Projeto Heranças e Lembranças
Depoimento de Jacques Nirenberg
Entrevistado por Diane e Denise
Rio de Janeiro, 27/04/1988
Entrevista número: HL_HV019
Realização: Museu da Pessoa
Revisado por Luiza Gallo Favareto
R- Bom, o que gostaria de saber em primeiro lugar, quais os pontos de interesse para essa entrevista. Para que eu posso abordá-los. Porque contar minha vida não tem nada especial. O que é interessante é falar sobre que assunto, que parte? Quer que fale sobre a parte de trabalho, quer que fale sobre a parte da minha de professor ou de médico ou de músico ou como filho, enfim, o que eu falaria?
P/1 - A sua parte de músico judeu nos interessa profundamente. Agora, o que nos interessa, dentro do projeto específico, são as suas lembranças. O que o senhor sabe de sua família vivendo lá fora, a emigração para o Brasil, a família grande que morreu no campo de concentração. A gente começaria pelos antepassados até chegar ao senhor vivendo aqui. Como despertou para a música. Tem essa parede maravilhosa, esses instrumentos únicos.
R - É. É verdade. Então eu diria o seguinte: como todos os emigrantes, na época, na década antes dos anos vinte, acontecia que as perseguições, o desconforto político, as perseguições por programas e os problemas econômicos, fizeram com que as pessoas procurassem outras paragens. E procurassem um lugar para que melhor pudessem viver. Os meus tios já viviam aqui no Brasil. E outro tio, irmão da minha mãe, vivia na Argentina. Família...
P/1 - Viveram no Brasil em que ano?
R - Devem ter vindo… Os meus tios devem ter vindo em mil e novecentos… Antes da guerra, antes da Primeira Guerra. Estou falando da Primeira Guerra. E meu pai veio logo depois da Primeira Guerra, de modo que cada um procurava o meio de fugir daquele desconforto que existia na Polônia, principalmente. Rússia também. Quase toda a Europa Oriental. Menos a Alemanha, que era o paraíso, né. Mas aconteceu que depois meu pai...
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Depoimento de Jacques Nirenberg
Entrevistado por Diane e Denise
Rio de Janeiro, 27/04/1988
Entrevista número: HL_HV019
Realização: Museu da Pessoa
Revisado por Luiza Gallo Favareto
R- Bom, o que gostaria de saber em primeiro lugar, quais os pontos de interesse para essa entrevista. Para que eu posso abordá-los. Porque contar minha vida não tem nada especial. O que é interessante é falar sobre que assunto, que parte? Quer que fale sobre a parte de trabalho, quer que fale sobre a parte da minha de professor ou de médico ou de músico ou como filho, enfim, o que eu falaria?
P/1 - A sua parte de músico judeu nos interessa profundamente. Agora, o que nos interessa, dentro do projeto específico, são as suas lembranças. O que o senhor sabe de sua família vivendo lá fora, a emigração para o Brasil, a família grande que morreu no campo de concentração. A gente começaria pelos antepassados até chegar ao senhor vivendo aqui. Como despertou para a música. Tem essa parede maravilhosa, esses instrumentos únicos.
R - É. É verdade. Então eu diria o seguinte: como todos os emigrantes, na época, na década antes dos anos vinte, acontecia que as perseguições, o desconforto político, as perseguições por programas e os problemas econômicos, fizeram com que as pessoas procurassem outras paragens. E procurassem um lugar para que melhor pudessem viver. Os meus tios já viviam aqui no Brasil. E outro tio, irmão da minha mãe, vivia na Argentina. Família...
P/1 - Viveram no Brasil em que ano?
R - Devem ter vindo… Os meus tios devem ter vindo em mil e novecentos… Antes da guerra, antes da Primeira Guerra. Estou falando da Primeira Guerra. E meu pai veio logo depois da Primeira Guerra, de modo que cada um procurava o meio de fugir daquele desconforto que existia na Polônia, principalmente. Rússia também. Quase toda a Europa Oriental. Menos a Alemanha, que era o paraíso, né. Mas aconteceu que depois meu pai procurou, como a irmã dele estava aqui no Brasil, ele aceitou a chamada de vir para o Brasil. E aqui, ele era um homem religioso, não ortodoxo, como dizem alguns que ele o fosse. Porque ele era uma pessoa que sempre dizia: "Isso ortodoxo não diz". Meu pai sempre costumava dizer que o que é do homem é para o homem; o que é de Deus é para Deus. Quer dizer, quando você tiver algo a fazer e se coincidir com um dia que a religião não permite você que você o faça, mas você tem que fazê-la como homem, faça- o. Isso ele sempre dizia. E isso pra mim calou profundamente. Porque eu que vinha de uma família tradicionalmente religiosa, não ortodoxa, ao meu ver não é ortodoxa, como eu vejo, como nós ficamos, às vezes, revoltados com determinadas situações de fato, de obrigatoriedade, coisa que não acontecia em casa. O meu pai, por exemplo, quando eu tinha uma prova e coincidia com Yom Kipur, meu pai dizia: "Bom, isso é impossível ser feito no Yom Kipur". Disse: "Papai, se eu não fizer essa prova, vou perder o ano". Ele tentou, minha mãe tentou, foram falar com a direção pra desfazer essa prova. Porque antigamente não existia esse negócio de que o judeu tem dia que não pode fazer prova. Como Shabbat. Isso aqui não existia. Você faltava direto pra ir a sinagoga e acabou-se. Mas coincidiu, eu tinha que fazer uma prova. Ele disse: "bom, se eu não conseguir nada, eu acho que você deve fazer a prova. Isso é um problema da pessoa, do homem. Não estamos num (gallut?) e isso aqui tem que ser resolvido. Isso aqui me calou fundo. Porque eu era criança ainda, era primeiro ou segundo ano de ginásio, quer dizer, um garoto de onze, doze anos, e aquilo eu achei que era uma coisa muito séria. E aquilo ficou assim na cabeça. Mas meu pai permitiria que eu fizesse no Yom Kipur uma prova? Depois que vi isso representa uma sabedoria, que hoje poucos entenderiam que é. Mas para mim, naquela época, que fui criado assim naquela religião, assim pouco, vamos dizer… Não digo assim obrigatória, mas quase que… A religião, tradição forte, pra mim era muito importante. Bom… (interrupção) Nós, como todo judeu, morávamos na Praça XI. A Praça XI era o lugar, era o repositório de todos os judeus, não só emigrantes, mas todos os judeu que faziam da religião a sua fonte de ligação com todo o povo judeu. Lá nós morávamos. Lá onde eu nasci, onde me criei até uma determinada idade. E tenho umas lembranças muito agradáveis. Onde nós rezávamos, no que chamamos (smitibele?), ou diria em hebraico (chedder?). Mas era um sobrado de uma pessoa mais religiosa que cedia sua sala para fins que fosse usada para suas preces. E diariamente lá, de manhã, se reuniram judeus mais religiosos que faziam...
P/1 - Tinha o Minian todos os dias de manhã?
R - Sempre. Ah, mas… Na Praça XI, não era uma só. Tinha várias. Tinha vários lugares onde nós nos reuníamos. E, logicamente, como eu tinha aula diariamente, só podia ir aos sábados e dia de festas.
A minha mãe seguia a religião. Embora não usasse mais aquela… Que ela dizia que usava na Polônia, o (sheik?), não sei como se chama aquilo lá, seria uma peruca, né. Mas não usava peruca. Mamãe usava isso? Antigamente usava porque...
P/1 - Raspava a cabeça.
R - Deve ter sido. Aqui não raspava mais. Eu não tenho lembrança disso. Pra dizer francamente, não tenho lembrança disso. Ou porque minha mãe usava já ao acordar e eu nunca tenha visto isso. E aqui eu nunca vi coisa nenhuma nesse sentido da minha mãe. Nada, nada. A não ser a lembrança e às vezes os comentários que a peruca ficava melhor, que não sei o quê. Então ouvia, as vezes perguntava: "Mas por que peruca?" Porque se usava, era normal, as senhoras que casavam, raspavam a cabeça, usavam. E minha mãe seguia. Fazia kosher. Comprava sempre carne especial, a nossa comida havia separação entre derivados de laticínios, derivados de carne. Isso nós usávamos. Isso era natural pra nós. Não havia como. Tenho a lembrança de que no dia que eu usasse uma faca, por acaso, por engano, com carne ou de queijo para a carne, eu tinha que mergulhar a faca dentro da terra não sei quanto dias. São coisas interessantíssimas. Isso ficou pra mim. Isso até a idade de quinze, dezesseis anos, eu tenho lembrança disso perfeitamente. Eu perdi meu pai aos dezessete anos. Mas não era assim; faça isso que é obrigatório. Não. Ele disse: "Olha, quando você faz isso, precisa usar a terra como purificação". Eu nunca perguntei ao rabino um dito, se isso é verdadeiro, se isso é somente uma razão para nos deixar assim com aquele sentido da religião. Eu verdadeiramente não perguntei nem ao Graetz. Tenho vontade de perguntar isso, falar com ele um dia sobre isso. Outras coisas que eu tenho lembrança, a questão da Praça XI, onde eu, pela primeira vez ouvi "gringo", a palavra "gringo". Eu ouvi dizer que as pessoas deixavam os lugares de nascimento porque eram perseguido, e um dia eu fui chamado de gringo, na Praça XI. Aquilo me doeu profundamente. Porque eu sabia que era uma ofensa grave. Eu então procurei, cheguei em casa, não sei se chorando em prantos não, mas me lembro que bastante magoado, e disse ao meu pai: "olha, me chamaram de gringo. Um condutor de bonde aí, à toa". Aí me explicaram que nós temos que levar essas coisas porque nós somos judeus e estamos sempre habituados a ouvirmos essas coisas. Mas aquilo eu não aceitei.
P/1 - Mas qual foi a ocasião? O que aconteceu?
R - Nada. Eu ia pegar o bonde, o condutor saltou do bonde, esbarrou em mim, olhou pra mim e chamou: "ô, seu gringo!" E aquilo eu não compreendia. Era criança, não compreendia o que era gringo. Por que gringo? Então, depois disso, eu resolvi reagir. Então a primeira vez que eu tive com esse condutor, não disse nada. Outra vez, eu tive um caso assim com um menino muito maior do que eu. E estava na escola primária ainda, eu fui chamado, não sei se de judeu, matou Cristo, uma dessas coisas assim. Eu reagi, pra brigar com ele. Quer dizer, daí para diante foi se formando em mim uma consciência judaica, que além da religiosa, formou-se em mim a consciência judaica.
Eu fui chamado de judeu. Coisa que jamais ocorreria, porque, eu vou dizer uma coisa, na Praça XI era tão normal o rítmo que nós tínhamos, no judaísmo, que ser chamado de judeu seria muito natural, se fosse entre nós. Mas eu fui chamado por pessoas estranhas ao nosso ambiente completamente. Tanto o garoto que me chamou de judeu, me chamou de gringo e que eu não aceitei. E daí eu comecei a formar essa consciência. Conversando e ouvindo, e já crescendo, me formando um pouco revoltado com essa situação.
P/1 - Agora, como que esse menino sabia que o senhor era judeu? O senhor usava quipá?
R - Não. Eu não usava quipá, mas eu tenho a impressão que ele chamou porque ouviu, ou porque a professora tivesse comentado ou tivesse falado. Eu tenho uma vaga ideia que a professora, não sei se era judia também, então ela dizia que os israelitas, que são os judeus, chamam isso assim, assim. Isso eu tenho uma vaga ideia. Era uma professora que… Ela dizia várias coisas. Em inglês e assim... Os israelitas, que são nossos vizinhos aqui na Praça XI, dizem isso assim. Eu tenho a impressão que esse menino, não sei se era filho de italianos ou de espanhóis… E aconteceu isso. Mas enfim, isso são coisas que me acostumei a ouvir o tempo todo. Isso era muito normal, depois. Como era também a malhação de Judas. Meu pai usava uma barba. E quando… Ele costumava andar na Praça XI, saía da sinagoga. Tudo a pé. Não se pegava condução, porque era pertinho.
P/1 - Ele usava barba. Usava roupa…?
R - Não, não usava. Isso ele não usava. Pelo menos desde que eu me lembre, não. As fotografias mostram a barba comprida e o caftan, que chama né, caftan. Isso ele usava. Mas não são fotografias daqui, são fotografias antigas, dele jovem ainda. E mostra essa roupa toda paramentada de homem religioso.
P/1 - A barba era uma barba grande?
R - Era grande.
P/1 - Chegava até onde? Até o peito?
R - Até o peito. Até o peito, sim.
P/1 - Era respeitável (risos).
R - É, barba respeitável. Que depois foi caindo, decrescendo, decrescendo, decrescendo, já no fim dos últimos anos era um simples cavanhaque. Deixou de ser a barba longa e passou a ser cavanhaque. Cavanhaque bonito, bem aparado.
P/1 - Já era aparado, né?
R - É, bem. Bem. Não, depois já deixou... Não era… Já usava, aparava, normalmente. Não tinha mais essa… Como direi, o que os religiosos usam muito, né, não cortar, não fazer. Não. Isso não. Mas foi nos últimos anos já. Com relação a minha escola. Eu falei da escola com problemas de prova. Depois, o diretor, que era um nazista… O meu diretor era um nazista. Não fui pra escola iídiche porque a escola íidiche era muito cara. E o lógico era procurar sempre a possibilidade de se estudar. Eu gostaria de estar numa escola iídiche, mas não era possível. Então a melhor maneira foi onde pudesse fazer prova, passar e entrar. E entrei na escola. E lá o diretor era um nazista. Era um chefe da coluna integralista, famoso, Coronel Fontes. Era muito conhecido. E este homem tinha uma especial predileção pelos jovens nazistas, que eu tive a oportunidade de ouvir, reunidos assim, conversando em alemão. E guardei várias palavras, falando em alemão, e perguntei a meu pai. E uma delas, eu me lembro, quando eu passei, ele disse assim: (Verfluchter Jude?). E aquilo eu guardei. E perguntei a meu pai o que era. Então ele disse: "exatamente o que os nazistas estão usando na Europa. 'Verfluchter' seria 'judeu desgraçado'". Isso me marcou profundamente. São essas coisas que me deixaram assim revoltado. E eu era ótimo aluno, muito respeitado, muito querido pelo próprio diretor, que volta e meia me chamava, conversava muito comigo. Gostava de mim.
P/1 - Embora judeu. Ele sabia?
R - Ele sabia que eu era judeu. E eu fiz questão que ele soubesse. E tanto que aconteceu o seguinte episódio: numa das nossas… Não sei se era sábado, não sei o que era, teria uma prova importante de ginástica, naquele tempo era obrigatório. Getulio, Getulio Vargas tinha imposto a ginástica, naquela época, era obrigatória a ginástica.
P/1 - Até hoje.
