Leia o manifesto de abertura do Seminário Futuro da Memória

    Nos dias 17 e 18 de novembro aconteceu o seminário internacional Futuro da Memória, realizado pelo Museu da Pessoa e pelo BNDES, com o apoio do Itaú Cultural e parceria institucional do ICOM – International Council of Museums e Editora Companhia das Letras.

    Durante a palestra de abertura, o público teve a oportunidade de escutar a fundadora e curadora do Museu da Pessoa, Karen Worcman, compartilhar reflexões sobre o Museu da Pessoa, memória e futuro.

    Assisa à abertura e leia a íntegra do manifesto abaixo.

    Abertura Seminário Futuro da Memória, por Karen Worcman

    Às vésperas de completar 30 anos, o Museu da Pessoa já nasceu pensando no futuro da memória. Fundado em 1991, tinha, desde o início, a proposta de tornar toda e qualquer história de vida um bem, um valor, um legado para toda a humanidade. Ainda antes da Internet, do celular, do e-mail e do mundo ser invadido pelas redes sociais, o Museu da Pessoa já se propunha ser um museu virtual e colaborativo de histórias de vida.

    Ainda no início dos anos 90, a proposta de tornar histórias de vida de pessoas comuns como objetos de museu era algo bastante inusitado. “Quem vai ter interesse em conhecer essas histórias? Para que serve guardar histórias de pessoas comuns? Qual o objetivo da iniciativa?” Era o que nos perguntavam. Também, naquele momento, falar de um Museu que não fosse uma casa, um espaço físico no qual os objetos tampouco eram objetos palpáveis era uma ideia abstrata e difícil de imaginar.

    Quase 30 anos depois, mais de 300 projetos de memória realizados que resultaram em cerca de 90 publicações e mais de 100 exposições físicas e virtuais e o desenvolvimento de uma tecnologia social de memória que permitiu engajar cerca de 2000 escolas públicas e organizações sociais dentro e fora do país, o Museu da Pessoa caminha para o lançamento de sua sétima plataforma digital, sua casa virtual, 24 horas e 7 dias da semana aberta ao público. A plataforma convida as pessoas a visitar e selecionar histórias, mas também a registrarem suas próprias narrativas de vida e criarem suas próprias coleções.  Uma plataforma acessada por cerca de 1 milhão e 300 mil pessoas desde 2018 até hoje. Aos poucos, assim, vamos chegando ao sonho de construir um museu virtual e colaborativo de histórias de vida, no qual todos e todas são protagonistas e responsáveis pela construção de uma memória social mais plural e democrática.

    O Seminário

    O seminário “O Futuro da Memória” é o encerramento de um ciclo muito importante, fundamental mesmo nesta trajetória do Museu da Pessoa. Após quase 25 anos de história, tendo sobrevivido enquanto organização social sem fins lucrativos a inúmeras crises sociais, econômicas e políticas no Brasil, o Museu encontrava-se, já na primeira década do século XXI, frente a uma encruzilhada. Com um acervo de cerca de 18 mil histórias de vida, das quais mais de 4 mil enviadas por usuários e de quase 60 mil imagens oriundas de acervos particulares, enfrentávamos o desafio da preservação de nosso acervo. Tínhamos o desafio de garantir a perpetuação e a disseminação deste acervo, único e precioso. Um conjunto de pessoas de todas regiões, raças, gêneros, classes sociais e regiões do país. Este desafio não é de forma alguma um desafio exclusivamente do Museu da Pessoa. É transversal a todas ações de memórias e museus brasileiros e do mundo.

    E, apesar de pensarmos que basta registrar ou digitalizar algo para que isso seja preservado, veremos, em uma das mesas e das oficinas oferecidas neste neste Seminário, que preservação e mídias digitais são ainda um desafio e um mistério. Isto nos abre uma grande reflexão.

