A primeira imagem que me vem à memória de mulheres (mal)ditas em minha família é de tia Constança, casada com o irmão mais velho de minha mãe. Meu tio costumava visitar os pais aos domingos, sempre desacompanhado da esposa. Tinha um olhar triste e distante. “Tancinha”, como era conhecida na família, era a nora e a cunhada considerada (mal)dita por todos [maldita, do latim maledicere, significa “falar mal de alguém”, sendo male indicativo de “mal” e dicere, “dizer, falar”; na função de adjetivo, significa aquele(a) que é alvo de alguma maldição]. Ainda criança, nunca pude entender a razão de tamanha maledicência. Talvez porque ela fosse uma mulher à frente de seu tempo e não se ajustasse à “cultura” e aos “hábitos” da família do marido. Era professora, posição privilegiada e atípica para mulheres nos primórdios do século XX, naturalmente predestinadas ao cuidado do lar, do marido e dos filhos. Quando meu tio faleceu de infarto fulminante, vovó, que já era viúva, compareceu ao velório do filho. Tancinha, com ar abatido, estava prostrada junto ao caixão. Ninguém da família demonstrou-lhe compaixão ou teve um gesto de solidariedade. Anos mais tarde, já adulta e prestes a me casar, encontrei tia Tancinha casualmente na rua. Soube por mamãe que ela se tornara uma pessoa muito religiosa. Fiz questão de falar com ela e convidá-la para o meu casamento que seria celebrado em cerimônia íntima, restrita à família – a mesma que a amaldiçoara no passado. Comovida, até me enviou um presente, mas não compareceu. Nunca mais tive notícias de minha tia e nem de meus primos cuja convivência me fora subtraída pela (mal)dição que recaíra sobre ela e sua família. Muitos anos se passaram e jamais poderia imaginar que a (mal)dição de “Tancinha” pudesse repetir-se algum dia.
Recém-casada, aportei “nas terras dos altos coqueiros”, um mundo novo e desafiador a ser descoberto, desbravado e...
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A primeira imagem que me vem à memória de mulheres (mal)ditas em minha família é de tia Constança, casada com o irmão mais velho de minha mãe. Meu tio costumava visitar os pais aos domingos, sempre desacompanhado da esposa. Tinha um olhar triste e distante. “Tancinha”, como era conhecida na família, era a nora e a cunhada considerada (mal)dita por todos [maldita, do latim maledicere, significa “falar mal de alguém”, sendo male indicativo de “mal” e dicere, “dizer, falar”; na função de adjetivo, significa aquele(a) que é alvo de alguma maldição]. Ainda criança, nunca pude entender a razão de tamanha maledicência. Talvez porque ela fosse uma mulher à frente de seu tempo e não se ajustasse à “cultura” e aos “hábitos” da família do marido. Era professora, posição privilegiada e atípica para mulheres nos primórdios do século XX, naturalmente predestinadas ao cuidado do lar, do marido e dos filhos. Quando meu tio faleceu de infarto fulminante, vovó, que já era viúva, compareceu ao velório do filho. Tancinha, com ar abatido, estava prostrada junto ao caixão. Ninguém da família demonstrou-lhe compaixão ou teve um gesto de solidariedade. Anos mais tarde, já adulta e prestes a me casar, encontrei tia Tancinha casualmente na rua. Soube por mamãe que ela se tornara uma pessoa muito religiosa. Fiz questão de falar com ela e convidá-la para o meu casamento que seria celebrado em cerimônia íntima, restrita à família – a mesma que a amaldiçoara no passado. Comovida, até me enviou um presente, mas não compareceu. Nunca mais tive notícias de minha tia e nem de meus primos cuja convivência me fora subtraída pela (mal)dição que recaíra sobre ela e sua família. Muitos anos se passaram e jamais poderia imaginar que a (mal)dição de “Tancinha” pudesse repetir-se algum dia.