R - Bom, agora voltou. Mas naquele tempo tinha sido um negócio novo e tinha sido obrigatório por Getúlio Vargas, em 1930 e poucos. E nós éramos obrigados, sábado, a fazer aquela ginástica. E fui ao diretor, disse que era judeu e que eu gostaria que ele me dispensasse dessa ginástica. Eu estaria pronto para vir mais cedo outro dia [para] fazer. Ele olhou pra mim assim meio rindo, disse: "mas você é judeu ou é brasileiro?" Eu disse: "não, eu sou judeu, da religião judaica. Como o senhor é católico. Eu sou brasileiro". Quer dizer, eu tentei explicar pra ele assim. Ele disse: "não, você é brasileiro, vai ter que seguir o que nós fazemos aqui". Aí eu deixei passar. Depois voltei novamente a ele e falei. E fui dispensado. Quer dizer, o Shabat eu pude seguir normalmente, para não ser mais importunado. Isso até criou uma certa celeuma. Porque os outros alunos também queriam ser dispensados e tal. Então ele disse: "ah, todo mundo vai ser judeu e tal". E judeu, a palavra judeu não era muito usada. Era israelita. Mas como nós estamos acostumado a falar judeu, judeu, então eu disse pra ele: "eu sou judeu e gostaria que o senhor me dispensasse". Isso é outro episódio muito importante que lembro também. E que foi bom. E tivemos bom relacionamento. E me formei nesse ginásio. E fui um aluno que até hoje nós temos reuniões de todos os colegas. Inclusive dois remanescentes, que eram nazistas naquele tempo, e hoje são democratas, nós temos um almoço, este sábado, de 51 anos de ginásio. Imaginem só. Um grupo que vai se reunir. 51 anos. E dois deles eram realmente anti judeus. Mas aquele negócio. "Não, porque nós não gostamos de judeu, mas você é diferente". Eu sempre era diferente. Eu era um rapaz, um garoto ou um rapaz sempre diferente de todos os judeus. Entre aspas que eu estou falando. Claro. Porque os outros não eram judeus. Mas eu era diferente. Isso eu também achava muito engraçado. Por que eu sou diferente dos outros? E vinha o Má Nishtaná, né. E repete-se Hagadá e toda a vida será a mesma coisa que nós estamos vendo hoje em dia. Porque as coisas são diferentes, porque só mostram que nós que somos os agressores, que nós somos maus, que nós somos os piores. E toda a vida é isso. Qual é o outro assunto que eu poderia falar?
P/2- Qual era o nome do seu colégio?
R - O colégio, naquele tempo, era Instituto Superior de Preparatórios. Hoje é Mabe. Na rua do Riachuelo. Naquele tempo era na Esplanada do Castelo, onde se resolvia todas as coisas a pancada. Ia-se atrás do Castelo e tal. E era o famoso colégio que brigava com o da minha mulher, que era o Pedro II. É, eram os dois colégios em constante briga. E dessa briga nasceu o casamento.
P/1 - Vocês se conhecem desde o ginásio, é?
E - Não, não.
R - Não, não, não. Não dava pra isso não. Porque, naquele tempo, se eu visse Café Globo, eu não teria nem chegado perto. Mas já conhecia.
E - Café Globo era o Pedro II...
R - É. E esse colégio realmente era um dos colégios mais frequentados, mais conhecidos assim. Porque tinha muitos alunos. Naquela época tinha mais alunos que qualquer ginásio daqui. E era um ginásio que tinha bons professores. E guardo uma grande lembrança deles. E me conduziram assim na minha carreira de médico, inclusive, foi professor lá, professor Cesar Salles, que era um homem magnífico, médico, e que me marcou muito. Era um homem que falava muito sobre medicina, a experiência dele. Ele era um cirurgião, do Pará. E me levou praticamente… Ele e o professor Fritz. Fritz Delauro. Apesar do nome, era filho de italianos. Fritz Delauro. Também médico, professor de ciências. E me deu uma grande visão do que seria a medicina. Quanto a música, eu pouco tenho a dizer. Porque a música era o meu berço. Perguntam com que idade eu comecei a estudar violino. Com que idade estudei música. Sinceramente não lhe diria. Porque mentiria a qualquer momento que eu dissesse. Eu acho que nasci dentro de um violino. E quando eu nasci, a cegonha deixou cair em cima da cama, eu já tinha um violino lá dentro. Devo ter quebrado um. Porque eu não me lembro nunca de ter estado sem estar junto ao violino. Ou meu irmão tocando ou minha irmã tocando piano ou meu pai cantando e tocando. Enfim, aquilo...
P/1 - A sua mãe também cantava em casa?
R- Não.
E - Cantava pra dormir, né?
R - Mamãe cantava pra dormir só. Mas meu pai tocava violino. Entendia bem de música. Cantava música. O meu irmão era exímio violinista, como é até hoje. E minhas irmãs, uma tocava piano excelentemente, as outras estudavam. E isso me deixou, normalmente, como uma pessoa que vê as pessoas fazer em casa as coisas, fazendo também. Quer dizer, eu pegar um violino, como é que eu faço, assim, ou tentar com os dedos, era tão natural que era só ensinar; não, não é assim. Endireita aqui. Bota aqui, faz assim, faz assado. E o resto: "olha, você tem que estudar isso
aqui uma hora por dia". E era natural. Não era obrigatório.
P/1 - Era natural. Quer dizer, não havia briga, o senhor não querer...
R - Não, não, não. Não. Ao contrário. Depois só meu pai disse: "olha, se você não quer tocar violino, não toca. Mas se você quiser tocar violino, você vai se sacrificar. Tem que estudar pelo menos oito horas por dia". - Isso eu ouvia todos os dias. - "Você tem que tocar violino como quem come. Você vai chegar, na hora que tirar o violino como quem pega a colher pra comer. Com a maior naturalidade. Que não vai pensar depois o que vai fazer não. Aquilo tem que ser automatizado". Isso era todo dia. Era minha oração diária. "Vai estudar violino oito horas. Porque senão você não vai aprender". E aquilo ficou. Mesmo depois de meu pai falecido, eu continuei estudando. Não oito, mas dez, doze horas. E felizmente me ajudou bastante. Foi muito importante pra minha vida, não é? Eu, quando já estava estudando, já tinha terminado medicina, casei, e praticamente não usava mais o violino, a não ser dar aulas. Ainda tinha grupo de aluno solteiro, um grupo, aliás, bastante grande. Cheguei a ter o maior número de alunos, aqui no Rio de Janeiro, de violino. E ensinava de manhã até a noite, sábado, domingo e feriados. Eu escolhi justamente pra poder dar aula. E casei-me, e depois já pensei em deixar a música em segundo plano. Quando então recebi o convite da rádio Ministério da Educação para integrar o quarteto, quarteto de cordas da rádio Ministério da Educação, que eu até hoje integro. Lá se vão 36 anos. E hoje é um quarteto respeitável, de fama internacional, um quarteto, felizmente, que tem feito bonito. E eu integro esse quarteto. Não digo só profissionalmente, é o meu hobby, tem me ajudado muito, porque pra quem já tem um nome da… Quarteto da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E assim cresceu, com esse nome, conhecido como Quarteto Brasileiro, né. E tem me dado muita alegria, muita satisfação. Também muito trabalho. Quer dizer, o que seria um hobby, um passatempo pra ajudar três companheiros que estavam formando o quarteto, querendo fazê-lo pra rádio Ministério da Educação, hoje nós temos um quarteto que é profissional. Viajando o mundo todo como um quarteto profissional. Isso da minha parte.
Da parte religiosa, voltando, eu tenho sempre lembrança de Hanucá. Isso era uma coisa importantíssima. E era esperado maravilhosamente. A família vinha, eu tinha que acender as velinhas, dizer: "Barachot". E isso era muito...
P/1 - Por que o senhor sempre que acendia?
R - Porque era o caçula. Era o caçulinha de casa. Então tudo era pra mim. Hagadá, eu que tinha que ler, perguntar o Má Nishtaná, aquilo era bonito. Todo mundo... A família, a mesa sempre grande. Porque não só os parentes que vinham, mas vinham também pessoas conhecidas, amigas que não tivessem família. Então, lá na Praça XI, nós tínhamos uma mesa de tábuas, e punha aquelas tábuas, e era emprestado. Quer dizer, era tudo mais fácil, porque sempre tinha uma cervejaria em frente, eram todos amigos, conhecidos. A gente pedia emprestado os cavaletes, vinha… E a gente ajudava a arrumar, tudo. Era um dia de festa, realmente... Deixava na mente de uma criança aquilo, que algo estava acontecendo. O que hoje não se vê. Nós aqui em casa estamos tentando continuar isso. Porque um Shabat pra nós, estamos fazendo diferente. E uma toalha branca, as velas na mesa, velas acesas, barachot, isso tem que ser feito, chalá, um vinho. Pra dar essa diferença, que é um dia diferente de outro dia da semana. Mas isso é uma tradição que nós estamos seguindo, para que os filhos, amanhã, contem aos seus filhos como eu fiz e como eu estou contando. Eu me lembro tão satisfatoriamente, quando era Yom Kipur, a preparação para a noite antes do Kol Nidrei. Como era bonito aquilo. Era uma savana. Era desde manhã o movimento. E pro Pessach! Que coisa bonita que era Pessach! Meu Deus, de manhã, com aquela peninha de se limpar… Não sei se vocês conhecem essa cerimônia. Mas era um negócio, que eu acho que ninguém mais conhece isso.
P/1 - Descreva.
R - Bom, o que eu me lembro, de manhã cedo, meu pai já tinha avisado já: "olha, de manhã, amanhã, até às dez horas quero tudo chametz, não pode existir, não pode mais ter nenhuma panela… Muda tudo. "Meus filhos, de manhã, todo mundo, café de manhã cedo, porque depois não tem pão. E matzá não posso abrir até a hora da Pessach, até a hora do Sêder." Quer dizer, aquilo ficou. Nunca perguntei porque. Uma coisa engraçada. É assim, é dogmático. Aceitei a religião como ela é. Eu acho que tem que ser assim. Porque o questionamento excessivo cria uma contestação. Eu acho que religião não pode ser contestada. Eu tenho direito agora de pegar, ler, perguntar ao rabino: por que isso? Por que aquilo? Mas não poderia ser assim? - Conversar com ele. Não contestar a religião. Porque eu acredito ou não. Eu, naquele tempo, achava muito interessante. Aquele negócio, eu não me lembro bem como é que era, porque eu acompanhava, ia pra escola de manhã, tomava café, mas aquele negócio de dizer pra minhas irmãs: "olha, amanhã todo mundo cedo vamos tomar café, porque eu não quero ver mais um pedacinho, uma migalha, nem uma panela, nem um copo do ano". Vinha tudo novinho do armário. E saia tudo. Era louça nova, eram copos novos, até copos, que dizem que não era necessário. Mas estava tudo preparadinho.
Então, eu acho bonito porque o lar, por mais difícil que ele tenha sido, porque era um lar, não digo pobre, mas era remediado, difícil, todos trabalhavam, davam um duro danado, nós tínhamos tudo separado. Tínhamos tudo. Usávamos tudo. Não se dizia: "ah, não posso fazer, isso é muito custoso, é muito caro". Eu não vejo razão pra isso. Porque naquele tempo as coisas eram muito mais difíceis nesse sentido. Se bem que tinha o… Como é que se diz? O que matava lá as galinhas, Shochet, matava lá as galinhas, tudo isso estava em frente. Não era preciso procurar não sei onde, ouvir de São Paulo. Não. Tinha tudo aqui, prontinho, em frente. Era carne kasher, tinha tudo prontinho. Eu me lembro quando se passava, não sei, recolhia… Era simbólico, porque não via migalha nenhuma, mas sei que andava de cantinho. Fogão e botava… Lembro também, eu não sei como é que era, mas usava carvão. E eu perguntei: "por que esse carvão?" - Ah, isso aqui para purificar os lugares que não tenham sido, não sei o quê". Então o carvão em brasa era colocado. Isso até hoje eu não consegui me lembrar o que era. Eu tenho uma vaga ideia do carvão em brasa, que era feito, é para purificar. Só sei que é isso. Isso são coisas que ficaram assim. São coisas... O Rosh Hashaná era uma coisa fantástica. Era outro… Os cumprimentos. Yom Kipur, a família toda fazendo fila para cumprimentar os mais velhos. Era um respeito fantástico. Uma coisa tão bonita que hoje se vê raramente. Nós usamos isso até hoje. Mas nós estamos numa idade que não temos mais ascendentes, só temos praticamente os descendentes. Nós temos o quê? Duas tias, né? Até agora, né. Duas tias.
E - Do meu lado?
R - Não, do nosso lado. Teu e meu. Quer dizer, praticamente só o que nós ligamos. Mesmo assim ligamos até… E tem o meu irmão mais velho, que usamos isso. E ainda uso, telefonar, ir até lá cumprimentar, dizer: "Shaná Tová", quer dizer, isso é bonito, é um respeito. E os meus filhos já se acostumaram com isso. Eles telefonam pra todo mundo. Isso eu acho importantíssimo. É uma educação que fica, que não se esquece. Então isso pra mim, essa toalha branca na mesa, essas velas, esses rituais, que… Os ritos que lembram tudo da religião tornam a pessoa ligada a religião. E é muito bonito.
P/1 - As comidas. Como eram as comidas das festas?
R - Bom, eu só me lembro de kreidler, me lembro do (slatiers?). Eu não sei o que se usa, porque eu acho que cada povo tem um nome diferente. Kreidler, eu acho que é kreidler mesmo, né. As bolinhas de matzá, farinha de matzá, né?
E - Era
R - É, era caldo de galinha. Isso era...
E - Com macarrão e ovos, não sei o que.
P/1 - Isso aqui pra Pessach?
R - Era pra Pessach. Bom é matzá. Matzá era também... Farinha de matzá, feito aqueles bolinhos, tudo. (Glops?) era importantíssimo, né, carne moída, carne moída com cenoura dentro, ovo aquilo era… Vários (glops?) colocados na mesa. Ah, o negócio da sinagoga, acabar o jejum e ir… (interrupção). Muito engraçado porque o meu pai era, além de tudo, humorista. Meu pai era um cantor humorista. Então ele tinha um humor extraordinário. Tinha anedotas pra tudo. E no Sêder dele era, do princípio até o fim, riso. A gente brincava, ria. As crianças então - os netinhos, quando já tinha netos -, mas antes disso tinha sobrinhos e vizinhos que tinham criança. Ria-se o tempo todo. Ele era conhecido. Ele fazia rir todo mundo. Então ria-se o tempo todo. Era esperado o Sêder o ano todinho pra gente rir. Pra rir bastante, porque ele tinha coisas boas pra contar. E era gostoso. Você sabe que horas terminava o Sêder? Uma, duas da manhã no mínimo. E não começava tarde não, oito horas o pessoal já se acomodava. Todo mundo já estava doido pra começar. Eu não sei até hoje como é que eu aguentava, ficar até o fim do dia. Eu tenho a impressão que às vezes adormecia, não tenho ideia. Porque eu via depois, maior, eu via as crianças dormindo. Eu devo ter feito a mesma coisa. Mas eu ficava muito interessado.
E - Lia o livro todo, né?
R - Ah, muito. Não só lia o livro, mas ele comentava por frase. Quando se fazia as perguntas, Má Nishtana, que quando ele respondia, não respondia somente a reza, como eu vejo em alguns lugares religiosos, ou então totalmente em português, como em outros. Mas ele dava uma interrupção. "O que podia ter sido? Porque o mar se abriu? Teria sido possível o mar se abrir?" E conversava. "Mas vocês acham isso possível?" Não, não sei o que é tal. E contava uma anedota a respeito. Nós ríamos, achávamos graça e ficava isso. A pergunta ficava no ar e a gente dizia: "bom, está escrito, está escrito e acabou". Aí...
P/1 - Vocês faziam em que língua isso?
