TecBan - Histórias Diversas
Entrevista de Xiomara Martínez Noguera
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Fortaleza, 23 de julho de 2022
Entrevista nº PCSH_HV1249
Realização: Museu da Pessoa
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:20) - P/1 - Bom dia, Xiomara. Tudo bem?
R - Bom dia, Genivaldo. Tudo bem, graças a Deus. E você?
P/1 - Tudo ótimo! A primeira pergunta que eu vou te fazer é a mais básica: qual seu nome completo, a sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu?
R - Meu nome é Xiomara Leonor Martínez Noguera, Eu nasci em Manágua, [na] Nicarágua, América Central, em quinze de abril de 1987.
(0:56) P/1 - Contaram para você como foi o dia do seu nascimento?
R - Sim! Minha mãe contou que foi uma quarta-feira santa, lá na Nicarágua. E nos anos 80, [em] 87 a Nicarágua, infelizmente, estava passando por um momento difícil politicamente. No momento que eu nasci, às cinco horas da madrugada, no hospital não tinha água, aí quando eu nasci não me banharam, nem nada, minha mãe também [não]. Foi um momento difícil, que ela nunca vai esquecer.
(1:42) P/1 - E ela te contou por que ela escolheu o seu nome?
R - Sim! Foi uma combinação, Xiomara é uma irmã do meu pai. A família do meu pai é muito grande, gigantesca; eles são dezesseis, imagina? Minha avó teve dezesseis filhos na época dos anos 30, 40, 50. A irmã mais velha se chama Ilze e a irmã mais nova se chama Xiomara.
Eles pensaram que ia ter duas filhas, então por isso a minha irmã mais velha se chama Ilze e eu me chamo Xiomara. O segundo nome, Leonor, é o nome da minha avó, ou seja, a mãe da minha mãe, que se chamava Marta Leonor, mas todo mundo chamava ela de Leonor. Minha mãe gostava desse nome.
(2:49) P/1 - Me fala um pouco sobre a sua mãe e o lado materno da sua família?
R - Minha mãe veio de uma família pequena. A minha avó teve cinco filhos, ela é a quarta. A infância dela não foi com tanta abundância, mas também...
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Entrevista de Xiomara Martínez Noguera
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Fortaleza, 23 de julho de 2022
Entrevista nº PCSH_HV1249
Realização: Museu da Pessoa
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:20) - P/1 - Bom dia, Xiomara. Tudo bem?
R - Bom dia, Genivaldo. Tudo bem, graças a Deus. E você?
P/1 - Tudo ótimo! A primeira pergunta que eu vou te fazer é a mais básica: qual seu nome completo, a sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu?
R - Meu nome é Xiomara Leonor Martínez Noguera, Eu nasci em Manágua, [na] Nicarágua, América Central, em quinze de abril de 1987.
(0:56) P/1 - Contaram para você como foi o dia do seu nascimento?
R - Sim! Minha mãe contou que foi uma quarta-feira santa, lá na Nicarágua. E nos anos 80, [em] 87 a Nicarágua, infelizmente, estava passando por um momento difícil politicamente. No momento que eu nasci, às cinco horas da madrugada, no hospital não tinha água, aí quando eu nasci não me banharam, nem nada, minha mãe também [não]. Foi um momento difícil, que ela nunca vai esquecer.
(1:42) P/1 - E ela te contou por que ela escolheu o seu nome?
R - Sim! Foi uma combinação, Xiomara é uma irmã do meu pai. A família do meu pai é muito grande, gigantesca; eles são dezesseis, imagina? Minha avó teve dezesseis filhos na época dos anos 30, 40, 50. A irmã mais velha se chama Ilze e a irmã mais nova se chama Xiomara.
Eles pensaram que ia ter duas filhas, então por isso a minha irmã mais velha se chama Ilze e eu me chamo Xiomara. O segundo nome, Leonor, é o nome da minha avó, ou seja, a mãe da minha mãe, que se chamava Marta Leonor, mas todo mundo chamava ela de Leonor. Minha mãe gostava desse nome.
(2:49) P/1 - Me fala um pouco sobre a sua mãe e o lado materno da sua família?
R - Minha mãe veio de uma família pequena. A minha avó teve cinco filhos, ela é a quarta. A infância dela não foi com tanta abundância, mas também não foi uma família empobrecida. Só que na infância dela tem muitos traumas, porque a mãe da minha mãe morreu de câncer cerebral. Ela tinha apenas quinze anos e vivenciou a infância dela com a mãe agonizando, tinha ataques epiléticos também. Foi uma vida traumática.
Quando a minha avó faleceu, o pai dela ficou em depressão, aí ele passou a beber e em poucos anos ele morreu, então todos os irmãos ficaram, entre aspas, desamparados. E por isso minha mãe, com dezessete anos, casou com o namorado. Com o primeiro namorado ela casou, tiveram uma filha. E aí vieram vários problemas, porque o esposo dela, o primeiro marido, era machista e minha mãe queria se superar profissionalmente. Ela achava complicado já ter uma filha e passar pela universidade; o esposo dela a estava impedindo de estudar na faculdade.
Posteriormente, com o passar dos anos, minha mãe disse: “Não, minha filha já tem cinco, seis anos. Eu posso continuar os meus estudos”. Aí ela ingressou na faculdade, uma universidade autônoma da Nicarágua; ela estudou licenciatura em Física.
Posteriormente, você sabe né, quando no matrimônio não tem essa cumplicidade, essa confiança, aí vem os problemas. Como ele já tinha pronunciado que era contra ela estudar, ele pegou a filha dela e levou para El Salvador, na América Central. Minha mãe não sabendo nada, procurando a sua filha, foi colocar uma denúncia, como sequestro, mas não os acharam. Aí minha mãe ficou em depressão - a primeira filha, única filha. Mas ela continuou estudando.
Quando ela estava no último ano, por destaque acadêmico, ela estava fazendo uma… Chama-se Instituto de Minería, Energética e Mineração. Foi aí que ela conheceu meu pai. Meu pai era diretor, nessa época, e minha mãe estava fazendo estágio em um projeto eólico.
Meu pai, sendo uma pessoa de grande categoria, recebe uma bolsa de estudos para fazer doutorado no Japão. Como meu pai e minha mãe estavam namorando, meu pai disse: “Olha, fui eleito para fazer o doutorado no Japão, mas eu vou fazer de tudo para que você vá comigo”. Já tinha nascido a minha irmã mais velha, porque com três meses de namoro minha mãe ficou grávida. Posteriormente saí eu, a gente tem um ano e três meses de diferença.
Minha mãe achou complicado, com duas filhas, mas meu pai fez todos os papéis e disse: “Você vai comigo, você vai fazer uma pós-graduação”. Minha mãe [ficou] muito lisonjeada, mas o problema ia acontecer - nós pequenas… Eu tinha dois anos, minha irmã mais velha, três anos, sem nenhuma família que cuidasse de nós. Meu pai falou com a irmã dele para cuidar de nós e ficamos com essa família. Eu quase não tenho muita memória disso, só o que os meus pais contaram.
Eles foram para o Japão. Quando tinham se estabelecido, procuraram uma escola para nós, aí pronto…. Ficamos só uns seis meses na Nicarágua e fomos para o Japão. Eu estava fazendo três anos quando estava voando. Minha mãe imediatamente colocou a gente na escola, uma escola que a gente passava o dia inteiro, e eu aprendi japonês. Com dois, três anos a gente nem sabia falar, estava aprendendo os primeiros passos.
A gente passou três anos no Japão. Eu não tenho muitas lembranças do Japão, só algumas coisas, por exemplo, da escola que a gente passava o dia inteiro. A gente tinha os vizinhos na frente e passava o dia inteiro com eles, porque os meus pais passavam [o dia] estudando, e a gente via apenas à noite os meus pais.
Com o passar dos anos, no ano de 92, minha mãe ficou grávida do meu irmão. A bolsa de estudos não abrange muitas coisas, e uma dessas coisas são as mulheres grávidas; não tinha seguro, o custo de vida lá é muito caro, hospital. Mas no Japão o aborto é legal. Minha mãe, como não segue nenhuma religião, ela se considera ateia, estava pensando em abortar meu irmão. Aquela preocupação com a bolsa de estudos, como arranjar emprego, [é] muito difícil para uma pessoa imigrante lá. E o meu pai disse: “Tem a última condição, é você retornar, voltar para Nicarágua.” “Mas eu, sozinha? Com duas filhas? Eu, grávida?” Minha mãe já estava com sete meses e já estava próxima a ser graduada dessa pós-graduação. Aí combinaram, minha mãe, com sete meses de gravidez, retornou para Nicarágua, com nós duas.
Pra mim foi um choque, um choque cultural. Você imagina, morar no Japão três anos, posteriormente voltar para um país totalmente desconhecido. Não tinha lembrança, não tinha memória de nada. É obviamente um choque cultural, porque dentro das casas tudo é diferente, os carros, as ruas, tudo diferente. A Nicarágua, infelizmente, não é um país tão desenvolvido.
Eu não sabia de nada. Imagina para uma criança de seis anos, não saber o que está acontecendo. Só sabia que a gente ia ter um irmão, estava feliz por isso. Posteriormente, a minha mãe… A família do meu pai deu uma casa para nós, e essa foi a minha vida, o começo da minha memória.