    Mídias

    Que mídias restarão? Como faremos para acessar estes conteúdos? Como garantir que não se percam, não se tornem invisíveis ou mesmo sem uso. Não podemos nos dar ao luxo de não nos preocuparmos com estas questões em um país como o Brasil, um país que deixou queimar seu principal Museu, o que diria de acervos de instituições da sociedade civil. Foi com esta preocupação que iniciamos nosso diálogo com o BNDES, banco fundamental para a estruturação do que chamamos infraestrutura e desenvolvimento do país. Tendo sido responsáveis pela organização da história do BNDES durante a celebração de seus 50  e depois de seus 60 anos, tínhamos muita clareza do papel estruturante que o Banco representou em seus quase 70 anos de existência. Após um período muito rico de diálogo e desafios colocados pelo próprio banco (o primeiro deles o de defender que sim, histórias de vida deveriam ser reconhecidas e valorizadas como patrimônio), demos início, em 2018, a um período no qual pudemos nos dedicar a não só digitalizar e tratar todo nosso acervo, mas também a reestruturar nossa plataforma, desenvolver estratégias de escala para ampliar o alcance e o impacto de nossa tecnologia social e reestruturar a própria instituição, garantindo programas de integridade e uma governança transparente assim como o desenvolvimento de novas frente de mobilização de recursos.

    Este apoio permitiu que o Museu da Pessoa fizesse, ainda, um programa de estágio, realizasse uma pesquisa sobre seu impacto social (e reafirmasse o poder que a escuta possui para transformar valores e combater a intolerância), criasse um programa para multiplicação de núcleos do Museu da Pessoa, um programa de voluntariado, estruturasse um programa de apoio a comunidades indígenas e ampliasse suas parcerias e suas ferramentas de comunicação.

    Este seminário é o encerramento deste ciclo e nele buscamos compartilhar nossos aprendizados e reflexões. É também o marco da comemoração de nossos 30 anos de existência. E, como costumamos fazer em nossos aniversários, começamos a nos perguntar para onde vamos? Como museus, como guardiões das histórias de vida, como guardiões da memória, qual é, afinal, a contribuição de um museu para combater a intolerância, a injustiça social e promover a paz?  Em um mundo invadido por celulares, no qual os indivíduos se tornaram objetos de consumo de si próprios, aual será o futuro da memória?

    Memória

    Diz Elizabeth Jelin, autora argentina, que a memória é um território em disputa. Tendemos a afirmar que o Brasil é um país sem memória ou um país que não valoriza sua história. Tendemos a dizer que é necessário dar voz aos esquecidos, aos que não fazem parte da história. No entanto, ouso dizer que não existe pessoa, grupo ou país que não possua memórias. Pois a memória não é uma opção. Não temos escolha. Sem memória, não somos, não existimos, não nos reconhecemos como nós mesmos. A memória – individual, coletiva e social- é tão necessária quanto a linguagem.

    Perdemos um braço, perdemos uma perna, mas se perdermos a memória, perdemos a nós mesmos dizia Oliver Sacks (e pior, nem estaremos lá para saber que nos perdemos…). Não é possível não ter memória. No entanto, é fundamental reconhecer que a memória é um território em disputa. Não uma disputa sobre o passado, mas sim uma disputa presente em nosso dia a dia. Uma disputa que define os rumos de nossas vidas como indivíduos, como grupos e também como país. Valorizar algumas memórias em detrimento de outras, não cuidar de memórias de grupos em detrimento de outros, deixar queimar museus e cinematecas são também escolhas. Não valorizar a experiência humana, da pessoa comum e não reconhecer seu valor é também uma escolha. Resulta de uma disputa. O esquecimento não é um acaso. O que lembramos, o que esquecemos, o que guardamos são escolhas, são esforços, são seleções e derivam daquilo que atribuímos significado.

    Um de nossos convidados, presente na mesa em que se discutirá as memórias digitais, escreveu que antes da era digital os processos de registro e preservação de memórias requisitavam esforços coletivos.  Construir museus, escrever livros, erigir monumentos e memoriais são esforços. Os povos de cultura oral também necessitam de esforço para garantir que suas histórias/memórias sejam transmitidas de geração a geração. A memória, além de território em disputa, é também esforço. Por isto, memória é seleção e significado. Não há esforço – nem pessoal nem coletivo- em direção a algo sem significado (apagar memórias também é um esforço). Memória é também economia. Ela significa trabalho. Não há memória sem esforço, sem seleção, sem significado e sem trabalho. Uma das mesas deste seminário falará sobre o quanto dos esforços de memória são parte do que hoje chamamos economia criativa.