R - Em iídiche, mais em iídiche. Tanto é que nós todos falamosiídiche, relativamente bem. Falava iídiche. Antigamente o iídiche, de lá, geração, era normal. Era o que se falava mais, né? Depois começou a se perder. Quando as vovós foram morrendo, que ficava em casa com os netinhos, os netinhos começaram a perder. Tanto que os meus sobrinhos, minhas sobrinhas, que moravam com minha mãe, falavam iídiche perfeito. Helena fala o iídiche quase melhor do que eu, a minha sobrinha. E a outra também, que se foi. Mas era uma coisa impressionante. Porque o iídiche era a língua natural. É o (Mamelush?), né. É a língua materna. É aquilo fica. Hoje em dia, felizmente, parece que está voltando a língua iídiche. Estão tentando.
P/1 - Ler, vocês lêem, escrevem?
R - Olha, vergonhosamente, eu leio iídiche pouco. Mas nós fomos estudar hebraico. Estudamos dois anos hebraico, na ARI. Aprendemos bem, tivemos uma professora magnífica, Bete Milgram, que era a esposa do Shiliar, e nos deu uma alegria muito grande, porque em dois anos, Esther, minha mulher, ela que se diz analfabeta, eu pelo menos sabia rezar, sabia ler, mas não entendia nada o que rezava, sinceramente, eu agora entendo mais. E isso me dá uma satisfação muito grande. Tanto que voltamos agora pra ARI porque o rabino Graetz falou que vem uma nova turma, e vamos aprender hebraico novamente, vamos seguir. Isso eu acho muito bom. Porque nos dá uma abertura muito grande também. Porque você ler, embora tenha uma tradução do lado, mas na hora que você lê e está compreendendo as palavras, dá uma satisfação imensa, sabe? E além disso é importante conhecermos também hebraico. Quer dizer, o iídiche eu leio. Escrever não digo. Talvez se eu me entregasse mais… Mas infelizmente, a quem eu deveria escrever o iídiche já não existe mais. Então não escrevo mais iídiche, porque todos os meus tios se foram. O meu tio mais velho, eu perdi um tio mais velho em Israel, aos 108 anos. E é um fato interessante. Gostaria de narrar. Esse meu tio, eu não conhecia, logicamente, ele tinha estado...
P/1 - É irmão de quem? Do pai ou da mãe?
R - Ele é casado com a irmã do meu pai. Tinha sido muito querido e muito famoso, muito religioso. E ele foi para Israel quando era Palestina, em 1900, na época de Ben Gurion. Foi na mesma época. Tornou-se pioneiro lá, e trabalhou nos kibutz, criou aquilo tudo. E tinha desaparecido da nossa vida completamente. Até que um dia, terminada a guerra, Segunda Guerra Mundial, recebemos aquelas notícias das pessoa que sobreviveram, aqueles momentos caóticos de pós guerra. E recebemos notícia que salvou-se uma filha da irmã do meu pai, que estava em Paris, e um filho dessa outra tia, desse tio, e que estava em Paris e que ambos se encontraram no campo de concentração e tinham se casaram, os dois "promiscuídaram" e constituíram a família. Nós então procuramos imediatamente um meio de comunicarmos com eles e descobrimos, inclusive, que um irmão dela vivia aqui, que era o irmão dela… Que era a irmã dele. O irmão dela vivia aqui. E aí foi aquela alegria imensa. Ele escapou, cada um procurou fugir pra um canto e eles ficaram num campo de concentração, mas ele conseguiu fugir. Os pais foram mortos em Auschwitz e os irmãos também. Só ela escapou. Ficou num outro campo. E ele, esse primo, escapou. Eu com as minhas viagens com o quarteto, comecei a vida internacional. Com essas viagens comecei a querer conhecer a família. E em todo lugar que eu ia, eu procurei não só Nirenberg, como o nome da minha mãe, o nome lá, através dos tios, as tias que eu soubesse, que meu pai tivesse me falado o nome. Que infelizmente nós não temos essa ideia de árvore genealógica. E perdi muito de saber quem é quem. Mas com essas viagens uma coisa eu soube. Que ia encontrar em Paris uma prima-irmã e um primo- irmão. Casados entre si. Meus primos-irmãos. E entrei em contato com eles. E através deles fiquei sabendo que existia um outro primo-irmão na Bélgica. E que o pai deles, desse primo-irmão, desse que casou com ela, estava em Haifa, em Jaffa, em Israel. Como eu sempre estava viajando, sabia que dois anos depois teria que ir a Israel, eu queria saber endereço. Eles me deram o endereço. E eu, em 63, quando fui a Israel… (interrupção) Está regravando? Não, então, o que eu acho engraçado...Eu vou contar um fato pra vocês que eu acho sobrenatural. São dessas coisas de força mental extraordinária. Eu fui a Israel, contei até pros rapazes, pra Patrícia, tenho a impressão que contei. Cheguei lá a procura do meu tio. Sabia que era meu tio. Sabia o nome dele… Era Schames Brauman - vejam só - e sabia que ele morava em Jaffa. Simples, né. Mas não se esqueça que havia uns quarenta anos passados, ele era Schames Brauman, na Polônia. Em Israel não existe isso. Ele passou a ser (Shiraga Ben Sion?) não sei quê. Primeiro. Segundo. Rechov Alef não existia mais. Jaffa ainda era um guetozinho árabe. E eu, bem vestido, como artista, em Tel Aviv, pergunto onde é Jaffa. "Bom, você vai andando por aqui e leva mais ou menos uma hora e tal. Mas é um bom passeio, agradável, a beira mar e tal. Você vai andando por aqui." E eu fui lá a pé, minha gente. Máquina fotográfica pendurada, dólares no bolso, bem vestido, crente que eu ia encontrar uma avenida pra passear a beira mar. E vocês podem imaginar, em 63, o que era o caminho de Tel Aviv para Jaffa. Pra quem conhece o caminho… Porque hoje aquilo, eu fui lá outra vez várias vezes, fui ver aquilo, está tudo povoado. Antigamente, meu Deus do céu, eu encontrava pelo caminho beduínos, gente sentada no chão com aquelas pernas cruzadas, fumando aquele narguile. Não podia nem sabia com quem falar. Perguntava uma coisa qualquer, não entendiam. Nem que eu falasse qualquer língua. Eu digo: eu estou me metendo numa empreitada. Eu acho que é uma aventura o que eu estou fazendo. Voltar não... Alguma força estava me impelindo, estava me atraindo. Não vou deixar de ver meu tio. Eu tenho que ver meu tio. Ele é meu tio, afinal de contas, tenho que vê-lo. E eu fui andando, fui andando cheguei a Jaffa. Me disseram que era Jaffa. Não sabia por que era Jaffa nem como Jaffa. Mas era Jaffa. Me disseram que era. Eu acreditei. E fui, finalmente procurei onde era a polícia, que eu achei que seria mais lógico. Cheguei lá na polícia, perguntei onde era Rechov Alef. Olharam pra mim como se estivessem falando com alguém… Com um ET, um corpo qualquer estranho lá do outro planeta. E eu queria dizer a vocês que nesse ínterim já tinha assim uns oito molecotes árabes atrás de mim. Um puxando a máquina, outro puxando o bolso, outro puxando a calça, outro querendo puxar a camisa. Eu já estava meio nervoso. Eu estava bastante irritado. Calor, sol, nervoso. Bastante… Tanto que procurei a polícia pra ver se me ajudava nesse sentido. E encontrei lá umas mocinhas, sabras assim, eu perguntava pra eles: "Rechov Alef". Tudo jovem. Quem é que sabe de Rechov Alef? Coisa nenhuma. Olhavam pra mim… Não existe. - "Mas eu tenho aqui. Alef Rechov, ein, ein, Rechov Alef ein." - E falavam uma porção de coisa. Nada. Aí perguntei alguém que falasse espanhol, falasse inglês. Todos eles falavam inglês muito bem. Expliquei tudo a eles. Disseram: "não, não é aqui". Não pode ser. Em todo caso, pode ser. Que lá tem um bairro antigo, e possível. - Eu fui andando, andando, andando. Já não sabia mais pra onde estava andando. Mas não queria voltar. Eu vou dizer. Saí de manhã cedo, devia ser umas duas horas da tarde. Perdi a hora. Eu vou contar pra vocês, depois, quando eu tirei o sapato eu vi quanto tinha andado. Porque estava com bolhas. Estava todo queimado. Mas cheguei naquele bairro antigo e perguntava: "Rechov Alef". Não tinha ninguém pra perguntar. E de repente surge uma senhora. E eu olho pra ela e pergunto: "me diga uma coisa. A senhora fala iídiche?", "No". "Espanhol?", "Ladino". Bom, ladino. Eu não sabia nem o que era o ladino, pra dizer a verdade. Ladino. Mas quando ela falou ladino, eu vi que era uma língua parecida com algo latino. "Por favor, chames Rechov Alef". "Rechov Alef?" "Ein Rechov Alef?" "No hay". "Senhora, conhece um senhor, ele é um senhor… Chames.. Brauman...". Aí digo: "baixinho, de barba". Porque eu sabia, né, o pai sempre dizia que era muito baixinho, tinha uma barbicha. Ela olha pra mim, diz assim: "(Shiraga?)". - Nem sei o que quer dizer Chiraga. Pensei que era alguma exclamação. Bom, me pegou pelo braço, me levou. Bati na porta, me aparece um homem. Ele diz imediatamente o meu nome. Impressionante. Fiquei tão impressionado. Disse: "meu Deus, não é possível. Isso é um milagre divino. Não é possível. Ou eu estou sonhando..." Algo diferente. Ele já sabia que eu deveria estar por lá. Porque o filho havia escrito. Mas a mulher de repente surgir e me lavar pelo braço e me dizer aqui, sem saber o nome... Porque ele não se chamava mais Chames, era Chiraga. Não era mais Brauman, era Ben não sei o quê. Não existia Rechov Alef, era uma rua diferente. Jaffa não era cidade, era um bairro, era um gueto, era uma outra coisa. Não era como hoje. Enfim, isso pra mim representou algo assim milagroso. O homem já estava lá beirando cem anos. Com tesoura na mão, maior do que ele, cortando a fazenda. Uma luzinha em cima… Até prometi procurar essa fotografia pra mostrar aos rapazes, Samuel e Vítor, os pesquisadores que estiveram aqui. Eu quero mostrar pra vocês. Tirei uma fotografia. Diante daquela luzinha, não sei como saiu uma fotografia tão boa. Quer dizer, foi tudo um milagroso… Só não foi milagroso quando cheguei em casa, tirei o sapato. Estava com os pés inchados, com bolhas nos pés que não aguentava mais. Reconheci mais um ramo da família. Agora, seguindo. Quer dizer, já tinha na França, na Bélgica, em Israel. Mas diretos, né. E em Israel, Estados Unidos. Sabia que tinha um irmão de meu pai e que tinha fugido jovem ainda de alistar-se, exército, essas coisas, ver as desgraças todas, ele foi embora. Eram onze ou treze irmãos, que até hoje eu não sei. Que eu perdi... Eram onze ou treze. Perdi, realmente. Papai falava em treze irmãos. Ou dois morreram muito cedo, como era visual, era tão natural morrer cedo, criança, mas sei de onze, garantidamente.
Nos Estados Unidos estava um dos mais jovens irmãos do meu pai. E lá, quando nós fomos tocar, dar um concerto, demos 45 concertos nos Estados Unidos, e um deles dava Wisconsin, estava esse Madison, e estava na Universidade dele, que ele já havia solicitado que tocássemos "White Water". Fazia questão. E era maior glória pra ele dizer que os sobrinhos dele tocamos no quarteto e íamos dar o concerto lá. Conhecemos lá. Foi uma alegria imensa. Conhecemos os primos, os filhos, que era um casal de filhos. E agora que nós estivemos nos Estados Unidos, este ano, em março, conhecemos os filhos e já os netos. Quer dizer, os filhos dele e os netos desse primo, quer dizer, os bisnetos do meu tio. Estabelecemos o contato e descobrimos que existe mais uma prima, filha de outra irmã do meu pai, em Chicago. Ainda não entrei em contato. Estou levantando agora uma árvore genealógica e posso dizer a vocês o seguinte: graças a esses encontros nossos, com o museu que vocês estão construindo, com essa entrevista, isso motivou que eu procurasse tudo que eu tinha dos antepassados. Não só fotografias como as coisas. Estou tirando xerox e mandando pros meus primos, para que eles tomem conhecimento e quem sabe me ajudem. Porque eles são muito mais velhos do que eu, muito mais velhos. Talvez me ajudem para ensinar quem são, quem é quem. Quem é esse tio, quem é aquela tia. São fotografias que eu não sei de quem se trata, estou mandando pra eles. Que algumas sobraram pra minha mãe, outras talvez tenham sido jogadas fora. Porque morrem as pessoas, as pessoas não sabem quem, "ah, isso não deve ser..." Jogaram fora. Porque eu sei que minha mãe tinha tantas fotografias. Ficou numa caixinha bem organizada, tudo direitinho, tudo perfeitinho. Mas tinha muito mais que desapareceu. Onde foi parar, não sei. O meu primo mais velho que morreu aqui faz em alguns anos, tem vinte anos que Maurício morreu, teria, talvez, destruído alguma coisa. Demais, as irmãs mais velhas foram embora também e eu não sei a quem apelar. Não tenho ninguém que possa me ensinar quem é quem. Meus tios foram. Não tem mais ninguém.
P/1 - Agora, a sua família trouxe objetos de uso quando vieram? Tinham coisas do país de origem?
R - Olha. Tudo isso que veio é o mínimo que a pessoa podia levar. Não era possível levar muita coisa. Porque não se esqueçam que os meios necessários faziam com que se vendesse tudo. Meu pai sempre dizia: "eu tinha isso de prata, tinha aquilo lá de ouro". Tudo foi vendido. Porque aquelas coisas… Eu sei que os bens dos meus avós, dos meus bisavós, tudo foi queimado. Foi tudo. Os pogroms levaram tudo. Porque a Polônia era uma vez, Rússia outra vez, Alemanha... E aquilo era… Era terrível. A pessoa dava graças a Deus se ficava com a roupa do corpo. E saia viva. Disse que era terrível. Eles entravam na casa, botavam… Dava um nome, meu pai chamava de (rullgan?). Não sei o que quer dizer isso até hoje, mas desconfio que seja os patifes, que eles entravam, arrombavam a porta, entravam onde tivesse, queimavam tudo, rebentavam tudo, faziam questão de queimar as Torás, os livros. Então o mais precioso para meu pai era aquilo que ele rezava junto. Então era o Chanukiá, era um livro de reza, de 1867, ele trouxe, era um livro de estudo, de 1864. Tem um livro até de mil e setecentos e poucos aí, que eles viram.
P/1 - Isso aqui a Patrícia viu tudo?
R - Viu. A Patrícia não viu, mas eles viram. Talvez a Patrícia ainda venha ver. Eles viram até a data marcada lá, direitinho.
P/1 - Fizeram ficha?
