Texto escrito por Karen Worcman, fundadora do Museu da Pessoa.

Já os tínhamos visto. Aos poucos apareciam. Andarilhos à beira da estrada. No início, em meio às montanhas, já entre a cidade de México e Oaxaca. Famílias inteiras. De onde viriam? Seriam esses os migrantes? Os refugiados?
Então, em meio à montanha, o carro parou. Simplesmente desligou. E aí nos encontramos frente a frente. Passou por nós toda uma família: dois homens, duas mulheres e quatro crianças. Pequenas.
– Água, vocês têm água?
Parados, no meio da estrada, abrimos os galões de água do carro para encher as garrafas. Todos suavam. Muito calor.
– De onde vêm?
– Venezuela.
– Caminhando?
– Sim.
– Para onde vão?
– EUA.
– Há quanto tempo caminham?
– Há um mês. Caminhamos todo o dia. Às 5h paramos, armamos a barraca e dormimos. Depois continuamos.
– Como vão entrar?
– Vamos nos entregar quando chegarmos aí.
– Por que saíram?
– Não temos nada lá. Não tem comida, não tem trabalho, não tem nada lá. Está muito difícil.
Buscamos tudo que tínhamos para comer. Ofereci uma banana, uma maçã e uma tangerina para as crianças. Um menino, entre cinco e seis anos diz:
– Mas o que eu quero é um biscoito.
Tiro o pão, o leite e entrego.
Estão cansados. Sentam no meio fio da estrada. Conversam, bebem água e continuam a andar.
Ficamos parados. Estatelados na estrada. Entre o carro quebrado, o calor e o choque de realidade. Começo a chorar.
O primeiro carro que passa, pára. Julio e Flor. Um casal entre 50 e 60 anos. Explicamos o ocorrido. Entramos os dois no carro para irmos à cidade mais próxima. Saímos a mais de 100 km por hora. De repente, damos a volta.
– Nos enganamos. A cidade mais próxima está para trás. Passamos pelo carro parado. Perguntam se está trancado.
– Não. Não tem bateria.
Flor decide ficar comigo no carro, enquanto Marcelo e Julio saem em busca de ajuda. Sento com Flor no carro. Conversamos. Ela me conta que é enfermeira, mas que trabalha na refinaria de petróleo de Salina Cruz.
– Sou ajudante. Aperto botões, alinho torniquetes. Eu e dois muchachos.
Flor foi enfermeira no COVID. Perdeu amigos, parentes. Trabalhou muito. Sofreu. Cansou. Julio está aposentado. 37 anos de empresa (a mesma). Ajudou para que ela conseguisse o emprego. Conto que estamos viajando. Ela diz que Julio a chama para passearem, visitarem os filhos. Mas ela trabalha. Ela me conta que tem um irmão que mora nos EUA. Migrou. Casou lá. Mora há mais de 20 anos em um trailer. Marcelo e Julio chegam com um guincho. Voltamos para a cidade, que se chama La Reforma. Poucas casas simples à beira da estrada. Enquanto Marcelo sai para carregar a bateria, sento no meio fio perto de uma barreira da polícia. Param ônibus, caminhões, caminhonetes. Buscam migrantes. O calor é sufocante. Em torno do meio fio, eu e muitos migrantes nos acomodamos em uma sombra. Grupos e grupos de migrantes se espalham pelo meio fio, pelos bancos, por todos os espaços na estrada. Aos poucos, outros vão chegando. Todos exaustos. Ao meu lado, sentado, um homem calado. Talvez 40, 50, 60 anos? Pergunto de onde vem.
– Honduras. Mas não aguento mais. Me mostra uma enorme bolha na perna e no pé. É muito duro. Não tem comida, não tenho água.
Ofereço água e sementes, o resto das frutas.
– Você tem alguém nos EUA?
Quase todos têm alguém nos EUA, algum parente distante, o tio de uma prima, o irmão de alguém. Algumas vezes, poucas, alguém mais perto. Um cunhado, um irmão. O senhor diz:
– Não tenho ninguém lá. Absolutamente ninguém.
– E em Honduras?
– Tenho pai, mãe e um filho.
– Por que saiu?
