Mabel: entre memórias, buzinas e Gabo I Vésperas do ano novo em Cartagena das Índias

Texto escrito por Karen Worcman, fundadora do Museu da Pessoa.

Para começar o ano, vou contar uma pequena história que me fez transformar buzinas em estrelas. Aí vai a história:

Após um longo processo de embarque de nosso carro no Panamá, em meio a caminhões, contêineres, e um grande terreno quente e baldio, demos início ao processo de espera. Sem carro, nos cabia decidir se iríamos passar o ano no Panamá ou em Cartagena, Colômbia, ponto de chegada do carro.

Cartagena, cidade sonhada, comentada e histórica. Cartagena, cenário de Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel Garcia Marquez. Cartagena das salsas, dos piratas e do Caribe. Então… A decisão foi tomada. Cartagena como ponto de espera do carro e do novo ano (aqui estamos até agora).

Agora Cartagena: a cidade se divide em dois (ou mais) tempos históricos. A cidade amuralhada é imponente, cheia de casas espanholas, hotéis com pátios internos belíssimos, praças com músicos e restaurantes, e muitos, muitos, muitos turistas e vendedores. 

Por suas ruas, passeiam as pessoas, as charretes, os carros entroncados, os que vendem tours para as ilhas, as lojas de jóias (ouro e jade), os ambulantes de frutas e ímãs, as senhoras vestidas à caráter que tiram fotografias com os turistas, os cantores de rap, os covers de Michael Jackson e tudo o mais que uma cidade turística possui. 

Do lado de fora da muralha, onde antes as águas cercavam a cidade, agora cresce uma cidade aterrada. Duas longas pontas cheias de prédios que buscam olhar para o mar, altos, de vidros, muitos andares de garagem e, por baixo, nenhuma calçada. 

Em meio aos prédios, conjuntos de favela e lixo, muito lixo. Entre as duas cidades, carros. Muitos carros que disputam cada centímetro de rua. Todos buzinam. O calor une todos em meio a um sonho pesadelo úmido.

Em busca de memórias não vividas, mas incorporadas, buscamos obsessivamente a casa de Gabriel Garcia Marquez (fechada), os museus e os lugares que pudessem trazer a magia de suas histórias. Até que finalmente encontramos Mabel, guia que faz parte dos Guru Walks, passeios comentados com guias voluntários por todo o mundo. Maravilhoso! A contribuição é voluntária.

Encontramos Mabel, vestida de vermelho com uma sombrinha da mesma cor, em uma praça central da cidade histórica. Mais ou menos 40 pessoas. Com ela, fomos redescobrindo Cartagena. As histórias ampliavam cada detalhe da cidade. Pudemos entender os grandes portões de cada casa, com metais incrustados e aldabas em formatos de leão, iguana, peixes, mão, entre outros. 

Mabel explica que cada metal incrustado significava um escravo e que cada formato de aldaba contava o status da família: iguanas, por exemplo, para famílias nobres espanholas. Iguanas grandes para descendentes diretos, iguanas médias para segunda geração e iguanas pequenas para terceira geração. Os leões (com tamanhos distintos) representam as famílias ligadas aos militares e as mãos às famílias ligadas às igrejas.

Mabel, com sua sombrinha vermelha, nos conduziu ao Hotel Suiza, hoje um Starbucks, onde Gabo, aos 20 anos, tentou passar sua primeira noite na cidade e não teve como pagar. Com ela, sentamos em uma praça em frente à casa na qual Fermina, amada por Florentino Ariza por 53 anos, viveu sua juventude. 

Na mesma praça, nos invade o som de uma banda que espera a noiva sair da igreja para celebrá-la. Paramos o tour e fomos todos ver a noiva que saiu em meio à multidão, à música e aos carros. 

Durante a caminhada, Mabel era interrompida por mímicos, cantores, vendedores e todo tipo de oferta possível para um grupo de 40 pessoas reunidas em torno dela. A cada interrupção, ela simplesmente afirmava: “esto es Cartagena!”.

Terminamos o tour no claustro de La Merced, antigo convento, hoje transformado em sede administrativa da universidade. No centro, um busto de Gabo sinaliza onde foram depositadas suas cinzas. Uma pequena sala-museu mostra a roupa com que recebeu o Nobel, os óculos e alguns pertences do escritor. O claustro está vazio. É fim de ano. 

Conseguimos entrar porque Mabel é conhecida pelos seguranças. Na saída, vemos a muralha, o mar e a casa fechada de Gabo. Ao lado, a casa do Boquetillo, um antigo colégio transformado em condomínio de alto luxo. O lugar da capela é hoje um lobby e centro de eventos elegantes. Uma festa está a todo vapor. Penso na noiva e me pergunto se esta seria sua festa de casamento. Carros luxuosos e pessoas de branco passam pelos portões. 

Em frente, na muralha, o grupo está sentado em volta de Mabel, que recolhe as contribuições voluntárias. Mabel salvou o dia. Mabel recuperou a cidade sonhada. Ela e seu museu que trazem memórias ambulantes, memórias da cidade, memórias da vida de Gabo, memórias que misturam os personagens de seus livros com as buzinas, os carros, e os turistas acalorados que circulam, exaustos, à espera de um novo ano.