Quando eu cheguei na Nicarágua, a gente não sabia espanhol, a minha irmã e eu. A gente só falava japonês. A gente chegou em junho, julho do ano 92. Minha mãe disse: “Eu vou colocar numa escola como ouvinte, para vocês aprenderem o espanhol”. Mas a gente sofreu muito bullying, porque a gente tinha essas mochilas japonesas, de couro, muito diferentes; a gente ia com as lancheiras, tudo naquela cultura japonesa, na Nicarágua. Os meus companheiros da escola [perguntavam]: “Você vem de onde? Vocês são estranhas!” E a gente não sentia esse acolhimento, nem por parte da professora, nem dos diretores. Eu passava [o dia] chorando e falava para minha mãe: “Eu não quero ir para a escola nunca mais”.
Nessa época, no ano de 92, a gente estava vivenciando a transição da política. Antes, nos anos 90, a Nicarágua estava passando por uma guerra civil, pela invasão dos Estados Unidos e aí o Fascismo, o Sandinismo, estava querendo… Nos anos 90 teve a transmissão [de poder], ganhou a primeira presidente mulher da América Central. A gente já sentia uma paz, mas como a Nicarágua estava apenas passando pela transição dessa guerra civil, nós não estávamos num momento muito bom. A princípio, a presidente estava fazendo negociação com os Estados Unidos, saindo de uma pobreza… A gente passou por tudo isso também. Tinha corte de energia elétrica, tinha corte de água; muitas coisas, muitas dificuldades, enfim.
[Foi] um momento feliz quando nasceu o meu irmão, só que a gente estava sofrendo essas questões de limitações econômicas. Minha mãe não tinha trabalho; meu pai, obviamente, [estava] no Japão, finalizando o doutorado. A situação política e econômica não ia muito bem na Nicarágua, a gente passou por muitas dificuldades. Meu pai, nessa época… Você sabe, os correios, nos anos 90, demoravam quanto? Três, quatro meses. Ele mandava uma carta com dinheiro, em dólares, aí a gente recebia até três, quatro meses depois. A gente vivenciou tudo isso, mas na minha mentalidade estava tudo bem.
Quando meu pai retornou para a Nicarágua, em 95, encontrou dificuldade em arrumar emprego, porque na Nicarágua não é muito comum ter uma pessoa com esse título, de doutorado, mestrado; não é muito comum, por ser um país não tão desenvolvido. Meu pai passou por muitos meses, acho que vários anos, sem trabalho, até o ano de 96.
Em 96, chegou uma empresa canadense de mineração, e colocaram o meu pai como diretor. A gente já respirou uma bonança na vida. E minha mãe ficou grávida novamente, no ano de 96. A gente [ficou] feliz, irmãozinho, tal… E nasceu a minha irmã mais nova, a que está morando aqui comigo, nesse momento. A gente vivenciou esse momento de felicidade.
Posteriormente, já no ano [de] 98, 2000 quase, essa empresa canadense teve que ir embora, novamente por questões políticas. Meu pai ficou desempregado, a minha mãe, já com quatro filhos… [Foi] muito difícil, saindo de [cuidar de] uma criança, passando para cuidar de outra criança.
Os meus pais procuraram emprego, foram professores de faculdade, dando aula. Eu vivi isso, vendo os meus pais sempre querendo superar [as dificuldades], para a gente não passar fome. Quando eu fui crescendo, graças a Deus meus pais nos colocaram num colégio muito bom, um colégio pedagógico e que tinha uma boa referência para estudar e para se relacionar também. Tinha filhos de deputados, a aristocracia da Nicarágua. Graças a Deus a gente passou no ensino médio, conseguimos nos graduar ali. E eu sempre estava vivenciando isso, como meus pais queriam se superar.
Meu pai, com doutorado, não conseguia um bom trabalho, só de professor. Meu pai dizia: “Não quero mais passar por essas dificuldades, os alunos não prestam atenção.” Ele não gostava dessa profissão, de ser professor. Graças a Deus, meu pai começou a colocar uma consultoria em casa, porque na Nicarágua, se você quer comprar uma casa, se você quer construir uma casa, tem que passar por uma provação, tem que passar por um estudo da terra, do terreno; precisa ter uma assinatura de um técnico - meu pai é geólogo. E assim meu pai foi construindo uma consultoria própria, mas a gente sentia que não tinha esse abraço econômico, financeiramente, porque é muito difícil, com quatro filhos, minha mãe desempregada, e só o meu pai fazendo tudo, levando o dinheiro para casa.
Nos anos 2005, 2007, minha mãe conseguiu emprego na prefeitura de Manágua, com vasta experiência, mas ela estava num cargo menor, um cargo quase de obreiro. Eu sempre estava presenciando que ela queria superar [isso], mas sempre com essa frustração que não finalizou a pós-graduação. Não interessa se você foi para o Japão; você não tem esse título, então você não é reconhecida como essa pessoa. E também pela questão de gênero e idade, ela passou vários anos sem emprego. Essa recessão fazia também com que ela não encontrasse um bom cargo, um bom emprego, mas com a luta, ela trabalhou dez anos na prefeitura.
Posteriormente, ela disse: “Quero me aposentar.” Já [estava] com sessenta anos e nunca conseguiu o plano de carreira. Inclusive ela estava imersa na política, porque nos anos 2007, [ano] que ganhou a esquerda na Nicarágua… Está o mesmo Presidente, até agora, na Nicarágua. Ela viu essa dificuldade, que você é fã desse partido, você trabalha para esse partido, mas não é reconhecido com a profissão que você tem. Com a frustração que a minha mãe passou todos esses anos, ela decidiu se aposentar e começar outra carreira, que é a contabilidade.
O meu avô era contador do Banco Nacional da Nicarágua, ele era diretor, e a minha mãe sempre teve admiração e respeito por seu pai. Considerava que ele era muito inteligente, ele ensinou matemática para ela, por isso que ela se apaixonou por matemática, física, tudo isso. Na sua memória sempre ficou: “o meu pai é o mestre da contabilidade”. Assim que ela se aposentou, ela passou o tempo dela estudando, cinco anos. Imagina uma pessoa de sessenta anos? Era a única velha, de cabelo branco, na faculdade. Você sabe que no primeiro ano tem pessoas de dezesseis, dezessete anos, e ela era a única pessoa de sessenta. Os professores a admiravam. E obviamente, quando ela terminou com os estudos, ela foi a melhor aluna de toda a carreira de contabilidade. Ela se sente honrada disso. Ela contou, nas palavras dela, que foi o seu pai que a incentivou a estudar uma carreira, que para ela, é para pessoas inteligentes.
(23:05) P/1 - Queria que você contasse um pouco desse período que você saiu do Japão e chegou na Nicarágua. Por exemplo, você comia um tipo de comida no Japão, você gostava daquilo; chegou na Nicarágua e teve que passar a comer outro tipo de comida. Me conta quais eram os seus gostos na infância e essas mudanças que aconteceram por conta da sua mudança para a Nicarágua.
R - Eu me lembro da comida do Japão. Meu prato favorito se chama oniguiri, que é uma bola de arroz, coberta com uma alga. É uma delícia. Eu me lembro dessa comida. Obviamente, no Japão você se acostuma a comer frutos do mar, muitos frutos do mar, e com palitos. Quando eu fui para a Nicarágua, obviamente eu não sabia, ficava desconcertada, totalmente, e eu pedia para minha mãe: “Eu quero oniguiri”. E minha mãe: “Eu não consigo fazer essa bola de arroz assim, não tem alga. Minha filha, tenha calma, paciência”. Mas eu queria oniguiri, queria ramen. E eu fiquei magra, magra.
Eu não gostava de feijão, não gostava de nada da Nicarágua, nada da comida. E minha mãe: “Come aqui”, com aquela paciência. Ela dava vitaminas para a gente ter mais fome, porque ela dizia: “Se você tiver fome, você vai comer esse prato.”
Eu me lembro, na Nicarágua tem um prato típico, que se chama arroz aguado, que é um arroz tipo sopa, como se fosse risoto, e eu não gostava de jeito nenhum. E minha mãe só dava isso, como é mais prático, mais fácil de fazer. Arroz com frango em cima eu não gostava. Mas a gente foi acostumando, comendo vegetais, feijão. Tem um prato típico da Nicarágua que se chama gallo pinto, que é arroz com feijão, como se fosse o baião aqui de Fortaleza, mas sem nada, sem creme, e só arroz e feijão frito. E aí foi se acostumando o paladar, e agora adoro a comida da Nicarágua, tenho saudade da comida da Nicarágua. E se você me perguntar, você comia vegetais? Não!
(26:07) P/1 - Quais eram os costumes mais comuns que a sua família tinha - festas, reuniões, alguma comida que é típica da sua família, que vocês sempre fazem? Me conta um pouco desse dia a dia de vocês na Nicarágua.