– Porque não tem trabalho. Não consigo trabalho com essa idade. Gosto de trabalhar no campo. Gosto de fazer qualquer coisa. Seu olhar está perdido. Cansado. Tiro um último queijo da geladeira. Vou até um grupo de jovens, que estão sentados mais adiante. Uma menina, de uns 18 anos, sentada em um balanço, discute com um rapaz de mais ou menos a mesma idade. Parece serem os pais de um bebê. No mesmo grupo, um jovem tatuado, de tênis e boné. Mais adiante, duas mulheres negras, mais gordas, conversam em outra língua. Dispersos por ali, mais um ou dois rapazes. Ofereço queijo e um saco com pedaços de uma fruta que nem eu conhecia. Me olham. Perguntam.
– É um presente?
– Sim.
O rapaz prova o fruto. Cospe.
– É horrível!
Ofereço queijo. Olham desconfiados.
– De onde vieram?
– Venezuela.
– Como atravessaram?
– Caminhando pela floresta.
– Com guia?
– Só por um dia. Nos outros dois dias, fomos sozinhos.
– Não se perderam?
– Não. Seguimos as mochilas. Têm as verdes e as laranjas. Seguimos as verdes. Tem muita gente. É só seguir. Mas tem mortos no caminho. Vimos os mortos.
– Mortos de que?
– Morreram.
– De que?
– Afogados, exaustão, frio. Pessoas mais velhas como você se sufocam, não aguentam. Tem que atravessar o rio a pé. Puxa muito.
– Isso na Colômbia?
– Sim. Ela é colombiana, o rapaz aponta para a menina, que penso ser sua namorada e a mãe do bebê.
Então, me perguntam:
– E vocês? Para onde vão?
– Brasil.
– De onde saíram?
– Dos Estados Unidos.
– Com papéis?
– Sim.
Falam entre si. “Eles saíram e tinham papéis. Saíram com papéis… Eles tinham papéis…”
Chega mais um grupo.
– O que estão esperando?
– O ônibus.
– Vocês vão continuar de ônibus.
– Sim.
– Por que esperam?
– Por que a polícia nos manda sair. Temos que esperar.
– Porque a polícia manda vocês saírem?
– Porque querem nos ver sofrer… Porque querem…(e fazem um gesto com o dedo, que significa dinheiro, propina)…
Em frente, a uns 20 metros, vejo os policiais parando carros, ônibus, caminhonetes. Atrás das caminhonetes, mais migrantes. Todos saltam antes de chegar na polícia. Aos poucos vão se juntando no mesmo lugar. Embaixo da mesma sombra e do mesmo meio fio. Não necessariamente falam uns com os outros. Chega mais um grande grupo. Um homem, de chapéu, jeito elegante e feminino, parece ser o líder. Diz a todos que precisam esperar. Vou me sentar mais adiante.
Sima, uma das moças que vi conversando em outra língua, que parece ter entre 20 e 30 anos, vem falar comigo. Sorri. Peço para ela se sentar ao meu lado. Começa a falar espanhol muito lentamente.
– Pode falar. Sou brasileira. Compreendo.
Ela abre um sorriso.
– Brasileira? Fala com um sotaque português.
– E você?
– Haiti.
Pergunto se fala francês.
– Não. E começa a falar comigo em um dialeto, no qual reconheço algumas palavras de francês, português, espanhol. Entendo que precisa trocar algum dinheiro. Mas para isso precisa chegar na loja OXXO (há uma loja OXXO em cada esquina no México). Mas em La Reforma não tem OXXO. Depreendo que está me pedindo para trocar dinheiro. Ou que precisa de dinheiro.
– Mas, explico, estou com o mesmo problema. Não tenho dinheiro, só cartão. Não consigo pagar o mecânico, não consigo comprar nada para comer, estou sem efectivo (No México, o efectivo, a moeda, é o que vale.). A informalidade é um acordo entre todos. Poucos lugares aceitam cartão e, quando aceitam, cobram a porcentagem. Há, reconheço, uma certa inteligência aí.
Digo que há muitos haitianos no Brasil. Me conta que sabe, que alguns conseguiram papéis com oito dias. Mas que nos EUA tem mais dinheiro. Volto para o mesmo grupo de jovens. O jovem casal, pais do bebê, estão discutindo. A moça está sentada em um balanço, dizendo ao rapaz que ele não entende nada. Me olham e perguntam:
– É verdade que quando você abre aquela barraca em cima do carro, vira uma casa rodante? Tem TV, geladeira, cama?
– Não. Ali só tem uma barraca. Só cama.
– Mas seu carro não é uma casa? De onde veio o queijo?