    Com o advento da Internet e todas as tecnologias de informação e comunicação, parte deste esforço deixou de existir. E com ele, a seleção e o significado. Até o advento da fotografia, por exemplo, apenas reis e rainhas podiam garantir a preservação de suas imagens em pinturas. Ainda assim, até a popularização das fotografias e vídeos digitais, os registros audiovisuais eram também um esforço. Ir a um estúdio tirar uma foto da família era um evento. Um evento no qual a maior parte da população brasileira, rural, não teve acesso, por exemplo. No entanto, ainda assim garantiam, por meio de festas, repentes, histórias a transmissão de suas memórias.

    O que aconteceu com a era digital foi uma transformação tão profunda como provavelmente foi a tipografia e a eletricidade. As tecnologias digitais vêm transformando o dia a dia, as relações econômicas, políticas e culturais. Para o bem e para o mal (se assim podemos julgar). E quanto a memória? Qual o impacto das tecnologias digitais na memória?

    O Brasil mudou. Hoje, segundo estudo da FGV, o Brasil tem 2 dispositivos digitais por habitante. Os indivíduos tornaram-se produtores de conteúdos e passaram a registrar, comentar e divulgar seus cotidianos. Saímos da era da invisibilidade para a era da auto celebridade. Somos fotógrafos, narradores, jornalistas, comentaristas. Somos indivíduos coletivos. Arrisco dizer que esta mudança atravessou classes e regiões do país. Ainda em lugares nos quais a oralidade é a principal forma de transmissão de memórias, as mídias digitais tornaram-se meios de registro e sobretudo de disseminação. Populações tradicionais, com culturas orais como são as populações indígenas, passaram a utilizar as mídias digitais como ferramenta de transmissão e preservação de seus saberes. As mesmas ferramentas servem a fragmentação total ou a criação de novas narrativas na sociedade. Qual será o futuro da memória? Qual o lugar da pessoa em meio a tantos registros?

    Pessoa

    A pessoa também é um território em disputa. Quando convivemos com figuras histórias, pessoas que se transformam em estátuas, nomes de ruas e pontes e que constam em livros didáticos e filmes, também estamos falando de escolhas. Selecionar, instituir personagens históricos são também escolhas e disputas. E temos visto esta disputa em derrubadas de estátuas, em trocas de nomes de ruas e em constantes tentativas que temos de reescrever nossas histórias. O Brasil é um país que precisa reescrever suas narrativas históricas. A reparação da escravidão, dos genocídios das populações indígenas também começa por aí. Há que se reconhecer também  que toda comunidade possui saberes e fazeres que devem ser respeitados e compreendidos como patrimônio e que são ou deveriam ser a base para qualquer tipo de política de educação, cultura e desenvolvimento. Este é também tema de debate em uma das mesas deste seminário. Este reconhecimento é também um território em disputa. E hoje uma série de comunidades tomam para si esta tarefa. Hoje temos territórios que se transformam em eco museus, museus de favela, grafites de memória entre outros.

    Em meio a tantas transformações, resta-nos a pergunta. Há memória sem esforço? As miles de fotos e eventos postados cotidianamente são memórias? O que restará de tantos fragmentos? Teremos fragmentos de memória? Ou não teremos memória alguma? Existiremos sem a mediação de um celular? Qual a relação que cada indivíduo passará a ter com suas próprias memórias? O que serão os futuros museus, memoriais, monumentos?

    Orhan Pamuk

    Nosso convidado de honra Ohran Pamuk, escritor turco, nascido em 1952 em Istambul, ganhador de inúmeros prêmios em seu país e fora dele, incluindo o prêmio Nobel de literatura em 2006, traduzido em mais de 63 línguas, é também um grande pensador sobre o futuro da memória e criador de um Museu: o Museu da Inocência.

    O Museu da Inocência foi criado por Orhan Pamuk em 2012. Nasceu de uma ideia que o autor teve durante um jantar no qual participou o príncipe herdeiro da dinastia otomana. O príncipe, de 80 anos, havia retornado à Turquia após 50 anos de exílio. Buscava trabalho e, neste jantar, os convidados tiveram a ideia de que ele poderia se tornar guia do palácio em que havia passado sua infância, o Topkapi Palace. Naquele jantar, Pamuk se encantou pela imagem de que um guia-príncipe pudesse sair do meio da multidão de turistas e, subitamente, anunciar: nesta mesa estudei matemática! Ali nasceu a proposta de construir um museu que misturasse objetos e narrativas do cotidiano. Quase 20 anos depois, Orhan Pamuk transformou esta proposta em um livro e construiu seu museu, ambos denominados Museu da Inocência.