R - Na Nicarágua, como eu tinha falado, meu pai [estava] sempre fazendo essa superação pessoal, profissional dele, procurando um cargo que se adequasse com o seu título, e minha mãe também, então a gente não tinha esses momentos tão próximos, como família. A gente ficava com uma empregada, que a gente chama de secretária; a gente ficava o tempo todo com a secretária, porque a minha mãe dava aula nas universidades de dia, à tarde, não tinha horário certo. E também, como eu e a minha irmã mais velha estudamos no colégio, entre aspas, privilegiado - a gente estava estudando com bolsa, porque era muito caro esse colégio - então a gente tinha atividades extracurriculares. Depois que finalizava as aulas, às 12:30, 12:35, a gente praticava esportes, voleibol, taekwondo. Por isso eu chegava às cinco, seis horas da tarde, fazia os deveres, tarefas de casa e pronto, dormia.
Ter um costume, um prato favorito, não temos. Mas nas datas comemorativas, por exemplo, no aniversário, Natal, a gente sempre comemorava juntos; temos sempre essa prática, até agora. Por exemplo, no ano passado, em dezembro, eu viajei para Nicarágua para passar Natal e Ano Novo, a virada do ano com os meus pais, com a minha família. Isso é uma coisa histórica.
(28:39) P/1 - Eu queria que você comentasse as primeiras impressões de quando você começou a estudar nesse colégio. Foi difícil? Tinha alguma matéria que você gostava mais? Como foi isso?
R - No passar dos anos, depois de 92, eu fiquei como ouvinte, num colégio Bautista, aí posteriormente passamos para outro colégio, que eu também não senti tanto acolhimento, mas nesses aspectos. Era uma escola bilíngue e a professora, a diretora, [diziam:] “Ela fala japonês, as japonesinhas, não sei o quê”. E eu não gostava disso, dava tanta relevância para minha irmã e para mim, que eu não gostava. [Em] atos culturais, [diziam:] “Vocês vão dançar, vocês vão cantar”, e eu não gostava, não queria ter esse realce. Todo mundo nos chamava de japonesinhas; eu não gostava disso, porque eu não me sentia japonesa.
Passei três anos nesse colégio. Eu falava para minha mãe: “Eu não gosto desse colégio”, porque [a gente tinha] tanta relevância, que eu não estava gostando. Eu me sentia reprimida. Eu não sabia a importância da gente ter voltado do Japão. E aí eu não tinha essa concentração nos estudos, eu estava indo mal, aí a minha mãe falou com meu pai: “Vamos tirá-las, porque o colégio bilíngue é caro. Vamos colocar num colégio menor, com custo baixo.”
Minha irmã mais velha e eu fomos para esse colégio, totalmente diferente. [Era outro] tipo de pessoas, mas me sentia mais à vontade. E só passamos dois anos, porque no ano de 96 meu pai ganhou esse cargo de diretor na empresa canadense de mineração. Aí foi que a minha mãe disse: “Se temos essa oportunidade, vamos colocar as minhas filhas nesse colégio”. Assim foi que passamos para esse colégio pedagógico, muito católico. E foi essa transição na questão educativa, porque no outro colégio não era tão intensa a educação, não estavam dando esse acompanhamento às tarefas. Você só copiava uma leitura, mas não tinha esse acompanhamento direcionado para o aluno. E quando passamos para esse colégio, que se chamava La Salle, a gente sentiu essa pressão de estudar mais, por isso a minha mãe ficou mais perto de nós. Ela adora matemática, adora números, e ela dizia: “Vocês têm que se sair bem em matemática”. Então foi essa preparação que ela me deu, para eu também me apaixonar pela matemática. E assim foi que eu fui crescendo, quando saí do quinto ano, já tinha essa paixão pela matemática. Por isso fui estudar Administração de Empresas, que é uma combinação de números, análises, finanças, estudar o mundo inteiro.
Também tinha outras opções - Engenharia Industrial, Informática, Arquitetura [eram] minhas outras opções. Mas eu já tinha esse conhecimento que na Nicarágua não tem essa oportunidade para todos os jovens, dependendo do grau que você estuda, então quando eu virei para estudar Administração de Empresas, eu sabia que podia ter vários campos, várias áreas. Se eu estudasse Arquitetura, eu sabia que tinha que procurar uma empresa de arquitetura, ou se estudasse Engenharia, eu sabia que tinha que procurar uma empresa de construção. Minha visão era mais ampla, por isso eu pensei: “Vou estudar Administração de Empresas. Posso ter um cargo em várias indústrias, seja construção, seja marketing, finanças, banco.” [Fiz isso] para não seguir os passos do meu pai, porque é muito difícil quando você tem uma profissão muito específica. E na Nicarágua, que é um país não desenvolvido, infelizmente você não consegue um bom emprego, um bom trabalho.
(34:05) P/1 - Então quando você estava no ensino médio, você já estava com tudo isso na cabeça para fazer Administração, quando você entrasse na faculdade?
R - Exatamente! E também porque a escola preparava. Quando eles sabiam que você já estava para sair, eles preparavam, fazendo exames, visitando universidades. Eles mesmo iam preparando, para saber como você vai ser direcionado. Infelizmente, na Nicarágua você sai e não sabe… Tem um alto índice na Nicarágua de jovens que mudam de carreira, que não conseguem terminar [a faculdade] porque não gostaram, e trocam. Querem diminuir esse alto índice de rotatividade de jovens ficar trocando carreira, então no quarto, quinto ano, eles te preparam para você já saber o que você quer, qual a sua captação, suas habilidades.
A minha irmã mais velha é muito inteligente, adora matemática, números, mas ela se apaixonou por Medicina. Desde que estava na metade do ensino médio, ela dizia: “Eu quero ser doutora. Quero salvar vidas, eu quero uma proposta de vida aqui.” E a minha mãe dizia: “Não, você é muito inteligente em números, você é analítica”.
A gente sabe que é muito puxada a carreira de medicina. São sete anos, mais serviço social, e você não vai ver esse dinheiro, esse retorno do investimento a curto prazo, só a longo prazo. Mas a minha irmã mais velha disse: “Não, eu quero estudar Medicina”. E assim foi, ela entrou na carreira de medicina. Até hoje ela é médica, ela fez especialização em Ginecologia e uma sub-especialização em laparoscopia. Agora ela está como coordenadora num hospital em Salvador, Bahia.
(36:45) P/1 - Eu queria que você contasse um pouco sobre a sua relação com os seus irmãos.
R - Como eu te falei, somos quatro irmãos, sem mencionar a primeira filha que a minha mãe teve. Até hoje em dia a gente se comunica com ela, e ela está morando em El Salvador, na América Central. Ela já está casada, com dois filhos; a gente mantém essa comunicação com ela.
A gente se criou junto, a minha irmã mais velha, eu, que sou a segunda, meu irmão e a minha irmã mais nova. A gente sempre teve uma conexão muito, muito boa, somos unidos, principalmente a minha irmã mais velha e eu, temos quinze meses de diferença. Brincamos juntas de boneca.
Quando meu irmão nasceu, com cinco anos de diferença, obviamente a gente tinha que cuidar dele. E como homem, ele não vai brincar de boneca, mas a gente não sabia, quando você é criança você não tem essa mentalidade que os meninos não podem brincar de boneca. A gente o incluía ele, mas ele mesmo expulsava as bonecas, tirava a cabeça, cortava o cabelo. “William, não faça isso!” Era uma briga com ele, e ele: “Eu não vou brincar de boneca”. A gente brincava com a minha mãe na cozinha, e ele não gostava de jeito nenhum. Só gostava de carrinho, bonequinho. Era uma briga com ele, porque ele estragava todos os meus brinquedos e eram muito caros. A gente foi se acostumando a incluí-lo nos jogos, para a gente brincar.
Na época dos anos 90, tinha Power Rangers, essas coisas que a gente via na televisão. A gente jogava isso, os Power Rangers, os Cavaleiros do Zodíaco, os animes que a gente olhava na televisão. [Era] um momento agradável.
Posteriormente, quando nasceu minha irmã mais nova, foi um tanto diferente. Eu já tinha dez anos, minha irmã mais velha onze anos, e ela era bebezinha, então a gente tratava com mais cuidado, já tinha mais consciência. Mas, obviamente, [quando] eu tinha quinze anos, minha irmã, dezesseis, já eram outras coisas. A gente já conhecia rapazes e minha irmã tinha cinco anos; ela tinha que brincar com os vizinhos, porque nós já tínhamos uma idade [em] que não iríamos brincar com ela.
A gente [estava] se preparando para entrar na faculdade, e a minha irmã estava apenas começando a escola, então essa diferença de idade… Apesar disso a gente convivia muito bem, e até agora somos muito unidos. A gente sempre se fala, porque o meu irmão está na Nicarágua nesse momento, e a gente está sempre se falando. Eu falo todos os dias com a minha mãe, com meu pai, então sempre tivemos essa conexão, essa comunicação muito boa com todos.
(40:53) P/1 - Como você sentiu quando você passou e começou a estudar na faculdade? Teve estranhamento, demorou pra você se adaptar? Como foi?
