Mario e o sonho guatemalteco

Texto escrito por Karen Worcman, fundadora do Museu da Pessoa.

Mario é daquelas pessoas que encontramos raramente na vida, com 73 anos de profundo amor, poesia e indignação. 

Marcamos um encontro em Antígua, na Guatemala, por WhatsApp. Ele se dispôs a vir desde a Cidade de Guatemala – ou “Guate”, como é chamada. Só quem está aqui sabe o que significa isso. Um tráfego intenso, que pode durar horas embaralhadas em uma estrada de menos de 40 km. 

Mario é um muralista renomado, fundador do Museo Comunitario de la Memoria Histórica Rabinal Achí, que conta a história dos desaparecidos da Guatemala. Ele mistura a paixão por pedagogia, arte, filosofia, literatura e, acima de tudo, pelas pessoas. Quando fala, seus olhos brilham; seu corpo pulsa quando narra suas experiências com os jovens que usam os murais para pintarem suas histórias. Já são mais de 1.500 murais: ele já não sabe a conta ao certo.

Sua avó, extremamente católica e de família tradicional; seu avô, um judeu que, segundo ele, transmitiu a paixão pelos museus, pela arquitetura e pelas artes. 

Mario explode em poesia e melodrama. Desde cedo, percebeu as tramas da sociedade em que nasceu. As marcas das veias abertas da América Latina e o vazio dos museus tradicionais se transformaram em uma busca pelo sentido. Junto às viúvas sobreviventes do genocídio provocado pelo Estado durante o conflito armado que varreu a Guatemala nos anos 1980, Mario organizou uma expedição para conhecer as experiências dos museus comunitários do México. 

O museu que construiu com a comunidade é uma busca pela história dos desaparecidos. No entanto, Mario se sentiu ameaçado por estar “revirando uma história que deveria ser esquecida”.

A Guatemala é um lugar fascinante: mistura de povos indígenas, mais de 20 línguas vivas, a cultura do dia a dia presente nos mercados, nos traçados, nos gestos e nos nomes de lugares… Mas o conflito armado, que durou mais de 30 anos (entre 1960 e 1996) e que matou mais de 200 mil pessoas –  a maioria indígenas –, é uma história não contada. O bispo auxiliar da Guatemala, Juan José Gerardi, foi morto em 1998 aos 75 anos, dois dias depois de lançar um relatório responsabilizando o Exército pela maioria das violações de direitos humanos ocorridas no confronto entre militares e guerrilheiros de esquerda no país. 

Mario pinta um mural dentro da oficina de direitos humanos do arcebispado da Guatemala. No mesmo lugar, historiadoras e arquivistas trabalham catalogando 22 metros lineares de documentos que narram a violação dos direitos humanos nas comunidades indígenas ao longo deste período. A memória resiste. Resiste como Mario, que sonha com o dia em que o sol, que representa os vários povos indígenas, possa se libertar.

Nosso encontro com Mario

Depois da entrevista, em Antígua, marcamos de encontrar Mario no Arcebispado, para ver seu mural. O lugar está bem no centro da capital, ao lado do Palácio do Governo. Demoramos mais de 2 horas para conseguir chegar porque todas as ruas estavam fechadas. 

Centenas de policiais, todos muito jovens, faziam uma barreira nas ruas do entorno. Deixamos o carro e seguimos a pé. Os policiais abriram passagem. A maior parte olhava celulares ou parava, em pé, sob alguma sombra. Sentados embaixo de árvores, em pé, olhando seus celulares, estavam lá para impedir que manifestantes chegassem ao Palácio para garantir a posse do próximo presidente.

A amnésia de tudo que passou está presente no olhar dos policiais e nas cidades que reúnem lindos condomínios com farmácias gradeadas. Em Antígua, em frente de uma farmácia, enquanto Marcelo compra um remédio converso com um jovem que segura um fuzil do tamanho de seu corpo.

– Por que você usa essa arma? É muito perigoso aqui?

– Não… Mas quando chega 1, 2 ou 3 horas da manhã, tudo pode acontecer. Estou aqui para defender.

– De que horas a que horas você trabalha?

– Das 6 da noite às 6 da manhã.

– Todos os dias?

– Todos os dias

– E que horas você dorme?

– Quando chego em casa.

Olho para o rapaz. Um menino… Penso que ele fica em pé a noite toda. Todas as noites, na frente de uma pequena farmácia de Antígua. 

Olhamos, os dois, para a rua de pedras, para os carros que disputam enlouquecidos espaço com os tuk-tuks, com turistas, pessoas, ônibus… O barulho é imenso.

– Você foi treinado para ser segurança?

– Sim. Aprendi a usar essa arma antes de entrar na firma. Aprendi a usar essa aqui e outra. (fala o nome, mas não reconheço). A empresa, quando me contratou, eu já sabia usar.

Me passa pela cabeça que, para ele – e provavelmente para a empresa – segurança e arma são a mesma coisa….

– Você gosta desse trabalho?

– Era meu sonho. Sempre quis fazer isso. Sou muito sério.

– Como assim?

– Quando olho para alguém, seguro o olhar.

Reparo que ele me olha de frente e segura, orgulhoso, o olhar. Seguro o meu de volta.

– Viu? Gosto de defender as mulheres, gosto de defender. Se algo acontecer aqui, se alguém ameaçar fazer algo “malo,” não terei dúvidas em fazer meu trabalho.

Vejo o rapaz. Magro, em pé, com o fuzil pendurado. Não consigo deixar de pensar que, alguns anos atrás, ele estaria no mesmo exército que massacrou, com apoio da CIA (US), aldeias inteiras: mulheres, crianças, todos. 

O que será que ele estaria defendendo? Com o que será que ele sonhou? Lembro do sonho poético de Mario e do seu sol acorrentado. Quantas são as narrativas possíveis de uma mesma história? Quantas vezes a mesma história se repete? E concluo que, afinal, é preciso libertar as memórias para que estas passem a preencher os sonhos de tantos rapazes e moças, de olhares seguros e fuzis vazios. Viva Mario e seus murais!