    No Museu da Inocência, os objetos foram coletados pelo próprio Pamuk em passeios e visitas a brechós e mercados. Eles contam uma história de amor narrada no livro, no qual o protagonista, apaixonado por sua prima mais pobre, pega todo e qualquer objeto que signifique um instante, um ato, um hábito de sua prima. Logo na entrada, nos deparamos com um quadro com guimbas de cigarro e legendas sobre os humores de sua prima quando os fumou. Os objetos foram dispostos em vitrines cuidadosamente organizadas pelo próprio Pamuk. Cada vitrine é uma paisagem sentimental, sonora e visual da história do amor de Kemal e do cotidiano da sociedade turca com todas as suas características sociais, políticas e culturais

    O Museu possui um livro-catálogo no qual Pamuk (2012), além de narrar a história de como concebeu e construiu seu museu, redige um pequeno manifesto para museus do século XXI. O manifesto, composto por 11 afirmações, apresenta os princípios que, a seu ver, deveriam nortear a construção dos novos museus. Para ele, os museus do futuro, sobretudo os museus do terceiro mundo e das sociedades colonizadas, não deveriam se basear nos grandes museus das metrópoles do Ocidente. Para ele, os museus deveriam explorar e descobrir a vida cotidiana por meio da qual se percebe a humanidade das pessoas comuns, sobretudo das pessoas que não fazem parte das sociedades europeias ocidentais. Pamuk afirma que os grandes museus, como o Louvre, o British Museum, o Prado e o Vaticano – representam o poder do Estado colonial e têm como função perpetuar, simbolicamente, esse poder.  Já na primeira afirmação ele diz que:

    “Os grandes museus, como o Louvre e o Hermitage, nasceram e se tornaram atrações turísticas em concomitância à abertura ao público dos palácios imperiais. Estas instituições, que se tornaram símbolos nacionais, apresentam a história da nação. História considerada muito mais importante do que a história dos indivíduos. Isso é ruim porque a história dos indivíduos é muito mais apropriada para se mostrar a profundidade de nossa humanidade.”

    Adiante, ele afirma que os indivíduos excluídos das sociedades não ocidentais não frequentam museus porque não se reconhecem nestes monumentos-museus. Para ele:

    “O objetivo dos museus presentes e futuros não deveria ser o de representar estados, mas o de re-criar o mundo de um único ser humano e de seres humanos que trabalharam sob regras de opressão durante centenas de anos. (…) Nós não precisamos de museus que tentem construir as narrativas históricas de uma sociedade, comunidade, time, nação, estado, tribo, empresa ou espécie. Todos nós sabemos que o comum, a vida cotidiana dos indivíduos é mais interessante, mais humana e mais divertida. (PAMUK, 2012, p. 54-57)”

    Pamuk (2012, p. 57) termina seu manifesto com a seguinte afirmação: “o futuro dos museus está em nossas próprias casas”.

    Conclusão

    Essa proposta é inovadora. E esta inovação é importante para que os museus do século XXI deixem de ser guardiõesda memória para se tornarem, cada vez mais, facilitadores de criação de narrativas de memórias. Este conceito é o que permite que um museu possa se transformar em muitos museus, tantos quantos se fizerem necessários para que a memória seja a fonte de uma jornada de conhecimento e de consciência.

    Podemos finalizar dizendo que este seminário é a consolidação de um grande esforço. Um esforço de 30 anos para fazer com que a história de brasileiros e brasileiras sejam reconhecidas como parte de nosso legado. Este esforço não foi exclusivamente do Museu da Pessoa. Dele fizeram parte inúmeras instituições públicas, privadas e do terceiro setor. Dele fizeram parte todos aqueles que viram sentido em promover a escuta, a escuta do outro. Este esforço coletivo fundamenta a ideia de que ter o direito à memória é saber que toda e qualquer pessoa  e sua experiência tem o direito a ser considerada um patrimônio da humanidade. Esta ideia é o cerne da proposta que deu início ao Museu da Pessoa, que completa 30 anos. Uma proposta que vislumbra um futuro no qual, tal como colocado no manifesto do Museu da Pessoa:

    “Um dia haverá em que as histórias, pequenas ou grandes, cheias de aventuras ou plenas de banalidades, sejam percebidas como parte de nosso patrimônio.

    Um dia haverá em que as histórias serão consideradas as pirâmides do Egito.

    E os museus do futuro serão, então, as nossas vidas.”