R - Aconteceram umas coisas estranhas. Como eu tinha falado, a gente estava numa escola muito, muito boa, [com] uma educação muito boa, e também muito restrita, com a farda, a saia abaixo do joelho. Quando eu fui para faculdade, senti outro mundo, totalmente diferente. As mulheres com top, saias bem curtinhas e eu não conseguia me adaptar, eu sempre estava de jeans e camisa normal. E quando eu olhava essas mulheres, todas vestidas, cabelos, salto alto, seus jeans apertados, eu ficava desconcertada, porque ninguém tinha me falado que a Universidade era muito ampla, e que você tinha opções de vestimenta; você entra ou não entra na aula, tem essa liberdade que eu não conhecia, porque passei seis anos nessa escola [em] que a gente não sentia essa liberdade. Você não podia se maquiar, pintar o cabelo, [usar] um piercing, nada, nada. E quando eu entrei na faculdade, foi esse choque, todo mundo de tatuagem, então você também se sente à vontade.
Eu queria fazer piercing, aquelas coisas da época. Obviamente o meu pai não concordava, e eu falava: “Pai, eu quero um piercing, eu quero aqui no umbigo”. E o meu pai: “Não, se você fizer isso eu arranco o seu umbigo”. Mas naquela época [era] uma loucura. “Ah, vou fazer, meu pai não vai saber que eu fiz um piercing no umbigo”, porque você está vivenciando, está saindo de uma cultura e entrando numa cultura mais aberta, totalmente diferenciada.
Fiz o piercing, queria pintar o meu cabelo, já faltava às aulas; sentia essa parte da adolescência. Meu pai descobriu que eu estava com piercing, quase que me mata. A minha irmã mais velha fez um piercing aqui no nariz, também; foi uma briga, como se a gente fosse criminosas.
Meu pai: “Vocês vão ser profissionais de bem, você vai ser isso, isso”. Meu pai sempre [nos] direcionou nesse caminho. Se você quer ser um bom profissional, você não pode ter um piercing, não pode ter uma tatuagem. Então [era] muito complicado. Mas na minha cabeça eu dizia: “Por que? Por que isso? Por que esse preconceito?” Ele dizia: “Você vê um presidente tatuado? Você vê um presidente com piercing?” Essa comparação.
Enfim, quando eu fui crescendo, minha mente, com essa maturidade e vendo também o meu pai, sempre conseguindo tratar de ser o melhor para nós… Ele sempre estava dizendo: “Xiomara, você tem que fazer uma pós-graduação. Você não pode ficar só com essa licenciatura”. Ele sempre me mentalizou para continuar com os estudos. Quando me formei em Administração de Empresas, fiz uma pós-graduação, uma especialização em finanças, porque eu gosto de números, análises, de tudo isso. Fiz essa especialização por um ano. Quando eu vi que era muito puxado isso, eu falei: “Não quero estudar mais”. Aí procurei um bom emprego e com o passar dos anos eu arranjei muitos empregos, porque eu sempre tive boas notas - [isso foi] antes de finalizar minha faculdade, eu estava nos últimos anos. Pegavam os melhores alunos de toda a carreira; nós éramos seis turmas, de toda carreira escolhiam cinco, uma pessoa de cada turma, os melhores alunos. E eu fui escolhida para fazer um estágio. Aí eu já senti esse momento de trazer os resultados de ser uma boa aluna e coloquei em prática.
Aprendi bastante Excel - estou falando dos anos 2007, 2008. Vi o que era ter um emprego, ter dinheiro, como fazer os meus orçamentos, porque eu tinha que pagar transporte, alimentação e tudo, então eu já ia me preparando também. Quando finalizei esse estágio, passei para uma empresa do governo, [de] serviço social, que também se chama INSS, que é Instituto Nacional de Serviço Social. Como tinha falado, minha mãe era muito próxima ao governo, por isso eu arranjei esse emprego; quando você trabalha num ambiente estadual, tudo combina com a política.
Infelizmente eu não aprendi muito, porque estava se candidatando uma pessoa na prefeitura. Nessa época, era Alexis Argüello, uma personagem muito importante na Nicarágua; ele foi o primeiro tricampeão de boxe a nível Mundial, e ele estava se candidatando para prefeitura, então você sabe, campanha, apoiar e tudo. A gente, como era novato, tinha que fazer esse acompanhamento, essa campanha.
Depois falei com a minha mãe que eu não me sentia confortável, porque eu não estava aprendendo nada. Queria aprender de seguros, de leis, de aposentadoria, como que se aplica, números, fazer cálculos, tudo isso.
Posteriormente saí, houve uma reestruturação administrativa, aí sai desse lugar e fui para uma empresa construtora, uma empresa italiana de construções horizontais e verticais, ou seja, construções de estradas quilométricas, pontes, projetos hidrelétricos. Fui para o RH, eu fazia folha de pagamento. Aí foi a minha maior aprendizagem, porque quando você [está numa empresa de] construção, você vê o diverso e complexo que é uma empresa desse nível. São mais de mil obreiros, mais de cem pessoas no administrativo, e pessoas estrangeiras - tinha hondurenhos, dominicanos, italianos, tinha de todas as nacionalidades. Foi aí que eu aprendi como fazer folhas de pagamento quinzenais, mensais e também como aplicar a lei nas folhas de pagamento, porque não é a mesma coisa pagar um estrangeiro e pagar um obreiro da construção. Foi por isso que eu consegui essa melhor experiência, esse melhor conhecimento.
Pensei que queria fazer essa pós-graduação em Finanças. Quando eu terminei essa pós-graduação eles me promoveram; fui assistente do gerente, para estar perto das licitações das construções. Então já era outro conhecimento, outra experiência, já estava envolvida com outros tipos de pessoas. Aí pensei: “Preciso ter um bom estudo de inglês, inglês especializado nessas temáticas de trabalho.” Como eu estava ganhando muito bem, fiz um [curso de] inglês profissional.
Posteriormente já me sentia com essa bagagem, mais disposta para continuar uma melhor preparação, portanto pensei: “Eu quero fazer o mestrado.” Aí fui procurando, pesquisando bolsas de estudos, continuando a linhagem do meu pai e da minha mãe. Fiz entrevistas, porque tem muitos organismos que dão bolsas de estudo para Nicarágua; por exemplo, o país Taiwan, que tem um convênio com a Nicarágua, [tem] muitas bolsas de estudo e você precisa do inglês fluente. Também tem as que se chamam…. São dos Estados Unidos, que mandam para… As americanas.
E assim, procurando, quando eu vi já estava me aproximando dos trinta anos, aí já dá uma preocupação. Puxa! Tá bom que eu tenho esse bom trabalho, mas eu sentia que eu queria me preparar profissionalmente, eu não queria ser a mão-direita de um diretor; eu quero chegar a um cargo de gerente, de gestão. Portanto, pesquisando, cheguei, vi a Universidade do Chile. Eu já tinha conhecimento de vários colegas do ensino médio, da faculdade, que fizeram nesta universidade. Aí, perguntando se tinha bolsa de estudos, só [tinha] para área do governo, porque o governo dava essas bolsas para pessoas de baixos recursos, que não tinham… Você tem que dar esse respaldo, dizer que você é de baixa renda, que você não pode pagar. Eu não tinha como demonstrar isso, porque estava ganhando bem nessa construtora, era possível conseguir empréstimo para um carro bom. Eu estava tão confortável, mas o meu pensamento queria ser superior, queria esse crescimento.
Quando eu falei com a minha irmã mais velha, ela já tinha saído da Nicarágua. Ela foi para Salvador, Bahia, porque infelizmente os doutores não tem um bom salário, é muito puxado, e tem plantões a cada três dias, com um salário menor. Minha irmã falou para o meu pai: “Eu não quero continuar aqui na Nicarágua. Não tem reconhecimento para doutores, passei sete anos da minha vida estudando para ter uma miséria de salário, além disso maus tratos, porque chegam os pacientes gritando.” Eu tinha falado que meu pai é de uma família enorme; a gente tem família aqui no Brasil, a maioria está em Salvador, Bahia, e uma das irmãs do meu pai é médica. Aí o meu pai entrou em contato com ela, com a minha tia, e ela disse: “Você pode ver, procurar algum emprego ou alguma especialização”. E ela disse: “Sim, posso!” “Venha para cá, para olhar.”
Minha irmã veio [para o Brasil] há dez anos. [Quando] chegou, ela viu que tinha muitas oportunidades para médicos. Posteriormente, ela chegou na Nicarágua e disse: “Pai, eu quero ir para o Brasil. Estou vendo que tem muitas oportunidades, salário muito bom. Posso me especializar, eu posso conseguir esse crescimento profissional e pessoal.” Aí a gente deu todo apoio, meu pai deu todo apoio, acompanhou ela tirar o diploma, para ela se legalizar.
[Quando] ela chegou em Salvador, Bahia, graças a Deus ela recebeu bastante apoio da família do meu pai. Ela se estabeleceu, conheceu o seu esposo, agora ela tem uma filha, e tem uma vida muito agradável. Quando eu vi que a minha irmã conseguiu isso, eu também disse: “Quero sair da Nicarágua, porque aqui não tem oportunidade. Eu tenho pós-graduação, eu tenho inglês e o máximo que eu consegui é ser secretária de um diretor. Eu não quero esse cargo, não quero esses postos assim, eu sei que eu posso conseguir mais.”