R - Fizeram ficha. Tudo. Está tudo marcadinho. Temos cálices que eram… Me lembro que eram meus, mas devem ter sido do meu pai ainda. Porque eram antiquíssimos. Pela marca que tem. De prata. Cálices de prata pra servir no Shabat, outro de Pessach. Tinha uns do meu pai, que eram maiores, que não sei onde estão. Meu pai disse que tinha de ouro. Tinha um que era com o nome. Tinha uma porção de coisa. Aquilo tudo foi vendido. Porque tudo era apurado pra se levar algum dinheiro. Tudo era necessário. Você se mandava pra um país estranho, você não podia levar as coisas. Não sabia o que encontrar, não sabia o que fazer. Você não podia comer um cálice. Mas o dinheiro se sabia que podia transformar, vender e fazer alguma coisa. Então tudo que era ouro, tudo que era prata, tudo que era valioso, que pudesse desfazer, era vendido. Eu sei que meus pais tinham muita coisa. Tinha muita, muita coisa. Mas tudo era desfeito, tudo se desfez. O resto, os livros, os meus tios que vieram, escaparam da guerra, trouxeram o resto dos livros. Interessante. Só traziam livros. Impressionante.
P/1 - Livros de rezas?
R - Livros de rezas. E alguns romances também. Tem em polonês, tem romance em hebraico, tem livros em hebraico, pra leitura… Impressionante. O que eu quero dizer é o seguinte: o que mais impressiona é que a única coisa que vinha era livro de reza, que eles já sabiam de cor. Meu pai nunca virou uma página. Ele rezava sem virar uma página. Por que ele trouxe esses livros de reza? Esses livros de reza, antiquíssimos, ali, e que ele punha sempre e rezava. Talit, Tefilin, isso não podia faltar. Quer dizer, é bonito isso. Isso é lindo.
P/1 - Me diga uma coisa. Na Praça XI, quando rezavam nas casas de conhecidos, havia Torá?
R - Sempre. Duas Torá.
P/1 - E essas Torás vinham da onde? Tinham sido escondidas? O senhor sabe a história desse Torá?
R - Nunca perguntei. E sei que um dos Torá da nossa sinagoga foi doada por uma família da São Paulo, que deu. Uma família muito religiosa que doou pra nós. Eu digo nós porque eu me considerava da congregação. Aqui a sinagoga era minha. Lá eu fiz o Bar Mitsvá, lá eu me criei, lá foi feito tudo pra mim. Lá era importantíssimo. E dizer onde veio a Torá… Mas sei de tudo isso porque papai dizia: "isso escapou da guerra. Você não queira saber como é que era pra se fugir com um livro. Como é que esse homem, em plena era do nazismo, conseguiu sair com esse livro". Meu pai contava assim. E era um herói. Esse indivíduo conseguia até sair só com a Torá. Às vezes vestidos como crianças, não sabe explicar o quê. Eu não sei explicar. Meu pai talvez soubesse.
P/1 - E o senhor sabe o que foi feito dessa Torá?
R - Ah, foram doadas para sinagoga. Muitas foram. Todas elas daquelas casinhas. E sei, uma foi para Beth El, outras foram para… Eu tenho a impressão, pra ARI foi alguma. Não tenho certeza. Se não foi pra ARI, deve ter ido pra sinagoga grande. Templo grande. Todas elas foram pra templo grande. Isso eu tenho certeza. Que tinha ido primeiro pra Dasi Israel. A Dasi Israel era na rua Santana, perto da estrada de ferro. Primeira sinagoga que… A mesma época que foi construído o templo, o grande templo, foi construída a Dasi Israel. A Dasi Israel era uma sinagoga especificamente construída. Foi uma das primeiras sinagogas construídas aqui no Rio de Janeiro, na época do grande templo. Essa Dasi Israel foi demolida para dar passagem a estrada de ferro e a nova Praça XI, que acabou, e o grande templo foi uma herança natural de todas as sinagogas da Praça XI foram pra lá. Porque os judeus foram todos pra lá.
P/1 - Depois da Praça XI o senhor foi morar onde?
R - Eu fui morar diretamente na Tijuca. Rua dos Araujos. Nessa época, papai ainda estava vivo.
P/1 - O senhor se lembra da data de chegada do seu pai, da sua mãe? Tem ideia?
R - No passaporte está em 1919.
P/1 I- O senhor tem passaporte deles, da chegada deles?
R - Talvez tenha.
E - Acho que não tem não. Tem da sua mãe quando foi pro Chile. Acho que nem tem mais.
R - É? Talvez tenha um documento da minha mãe, documentos quando ela viajou. Então lá que está escrito 1919.
P/1 - Mas o importante é o documento de chegada deles, o ketubá deles. Isso não tem mais não.
E - Ah, não temos não. Não temos mesmo.
R - Acredito que não. Nada. Você olhou? Infelizmente, nós éramos cinco irmãos, que sobramos em cinco irmãos. Cada um levou alguma coisa pra casa. Com a morte de um, morte de outro, falecimento, a casa se desfez, se desfez apartamento, foi tudo embora. E o que eu fiquei, eu procurei ficar com as lembranças atuais. Nunca me preocupei, como menor, mais jovem. Depois, morre a irmã, morre outra. Não ficou nada. Eu sei que eu e meu irmão não temos mais nada. Desses documentos, nada, nada. Nenhum documento. Não sei, você já olhou tudo?
E - Eu tenho certeza, quase.
R - Porque como a Patrícia disse, não tinha nada, só tinha achado o livro. Quando chegamos na hora de puxar as coisas, foram surgindo coisas que nunca pensei que viessem. Coisas que nunca pensei... Mas muita coisa bonita foi embora. Me lembro de uma bengala que meu pai tinha, feita toda de ébano. Mas todo de ébano era incrustada de madrepérola. Era uma coisa… Uma boca de leão. Mas era uma coisa belíssima. Essa bengala ele trouxe, naturalmente, porque ele não andava direito. Ele teve um problema com uma queda e ele andava então com os dos pés perfeitamente, mais depressa, mais devagar, mas tinha que se apoiar numa bengala pra andar com firmeza. E isso o acompanhava como uma muleta dele. Mas era a bengala que desapareceu. Roubaram a bengala. Roubaram. Eu sei que roubaram. Eu estou lembrado como alguém que eu vi, disse que ia ver, não sei o que, a pessoa estava muito interessada e desapareceu com ela. Desapareceu com todo o material de reza do meu pai. Pediu emprestado pra tirar fotografia. Era um homem que estudava na Praça XI pra ser Chazan. Faleceu. Nunca mais recuperei. Era aquele belíssimo chapéu de Chazan que meu pai usava. Lindo!
P/1 - Seu pai era Chazan.
R - Era Chazan. Cantava na sinagoga, na Praça XI. E tinha um belíssimo, um talit de reza belíssimo. Porque o outro, de lá, ele foi enterrado com ele. Porque era.. É hábito. As pessoas são enterradas com o talit, envoltas no talit, e não tem caixão. Foi um escândalo, que era proibido, saúde pública, não sei que. Disse: "não, tem que ser. Isso ninguém tira". Inclusive as pessoas da Praça XI que estava lá, disse: "ele não. De jeito nenhum". E, infelizmente...
P/1 - Mas o resto da família tem… Todo mundo é músico? Os irmãos do seu pai?
R - Todos eles são músicos. Todos. A Orquestra Sinfônica Brasileira você vai encontrar praticamente a família. E, eu vou parar um instantinho. (interrupção). Eu conheci na Praça XI muitos judeus iguais ao meu pai. Mas eram tão ignorantes, era tão triste falar, porque o negócio… Qualquer coisa. "Torá diz assim". E não se discute mais. Aos sábados de tarde meu pai se reunia como no grupo lá no
(chedder?), na Praça XI, na Rua Visconde de Itaúna, que não existe mais, ele se reunia com um grupo de judeus. Não era pra rezar. A reza vinha depois. Mas das três horas até às quatro, até às cinco, até às seis eles se reuniam e estudavam a Torá. Estudavam. Discutia-se. Impressionante, - eu assistia as discussões - como a palavra final era do meu pai. Como ele explicava as coisas. Porque meu pai tinha o dom da explicação. Ele não lia, está escrito assim, tem que ser assim. Não. Ele explicava: "olha, está escrito assim, mas se vocês pegarem o rashi, vocês vão ver a explicação. Pega o Talmud aqui que você vai ver". Então, ele abria o Talmud direitinho e mostrava o que explica aquilo que está na Torá, que não dá pra entender. Então eu fui vendo, fui me criando numa situação em que via e como tida de tal forma. Mas vem um bom advogado, ele é capaz de mostrar que essa lei não é bem como está escrito, mas ela é útil como está escrito. Ela é necessária para todas as pessoas assim. Mas as pessoas melhor constituídas, melhor instruídas, elas sabem como usá-la. Então meu pai usava essa frase, como eu disse de início: o que do homem, para o homem, o que é de Deus é para Deus. Você saber interpretar é o mais importante.
P/1 - Me diga uma coisa. A vida comunitária. Seu pai, tendo chegado entre os primeiros, ele deve ter participado na formação da sinagoga, na formação da Chevra Kadisha, na...
R - Não. Meu pai formou na Talmud Torá. Eu sei que eles foram dos primeiros da Talmud Torá. Mas ele não ficou muito tempo. Ficou lecionando, fazia parte do conselho. Eu sei como era antigamente. Eu sei que meu pai acabava saindo fora disso. Talvez a necessidade de lutar muito... (interrupção). Fazia os casamentos e as festas. Isso era meio de vida.
P/1 - E a sua mãe trabalhava?
R - Não. Trabalhava em casa. Muito. Não era brincadeira. Botar cada um em dia com as suas coisas não era fácil. Era muito difícil. Eu acredito que a minha mãe não tivesse muito tempo para se dedicar as coisas não. Porque era o dia todo em casa, dia todo filho, roupa, passar a ferro, não era brincadeira não. Me lembro como o ferro não era como hoje, você ligar na tomada, não. Era a carvão. E depois, eu me lembro que o ferro era um ferro que se botava em brasa e botava dentro daquele ferro. Tinha uma chaminézinha e isso minha mãe passava. Era tão engraçado. E não sei se vocês estão lembrados disso não. E a enceradeira era de ligar não. Era uma enceradeira brava, aquela de você puxar. E que depois, quando eu era maiorzinho um pouquinho, ela olhava assim pra mim, suor assim escorrendo, eu pegava, ajudava a puxar. Mas eu via que não era possível. Então ela dizia: "você não pode. Você tem que ficar no violino". Era outro mito, o violino era desculpa pra tudo. Porque o violino, eu não podia pegar peso, não podia fazer força, não podia fazer nada que fosse físico. Então, o violino era: "não, você não pode usar faca, você não pode cortar pão, você não pode isso, você não pode aquilo". Coisas que finalmente eu me libertei. Porque eu acho que a gente faz tudo ou não faz nada. E não era possível eu ficar sempre em redoma. Minha mãe trabalhava muito. Era uma pessoa de muito trabalho. Bastante dinâmica. Era aquela de passar pano de manhã até a noite em tudo. A poeirinha não podia existir. E, realmente, era uma casa limpa. Sempre agradável.
P/1 - E a família da sua mãe?
R - A família da minha mãe era assim. Eram dois irmãos. Um tinha chegado antes para a Argentina. E depois, uma irmã… O irmão do meu… Um tio, irmão da minha mãe, chegou já com a guerra eclodindo, já a guerra estourando. Quando trouxe mais alguns livros, como tinha dito, veio com a família aqui e depois foi embora pra Argentina. Nos deixou também. Foi embora pra Argentina. E os outros irmãos foram todos trucidados. Trucidados. Eram muitos irmãos, muitas irmãs. Não escapou ninguém. Eram também muito tradicionais. Eu não tenho ideia, mas eu tenho a impressão que eram pelo menos duas irmãs e mais os quatro irmãos, seis, sete, oito filhos. Eram oito irmãos, junto com a minha mãe. E só dois escaparam aqui na Argentina e minha mãe aqui. O resto foi trucidado.
P/1 - Sua mãe era de onde?
R - Da Polônia também, de Varsóvia. Ela era a cidade… Como se fosse um bairro. Ela dizia que é coisa de minutos de bonde, que ela passava de bonde.
P/1 - Seu pai também era de Varsóvia?
R - De Varsóvia. Meu pai era de Varsóvia. Meus avós eram da cidade de Lódz. Era uma cidade industrial chamada cidade industrial. Meu pai dizia que seria uma Juiz de Fora daqui. Era uma cidade, naquela época, não sei se ainda é hoje, mas dizia, naquele tempo, Juiz de Fora era cidade industrial. Cidade pequena, industrial. Não é São Paulo. Uma cidade pequena industrial.
P/1 - E o casamento deles foi arranjado ou se conheceram?
R - Olha, nunca perguntei isso. É outra coisa que jamais me ocorreu perguntar. Mas eu acredito que deve ter sido arranjado. E não acredito que tenha sido através do leque de namoros não, de dar olhares não. Isso não existia. Porque era cada um no seu canto. E aquela história que existia: fulano, eu tenho uma filha, você tem um filho. Como é? Quando que vamos resolver essa história? E conheceu e casou. E felizmente deu certo. Viveram muitos anos felizes, tiveram oito filhos, e deu pra educar o melhor possível. Música, ginásio, escola superior pra… As filhas não estudaram mais porque não quiseram. Casaram. Mas os filhos foram cada um pra escola superior e foi embora. Quer dizer, não se pode dizer que fosse problema monetário só. Não éramos ricos, não. De modo algum. Éramos de viver do que se ganhava. Também a inflação não era isso. Não existia plano cruzado nem congelamento. Era o que se ganhava, não dava pra guardar, não dava pra fazer grandes gastos, não dava pra se usar roupas especiais. Ganhava, gastava, comia, nunca faltou comida em casa. E viveu-se bem.
P/1 - Eles contaram as dificuldades que passaram durante a guerra?