– De uma geladeira. Tem também um pequeno fogareiro. Mas ficam na parte de baixo.
– Viu??? Diz o rapaz. Não te disse?
– Mas existem sim as casas rodantes, digo. Com tudo dentro: tv, ar condicionado, banheiro… Me olham. A moça diz:
– Já vimos alguns.
Volto a me sentar. Outra moça, que havia chegado com sua filha de uns 10 anos e estava acompanhada de um casal de pessoas mais velhos, fala longamente no celular. Depois me olha. Pergunto:
– De onde você é?
– Honduras.
– Ela é sua mãe?
– Não. Somos vizinhos. Viemos juntos. Nunca vou abandoná-los.
– Para onde vão?
– Para os EUA.
– Tem alguém lá?
– Sim. Um tio que casou com minha tia. Ele tem papéis.
– É hondurenho?
– Sim, mas já tem papéis.
– Ele vai receber vocês?
– Vai. Vamos chegar na fronteira e nos entregar. Eu não tenho problema porque estou com a menina. Mas vamos tentar entrar todos juntos. Tem uma lei que diz que se alguém se responsabilizar, você pode entrar. Mas para ter a entrevista, você precisa preencher um formulário. Todos os dias. Então eles marcam o dia e a hora da entrevista. E temos que estar aí. Por isso estamos caminhando. Porque, quando marcarem, temos que estar aí. Se não, perdemos a oportunidade (me pergunto se fosse esta a única razão, porque não teriam ido de ônibus ou avião até a fronteira…)
– Para onde vão?
-Texas, Houston. Mas se eu soubesse que iríamos passar por tudo isso…
Pergunto do ônibus. Diz que só podem subir de dois em dois. Porque, se não, a polícia os manda descer. Os táxis pedem 2000 mil pesos (cerca de 800 reais) de cada um. Só para um trechinho. Esperam.
– Porque a polícia manda descer?
– Porque querem… (e faz o mesmo gesto com a mão que significa suborno, propina). Sorri com os olhos e pergunta se entendi. Diz que a polícia não pára de pedir dinheiro. Conta da fronteira com a Guatemala. Que para passar no ferry, atravessar o rio, pedem dinheiro. Pergunto se a polícia da Guatemala ou do México.
– São muitos. Está tudo misturado. Não tem uma definição.
Me conta que a polícia interpelou um grupo e estuprou duas jovens venezuelanas.
– São assim. Desgraçados. Violam.
A senhora (que pensei ser a mãe) senta-se ao meu lado. Os olhos cansados.
– Está cansada?
– Muito.
Todos têm uma bolha, uma inflamação, um machucado no pé, no pulso, na mão.
A moça hondurenha continua.
– A Migra nos persegue. Tivemos que nos esconder em um buraco na estrada. Estávamos em um grupo. Um moleque passou de moto gritando “La Migra!”
Pegaram dois. Corremos e nos escondemos em um buraco. Não nos pegaram. A senhora olha o vazio e parece se lembrar:
– Sim, um buraco. Tivemos que correr.
Sempre repito a pergunta:
– Porque saíram?
As respostas variam em torno de um único tom:
– Não temos nada lá. Não tem trabalho.
Vou até o mecânico. Quando volto, escuto a menina de dez anos gritando:
– Mami!
E vejo todos saírem correndo. Penso que aconteceu algo com a menina. Olho para trás e vejo dois caminhões do exército. Homens encapuzados, com armas, em pé (já os vi muitas vezes). Todos se escondem. O caminhão passa pela polícia e continua. Aos poucos, voltam a sair.
Finalmente conseguimos carregar a bateria e sair em direção à cidade em busca de mais um mecânico. As histórias vão, aos poucos, ficando para trás. O calor continua. No caminho, em direção contrária à dos migrantes, vejo muitos outros grupos caminhando e caminhando.
Estou sufocada. Não de calor. Mas de tristeza e agonia.
P.S.1: Muitos dias se passaram nas estradas. Vimos centenas e centenas de grupos nas estradas. Africanos, hondurenhos, guatemaltecos, colombianos, venezuelanos. A América latina chora. As pessoas rumam em busca de algum sonho americano.
P.S.2: Nosso carro continuou a quebrar. Conhecemos mais mecânicos e vimos centenas e centenas de carros americanos, repartidos, requebrados, repintados e revendidos. O velho carro, já tido como sucata, se torna parte de outro sonho americano.