Falei para minha irmã que estava procurando um mestrado e minha irmã disse: “Xiomara, se você quer ir para o Chile, eu te apoio”. Então ela tirou um empréstimo do banco, e assim foi que eu consegui entrar no mestrado no Chile, foi no ano de 2018.
Quando eu cheguei no Chile, obviamente, [teve] aquele choque cultural; você passa quase treze anos na Nicarágua e chega em outro mundo. Santiago é uma capital multidiversa. A universidade deu um passeio para a gente conhecer Santiago, caminhando. A minha primeira impressão foi…. As minhas colegas estavam saindo [com] saias muito curtas e tatuagens grandes na perna. Fiquei chocada, eu falei para diretora que estava dando um tour, um passeio: “Desculpa, como que os meninos aqui do colégio pode ter uma grande tatuagem na perna?” E a diretora me olha assim e diz: “Xiomara, aqui não tem problema disso. Você pode ter tatuagem, piercing, ninguém vai te discriminar, aqui tudo é muito diverso.”
Eu já fui preparando minha mente. “Poxa, o Chile é totalmente diferente”. Já vi casal [de] homens com homens, mulheres com mulheres; eu ficava passada! Infelizmente, a Nicarágua é um país que 98% da população é católica, você não vai ver essa diversidade, inclusive nem é permitido. Uma coisa que [acontece] até agora, que estou com a mente mais aberta: você vai na Nicarágua e tem código de vestimenta para entrar nos bares, nas baladas; inclusive o cabelo do homem não pode estar raspado, não pode ser preso o cabelo do homem, não pode entrar de short, chinelo. Então você sabe, você se acostuma, por trinta anos vivenciando isso, que você tem que ter uma presença numa balada, num bar. Quando fui para o Chile, [é] totalmente diferente, então foi um choque cultural. A comida também é muito diferente.
Mas o meu foco era os estudos, era sair bem no mestrado, inclusive ter um destaque acadêmico. Esse era o meu foco. Conheci muitas pessoas, mexicanos, argentinos, chineses, de tudo. E foi uma convivência boa. Eu senti que eu precisava ter mais disso, precisava conhecer o mundo; imagina, se no Chile eu conheci tanta cultura diversa, eu pensei: “Poxa, eu preciso sair, ter esse olhar diferenciado também”.
Em 2019, eu já estava procurando emprego. Virei o meu visto de estudante para visto temporal, para arranjar um emprego, e a universidade estava me ajudando. Infelizmente, em 2019, [em] outubro, aconteceu a revolução social no Chile, em Santiago. E casualmente eu estava morando ao lado de um quartel militar. Imagina? Foi muito, muito desesperador; tinha saques em supermercados, todos os supermercados fechados, todas as lojas fechadas. O movimento, o povo…. Chegava a ter quartel jogando bombas. Eu não tinha paz, não conseguia dormir.
Você não entendia o que estava acontecendo no Chile. Eu pensava que era só o custo da passagem do metrô, mas não, quando olhei o histórico passado, eu já me conectei com esse povo chileno, [entendi] por que eles estavam se pronunciando. Não era por causa do metrô, era a ponta do iceberg. Eu já vinha sentindo isso, porque em um ano eles aumentaram três vezes o valor do metrô; como eu tirei o visto temporal, eu já não tinha esse privilégio de ter um custo menor no metrô. Eu pagava o custo normal e para mim era muito caro, [era] impossível pagar metrô, eu andava, caminhava e assim conhecia também o centro de Santiago.
Eu pensava, Santiago está muito bem, todos estão bem, até quando aconteceram esses protestos. Eu já dizia: “Algo não está bem, porque em menos de um ano aumentar três vezes o valor da passagem…” Inclusive eu fiz essa pergunta para o diretor do mestrado, e ele falou que a licitação dos trens, dos vagões, a tecnologia dos metrôs e a construção eram da Alemanha. E cada ano tinha uma nova linha de metrô, então tudo isso eleva os custos, mas para o bem-estar do povo. Eu pensei: “Tá certo, tem essa justificativa”, mas quando aconteceu essa revolta do povo, eu falei: “Tem razão, o povo.”
Como eu tinha falado, nossa família tem esse encontro no Natal, [no] final do ano; tem essa prática até agora. Quando vi que estava chegando dezembro, eu [estava] sozinha, presa no Chile, nessa revolta, sem ter o que comer, sem ter o que comprar, nem água… A gente se ajudava, se apoiava; tinha muito venezuelanos lá, porque os venezuelanos eram muito empreendedores, eles tinham os carrinhos para vender hot dog, hambúrguer e não estavam conseguindo vender as suas coisas, então entre nós, nos ajudávamos. Falei para a minha irmã, o nome dela é Ilza: “Ilza, eu não estou conseguindo, já estou há três meses aqui, presa”. Era impossível, chegavam com gás lacrimogêneo; ia para o meu quarto, tinha que manter tudo fechado. “Já estava conseguindo emprego, mas com essa situação não sei onde vai parar. Não quero ficar aqui sozinha, [com] depressão, num país que praticamente desconheço.” Aí ela falou: “Tá bom, Xiomara, a gente vai se encontrar no Brasil, em Salvador”. E ela pagou minha passagem, em dezembro de 2019.
Minha mãe chegou, minha irmã; a gente se reuniu em Salvador, Bahia, para passar o Natal e o Réveillon. Aí a minha irmã disse: “Xiomara, você tem que conhecer o carnaval de Salvador, Bahia”. Eu já tinha escutado que era o melhor carnaval. Meu visto era para fevereiro, aí falei: “Eu vou renovar [pra] mais três meses, para ficar no carnaval de Salvador”.
Minha mãe foi embora para a Nicarágua, eu fiquei em Salvador, só por causa do carnaval. Aí pronto, eu já tinha minha passagem renovada, tinha que ir embora em março.
Em março aconteceu a pandemia. Inclusive, eu fui para o aeroporto com as minhas malas, aí o rapaz me falou: “Olha, Xiomara, você pode sair, você pode embarcar, mas como tem que fazer parada em Panamá, você vai ficar presa no Panamá, porque as fronteiras fecharam”. Eu falei, “como assim?” “Sim, fecharam por causa da pandemia”. Aí pensei: “Isso vai passar - uma semana, duas semanas.”
Minha irmã falou: “Xiomara, você não tem canto nenhum onde ficar no Panamá, você não tem amizade nenhuma para ficar no Panamá. Melhor ficar aqui, deixa a pandemia passar e a gente reprograma essa passagem.” “Tá bom!”
Retornamos para casa, avisei o meu pai, porque o meu pai já estava ansioso, já quase no aeroporto, me esperando. Eu liguei para ele chorando. “Pai, por causa da pandemia não consegui embarcar, mas acho que isso vai passar”.
Esse ‘acho que vai passar’ nunca passou. Eu liguei quase dois meses para as aerolíneas. E como a Nicarágua não é um país tão turísticamente aberto, a Nicarágua foi o único país da Central América que não tinha fechado a fronteira; não tinha nenhum protocolo de segurança de saúde, não tinha nada. Na Nicarágua estava tudo normal. E as aerolinhas não tinham demanda, até agora não tem demanda para Nicarágua, por isso as passagens são muito caras. Ninguém da América do Sul vai para a Nicarágua fazer turismo.
Passados os meses, já era setembro, as coisas já estavam mais calmas. Aí a minha irmã falou: “Xiomara, vai tirar RNN para você arranjar emprego.” A minha depressão já estava chegando a um ponto… Puxa, um investimento caríssimo para ter um mestrado, para depois ficar de braços cruzados. E a minha preparação não era para isso, para ficar trancada numa casa. Todas essas coisas foram me fazendo ficar em depressão.
Quando eu não tinha mais visto de turista, arranjei um visto para procurar emprego. Fui pesquisando, mandando currículo, desde setembro até novembro; encontrei emprego, graças a Deus. Aí minha vontade [era] de trabalhar em banco, porque eu já trabalhei em várias indústrias. Já trabalhei em telefônica, já trabalhei em construção, já trabalhei em indústria do governo, trabalhei em marketing e a única coisa que faltava era trabalhar na indústria de banco. Procurei em bancos, no banco Santander, Banco Itaú, aí chega o Banco do Nordeste. No site do Banco do Nordeste tem uns programas, Crediamigo é o maior programa de financiamento de todas as Américas. Quando eu entrei nesse site, me levou para outro site, que se chama Inec. Eu não sabia que, sendo estrangeira, não podia concorrer a uma vaga no Banco do Brasil.
Inec é uma ONG, uma organização sem lucros, que faz a gestão de todas as finanças de Crediamigo. Eu tinha muitas esperanças, porque já tinha passado, mandei tantos currículos. Mandei, mas sem esperança de encontrar emprego. Acontece que no início de novembro, me chamam, fui aceita, mas o cargo que eu estava me candidatando era um cargo de gestão, de coordenação em Salvador. Quando eles me ligaram, que eu fui aceita, [acharam] meu currículo muito vasto, [com] experiência, gostaram do meu currículo, mas infelizmente não tinha experiência em cargo de gestão. Apesar de ter um mestrado, eu não tinha experiência depois do mestrado, por isso eles me falaram, “Xiomara, a gente gostou do seu currículo, mas queremos que você vá para Fortaleza, na vaga de analista de desenvolvimento humano.” Eu falei: “Tá tudo bem, tá ótimo! Eu vou!” Tive essa coragem.