R - Eles contavam. Tanto que foi uma das razões de ir embora. Eles contavam que eram, do tempo dos avós, quando eles casaram, eram bastante, pode-se dizer, ricos. Eles dizem que eles se consideravam ricos. Porque tinham muita terra. Tinha, inclusive a venda de madeiras. Quer dizer, tinha florestas que eram deles. E os avós tinha… Do lado do meu pai. Sempre do lado do meu pai. Porque a mamãe contava muito pouco. Falava muito pouco. Não tinha tempo de sentar, falar. E meu pai, enquanto a gente estudava, enquanto preparava pro Bar Mitsvá, enquanto ele me ensinava o que eu tinha de rezar, a gente conversava. "Mas por que está assim?", "Não, porque quando a vovó… Quando eu era obrigado a trabalhar lá e levantar aquelas toras de madeira, e quando eu levantei cinquenta quilos de saco de açúcar que nós fazíamos, e com isso eu caí, que me quebrou a espinha". - Foi aí que eu fiquei sabendo. Porque nunca perguntei por que ele andava assim. Porque veja, o respeito do pai e filho. Havia um relacionamento bom, mas eu nunca entrava em situações… "Como é que você casou com a mamãe, como é que você conheceu mamãe?" - que hoje é tão natural. - "O que você fazia? O que você ganhava? Quanto você ganhava?" - Nada disso. Eu ouvia só. Ouvia, às vezes fazia uma pergunta relacionada. Então eu soube que ele estava muito bem. Os meus avós estavam numa fazenda ou floresta, vendiam madeira, aquilo dava muito dinheiro, e com isso se vivia muito bem. Até que chegou um (puretz?)". "(Puretz?)" é uma espécie de príncipe, espécie de dono, espécie de… "(Puretz?)" acho que é príncipe, né? O que quer dizer "(puretz?)"? Seu pai mesmo chamava, os meninos diziam: "(puretz?)". Deve ser coisa assim. Um nobre. Chegava e dizia: "bom, judeu não fica aqui". E expulsava. E assim era terminada. De uma hora pra outra fechava-se a fonte de renda e ficou com uma casinha, e uma espécie assim de restaurante, onde se fazia música. E aí tinha piano e tinha pianola, sei lá, dançavam, tomavam cerveja feita por eles, e comia-se as coisas. Assim se vivia. Depois, meu pai contou, que nos últimos anos, quando ele viu… Era a guerra… Ah, outra coisa que eu não sei onde está. Ele chegou a trazer o chapéu russo da guerra. Eu não sei que fim levou. Que até usava no carnaval. Um chapéu de cossaco. Um chapéu aquele no centro… Eu me lembro tão bem desse chapéu. Era uma pala e aqui era um dourado, e no centro era como se tivesse um zero, que eu não compreendi bem o que era, mas um redondo. É um chapéu assim engraçadíssimo. Redondo. Completamente redondo. Isso ele trazia. "Isso aqui me serviu, tal". E me ensinou o que é a guerra. "Escapei dessa e não quero pegar outra". Então isso aqui ficava sempre com as coisas dele. Tinha umas coisas interessantíssimas. Mas eu não sei mais onde foi parar. Eu não sei realmente onde foi. Isso eu me lembro que ele falava. Era uma vez Rússia, uma vez Alemanha. Um dia ele acordava: "olha, tem que falar russo". E outra vez tinha que falar polonês. E outra vez tinha que falar alemão. E o culpado disso quem era? O judeu. Então o judeu apanhava do russo, apanhava do polonês, apanhava do alemão, apanhava do polaco que ia lá e achava que não prestava. E era assim. Era uma perseguição constante. Cada vez fechava mais o anel. Até que chegasse a hora: "Sabe de uma coisa? Nós temos parentes que podem nos salvar alguma coisa. Já não temos mais nada a perder". Então ele disse que escrevia. "Vamos embora. O que sobrou, vamos embora daqui". E, felizmente, foi o que salvou. Não tinha mais nada a perder. Ele dizia que não tinha nada a perder. E felizmente, quando chegou... Tanto que ele morreu em 41, 1941, em maio, foi (yarzelle?) agora, ontem foi (yarzelle?) de papai, e ele, justamente, lendo o jornal, as notícias da invasão dos guetos, que mataram todos, que foi aquele de 41, lendo o jornal, faleceu. Lendo o jornal assim a mesa. Coração. Nada. Não sofria nada, não dizia nada, estava tudo bom. Lendo o jornal iídiche, que ele recebia todo jornal dos Estados Unidos, meu tio mandava jornal, sempre. Aquilo era religioso. Vinha enroladinho e tal, ele abria aquele jornal... Quando leu as notícias, aí acabou com ele. Dez minutos. E ele sempre contava essa parte. Que isso haveria de chegar. Quando ele via aquela preparação, aquelas perseguições, isso é uma história que se repete, mas não dessa maneira. A selvageria está cada vez pior, cada vez maior. Se antigamente eram lanças, hoje queima, bota fogo. Antigamente se queimava a casa, hoje se queima a pessoa diretamente. Com as possibilidades desses fogos que eles tem lá. - E realmente aconteceu isso. Era incrível. Uma pessoa que via longe. E via mesmo as coisas acontecerem. E previnia quando as pessoas diziam assim: "não, não é assim não". E como eu disse antes, era uma pessoa realmente… Não era pessoa visionária. Era muito, muito pé no chão. Muito, muito mesmo. Então, quando ouvia aquelas pessoas na sinagoga discutindo, aquelas coisas que eu, naquela época, dizia: "mas que bobagem eles estão discutindo". E era preciso meu pai intervir: "Vocês estão falando. Está tudo escrito. Porque vocês só lêem a Torá e só se atêm a isso? Lê como está explicado aqui. Pega o rashi, lê o rashi. Vocês vão ver como ele explica tudo direito". Eu aprendi a ouvir esses nomes. E infelizmente ainda não tive tempo de pegar um Talmud e lê-lo também. Eu, as vezes, pego aqui umas histórias, tem em inglês, tem tradução, mas ainda não tem em português. Quero ver se vem um Talmud traduzido, tudo direitinho, que eu possa acompanhar também. Porque em hebraico está tão difícil pra ler aquilo. Porque a interpretação é difícil. Não é só saber o hebraico não, você tem que saber interpretar. É um estudo muito específico. Mas eu vi que meu pai era um pouquinho acima, uns graus acima daqueles outros. E quando dizem que meu pai era ortodoxo, como ela diz: "não, todos dizem que seu pai era ortodoxo". Não, meu pai não era ortodoxo. Porque ortodoxos eram aqueles que não sabiam lidar daquilo que eles tinham. Se além de barbas compridas que eles usavam, das Peiot, que eles não sabiam nada do que eles faziam. Eu sei que a grande maioria de lá, minha gente, rezava, e eu tenho certeza que eles nem sabiam o que rezavam. Já era automático. (reza) E ficava naquilo tudo. E se perguntasse o que quer dizer isso? Não sabia. Enquanto meu pai dizia, e quando eu rezava ao lado dele, pegava assim: "olha, aqui", - me dizia em iídiche - "Olha essa frase aqui". Quer dizer, ele rezava e estava lendo tudo, tudo, sabendo. "Nesse pedacinho, os cristãos, os anti judeus, os antissemitas, que hoje tem o nome eufêmico, bonito, eufêmico, de antissionistas, eles se atêm a esta frase para dizer que os judeus, esta de agora, do Kol Nidrei, eles se limpam de todos os votos como se isso os livrassem, eles poderem fazer os crimes, pecados, matar. Eles saem daqui e vão matar. E isso que eles querem dizer. Quando não é isso. Nos votos sim, mas aqueles votos que eles eram obrigados a fazer sob tensão, sob aquela ameaça de serem cristãos. Isso é outra coisa completamente". Ele explicava, deu uma explicação o que quer dizer Kol Nidrei. E até hoje eu vejo pessoas dizerem: "Tá vendo, olha. Depois disso…" Até hoje, na sinagoga, esse pessoal diz: "Olha, depois disso, ó, não podemos voltar, porque o ano que vem a gente vai se limpar novamente". Não é nada disso. Isso eu aprendi com meu pai. Não é nada disso, gente. Eu ouvi que é preciso ser muito mais do que simples judeu ortodoxo. É preciso compreender a religião para que se explique aos outros. Por causa disso eu digo: "meu pai não era ortodoxo". Meu pai era aquilo. E ele teria hoje se encontrado na ARI. Ele hoje seria, talvez, um dos homens da ARI. Ele hoje seria um homem compreendendo perfeitamente a religião, discutindo e aceitando como ela e, com a evolução de um povo. O povo está evoluindo. Não se pode pegar uma criança hoje, como eu, acompanhando meu pai, e que ele me acompanhou. Não posso dizer a meu filho: "Meu filho, fica aí. Tem que rezar. Aprenda a rezar. E assim tem que ser". Então, sai do Bar Mitsvá e fica naquilo, sem compreender mais nada. Isso não. Tem que compreender e o porquê. E os filhos de hoje, você, uma juventude como você, quer saber o porquê. Não aceita mais. - "Não, mas está escrito". "Está escrito porque? Escreveu lá há cinco mil anos e eu vou aceitar? Três mil anos, cinco mil anos, quatro mil anos, está lá escrito, eu vou aceitar isso? Não. Absolutamente. Eu quero saber o porquê". Eu ainda aceito. Porque eu aceito, não como dogma também, mas fui criado assim. Acho que a religião não se discute. Religião nenhuma. Fé nenhuma. Eu respeito todo mundo. E eu quero ser respeitado. E aceito tudo que se fala. Toda religião. Toda crença eu não discuto.
Quando eu estava como diretor do Hospital Pinel, eu posso lhes mostrar aqui na revista, e que fui muito criticado. Porque eu permiti, primeiro, eu abri o templo que estava lá, fechado, servia de depósito, como hoje está servindo de depósito de coisas velhas, lá no Hospital Pinel, eu abri aquilo e transformei numa igreja, capela, e fiz uma igreja. Arranjei padre que fizesse missa a cada quinzena, que depois passou a ser semanal. Inicialmente foi quinzenal. Então perguntaram: "Você é judeu. Por que está fazendo isso?" "Muito simples, porque a maioria é católica. No dia que tiver um protestante, eu trarei um protestante. E (has ve halila?), se tiver judeu também doente mental internado aqui, eu terei que dar uma assistência espiritual pra ele também". Felizmente pouquíssimos judeus passaram por lá. Pouquíssimos. Maioria católicos. E nós transformamos aquela capela em verdadeira igreja, com órgão, trouxe um harmoniozinho, com festas. Aquilo se transformou, conhecidíssimo. E eu disse que eu ainda vou fazer os funcionários casarem nessa capela. E quase chegamos lá. Mas, infelizmente, a inveja falou mais alto. Mas o que eu quero chegar, que foi essa minha liberdade de crença para todos os povos, para todas as crenças, todas as fés, inclusive macumba, espiritismo, tudo isso, eu fui muito criticado. Aos domingos ia lá Testemunha de Jeová, não sei quê, de Cristo, não sei quê de Cristo. "Doutor Jacques, olha, domingo isso aqui está uma verdadeira feira." Digo: "Bom, mas eles não vêm visitar os doentes? Os doentes não se sentem confortáveis? O que vocês acham?" Então veio entrevistas, veio o jornal "Fatos e Fotos", a revista veio me entrevistar, o que eu achava disso. Fui entrevistado, foi outro psicanalista. E acharam… O que eu achava disso? Não acho nada. Acho que a liberdade de crença deve existir. Agora, quando ela interfere, quando ela aborda aquelas coisas de ideia de demônio, diabo, essas coisas todas já interferindo com o psique do doente, então nós procuramos, inteligentemente, afastar. Não porque seja uma crença, mas por que seja maléfica para aquele indivíduo. Então isso que eu quero dizer que sempre fui favorável que se respeitasse a fé. E eu acho que a criança, hoje em dia, tem que ser respeitada na sua crença, mas ela, pra ser um judeu de fato, ela tem que compreender o que está rezando. Ela tem que compreender que a nossa religião é tão bonita que ele não precisa procurar outras crenças. Não precisa procurar outras seitas. Porque a nossa religião tem tudo que as outras tem e algo mais, que o povo do livro tem que compreender o livro. E não pode ser assim... Isso aprendi com meu pai. Essa alegria eu tenho. Que isso ninguém me ensinou, a não ser meu pai. E tanto que eu me identifico bem com a ARI. Por que eu sou da ARI? Porque hoje eu sinto a ARI como meu lar, e felizmente a Esther também, minha mulher, ela me acompanha, ela sente-se feliz, ela vem, ela se sente bem. E eu me sinto bem na ARI. Nó fomos a outra sinagoga - eu não quero citar a outra sinagoga, - nós fomos a outra sinagoga esse Shabat, tinha… Infelizmente o Bar Mitsvá foi lá. Já falei com os avós dele, disse: "O outro vai ser na ARI, e eu lhes confesso". Eu me senti mal. Não tinha uma pessoa, daquelas que fossem religiosas, que não falassem na Bolsa, que não falassem no dólar, que não falassem do dinheiro, que não falassem dos negócios. Enquanto lá, estava lá o (baal core?), estava lá rezando na Torá, e estava se falando tudo, menos a reza. E era chamada igreja - perdão da palavra - era chamada sinagoga. Olha, essa associação para um psiquiatra é muito séria. E era chamada de sinagoga ortodoxa. E no entanto, eu lhes confesso, eu tinha vergonha. Eu olhava pra um lado e pro outro. E pessoas conhecidas, pessoas de bem. Judeu falavam de tudo. Olha, se entra lá um católico pra ver isso, eu me senti envergonhado, imagine outro, o que eu diria pra essa gente. Se falava de tudo que vocês podem imaginar. A última moda, a moda, o desfile de modas, então era vergonhoso. A ARI… Ah, meu Deus. Tinha uma senhora lá que era tão nua, tão nua, que eu não posso compreender como é que se deixa entrar numa sinagoga que se diz ortodoxa. Na ARI não entra assim, por vergonha. Nem um chalezinho. Quer dizer, enquanto outras senhoras estavam com kipá na cabeça, conversando as últimas modas, as últimas coisas, com kipá na cabeça as senhoras, ao mesmo tempo, essa conversa, essa feira internacional que estava lá. Feira. Não tem outra coisa. Não se respeita nem quem está lá. Então eu pergunto. Onde que vou me identificar? Naquele que me dá a chance de rezar e compreender o que estou rezando. E aos meus filhos também, que ficam ao meu lado no Yom Kipur, ficam ao meu lado, fazem questão de jejuar como eu, como minha mulher… E a minha nora, que é uma nora, era cristã, hoje não é, que era uma católica, era uma cristã ortodoxa...
E - As duas.
R - As duas, né. Mas essa era ortodoxa, a que está aqui no Brasil, era ortodoxa, não no sentido judaico, mas armênia. E dizem que eles nunca passam pra religião. Ela, espontaneamente, aceitou a religião. E vou lhes dizer uma coisa. Me acompanha na reza, faz o Shabat. Quer dizer, isso é uma alegria. Quando não tem o Shabat aqui, ela faz na casa dela. Quando por qualquer razão, pintura aqui, quando não podia, tinha obras em casa, ela preparou o Shabat lá em casa, eu fiquei orgulhoso. Porque não é qualquer lugar. Não acredito que as outras noras fizessem com a facilidade que ela fez. Rezou, fez questão, na presença da família dela, que ela convidou pro jantar. A mãe ortodoxa, a irmã. E ela fez a Brachá. Quer dizer, isso me deixa alegre. É sinal de que estou deixando um caminho, uma trilha, agora, elas fariam isso e eu teria coragem de levá-las numa outra sinagoga que não se entende nada? Não, eu não teria coragem, eu não teria.
E - Nós rezávamos na Hebraica antigamente. Pra ficar junto com a família...
R - Toda a família reza na Hebraica. Toda minha família. E sou o único que estou na ARI.
E - E a nossa nora começou a ir junto. E quando chegou lá, ela viu aquele desfile de moda na Hebraica. Era o Yom Kipur, mas todo mundo falando, cada um querendo mostrar mais que a outra. Quando terminou, ela virou-se pra nós e disse: "Dona Esther, fala com Doutor Jacques que não dá. Vamos pra ARI".
R - Ela pediu pra ARI porque ela se casou na ARI, e compreendeu a ARI. Ela adora o rabino. Ela adora. O Graetz conseguiu elevar. Nós devemos isso a um rabino que trouxe a religião verdadeira aqui no Brasil, que foi Henrique Lemle. O Lemle foi o homem que deu o conceito de judeu aqui no Brasil. Não sei se vocês sabem, no meu tempo, a palavra judeu era quase que uma ofensa. A gente mesmo dizia: "não, eu sou da tribo, não sou Israel, não, sou só da religião mosaica". Evitar a palavra judeu, que era uma ofensa. Era pra nós mesmos. Sentimos o judeu como algo… Uma pancada na cabeça. Hoje em dia, judeu, nós fazemos questão de dizer: "não, eu sou judeu". "O senhor é aquela religião..." "Não, eu sou judeu". E elas ficam olhando assim pra mim. Até hoje. No hospital.
