O que são fronteiras?

Texto escrito por Karen Worcman, fundadora do Museu da Pessoa.

O Equador está em guerra, ou pelo menos assim dizem o Governo, os jornais e as televisões. “Melhor não passar pelo Equador” são as sugestões e os avisos que escutamos. Mas como descer para o Peru sem passar pelo Equador? Como seguir viagem? Foi assim que, em meio aos temores e informações truncadas, decidimos cruzar mais esta fronteira. 

Chegando na fronteira da Colômbia com Equador, vamos em busca da saída. Aprendemos, a duras penas, que nada está escrito ou claramente informado, mas que é necessário cumprir uma série de etapas lógicas e ilógicas para deixar um país: onde carimbar o passaporte, onde dar saída do carro, onde trocar o dinheiro?  São várias idas e vindas. 

Uma vez na parte equatoriana, esperamos em uma fila para ser atendidos. No guichê ao lado, escuto um senhor explicar à moça que o elegante rapaz haitiano ao seu lado (provavelmente um amigo, parente, sobrinho) já pagou a multa na Colômbia e precisa passar para chegar ao Peru. Me lembro dos haitianos que vi caminhando pelas estradas e penso no porquê de este rapaz, tão elegante, estar indo em direção contrária

O senhor de óculos de nosso guichê pediu os passaportes e, depois, os antecedentes criminais (depois da crise equatoriana, os estrangeiros precisam apresentar antecedentes criminais). Mostramos os nossos, tirados digitalmente no sistema brasileiro.

– Onde estão os antecedentes apostilados?

– O que são apostilados?

– Os antecedentes precisam ser certificados pela chancelaria do seu país.

– Como assim? São digitais…

– Precisam ser apostilados. Precisam voltar ao seu país e pedir para serem apostilados.

… Silêncio. Como essa ideia tão absurda pode ocorrer a uma pessoa? 

– Sem o apostilamento, precisam sair do Equador em no máximo 10 dias.

Assim cá estamos, cruzando o Equador a passos (ou melhor, a carros) largos.

Primeira parada pós-fronteira é o campground do Hans, um alemão que vive no Equador há mais de 13 anos. Lá, revimos alguns conhecidos e conhecemos novos viajantes. Em sua maioria, são europeus entre 50 e 80 anos que viajam tranquilamente com suas casas rodantes pelas Américas.

O lugar de Hans é muito agradável. Lugar para cozinhar, lavar roupa, chuveiro quente. E, o melhor: um restaurante com comida alemã (para variar o cardápio). Tiramos um dia para organizar as coisas, trabalhar, reconhecer o lugar. Ao final da tarde começa a chover. Muito frio. Em busca de calor, alguns de nós se reúnem em torno de uma lareira.

Matias, 70 anos, cresceu na Alemanha oriental e que viaja o mundo sozinho. Raff, mais jovem, também alemão, que trabalha e viaja ao mesmo tempo (vejo que trabalha no campground, acende o fogo, organiza as coisas). Um casal japonês -coreano que encontramos ao longo das estradas. Nós e um casal equatoriano que tomava um chopp ao lado do fogo. 

Chuva, fogo e vinho e as dificuldades entre as línguas deixam de importar. As conversas passam por explicações da crise do Equador as histórias pessoais. Filhos, costumes, viagens. Matias conta que é de Berlim. Começamos a falar da questão dos refugiados na Europa. Ele diz que as comunidades muçulmanas vivem em bairros nos quais não pode entrar: “não reconheço muitas partes da mesma cidade. Não há mais lugar para mim. E se digo que não gosto disso, me chamam de nazista. Não se pode mais falar nada na Alemanha sem ser chamado de nazista”. 

Pergunto para Ralf, o rapaz alemão, se ele concorda. Ele assente com a cabeça: “se eu puder, não volto mais para a Alemanha”. Decido não julgar, não dizer que provavelmente as pessoas dos países africanos colonizados pela Alemanha devem ter sentido algo parecido. Matias retoma: “hoje não se pode mais discutir nada na Alemanha. Tudo deve ser verde, politicamente correto. Os imigrantes merecem tudo, mas se uma moça muçulmana namorar um alemão, é morta por sua própria comunidade”.

Me dou conta que estamos falando de novo de fronteiras. Não só das fronteiras físicas (a Alemanha recebeu mais de 1 milhão de refugiados na última década), mas também das fronteiras culturais, geracionais e emocionais. Talvez estas sejam as mais difíceis de transpor. Matias conta que cresceu em Berlim oriental e que quando o muro caiu, era olhado com curiosidade por outros alemães. Diz que seu pai voltou da guerra cheio de cicatrizes e balas no corpo. Conta de sua infância e de seu estudo. Quando Matias retoma o assunto, diz que os alemães são receptivos, mas que deveria haver limites.

Me pego perguntando porque acha que os alemães mataram e perseguiram tantos judeus (faço questão de dizer que sou judia). Ele explica que a vida na Alemanha estava muito difícil. Que os judeus causavam inveja, que foi um subterfúgio. 

Penso nas fronteiras que me separam de Matias. Nossa conversa, ao pé do fogo, nos conecta. Nossas histórias nos afastam.

Dois dias depois, já no centro de Quito, visitamos a catedral central transformada em museu. Percorro a igreja, folheada de ouro, os túmulos e suas estátuas, a biblioteca e a sala de estudos. Em uma longa sala decorada com quadros, vejo os monsenhores, bispos e padres pintados nas paredes. São todos brancos. 

Entro na biblioteca e vejo estantes repletas e categorizadas: escolástica, sociologia, teologia, genealogia… Penso sobre como as igrejas concentraram, durante séculos, a fé (algumas pessoas sentam-se e rezam), a morte (sempre os túmulos decorados de pessoas proeminentes) e a vida. As igrejas se tornaram lugares de memória que entrelaçam fronteiras entre o passado e o contemporâneo, entre a História da colonização e do poder. Entre a vida, a morte e a fé. 

Fronteiras, quantas são as fronteiras? Me lembro dos dois troncos abaixo da ponte internacional que separa a Colômbia do Equador, que serve como passagem informal.  Afinal, sempre há uma ponte. É sempre possível cruzar uma fronteira. Mas também há sempre um rio, uma montanha, um soldado e um temor que nos impede de transpô-las.