. Porque eu saí daqui sem perder uma regalia. Minha pasta está lá. Sabe por que eu esto aqui? Porque eu fui uma boa educanda. Triste, sapeca? Sim. Mas eu fui uma boa educanda e estou sendo até hoje porque eu voltei pra trás. Estou de volta aqui. Mas daqui pra frente acabou, mudou, eu não quero mais saber. Eu já não queria mais mesmo, o crime eu não quero mais, acabou. E aí é disciplina nossa, assim, se eu fico nervosa já dei um sorrisinho, já tem que amolecer o coração da disciplina (risos). Muito gente boa também, outra pessoa que nunca tinha conhecido essa disciplina nova com essa senhora agora, eu estou vendo ela aqui, porque na minha época elas não estavam aqui, são umas pessoas muito maravilhosas, todas elas são. Tem umas que não gostam que vê que eu falo, então eu logo falo: “Então lincha porque não posso fazer nada”. Oh tchuca, ah está, já foi. Que horror, já foi! Eita bagaceira, agora já deu, agora já foi. Deixa por negativo que elas já vão saber que sou eu que estou, sou a Nega Tchan.
P/1 – Seu nome todo mundo te conhece por Nega Tchan?
R – É. Porque antes de sair o novo grupo do Tchan, eu fui a Tchan, não tinha o Tchan, eu fui a Tchan primeiro do grupo do Tchan. Eu acho que caçaram, viram na República e fizeram um grupo Segura o Tchan, mas a primeira Nega Tchan sou eu, antes do grupo, tá? (risos) Porque eu fui batizada na rua como Nega Tchan, e até hoje ficou.
P/1 – E esse é o nome que você...
R – Que minha mãe de rua me batizou na rua, como Nega Tchan. Porque eu sou Tchan também, eu ando muito bem vestida na rua. É. Quando eu me boto com meus cabelos, minha querida, só Deus segura (risos). É, depois está que nem madame. Verdade. Eu durmo na rua. Nunca que precisou, quando a senhora vê, eu levantando do chão a senhora não acredita que sou eu levantando do chão, ninguém acredita. Daquele papelão sou eu? Nunca precisou. Lógico que, quatro horas da manhã eu estou tomando banho dentro do bar, levo minhas higienes, tomo meu banho de água lá, tchaaa, já lavo minhas roupas tudo lá, guardo na rua. Ando muito bem vestida e muito bem cheirosa. Por isso que eu me chamo Nega Tchan, pelo modo de me vestir, porque eu nunca andei que nem maloqueira. Pra ser menina de rua, eu vejo hoje naquela cracolândia, eu fundei aquela cracolândia com crack. Hoje eu olho aquela cracolândia e digo: “Meu Deus”. Eu olho aqueles moleques, eu olho tudo aquilo, porque aquilo ali foi minha vida, ali foi a minha vida, aquela cracolândia. Tudo sujo, tudo cheio de saco que eu olho assim. Porque quando eu era de lá, eu sempre fui, eu digo, nunca andei daquele jeito, nunca que precisou, nem hoje que eu moro na rua nunca precisou. Eu cuido das minhas calcinhas pra todo mundo ver, debaixo do viaduto, lá no Brás (risos). Eu não estou nem aí, canto e durmo, penduro e tudo. Depois chegam os polícias e mandam eu tirar, eu digo: “Senhor”. Até os rapa. O rapa é as pessoas, que rapa vai jogar fora. Eles não tiram, eles veem que está tudo limpinho, acho que eles têm dó e não retira, né? Só pedem: “Por favor”, eu digo: “Está quase secando” (risos). Aí os polícia fala: “Ai neguinha”. Eu digo: “Está quase secando, o senhor espera um pouquinho”. Então aquela cracolândia foi a minha vida também ali, ali dentro. Eu vi muita coisa feia ali dentro. Muita. Eu usando crack em cima de morto. Eu usando crack em cima de pessoas esquartejadas. Pra senhora ver como eu era tão criminosa. Antigamente não tinha medo de nada. Esse agora, esse buraco que descobriram agora na cidade, eu dormia dentro daquele buraco, 40 e poucos corpos de crianças e adultos que acharam. Minha família me via ali dentro daquele buraco. A senhora vê que eu tenho um livramento muito grande, que Deus me livre, muito grande mesmo. Então hoje eu estou aqui, dando minha entrevista. E é só isso, posso cair fora?
P/1 – Pode
R – Amém!Recolher