Até hoje no hospital é muito comum, quando chega assim uma certa ressalva… "Mas o senhor é daquela religião, né, no sábado..." "É. Judeu. Sou judeu sim. Sou judeu" Isso nós devemos a um homem. Rabino Lemle, que levou a religião para as universidades, levou a língua hebraica para ser estudada na universidade, e a tradução aqui na sinagoga, pra se compreender o que está se rezando. Nenhum chifre entre lá, nenhum diabo tem pacto conosco, tudo é natural. Tudo que você faz é bonito. E que, afinal de contas, o Jesus Cristo não foi nada demais, Jesus de Nazaré, que foi judeu, que estudou todo rabinato e que seguiu a religião, se revoltou, quis fazer uma nova religião. É preciso dizer aos outros. É preciso compreender que ele era um homem que contestou a religião do momento. E que não podia ser aceito. Como não foi mais tarde aquele grande sábio, que não aceitou a religião, que foi depois excomungado pela nossa religião, o Spinoza. Baruch Spinoza não aceitou a religião. Da maneira que estava sendo vista pelos rabinos. Não fez nada de mais. Tanto que hoje está sendo… O retorno dele está sendo muito bem visto. E muitos o serão assim. Mas nós temos a alegria de dizer: Aceitamos a religião como ela é. Procuramos dar interpretação a religião, como meu pai deu. Ele hoje não seria ortodoxo. Eu defendo esse ponto. Porque minha mulher diz que ele era ortodoxo. Que usava barba, usava kasher. Isso já era uma tradição, que não poderia mudar.
E - Porque a minha casa era diferente, né.
R - A casa dela era diferente. Não tinha tradição. Não usava a tradição. Ela voltou. Retornou. Como uma verdadeira góia, para a religião judaica. Não usava, não tinha isso como algo de importante. Pra mim é muito importante. Eu acho que a nossa permanência, a nossa união, a nossa maneira de nós sermos devemos a uma coisa; primeiro a religião judaica, talvez a ortodoxia, talvez ao próprio jeito de ser ortodoxo. Isso também manteve o povo unido, até certo ponto, que agora não é preciso. E depois, a religião iídiche... A religião, depois da religião, a língua iídiche. Eu acho que foi muito importante. A língua iídiche, pelo menos pros ashkenazim… Porque vê, o pessoal sefaradi usou a língua ladina. Usou o espanhol, ladino. Não sei como era no Egito. Vocês usaram o quê? Só árabe?
P/1 - Não. Estudava inglês, francês, inglês, italiano.
P/1 - Mas a língua dos judeus?
P/1 - Judeu não tinha língua. Era o hebraico, conhecido, entendido...
R - Que interessante. Os que estavam em Israel usavam o ladino. Era a língua ladina, porque vieram da Espanha, da Península Ibérica. Todos que foram pra Israel tinham necessidade de usar uma língua comum que pudessem entender. Então os judeus daquela época, que seguiram a tradição, que foram geração e geração, todos eles falavam ladino, em Israel. Sefaradi. Como pra nós foi iídiche. E iídiche para nós, nos congregou. Agora não. Acho que você não fala iídiche. Fala?
P/2 - Alemão.
R - Alemão. Bom, porque foi a língua dos seus pais, né. Quem são?
P/2 - Rosenblatt.
R - Rosenblatt. Porque a língua alemã, os judeus alemães não falavam, a não ser alemão. Só alemão. Porque o alemão era uma língua que deu origem ao iídiche. Foi quando os judeus saíram fugindo da Alemanha, como culpados pela peste negra, né, no século XII pra XIII, aí eram os culpados também pela peste negra, envenenaram os poços. Aí foram para a Polônia, foram para a Rússia. E aí levaram o alemão, se transformou em iídiche, né? E isso vocês vêem. A história se repete sempre. Tomara que nunca mais. Tomara que nunca mais. Nós estamos vendo essas coisas. Quando lemos as notícias - mataram um palestino. Mas não diz quantos soldados caíram, quantos filhos caíram, quantos filhos ficaram órfãos e quantas mães perderem seus filhos. Isso não falam. A preparação é igualzinho a do Goebbels. Nazistas. Preparando o caminho. Já preparando caminho. Falam com a maior naturalidade. E isso nós vemos, eu vejo a história se repetindo. A minha geração está vendo, está ouvindo, a mesma coisa que eu lia no jornal. Uma certa descrença. Lendo assim, rindo, dizendo: "ah, isso é bobagem, o que tem isso com a guerra? O que nós temos com isso?" Como vemos na Argentina essa perseguição. Acredito que vocês, poucos sentem-se atingidos. Porque a gente só sente...
E - Eu não me sentia.
R - Ela não se sentia. Porque não tinha essa razão. Não tinha. Não sentiam isso. Porque meu tio que veio já fugido da guerra. E quando veio morar conosco, eu ouvi os horrores dele, onde ele perdeu o filho, foi morto. Foi morto na presença dele. Ele conseguiu escapar. As peripécias que eles faziam pra conseguir escapar. Muitos com nomes trocados. Era impressionante quando a gente vê isso. Quando eu conto isso pra hoje, a geração de vocês já não aceita, não compreende, acha que é um romance. Eu digo à você, eu digo, não quero generalizar, mas nós tivemos aqui um almoço que veio um filho que os pais eram dos campos de concentração alemães. Ele disse que não entende porque... Ele não sente porque nós fazemos essa celeuma em torno de Yom HaAtzmaut, tá bom, tá, mas porque Yom HaZikaron", essas coisas, isso acabou, não existe. Ele, por exemplo, não se sente tocado em nada. Eu tentei explicar pra ele, falar com ele. Ele disse: "Olha, meus pais devem sentir isso. Mas eu não posso sentir nada". Disse: "Eu compreendo. Você tem tudo que os seus pais não tinham". E eu senti ainda a conseqüência disso. Porque eu não nasci em berço de ouro. Eu senti a necessidade, com as próprias mãos, tirar as pedras do caminho. Era necessidade de vencer na vida. E sentia, a cada pedaço que nós fazíamos, ouvir dizer que… Do meu pai, "meu pai tinha isso e algo mais. De mim tiraram". (interrupção).
Porque ele já nasceu com muitos violinos. E já nasci com o violino do lado. Mas meu pai escapou com o violinozinho dele aí. E era o máximo pro meu irmão mais velho, escapar com o violino. Porque eu disse que ele não vendeu o violino. Escapou com esse violino. Escapou com a Chanukiá. Porque o violino, a Chanukiá, o livro fazia parte da vida dele. Era o cotidiano. Era a rotina do dia a dia. Os tefilin, talit, quipá, o livro, o violino, o Chanukiá eram as únicas coisas que podiam ter escapado. E isso eles levaram. Porque isso não tinha valor nenhum. Os candelabros que a minha mãe trouxe não eram de prata. Porque as de prata foram vendidas. Mas esse era o que sobrou da minha avó. Isso pra mim tem um valor extraordinário. Patrícia viu o que é isso aí. São coisas de 1800 e pouco. Isso tem um valor extraordinário. Minha avó acendia as velas, sei que minha mãe acendia as velas nela, o noivado foi feito com essas velas, casamento feito com essas velas, casamento e tudo com essas velas. E nós também. Então, isso pra mim tem um valor extraordinário. E muito mais do que um simples candelabro que acende. E muito mais que um candelabro de ouro ou de prata que pudesse ser comprado aqui. Ou mandado fazer lá pelo especialista,
que era o Feldman. Jamais. Isso pra mim tem muito mais valor. Não trocaria por ouro nenhum isso aqui. Talvez se pudesse comprar outro. Mas esse serviria pra mim. Esse são os meus candelabros. Esse são os nossos candelabros. É isso que eu quero dizer. Que isso fica arraigado na vida de um judeu. Não sei de outros. Pelo menos para nós, como religião, ficou isso. Isso eu acho importante. É o que fica do pai para o filho. É o que fica, o que a gente se identifica com isso. É isso que tem, é isso que você pode usar. Talvez tivesse melhores. Meus pais tinham um de prata. Mas não tem mais, "Oh, papai, mas isso é tão bonito". E acabou. Não tem mais nada. Se tinha algo melhor, muito bom. E estou muito satisfeito. Eu nunca me preocupei se é de prata. Tanto que Patrícia me disse: "não, não é prata não". Achei também que não fosse prata. Porque seria difícil sair, naquela época, tendo prata. Ia vender.
E - É um pedacinho da presença deles também, não é.
R - É claro. Não, estou dizendo no sentido do bem. Porque a pessoa que saia naquela época da Europa, dava graças a Deus, com a roupa do corpo, e vendia pra transformar em dinheiro. Isso era muito importante. Qual é a outra alguma pergunta que eu posso...
P/1 - E a sua formação de médico?
R - Minha formação de médico. Sabe que toda família judaica, fala-se sempre que o maior orgulho da família seria ter um doctor. Um doctor era muito importante. E eu sempre sentia que eu tinha assim uma inclinação muito especial. Tratava do meu pai, tratava da minha mãe, aprendi a dar injeção cedo, na farmácia. Quando morávamos na Praça XI, embaixo tinha uma farmácia. E eu como garoto ia sempre lá dentro ver. Naquele tempo, o farmacêutico, verdadeiro farmacêutico, não confundir com o de hoje, porque senão a minha mulher me mata, porque ela é farmacêutica, e farmacêutico de hoje não é farmacêutico, é o vendedor de drogas. Mas naquele tempo ele fazia o remédio. Ele era… Aqueles frascos, aquilo me fascinava. Eu era capaz de ficar o tempo todo com aquele farmacêutico, Seu Almeida, chamava-se Seu Almeida, era um homem fabuloso. Ele fazia aquelas drogas, lia aquelas receitas. Era uma verdadeira mágica pra mim. Era tão bonito. As cápsulas que ele preparava pro meu pai eram tão bonitinhas. Não sei se viram as cápsulas. Aquilo é feito de pão hóstia, né, pão puro. Aquilo… Amassava, botava naquela medida, aquela balançazinha toda bonitinha. Eu disse: "Ah, eu tenho que ser médico. Tenho que ser médico". E pra minha mãe ouvir que o filho quer ser doctor, então era muito mais... Eu queria dizer à vocês que ser músico era quase que um acidente ou um incidente. Na minha família não, que era muito natural. Era do meu pai, era minha irmã, era do meu irmão, era a outra que estudava canto. Esse negócio era tudo natural. Mas eu já era de uma geração que a música seria acidental. Eu teria que ser de uma outra profissão. Porque, é como diria o pai dela, um klezmer. O klezmer não seria bem aceito, imagina. Mas o doctor, podia ser um charlatão, aborteiro, a pior espécie, mas era um doctor. Tinha um dedo revestido de um anel de esmeralda, com dois diamantes, era… Sabe lá o que é isso, gravata colarinho. Podia ser o pior criminoso de colarinho branco, mas era um doctor. Eu então estudei medicina com um sonho diferente. Queria ser médico. Tanto que fui ser médico no bom sentido da palavra. Nunca me preocupei em ganhar dinheiro na medicina. Nunca me preocupei em ficar rico. Meu consultório era um consultório de bairro, para atender os pobres. Nunca - e está aqui a testemunha do sindicato dos músicos pra dizer se alguma vez cobrei de um músico. Um níquel e não só de músico. Qualquer parente de músico ou família de músico.
E - E a gente precisava bem aqui, hein.
R - E precisava. Porque eu vivia do que eu ganhava. Mas eu dava aula de música e vivia dentro do consultório pra dar consulta. Me sentia feliz. Me sentia realizado. E fui crescendo, a minha clínica foi crescendo. Não posso me queixar. Sobrevivi, me tornei um homem independente, me tornei um médico com certo conceito, pra chegar onde cheguei. E cheguei sem dizer, sem me queixar que me faltasse algo, nem a meus filhos, nem a minha mulher. Nunca faltou nada. Ela que diga. Talvez se queixe. Mas eu sei que eu fiz a medicina que eu gostava. Aquilo que aprendi. Como eu disse de início, eu tinha o professor Fritz Delauro e tinha o professor Cesar Salles, que eram os homens que eu sentia assim o sacerdócio neles. Então me espelhei neles. E transformei meu consultório, naquele tempo era médico de bairro, e era o médico do Catete, era conhecido do médico da família.
P/1 - Quer dizer que da Tijuca o senhor passou pro Catete?
R - Ah, sim. Da Tijuca fui morar na Rua Gago Coutinho, na Rua Marquesa de Santos. Aí fomos morar ali numa vila, onde me formei, já rapazinho. Já meu pai tinha falecido, tinha dezessete anos. E aí me formei...
E - Você não se formou com dezessete anos.
R - Não. Formei minha adolescência. Formação de rapaz, de garoto. Eu fui vivendo ali, fui conhecendo já outro modo de vida, já com a praia mais perto. Mas confesso a vocês, nunca fui a praia sem primeiro estudar violino duas horas. Nunca. Das sete às nove, era religioso tocar, estudar. Isso não tinha mais meu pai pra ver não. Sete às nove, acordava a vizinhança toda… Até hoje...
P/1 - A vizinhança não reclamava não?
R - Não, engraçado, não reclamava.
P/1 - Tocava bem, né.
R - Ao contrário… Não, não tocava bem não. Porque o exercício de violino é a pior coisa que pode existir. Talvez, pior do que isso seja o canto. Mas o violino é estridente, e as escalas são horríveis. E os vizinhos, eu vou dizer uma coisa a vocês… Meu vizinho era o mordomo do Getúlio Vargas. Foi quem encontrou o Getúlio Vargas morto. Naquela época era o Zaratini. Era o João Zaratini. Esse homem ficou tão fascinado com o meu respeito a minha música, a minha aplicação ao estudo que me adorava. Me adorava, tinha verdadeira adoração. E a tal ponto que chegou que ele fez com que o filho dele estudasse música. E botou o filho dele como eu fosse o exemplo, e botou o filho dele pra estudar com minha professora. E até… E fez estudar medicina. Ele seguiu totalmente tudo que eu fosse fazer. Ele me adorava. Getúlio, houve aquela história toda, depois o filho dele que estava estudando violino se formou médico, mas ficou mais como médico do que violinista, e teve um acidente na Praia do Flamengo com o carro, fez um tumor na cabeça dele, morreu mais tarde, jovem ainda, mas já pai de família. E o pai, mais tarde, desgostoso com a história do Getúlio acabou morrendo também. Mas a filha do Zaratini é minha amiga até hoje. O marido dela é médico também. E até hoje nós somos muito amigos. Isso é pra vocês verem... - Tem muitos alunos também dele que também foram seguir medicina e continuam na música. Isso eu vou contar. A minha formação médica que eu tive sobre todos os alunos, sobre todos meus amigos, que apesar de eu tornar-me assim um pouco inoportuno, estudando das sete às nove e muitas vezes das sete às dez da noite… Sete às nove da manhã e sete às dez da noite. Porque eu tinha que preparar programas. Porque naquele tempo, era conhecido como violinista patrício da rádio Ministério da Educação. Era criança antes disso eu tinha obrigação de preparar programas. Porque minha professora não sabia que o violinista patrício era eu. Eles diziam o nome, mas ela ouvia assim e tal tocar. E era menino. E fazia semanalmente a campanha nacional da tuberculose. Existia uma campanha de tuberculose. E quem fazia esse programa era eu. Vejam vocês. Eu nem pensava em medicina naquela época. Talvez pensasse, gostasse. Mas eu fazia essa hora. Uma coincidência. E fazia as sextas feiras à noite, depois do Shabat, eu ia fazer ao vivo no rádio, que era na rua da Carioca, das oito e meia às nove e meia, semanalmente. Então tinha que fazer essa programação. Já era um incentivo pra mim. Quer dizer, além de ter que estudar pra professora, tudo que eu estudava pra ela, eu já aproveitava pra preparar como incentivo pra mim. Vejam vocês outra razão desse incentivo. Já garoto, voltando já nessa parte, continuando a programação, veio fugido da guerra, da Alemanha, um grande pianista. Niron Kroeter. E o irmão dele fez o quarteto Budapeste. Não sei se já ouviram falar desse quarteto Budapeste. Pra mim foi o melhor quarteto de todos os tempos. O mais famoso era o irmão dele, Boris Kroeter na viola, era o Alexander Schneider, russo, no violino, e o Misha Schneider no violoncelo. E o Roisman no primeiro violino. Então fizeram esse quarteto. E o Niron Kroeter veio aqui pro Brasil, não seguiu pros Estados Unidos. Foi uma pena. E aqui ele ficou e acabou sendo o meu acompanhador. Eu, sentindo um pianista como ele de tanto valor, acabei pegando o repertório do meu irmão, que músicas não me faltavam, e acabei fazendo o repertório. Aí tocava em tudo que era clube. Tocava tudo. Eu era o arroz de toda festa, como diz Esther. Arroz de toda festa.