Recém-casada, aportei “nas terras dos altos coqueiros”, um mundo novo e desafiador a ser descoberto, desbravado e conquistado. Recomecei minha vida praticamente do zero – marco inaugural de minha chegada àqueles trópicos. Trazia na bagagem, uma sólida formação acadêmica, experiência de vida e de trabalho, além de muita vontade de vencer. Ainda assim, minha inserção social, como “estrangeira”, nem sempre foi fácil embora tivesse a sorte de encontrar pessoas excepcionais que me abririam muitas janelas de oportunidades. Se as coisas pareciam correr bem, na vida profissional, na vida pessoal tinha dificuldade em assimilar a cultura machista da família de meu marido. Foi na leitura da obra Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freire, que encontrei as evidências da origem da violência do patriarcado remanescente na formação da família e da sociedade locais desde o período colonial. Descobri também, em estudos da antropologia arqueológica, que a expressão patrilocalidade era comumente usada para caracterizar a mobilidade das mulheres casadas para o entorno da família do marido, resultando na consequente perda de seus referenciais e de apoio familiar, tornando-a vulnerável à opressão do marido e da família dele. De fato, logo pude constatar que as formas de opressão e tutela vigentes, aplicadas às mulheres da família, incluíam “obediência irrestrita ao marido” e a “prestação de serviços domésticos e de cuidados aos seus membros”. Como na senzala-escrava, o lugar destinado às mulheres era a cozinha, junto com a matriarca, preparando comida para os homens – maridos, filhos, primos e amigos. O lazer, aos finais-de-semana, era reservado somente aos homens que se divertiam bebendo nos botecos à beira-mar. Ao retornarem à casa, esperavam ser recebidos com mesa farta e bem servidos pelas mulheres. Esse era “o ritual de passagem” familiar reservado a novatas como eu. Diante do risco de assujeitamento eminente e de ver meu casamento fracassado, decidi reagir à ordem “naturalmente” instituída. – Meu bem – falei certa feita, em tom calmo, mas incisivo. – Meu lugar não é na cozinha e muito menos a serviço de seus familiares nos finais de semana. De hoje em diante não apenas irei à praia me divertir, junto com vocês, como também passarei a manifestar a minha vontade pessoal sempre que necessário: “não quero, não vou, não gosto, não faço, quero fazer diferente”. Mulheres da família não tinham direito a opinar ou decidir nada além de suas obrigações domésticas. Aos homens tudo era permitido, desde farras e bebedeiras – sempre alardeadas com orgulho em rodas de conversa e na vista das mulheres. “Puladas de cerca” eram camufladas e justificadas pelos seus membros. As mulheres traídas silenciavam, com medo de serem abandonadas. Elas “amavam” seus algozes e seriam capazes de fazer qualquer coisa para mantê-los ao seu lado, inclusive apoiá-los nas investidas contra mulheres insubmissas como eu. Já dizia um ditado popular machista que toda a irreverência feminina seria castigada. O castigo veio, implacável e sem trégua. Durou duas longas décadas. Como um carma, do qual não é possível escapar, eu estava sendo transformada numa “Tancinha (mal)dita”, cuja maledicência, injúria e difamação já haviam se propagado em rede. Passei a ser assediada moralmente, de forma escancarada, por familiares de ambos os sexos, seus agregados e amigos, onde quer que estivesse. Então dei-me conta de que nenhum mal precisa perdurar para sempre e decidi cortá-lo de vez pela raiz, rompendo relações definitivas com meus detratores. Foi dessa forma que salvei a mim, meu casamento e a todas as mulheres de minha descendência, da consumação da (mal)dição de “Tancinha”. Diferentemente de seu triste destino, não fiquei viúva e conquistei uma parceria amorosa e respeitosa com meu marido. Juntos educamos nossas filhas, como cidadãs de plenos direitos e liberdades. Foi necessário que mulheres violentadas, subtraídas de seus direitos fundamentais, sobrevivessem até o século XXI, como a cearense Maria da Penha, paraplégica, vítima de feminicídio, para que todos os tipos de violência doméstica fossem identificados, reconhecidos, enfrentados e criminalizados. A violência, sofrida pelas “Tancinhas”, finalmente foi nomeada e criminalizada: o assédio moral intrafamiliar contra mulheres (calúnia, injúria e difamação) – está previsto na Lei Maria da Penha, promulgada em 2006, com pena de até dois anos de detenção.
Em memória de Constança.
Nossa luta não foi em vão.
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