Falei para minha irmã que eu encontrei essa vaga para Fortaleza, e ela disse: “Você vai, Xiomara. Você tem que dar Graças a Deus que você conseguiu esse emprego na era da pandemia, e agora você tem que se virar sozinha.”
Assim foi que eu vim para Fortaleza e até agora eu estou adorando esse trabalho. Eu já tinha trabalhado no RH, mas com folha de pagamento, uma coisa mais operacional; agora, como analista de desenvolvimento humano, é uma cena de acompanhamento, e além disso sendo para uma companhia….. Você vê essa abrangência que a gente tem. Esses conhecimentos, que graças a Deus eu tive no mestrado, estou colocando na prática. E vários dos meus colegas do mestrado têm trabalhos, mas não estão colocando isso na prática, então acho que sou muito abençoada por ter encontrado esse trabalho, de ter acontecido tudo isso na minha vida. E agora está tudo bem.
Agora a minha irmã mais velha está bem estável em Salvador. Minha irmã mais nova, ela já olhava para nós, que somos mais velhas; ela sempre diz que nós somos um exemplo para ela, de tudo, seja para o mal, seja para o bem. Ela, já olhando, tendo essa visão… Na Nicarágua, a partir de 2018, teve uma situação social, por causa do INSS, que o presidente fez uma lei de subir porcentagem para os empregados tirarem mais do salário, reterem mais do salário na aposentadoria, e os aposentados ganharem menos, ou seja, essa porcentagem que ele ia levar era tanto para os aposentados [quanto] para a maioria dos jovens da Nicarágua, e para as empresas, porque as empresas retinham 15%, agora são 17% de impostos. Então foi uma revolta, a partir do ano 2018, que até agora tem essa repercussão. Os jovens da Nicarágua não estão se sentindo respaldados pelo governo. Tem muita migração agora, os jovens não estão sentindo oportunidade, também estão tirando… As universidades têm uma porcentagem, que o governo passa para elas; o governo tirou isso, então é muito difícil agora os jovens terem uma bolsa de estudo e as universidades são muito caras.
Minha irmã, vendo tudo isso, essa revolta, ela nos ligou e disse: “Olha, aqui os jovens não têm oportunidade”. Ela estudou Comunicação e Jornalismo, e adivinha quem são os donos de todos os canais? O governo. Então se você quer ter um emprego num canal televisivo, você tem que ser assim com o governo, e a gente já não está sentindo essa proximidade, já não está vendo com um bom olhar esse governo. Ela falou para nós que quer continuar estudando, aí a minha irmã mais velha, que mora em Salvador, falou: “Tá bom, eu dou todo o suporte financeiro para você. Venha para cá, para o Brasil, e a gente dá um jeito para você”.
Ela veio para cá, para Fortaleza, porque eu estava morando só. Ela sentiu que eu precisava de mais apoio, mais companhia, e por isso que ela está aqui, morando [comigo]. Agora ela está estudando Marketing em módulo EAD e está adorando Fortaleza - ela já tinha vindo para cá, já sabia, porque no primeiro momento que a minha irmã mais velha veio, para conhecer o ambiente, para saber se realmente ia ter apoio, ela veio também, aproveitou. Com dezesseis anos ela veio e naquela época, em Salvador, estava acontecendo um pré-carnaval; ela adorou Salvador, já adorou a cultura. Com um mês ela já estava falando [português], sem ter cursado nada, sem ter ninguém ajudado, só ouvindo.
Ela falou para o meu pai: “Pai, eu adorei o Brasil, adorei o português. Eu quero falar português”. E o meu pai a matriculou no [curso de] português, na embaixada. Ela é dinâmica, os professores disseram: “Menina, por que você está aqui? Você está falando muito bem o português”. E ela sempre se destacava, ela adora.
Agora que aconteceu a pandemia, ela achou que era o momento, [era] melhor ficar aqui no Brasil, porque ela não tinha como voltar, foram cancelados os voos. E como eu tinha falado, é muito difícil conseguir um voo para a Nicarágua, você tem que ir trocando de avião porque não tem muita demanda; além de ser caro, não é muito comum, ninguém viaja para a Nicarágua, então você tem que ir trocando de aerolinhas, até conseguir chegar à Nicarágua. Então ela disse: “Com essa pandemia, acho que é melhor ficar aqui.” E agora ela está estudando, está fazendo um estágio e está se sentindo uma maravilha aqui.
A gente foi em dezembro [do] ano passado… A mesma coisa, a gente foi transportando, transportando; de El Salvador conseguimos outro voo para a Nicarágua, mas os voos [eram] caríssimos; El Salvador e Nicarágua ficam perto, é uma hora de viagem e os voos, novecentos dólares. E a gente disse: “Não, a gente vai de ônibus”. De ônibus custa 150 e são dezessete horas, apenas. A gente foi de ônibus, deu um jeito para conseguir chegar na Nicarágua, procurando poupar um pouco de dinheiro.
Agora que eu estou aqui, me sinto muito abençoada, e acho que as coisas acontecem por alguma razão, que a gente não espera. E a vida é isso, está cheia de ciclos, as melhores coisas são quando a gente não espera.
(1:18:21) P/1 - Você conseguiu ver o carnaval em Salvador?
R - Com certeza! Consegui sim! Do jeito que a minha irmã tinha falado, um monte de pessoas. Eu fiquei no bloco, na ‘pipoca’, no camarote; preferi esse tipo de experiência e foi ótimo! Foi demais! Foi tanto que eu queria que tivesse mais carnaval, mas infelizmente, por causa da pandemia… Eu fiquei, puxa! Foi o primeiro e último. Mas as coisas já estão dando certo.
(1:19:23) P/1 - Já que você é uma pessoa que já passou por vários choques culturais, eu queria que você comentasse como foi essa sua experiência no Brasil, os choques que você sentiu. Do que você gostou? O que você estranhou? Como foi isso?
R - Primeiramente, a minha irmã mais velha já tinha me contado, porque ela foi a primeira que migrou da Nicarágua para o Brasil. E ela me contou tudo que vivenciou, como foi tirar o visto, ir para a polícia, que não foi bem recebida, por causa… Você sabe que se está procurando um emprego, eles já ficam com esse receio. Ela tinha me contado, mas foi há dez anos, portanto, eu pensei, o meu caso tem que ser diferente.
Tirei o meu visto em Salvador, mas estava essa confusão por causa da pandemia, porque o meu visto de turismo ficou de forma aberta; até setembro eu ainda estava regular, porque não tinha nenhum processo, não tinha….. Primeiramente, [foi] uma coisa que ninguém esperava; segundo, o próprio governo federal não tinha essa capacidade de dar resposta para todos os imigrantes. E eu não tinha retorno, eu não tinha uma resposta das aerolinhas [sobre] quando eu ia voltar para Nicarágua, minha passagem ficou aberta. Eu pensei: “Caso eu queira voltar para Nicarágua, como é que eu vou ficar?” Porque eu sei que o Brasil, todo país, é muito…. Se você passa desses meses permitidos, você não pode retornar para o Brasil, e eu não queria ficar desse jeito. Mas quando procurava, pesquisava resposta, não tinha resposta na Polícia Federal, pesquisava na internet… O governo não estava preparado para isso.
Como meu visto ficou aberto, quando eu quis fazer o visto temporal, aí eu tive esse impedimento, porque a polícia me disse: “Xiomara, você tem mais de seis meses aqui no Brasil”. “Eu estou regular, não tenho como voltar para Nicarágua, para o meu país. Eu quero voltar para Nicarágua, não tenho como”. Aí ele falou: “Mas agora a gente tem que ver o seu visto. Você pode ficar aqui no Brasil sim, mas virar o tipo de visto você não pode”. “Por que não posso? Agora que eu estou aqui no Brasil, eu quero procurar emprego”.
Fiquei desconcertada, inclusive senti um tipo de discriminação, porque eles estavam quase querendo me dizer que eu era ilegal, que eu não sou regularizada, que eu só tinha que esperar as coisas normalizarem e voltar para o meu país. Que eu tinha que voltar, tinha sim, mas agora não quero voltar; quero ficar aqui no Brasil, quero arranjar um emprego, me regularizar.
Foi muito demorada a resposta, fiquei esperando desde agosto, mas eu sempre mandava o meu currículo. Quando aconteceu essa proposta por parte do Inec, eu ainda não tinha meu visto temporal. Aí liguei para polícia, e estavam engavetados os meus papéis. Eles me disseram: “Todo mundo ficou de home office, só tinha uma pessoa”. Eu falei: “Já tenho previsão de um trabalho que vai acontecer em dezesseis de novembro”. E eu não tinha minha carteira, não tinha nada; só que estava em processo, no sistema, mas em processo de quê? De engavetamento?