E - Nas festas judaicas.
R - Não, judaicas só não. Ajudei a construir o templo presbiteriano, ajudei a construir a primeira igreja adventista, ajudei a construir essa positivista, da Benjamin Constant. Fazia por todos porque me procuravam. Porque no rádio era o único elemento de comunicação, naquela época, de divulgação. Então eles ouviam, - violinista patrício, Jacques Nirenberg. Me chamavam pra tudo que é festa. Pra tocar era preciso estudar. Pra estudar é preciso repertório, para ter repertório é preciso tocar. Então era preciso estudar. E eu passava estudando. A música tornou-se o meu pão nosso de cada dia. E eu não sabia viver sem ela. Mas quando veio a idade do vestibular, eu fui estudar pro vestibular. Eu, naquele tempo, estava tocando no Cassino da Urca, até as três da manhã. Era muito duro pra mim. E a primeira aula era às sete da manhã. Eu chegava em casa, da Urca, aqui no Flamengo, na Marquesa de Santos, era umas quatro horas. Mas eu tinha que rever os pontos, tinha que estudar alguma coisa. Porque não dava tempo. Era duro pra mim. Tinha que entrar às sete horas. Era aula de física. Eu já no complementar. Porque naquele tempo não existia ainda o científico. Eram dois anos de complementar. Eu sentava na primeira cadeira pra poder aguentar as palavras do professor Werneck,
que era da Escola de Engenharia, um grande mestre. Mas eu confesso a vocês que eu não conseguia compreender nada. Ele falava, eu ouvia a voz de longe… E dormia. Ele, às vezes, eu me lembro que ele chegava assim, batia com aquele bastão… - como eu estava dizendo, por exemplo não sei o que é gravitação. - Eu olhava pra cara dele. Eu ficava assim na frente, olhando e tal, mas daqui a pouco, normalmente, estava… E eu fui falar com ele, explicar que não era a aula dele, era a minha situação de trabalho e tal. E assim foi. Mas eu consegui vencer. Com os feriados, sábados e domingos, com os cadernos, com os pontos dos meus primos, que já eram engenheiros, mais velhos do que eu, pedia pra eles que explicassem, davam o ponto mastigado, estudava bem, e tirei a melhor nota de física, melhor nota de química… As matérias que eu tinha mais medo eram Ciências, Física, Química e… Química, Física, Ciências, foram as melhores nota que eu tive. É foi… Tirei um dos melhores lugares. Me sinto assim… Sai engrandecido. E vou dizer uma coisa a vocês. No dia do exame, que era prova… Vestibular era prova oral, né, eu estou lembrado que eu fui fazer vestibular e eu tinha um concerto nesse dia, na Escola de Música, com o quarteto. Porque em 41, eu formei aqui uma sociedade, depois papai já tinha falecido. Chamava-se Sociedade Brasileira de Música de Câmara. E a sede era na Escola de Música, onde eu era o cobrador, fazia os programas, tocava, cobrava dos que entravam e… Ela me conheceu assim já. Isso foi em 41, eu a conheci em 44. Ela me conheceu ainda dando concertos, na porta, sem paletó, estava cobrando os sócios. Disse: "Olha, você está atrasado com o recibo…" Era cinco mil réis por mês. Tinha direito a um concerto semanal. E aí, lá dentro, botava o summer, gravatinha e ia tocar sonatas, trios, quartetos pra fazer programa. Como não dava tempo de preparar com os outros semanal, então eu fazia sonatas sozinho, tocava duos com outro, tocava. Então me obrigava a tocar. E quando no vestibular eu me tornei assim levado pra fazer medicina, como estudei… Eu disse: "Eu vou fazer medicina porque eu me prometi que vou ser médico. Prometi a meus pais que vou ser médico". Prometi não é bom termo. Mas sempre dizia: "Eu vou ser doctor". Minha mãe dizia com orgulho que gostaria de ter, quer dizer, dava a entender que teria um doctor, e meu pai seria orgulhoso nisso, e eu fui estudar medicina. E a medicina me levou a fazer o que eu fiz e a compreender melhor a pessoa humana. Fui fazer psiquiatria tentando entender melhor esse povo, que confesso não entendo até hoje. Não entendo por que o homem quer matar o outro. Quando tem o exemplo dos mais simples animais, dos índios, que só matam pra comer. E nós nos matamos uns aos outros estupidamente. Estou a vias de me aposentar, que não me aposentei ainda, estou de férias. E estudando, botando os meus livros em dia, escrevendo, estou com três livros praticamente prontos pra serem publicados.
P/1 - Livros sobre medicina?
R - Um seria a minha lembrança da medicina. Outro seria mais técnico - Terapias Alternativas. E outro sobre música. Já estou com o editor pronto. Mas eu digo a vocês. A medicina me deu uma visão muito grande da vida. Eu pensei que não voltaria mais a música. Mas o quarteto me fez voltar a música. E a música me faz viver, me faz sentir muito feliz. Porque a música é maravilhosa. E com isso criei a música na medicina. Tanto que eu hoje sou o membro benemérito honorário da Sociedade Brasileira de Musicoterapia, que ajudei a criar. E a medicina hoje aceitou a música, eu não digo graças a mim, mas comigo. Porque eu sendo diretor de um hospital, tendo colocado a música dentro de um hospital, eu hoje fui acreditado. Então os meus acadêmicos do Hospital Pinel, um deles até judeu, e o Lowenkron, Theodor Lowenkron, o pai alemão. O Theodor Lowenkron levou pro Instituto de Psiquiatria, que ele era acadêmico de lá, e levou pra a Casa de Saúde Doutor Eiras. Então eu sou o responsável. E fui reconhecido pelo concurso de musicoterapia, que hoje é faculdade, e hoje me deram essa honraria de ser sócio honorário benemérito, essa coisa. Esse título. E está tudo bem. Hoje está se usando a música, se falando em musicoterapia com facilidade. Mas quando eu comecei… Nós fomos ao Rio Grande do Sul abrir o curso de musicoterapia, quem abriu o primeiro curso de musicoterapia lá no Rio Grande, em Porto Alegre, foi outro curso aberto. Depois foi
Curitiba. Mantivemos correspondência, vieram aqui, e abri o primeiro congresso de musicoterapia aqui no Brasil. Foi aqui no Palácio Tiradentes, na Praça XV. E assim eu me sinto feliz de ter realizado alguma coisa. Dizer que eu esteja realizado, não. Eu acho que o homem só é realizado quando morre. Eu acho que perderia a ambição. E não perdi. Nós temos que realizar. Enquanto o homem vive, tem que realizar. E fazer. Se eu dissesse a vocês: puxa, já fiz tudo isso. Olha, não preciso fazer mais nada. Fosse deitar em berço esplêndido, estaria fazendo como a minha terra está fazendo. Deitada eternamente em berço esplêndido, querendo congelar tudo com esse calor. E não congela. Então nós estamos nessa desgraça. Eu acho que minha vida se prende ao fato de eu ser ambicioso. Ambicioso. Ambicioso no sentido de querer fazer algo mais.
E - Não materialmente. Isso não. Tirem da mente. Totalmente. Não é mesmo.
R - Não. Isso ela que fala. Que ela acha que eu não ligo ao dinheiro. Não. Isso não é verdade. Nada me falta. Olha que beleza que eu tenho. Tenho bens, tenho tudo. Tenho tudo que eu preciso. Posso viajar todo ano, posso me dar ao luxo de manter isso que eu mantenho, casa em Teresópolis, poxa. Mais rico do que eu sou? Não preciso de mais nada. Não vou levar nada. Se eu morrer, meus filhos já tem herança. Eles já fizeram o deles também. De modo que não preciso... A minha ambição se prende ao fato de realizar muito mais. Eu fui muito frustrado. Frustrado no Hospital Pinel, quando me tiraram de lá, por uma questão de inveja, por uma questão de ambição deles, e vaidade. Eu era o médico mais conhecido, era o mais antigo do Hospital Pinel, era o mais querido. Era um médico… Quando se falava Pinel, se falava Doutor Jacques. Quando eu entrava no hospital Pinel, os doentes todos na janela: "Doutor Jacques, Doutor Jacques!" A liberdade era absoluta. E consegui um movimento lá dentro. Eu não digo nova psiquiatria, mas a psiquiatria como eu a vejo. Onde o doente mental é respeitado e aprende a respeitar os outros. Onde os próprios doentes mentais melhorados tratavam dos outros doentes mentais. Toda semana eu tinha a semana social, chamava. Toda semana. Então eu fazia aniversário de um mês. Fazia a semana social. Semana social eram os doentes que traziam um cafezinho para os seus familiares. Então os próprios doentes… Mandei tirar os uniformes. Porque eu acho detestável botar alguém… Tirar a identidade do indivíduo, botar uniforme, pra dizer: doente. Isso tirava a possibilidade dele reagir. Dizia: tá bom assim, por que eu vou reagir? - Então eu senti isso. Porque eu sempre me criei ao lado do doente. E nunca fui de gabinete. Quando eu assumi o Hospital Pinel, a primeira coisa que eu fiz foi ir a cozinha. Porque achava que a cozinha estava mal servida. Reformei a cozinha. Mandei botar os leitos mais separados um do outro. Mandei que na hora que o outro fosse ser medicado com algo mais, como se usava muito eletrochoque, que pelo menos se pusesse o biombo. Então eu devo isso também ao meu mestre, professor Jurandyr Manfredini, e a outro colega, meu grande (habib?), que era o Amin Curi. Grande mestre. (interrupção).
Ele é o maestro. Valia por quatro. Cada um nos demos dois nomes, porque assim valem por quatro. Realmente eles valem por quatro. São maravilhosos. Olha, todos os filhos são maravilhosos. Mas o que eu tenho é mais maravilhoso não... E fora do comum. Meu filho, que ligou agora, precisa falar muito comigo. Tudo que ele faz, ele me dá uma satisfação. Não pergunta se eu posso ir papai. Mas no sentido de saber como agir, se está de acordo. E acho isso muito bonito. Porque nós nos comunicamos admiravelmente como amigos. Então isso… Meu filho que foi pros Estados Unidos… Casou aqui e foi logo embora. Casou, dois dias depois foi embora pros Estados Unidos. Ele ganhou uma bolsa da Fulbright. E ela também ganhou uma bolsa da Fulbright. A mãe dela não deixava que ela fosse sozinha com ele sem casar. A mãe dela está certa. Ainda é daquele tipo. Hoje em dia não se liga mais pra isso. O casal quer ir, ele foi ué, e se eles se conhecerem lá, solteiros, não é a mesma coisa? Mas como eles se conheciam aqui, já eram namorados, eu já chamava de meu genro, já vinha aqui em casa, tudo bem, ela achou que deviam casar. Dois dias depois eles foram pros Estados Unidos, que estavam com bolsa. Tanto um como outro. E full tuition, que é uma bolsa de primeira, com toda a atenção e tal. Formou-se lá, terminou. Ficou… Estão há dez anos. Ele hoje é maestro da orquestra de Los Angeles, é maestro titular de uma orquestra que tem lá, e ganhou prêmio, junto com Pelé. O cultural e o Pelé do esportivo, né. Está lá ele. Lá em cima estão os dois comigo, no tempo em que éramos cabeleira, usávamos cabeleira. E ele é hoje um maestro muito bom, músico muito bom. Aqui ele já tocava muito bem violino e tocava muito bem violoncelo. Como meu filho, todos os dois tocaram dois instrumentos. Eu toco viola e violino. Meu filho toca viola e violino, aqui. Ele é viola, na Sinfônica Brasileira. Toca violino aqui comigo. Todos os meus alunos estudaram só comigo. Com ninguém mais. Foi lá já com repertório pra fazer a bolsa e sai fora. Lá que ele estudou regência. E como regente, ele é um maestro que está sendo disputado. Viajou agora pra… Na América, quem fez em Nova York a estreia Villa Lobos foi ele. Aquele ano Villa Lobos, o ano passado, chamaram ele de Los Angeles pra ir fazer concerto em Nova York. Isso foi uma honra muito grande. Assistido por toda a nobreza. E foi chamado para dirigir no México a Orquestra Nacional de lá, a melhor orquestra de lá, viajou o México. E assim tem sido. Ganhou o prêmio do major, lá do prefeito de Los Angeles, como homem do ano. E está indo. Rapaz de 33 anos. Rapazinho jovem ainda. Está com um futuro brilhantíssimo. A única coisa que ele diz: "Papai, quando tem terremoto aqui, a única coisa que eu tenho… Uma saudade do Rio (risos). Uma saudade do Rio". Ela então. Ela está doida pra voltar. Está doida pra voltar. Ela é professora lá da universidade. Conseguiu ser chamada. Porque ela é estudiosíssima. Já fez dois mestrados. Não perdem tempo. Ele também. E ela já está com doutorado já, defendendo tese. Este ano vai defender a tese. E isso aqui me dá uma alegria muito grande como pessoa. Nesse sentido, dizer, mas estou realizado? Não, eu não posso dizer que eu esteja realizado. E não sei se… Não quero que entenda isso como um homem querendo ter mais do que tem. Não. Com a família, estou feliz, está tudo muito bem. Mas no sentido de dizer que eu esteja assim: bom, agora posso descansar, acender meu charuto. - Nada disso. E quero trabalhar até o fim. Por que não se aposenta? Estou com 41 anos de trabalho no hospital.
P/1 - E o senhor estava falando da sua frustração, quando nós fomos interrompidos.
R - Pois é. Vejam bem. O hospital foi fundado, eu fui um dos primeiros fundadores. Não existia. Era Neurossífilis, antigamente. Não sei quem tem essa história do hospital. Antigamente lá não existia Pinel. Era chamado hospital de Neurossífilis. Aquilo tudo. Aquele hospital ia, nós não éramos nascidos ainda, onde é o Iate Clube, na Praia Vermelha, toda aquela parte, até a Praia Vermelha, desde lá, onde tem aquela capela, onde tem a Escola de Medicina, onde tinha a Escola de Medicina,
Agronomia, tudo, de lá chamado Hospício Pedro II.
E - Era um hospício. Vocês não lembram. Você não era nascida.