Foi bem puxado. E pensando, “vou perder meu emprego”, muito preocupada. Eu tinha que ver também a questão do aluguel, porque eu estava em Salvador; eu tinha que vir para Fortaleza, para saber onde ia morar, tantas coisas. Falei para minha irmã: “Como isso está sendo muito demorado, meus papéis, minha carteirinha, eu vou para Fortaleza. Por enquanto, vou procurar onde morar. Vou conhecer”, porque eu não conhecia nada de Fortaleza. Saber onde fica a empresa, onde posso morar, alugar, tudo.
Assim foi que eu vim para Fortaleza, no início de novembro, porque eu já sabia que ia começar no dia dezesseis de novembro. Aí pronto, eu sempre estava ligando para polícia. Quando eu vi que isso estava sendo muito, muito demorado, eu falei para a empresa, inclusive eu fui pessoalmente: “Olha, eu sei, agradeço por vocês estarem me esperando, mas eu tenho um problema, por causa da polícia”. Peguei o primeiro voo, tive que voltar para Salvador, e fiquei na porta da Polícia Federal - menos mal que a Polícia Federal fica no mesmo aeroporto. Eu fiquei ali, sem dormir; cheguei às sete horas da manhã, esperando a primeira polícia chegar, para dizer o que tinha acontecido com os meus papéis que estavam desde agosto, esperando uma resposta. “E agora, vou perder meu trabalho?”
E assim foi, eles me tiraram da porta, bateram com a porta na minha cara. Fui com a minha irmã, minha irmã estava grávida; ela ficou com muita raiva, porque a gente se aproximava da polícia para perguntar como estava o meu caso: “Ei, me ajuda, por favor! Consegui um emprego! Vou perder o emprego por causa que eu não tenho os meus papéis.” E como eu não sabia muito bem o português, para fazer reclamações era a minha irmã. Quando bateram a porta na cara dela, ela grávida, ficamos passadas. Como é possível esse tipo de discriminação, ainda mais para uma mulher grávida?
Menos mal que o esposo dela é advogado. Ela contou para o esposo dela o que aconteceu e ele falou: “Tenho uns contatos.” Ele falou que ia processar, especialmente essa pessoa, essa policial, porque a gente passou discriminação e a gente estava esperando o meu documento. E assim foi o caso.
Posteriormente, fiquei esperando uma pessoa que me desse uma explicação, aí saiu uma pessoa; graças a Deus, foi como um anjo, e eu falei: “Olha, a minha situação é essa. Meus papéis estão desde agosto, vocês me falaram que estava em atraso porque vocês ficaram em home office, mas eu arranjei emprego, a empresa está me esperando e se eu não resolver os papéis, eu vou perder o meu emprego.” Era outra pessoa, calma. Depois eu fiquei pensando: “Poxa, como chegou essa reclamação da polícia…” Você é a pessoa que ligou para um representante legal, porque ele passou para o representante legal que eu recebi discriminação. E esse rapaz, muito tranquilo, inclusive conhecia a Nicarágua. “Que bom que você é da Nicarágua…” E foi rápido, resolveu tudo, já estava tudo impresso.
Eu fiquei passada. Como que acontece uma coisa dessa? Preciso chamar não sei quem para ligar, dizer que vai ter um processo e tudo, para conseguir um bendito papel. Então só respirei, fiquei tranquila e falei para minha irmã: “Eu vou esquecer isso. Sei que outras pessoas passam por esse tipo de discriminação.”
Enfim, isso foi em Salvador; aqui em Fortaleza foi tudo ótimo, porque eu já fiz dois anos [aqui]. Em um ano tive que fazer renovação, e agora renovou por dois anos. O [visto] da América Central não é igual ao do Mercosul; os países do Mercosul já dão um visto de até dez anos, sem conseguir emprego. Eu falei com um colombiano que estava na Polícia Federal. Ele não tinha emprego, não tinha nada, chegou com uma maleta direto do aeroporto, e já tinha sua carteirinha por dez anos. “Puxa, que bom ser do Mercosul. Eu sou da América Central, não tenho esses privilégios.” Mas enfim, sei que cada país tem as suas regras, as leis, isso a gente tem que respeitar.
Quando eu fiz a minha renovação este ano em Fortaleza já foi mais tranquilo, a polícia já dando mais conselhos: “Olha, você tem que primeiro fazer isso, tal, tal.”
Tem muitos haitianos, muitos argentinos que têm esse problema do idioma. Eu já vi essa recepção; tem ajuda deles, tem um computador: “Olha, você vai preencher aqui no sistema”, dá o passo a passo. Você vê essa diferença.
Mas também eu fico pensando no estresse que passam as polícias, a pandemia, que não foi fácil. Eu penso com essa mentalidade positiva, tentando justificar o comportamento das pessoas. No Chile eu também fiz essa renovação do visto de estudante para o visto temporal, e só sei que é uma bagunça, viu? Uma fila enorme, você fica debaixo do sol, passando fome, vontade de fazer xixi, tudo. E a fila nunca avança. Então quando eu passei do Chile para o Brasil, vi isso, para mim não é a maior coisa. Porque imagina, você acorda cedo, às cinco horas da manhã, fica na fila até uma hora da tarde; você consegue passar até esse momento da porta, quando você está dentro é difícil, cheio, lotado de migrantes. E se você vai… Tinha muitos haitianos, venezuelanos, e ficam perdidos. Eles [os] tiravam, a polícia: “Você nem sabe o que está fazendo aqui. Vai embora, vem outro dia”. Assim! Então você fica com esse nervosismo, você fica: “Puxa, tá tudo direitinho com os meus papéis.” Você tem que memorizar o endereço, senão eles dizem que você está mentindo. [De] todas as coisas que eu já vivenciei no Chile… Então para mim, aqui no Brasil não foram maiores coisas. Só meus papéis, que foram engavetados, mas graças a Deus deu tudo certo, tudo certinho. E agora tô aqui, contando as coisas.
(1:32:24) P/1 - Conte um pouquinho sobre o seu trabalho no Inec. Você começou trabalhando em casa ou já foi presencial? O que você faz lá?
R - Quando eu entrei no Inec foi uma recepção muito boa, que eu não tinha vivenciado na minha vida. Eu tenho mais de dez anos de experiência, e o Inec fez toda a diferença, fez o acolhimento. Em novembro de 2020 ainda estava a pandemia acontecendo, então tinha muitos casos… Estava metade de atestado e a outra metade trabalhando normal. E eu senti esse momento de…. Quando eu entrei, não tinha ninguém para me capacitar, então eu tinha medo de como eu ia me adaptar no trabalho. O meu português eu sentia que não estava direitinho, o sotaque em Fortaleza é muito diferente. A minha preocupação era outra, se eu ia conseguir dar conta do meu trabalho, se eu ia conseguir entender as pessoas, me comunicar, fazer relatórios; a minha preocupação era outra, ou seja, não me interessa se não tem ninguém para me capacitar, eu sabia que eu tenho aprendizagem rápida e sabia que podia dar o melhor de mim.
Nesse vai e vem das coisas, [passou] novembro, dezembro, aí foi o remonte da pandemia, em 2021. [Em] janeiro, fevereiro, a gente ficou de home office, mas eles deram todo suporte - mobiliário, equipamento, computador, cadeira, tudo. Fiquei de home office por seis meses, e minha irmã mais nova, que ficou presa no Brasil, resolveu: “Melhor ficar aqui no Brasil. Vou ficar com a Xiomara, porque a Xiomara está sozinha, ela está em home office”.
Já vinha o meu aniversário, que é em abril, e as coisas ainda não estavam rolando direitinho. Eu sozinha, meu aniversário, ninguém me conhecia aqui. Nem os colegas de trabalho eu conhecia muito bem, porque como eu falei, a metade estava em casa, então não tinha esse relacionamento também. E o medo também do covid, de pegar essa doença.
Enfim, foi uma coisa nova para mim, entrando num trabalho que eu já estava muito ansiosa por entrar, por colocar a mão na massa, e acontece essa questão da pandemia. Mas eu recebi um suporte forte da minha irmã mais nova, que ficou aqui comigo; foi muita ajuda, psicologicamente falando, também.
Posteriormente, em maio, junho, já foram se equilibrando as coisas e voltei para o trabalho. Aproveitaram, fizeram reforma na área do RH, então quando a gente chegou, viu essa nova área. A gente sentiu também esse recebimento; independentemente de a gente estar em casa, foi recebido assim, desse jeito. Equipamento novo, tudo reformado, lindo.
Eu já senti um sentimento de acolhimento por parte dessa empresa. Eu me senti muito, muito bem, inclusive eu falei para a gerente de recursos humanos, a diretora financeira administrativa: "Nunca na minha vida tinha vivenciado esse tipo de experiência, de recepção, de acolhimento”. Inclusive eu sou a única estrangeira aqui no Inec, todo mundo respeita o meu sotaque, respeita minha cultura, porque eu não gosto de cuscuz, eu não gosto de muitas coisas daqui, a farofa, farinha, não gosto, mas eles respeitam. “Xiomara, como você não gosta de cuscuz? Como você não vai gostar disso? Não pode ser.” Mas tem que respeitar. E aí eu falei, “Calma, a gente está aprendendo os gostos também”.