R - Não. Nem eu. Naquele tempo nem eu, nem você. Hospício sim. Mas quando ia até o túnel, onde era o Touring Clube, onde é a ARI. Aquilo tudo era o hospício. Aquilo tudo, hospício. Onde é a reitoria antiga, na Praia Vermelha, UniRio, aquilo tudo eram doentes internados. Eu ainda peguei o resto Neurossífilis, que sobrou. E era o Neurossífilis que depois veio então [a] ser o Pinel. Eles fizeram o Pinel, transformaram em Pinel, no sentido de dar uma forma nova de tratamento aos doentes mentais. E eu fiquei muito apaixonado com isso. Quando entrei lá, realmente, não pensava muito… Entrei mais como clínico do que psiquiatra. Mas, pouco tempo depois, o professor Manfredini disse: "Não, você faz parte da nossa família. Eu já vi seu trabalho aqui, você é psiquiatra. Você é o irmão". (Habib?), que era meu diretor, me deu muita consideração, muito respeito. Acabei saindo de um simples assistente médico lá dentro, acabei chefe de equipe, chefe de plantão, chefe de serviço, assessor. Fui tudo que vocês podem imaginar. Inclusive assessor do diretor-geral da Divisão Nacional de Saúde Mental, para todo o Brasil. E fui o primeiro diretor - cargo que foi criado no Ministério da Saúde - fui o primeiro diretor de atividades supletivas. Quer dizer, eu era o médico que seria substituto de todos os diretores. Qualquer problema que eu tivesse, eu era chamado pra resolver, para ficar no lugar dele. Uma interventoria. Quando veio a revolução, desgraçadamente, acharam que eu era muito honesto, muito sério, me botaram como presidente dos inquéritos administrativos… (interrupção).
Aquela gente toda que eu não incriminei, que eu deixei livre, depois soube me dar o pontapé direitinho. Toda essa gente. A minha frustração, se prende, justamente ao fato de que quando houve mudança de governo e veio a democracia, quando veio a liberdade e eu pensei que agora eu poderia agir de outra forma, infelizmente eles me tiraram daquilo de onde eu seria o formador, o iniciador de um movimento ou seguidor de um movimento de um homem humanista, como era Manfredini, de transformar o Hospital Pinel num lar de recuperação. Esse que era o meu objetivo. Lar de recuperação do doente mental. Onde a família podia visitar a qualquer momento, não tinha esse negócio de hora de visita. Onde doente não precisava de ter cama pra deitar, a não ser pra dormir. Onde o dia todinho tinha oficinas pra fazer. Ele tinha atividade de tudo. Se ele sabia cortar, ele ia cortar, não tinha medo da tesoura. Se ele sabia moldar, ele ia moldar. Se ele era um professor, ele ia dar aula da matéria que ele dá aula. E nós íamos lá fingir que estávamos aprendendo, porque dávamos incentivo. Então isso aqui era uma verdadeira casa de recuperação. Era maravilhoso. E isso, quando vieram então os novos, era um garotão que nunca tinha feito psiquiatria, nunca tinha passado pelo Pinel, quando ouviu falar, Doutor Jacques era o mais importante lá, tudo era Doutor Jacques, - "fale com [o] Doutor Jacques" - e natural, porque eu já não era mais o diretor, eu era o chefe do serviço de terapia ocupacional. Era o diretor do serviço de apoio técnico. Era responsável pela Psicologia, pela Farmácia, Odontologia, Medicina, cozinha, nutrição. Só isso. O diretor assinava. Eu era responsável por tudo. Inclusive estatística. Ah, e biblioteca. Estatística e biblioteca. Quer dizer, vocês imaginem, no hospital, praticamente, eu era o diretor executivo. Ele era o diretor que fazia lá, assinava. Bom, isso me dava muita força. E eu era muito conhecido. Quando chegou um homenzinho lá, um rapazola, da idade do meu filho, viu lá um homem de cabeça branca - era cinco anos passados... Não. Já tem mais, né. Oito anos passados. Exatamente oito anos passados. Chegou lá: esse homem, é conhecido demais, eu tenho que tirá-lo. E como diz aquele ditado: matar o galo na primeira noite. Eu sou ou não sou? Então ele me tirou. Me deu o ofício, me transferiu pro Engenho de Dentro.
E - Sem motivo, sem nada.
R - Fui falar com ele, ele disse: "Não, motivo nenhum. Somente a razão que é meu direito. Eu sou o diretor, tenho direito de fazer isso". E fui embora. Acabou o serviço de psicologia, acabou o serviço… Eu instalei em todas as faculdades um convênio que pudesse mandar, qualquer faculdade podia mandar os seus alunos para o Pinel. Isso dei no... No penúltimo ano eu dei essa liberdade. Lutei muito, apanhei muito das próprias escolas, que não aceitavam que eu abrisse as portas pra aluno sem que passasse por eles. Porque eles se sentiam diminuídos. Isso realmente me criou também uma inimizade com determinados setores. Mas eu não podia estar ouvindo escola por escola. Eu ia numa escola, fazia uma conferência sobre doente mental, o pessoal se apaixonava e viam me procurar no Pinel. - "O que eu posso fazer pra ajudar?", "Muita coisa. O que você faz?", "Ah, eu sou professor de Pedagogia". "Ótimo. Você não quer tomar parte de um grupo de estudos aqui, que você possa lecionar? Ou ensinar a alguém como é que se ensina um doente mental?". Iam na Escola de Comunicação. Iam me procurar. "O que você faz?", "ah, eu quero fazer filme e tal". "Você já pensou em fazer um filme com doente mental, sem que ele soubesse, depois você conversa com ele, se ele se incomoda em conversar com você. Eu permito". E assim foram se fazendo filmes, obras, livros, tudo foi escrito. E a maneira de se estudar o doente mental.
E - Educação Física.
R - Educação física pra doente mental. E ia pra Educação Física, a escola, clube de ginástica, faziam conferências, falava sobre doente mental. Eles mandavam alunos. Depois consegui com a Piedade, daquela nadadora, que foi diretora da Escola de Educação Física, que ela me mandasse estagiários, que valesse o meu estágio, minha assinatura valia como estágio. Então tinha pessoa de Educação Física comigo. Vocês entendem? Quer dizer que era um movimento; eu não fiz nada demais. E só cabeça. Não custou um níquel. O que o aluno ganhava com isso? Experiência, certificado de estágio, que valia muito. E pro doente, o doente era assistido, isso é que é importante, 24 horas por dia. Sábados, domingos e feriados, que é a desgraça do doente que é abandonado, ele era assistido. Porque tinha para cada três, quatro doentes, eu tinha uma equipe. Tinha tanta gente, que tinha uma equipe. E chegava a qualquer hora da noite, a gente olhava o papel - fulano de tal- equipe: fulano, fulano, fulano. Telefonava pra qualquer um deles. Ou procurava naquela hora. "Manda chamar um deles". "Como é que está fulano de tal?". "Ele está assim, assim, assim. Hoje não tomou o remédio, está passando bem, já está em vias de alta". - Chamar família pra preparar a família pra alta. Porque… E outro problema. A família não aceita o doente mental. Porque não está preparada. Porque doente mental traz muito transtorno pra casa. E se a família não for quem… Deus queira que você nunca tenha essa experiência, jamais venha a sentir, mas quem já teve essa experiência sabe que é uma desgraça ter um doente mental em casa. Porque não está preparado. É uma vergonha. Nós tivemos aqui um caso, uma família iídiche, que ficou comigo, que como a outra irmã ia ficar noiva, internaram a doente mental pro noivo não reparar que a outra é doente mental. Quer dizer, é uma coisa que a gente compreende o problema. Bom. E essa frustração que eu tive foi justamente, me cortaram a minha carreira, me cortaram completamente, como dizem os jovens de hoje, o meu "barato". Que o meu doente mental é o meu "barato". Disse que eram meus amantes. Porque sábado e domingo eu vivia no Pinel. Era um amor. Eu vivia aquilo. Você sabe o que é estar com doentes, ouvir boa música? Eles adoravam música. Eles se sentiam bem comigo, eu me sentia bem com eles, ouvindo música. Eu aprendi ouvir a minha música que eu precisava ouvir e eles ouvindo música num silêncio absoluto. Você sabe o que é você fazer um grupo operativo com doentes mentais? E eles falando. Teatro experimental. Fizemos uma peça só com doentes mentais. Coisa inédita. Depois filmaram.
P/1 - Mas o importante é o senhor contar isso tudo. Está escrevendo um livro, conte isso tudo no livro.
R - Ah, é claro. A Globo filmou tudo. A TV Globo filmou tudo, tudo. Pegou fogo. Esse fogo aqui da Globo, pegou tudo. Todos os meus documentos que eu tinha no Pinel, todos os livros de ata, esse Paulo Cesar Geraldi, que foi diretor do Pinel, queimou tudo. Jogou fora, pra não deixar um vestígio meu.
E - As obras de arte que os doentes fizeram. Uma espécie de Museu do Inconsciente.
R - Um museu de arte feito por doentes. Aquele museu, distribuiu entre os… Não tem nada. Nada que fale em meu nome. Tanto que eu, hoje, vou ao Pinel, eu voltei do Pinel agora há três anos, eu voltei ao Pinel, eu tive a glória, (kavod?) me deram, de voltar ao Pinel, e lá não deixam fazer nada. Me deram um cargo de chefia, só pra não dizer que não me deram nada, me deram um cargo de chefia. Documentação médica. Como quem diz, olha, você é chefe, não amola ninguém. Fica aqui, o ar condicionado, se você quiser mais alguma coisa, um pouco de água gelada, mas não fale com ninguém. Então tem gente que nem sabe quem sou eu. Mudou tudo. Aposentaram. E eu estou lá. Então eu estava relutando. Vale a pena aposentar? Eu realmente, se fizer toda a contagem, estou mais de quarenta anos de serviço. Vale a pena aposentar? Será que vou ter um vazio? Ela diz que vale. Eu sou professor da universidade. Plena ativa. Eu lá posso pegar uma dedicação exclusiva. Até ganhar mais do que eu ganho aqui.
E - Porque não tem consideração, não é. Não tem um pingo de consideração com ele. Não tem mesmo. E até o diretor. Não tem. Não tem. Ah, vai… Sai logo.
R - Agora nós temos um diretor iídiche lá. Mas não foi ele que me chamou. Foi uma outra diretora que me chamou. E ela saiu, e esse rapaz ficou lá, mas eu não tenho… Não tenho mais nenhum... Eu fui chamado por Instituto de Psiquiatria... Eu fui pro Instituto de Psiquiatria, a pedido do diretor, para ajudá-lo, para assessorá-lo. Mas confesso que não tenho mais.... Queimou, sabe. Caiu tudo, cinzas. Não tenho mais vontade nenhuma. Aquela chama que me fazia viver pelo doente, agora não. Agora é tudo planejamento, projetos. Eu não sou homem de sentar com projetos, planos. Não sou capaz de fazer isso. Eu sou uma pessoa, eu tenho aquele dinamismo dentro de mim. E não sou capaz de estar sentado aqui, sabendo que eu posso realizar com o doente. Aí vem dizer: mas por que você não diz como se faz? - Como é que se faz. Vem comigo, você vai ver como é que eu faço. O maior problema que eu tinha era com meus acadêmicos que perguntavam: "onde o senhor se baseia no que o senhor está fazendo?" E gostaria que o senhor ensinasse. E digo: "Olha, a única receita que eu conheço, boa, é a que minha mulher faz para bolo de receita. Receita com bolo. Esse bolo que sai bem de receita assim é o único que eu sei. Aqui eu não sei receitar não. Venham ver o que eu faço. O resultado está aí". Eu sempre dava exemplo a eles. Receita de bolo eu não dou. Não dou. Eu faço. Eu tenho uma intuição. Nessa intuição eu vivo. Agora, se eu tenho muito o que fazer ainda, eu farei na música, farei nos meus livros, realizado não me sinto, nesse sentido. Porque eu poderia fazer muito. Teria feito muito. Hoje, até hoje eu vejo os doentes que foram recuperados. Olha, doentes que teriam sido feitos em frangalhos. E hoje tenho um doente que é gerente de uma das maiores redes de hotel. Um homem fabuloso. Ele, quando me vê, até hoje, diz: "O senhor foi meu salvador. O senhor me salvou". - E ele sabe, tem consciência disso. São essas coisas que me dão essa força. Hoje eu vejo doentes que era pra ser até... Estavam discutindo se vão operá-la, fazer uma experiência, tirar a parte frontal pra não ser tão agressiva. A única pessoa que ela adorava era a mim. Então o diretor, que hoje é diretor do Engenho de Dentro, Doutor Pedro Monteiro - eu digo os nomes porque são fatos - ele dizia assim: "ah, eu não sei. Eu tenho a impressão que se eu trouxesse balinha pros doentes, e dando chocolatezinho e dando abraçinho, talvez quisesse muito bem" - querendo me criticar. Que eu trazia balinhas, roupinha pra doentes. Mas é preciso. Como é que catequizou os índios bravos? Como é que catequiza? Como é que traz uma criança junto de você? Dando que se recebe. Eu dava a essa doente. Era agressivíssima. Terrivelmente. Ela me adorava. Só a mim que ela obedecia. Briguei, quase chorei em público pra não operar essa mulher. Briguei. Foi preciso brigar, levantar, dizer: "Não falem nisso. Vocês estão errados. Nunca deu certo essa operação. Vocês vão transformar essa mulher num farrapo. Essa professora..." - A mulher era professora na faculdade lá em Fortaleza. Como é que vocês tem coragem de falar isso. Isso quando nós reuníamos. Era uma briga danada. Eu era apoiado pelos jovens, era muito apoiado. Os jovens me apoiavam, porque não admitiam. Já os antigos: "Não, porque fulano foi operado, ficou bem e tal". Ficou um farrapo. Porque ele perde completamente a vontade. Quer dizer, essa parte chamada volemia é perdida e o homem se torna um boneco. "Vem cá". Ele vai. "Ri. Vê como ele ri? Tá vendo? Senta". Ele senta. Quer dizer, um homem assim está um trapo, uma mulher. Jamais. E até hoje conseguimos fazê-la um pouquinho melhor. Ela foi pros pais dela. Voltou aos pais dela, pra Fortaleza. Como está, não sei. Perdi… Outros casos que encontraram a família. Casos fabulosos que eu tenho. Casos lindos, lindos. Não posso dizer os nomes porque… Não pode. Mas tem casos. Esse caso desse gerente, que era seminarista, ele é hoje gerente de uma rede de hotel, uma das redes importantes de hotéis. Esse homem está um negócio. Eu nem sabia. Ele se despediu de mim e saiu. Um dia fui encontrá-lo no hotel. Fui chamado justamente para realizar congresso de musicoterapia. Quando ele me viu entrar… Ele arrumou a sala pra reunião. Quando ele me viu, me abraçou, disse: "Eu sou gerente daqui". "Mas como?". "É sim. Mas agora eu não vou estar aqui. Vou pra rede tal e tal". Então, isso que eu queria contar a vocês.
P/1 - Muito bonito. E o senhor deve contar isso no seu livro.
R - É. Eu não sei… E não sei se alguém vai ler (risos).
P/1 - Escrever é sua obrigação.
E - Você faz o quê?
P/2 - Eu estudo história.
R - Ah, então você deve estar muito interessada.
P/1 - Eu estou aflita pelo seu horário.
P/2 - É. Eu tenho que trabalhar.
R - É. Olha, eu também tinha o que fazer hoje, de modo que nós estamos iguais. Você está onde? Está dando aula hoje?
P/2 - Não. Eu trabalho na H.Stern.
R - Ah, na H.Stern? Deve conhecer o...
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