É uma empresa muito diversa. Quando eu entrei, estavam formando o Comitê da Diversidade e Inclusão, e eu me sinto muito honrada, porque eu fui chamada para ser parte do comitê, para fazer parte do Programa de Diversidade e Inclusão, ou seja, eu sou dona desse projeto, vi nascer esse projeto, que agora é um programa. A gente tem vários planos de ações para fazer mais diversidade inclusiva na empresa. E me sinto honrada, me sinto tão abençoada, que nunca imaginei encontrar uma empresa desse modo.
Também sou parte dos brigadistas de incêndio, porque eu já tinha experiência na Nicarágua. A Nicarágua é um país que tem muitos terremotos, tem tsunamis, e todas as empresas são obrigadas a ter esse tipo de brigadas, de terremotos, de incêndios, de evacuações. Todas as empresas são obrigadas, e todos os empregados sabem. As escolas e as instituições governamentais são obrigadas a fazer, a cada três meses, simulações. Quando tem um terremoto, quando tem um incêndio, primeiros socorros… Todos são preparados. Quando eu falei isso aqui no Inec, todo mundo falou: “Nossa, Xiomara, você tem uma vasta experiência, não só na sua profissão, mas em outras coisas.” E me senti reconhecida como pessoa, todas as minhas experiências.
Quando eu falo que o meu pai é geólogo, todo mundo fica passado, então me sinto tão renovada nesse trabalho, [com] reconhecimento. A maioria fala: “[Vocé é] a única importada aqui”, mas eu me sinto muito, muito feliz!
Nesse momento, eu trabalho na área do desenvolvimento humanos, sou analista. E a gente sabe que recursos humanos é muito amplo, não é só folha de pagamento. Essa empresa faz acompanhamento dos programas de microcrédito, como eu falei, e eu dou esse acompanhamento para todos os colaboradores.
A gente faz pesquisa de clima. Quando estava na pandemia, a gente fazia pesquisa de crise, para saber como estavam as pessoas psicologicamente, como [isso] estava mexendo na cabeça deles. E eu sou dessa parte, de fazer as pesquisas, análises de números, avaliação de desempenho, avaliação de experiência. E agora que sou parte do grupo da diversidade e inclusão, então também faço esse acompanhamento, para que todos os membros do comitê façam quinzenalmente essas reuniões, [saber] como está acontecendo. É uma experiência que eu nunca tinha vivenciado, e acho que nunca ia vivenciar na Nicarágua. Além da minha experiência, da minha carreira profissional, estou aprendendo outras coisas.
(1:41:44) P/1 - Para você, qual você acha que é a importância da diversidade no mercado de trabalho?
R - É muito importante, também muito complexo, mais que tudo. Vivenciando a experiência aqui do Nordeste, eu já percebi a cultura nordestina, que não está muito longe da Nicarágua. Como eu já trago essa parte da Nicarágua e mudei para o Chile, esse choque cultural já fez os meus olhos abrirem e dizer que essas coisas não podem acontecer na Nicarágua. Quando estou aqui no Brasil e estou vendo que são quase as mesmas coisas da Nicarágua, então falei para minha coordenadora, para a minha gestora: “Estou me sentindo honrada e quero fazer parte dessa mudança.”
A gente tem que viver essa mudança dentro da empresa, dentro de casa, dentro da família, para continuar… Porque você não pode permanecer atrasado; você tem que mudar, você tem que ser diverso. E para as empresas é muito importante ter esse engajamento, envergadura por parte dos colaboradores. A gente está fazendo vários planos, e eu falo também, graças a Deus eu sou parte desses planos, porque eu também posso levar esses planos para minha família, para minha vida também.
Eu sei que o Brasil é um país continental e se você vai em qualquer balada, você vai presenciar pessoas gays, pessoas se beijando. Além de ter tolerância, você tem que compartilhar, não ter julgamento, saber como falar, então para mim isso traz muita ajuda, fazer parte desse projeto, desse programa da diversidade.
(1:44:12) P/1 - O que a sua experiência pode contribuir para pessoas que estão passando pela mesmas questões que você? Isto é, um imigrante em outro país, as questões da diversidade, o que você acha que você pode dar de conselho para essas pessoas?
R - Uma pergunta muito importante e que até agora estou dando as dicas… Como eu falei, a Nicarágua, a partir de 2008, tem essa questão sociopolítica e está dando várias migrações por parte de nicaraguenses, que nunca a gente tinha vivido - nem nos anos 80, quando foi a Guerra Civil, estava como agora. Muitos nicaraguenses partindo para os Estados Unidos, a maioria vão para lá de forma irregular, pagando coiote e tudo. Vários amigos têm me falado que querem ir para lá, e eu falo para eles: “Olha, não vá para os Estados Unidos”. Eu, inclusive, dou para meus amigos esse apoio, porque eu sei, migrar para outro país sem ter um suporte, sem ter nada, sem saber onde você vai parar, é muito, muito difícil. Não é só a questão do choque cultural, afinal você está só, sem nenhum suporte, então eu falo para os meus amigos que fazer dessa forma irregular, a gente não sabe o que esperar.
Agora que estou fazendo esse curso da USP, esse módulo de Imigrantes, já vi vários vídeos muito chocantes. Eu nem sabia o que se passava com os imigrantes. Agora você lê nos jornais - há pouco tempo, um caminhão com mais de cinquenta imigrantes… Eles morreram.
Quando vejo essas coisas que passam os imigrantes, eu me sinto por parte abençoada, porque eu não passei por tantas coisas. Passar dessa forma irregular, essa travessia, caminhar quilômetros, é muito difícil. E agora que vários amigos da Nicarágua estão querendo migrar, eu falo para eles, pelo menos que não seja de forma irregular, porque eu fico com medo do que possa acontecer com os meus amigos. Eu sei o desespero deles, que não conseguem trabalho, que têm dois filhos, que não têm o que comer no dia seguinte, então eu quero dar esse suporte para todo mundo, mas infelizmente a gente não tem braços para abraçar todos os amigos.
Também a minha irmã mais velha, que é médica, tem vários colegas médicos, que estão passando por problemas econômicos. Minha irmã se coloca à disposição: “Venha para cá, mas, por favor, não vai atravessar isso”. Mas as pessoas sempre ficam com medo, “não quero ir para o Brasil” , 1, por causa do idioma, 2, quero uma moleza, quero parte de vivenciar uma coisa… a manutenção, que não é qualquer pessoa que vai dar essa manutenção.
Os imigrantes sempre procuram em primeiro lugar a Costa Rica, que é próxima da Nicarágua; a maioria vai cruzar a sua fronteira e o governo da Costa Rica dá esse suporte, dá esse apoio para os Nicaraguenses, mas acontece que a xenofobia na Costa Rica é muito grande, impossível.
Eu fui só a passeio, no ano de 2003, quando terminei o bacharelado. Terminando o ensino médio, meu pai deu uma passagem para irmos ao Panamá de ônibus: “Você pode ir, sem nenhum problema”. E a gente tem que passar por Costa Rica. Na Costa Rica fizemos uma parada para dormir e no dia seguinte continuar o caminho para o Panamá; de noite a gente aproveitou para ir para o shopping, e quando você está no shopping, você vai perguntar onde está o banheiro, uma coisa assim; eles somente olham para você de cabeça baixa… O sotaque é totalmente diferente da Costa Rica para a Nicarágua. Eles nem responderam à minha pergunta. E eu senti…. Eu só tinha escutado da xenofobia, mas não sabia o grau da xenofobia na Costa Rica para a Nicarágua. Era uma mulher com a mãe, quando eu vi que só me olharam de cabeça baixa e continuaram, nem me responderam, eu senti. Mas enfim, a gente deu uma voltinha no shopping.
Até agora a Costa Rica tem essa xenofobia. Quando os nicaraguenses passam na fronteira, ficam na parte norte da Costa Rica. Tem uma cidade que era parte da Nicarágua, se chama Guanacaste, mas uns anos atrás, a Costa Rica se apropriou dessa parte. Quando os Nicaraguenses vão atravessar a fronteira, ficam aí, em Guanacaste, mas ninguém fala Guanacaste, falam “essa terra se chama Nicagualaus”, que significa pessoas nicaraguenses que se rebelaram… E agora os nicaraguenses querem se apropriar dessa terra e por isso Costa Rica fala desse jeito, uma forma discriminatória. “Você se sente bem, então você fica aí!”
Tem também a questão do problema do visto, [de] forma irregular, procurar trabalho. O que acontece? Os nicaraguenses conseguem trabalho do tipo obreiros, recolhendo lixo. É uma questão cultural, vem da história, do passado. E a gente tem que continuar.
Eu conheço muitos da Costa Rica. Inclusive, no meu mestrado tinha um colega da Costa Rica, e ele disse: “Xiomara, eu sei que a Costa Rica e Nicarágua têm problemas, mas somos amigos”. E eu falei: “Eu nem tinha pensado na história da Nicarágua com a Costa Rica”. Eu sinto a Costa Rica como amiga; o que acontece entre eles, é questão da política, do governo.
Retornando, quando eu vim aqui para o Brasil não senti nenhuma discriminação, não senti nada. Já conheço Curitiba, porque a gente tem família em Curitiba… Inclusive fiquei passada, porque todo mundo fala três, quatro idiomas [lá]; é muito normal eles falarem espanhol. A educação também é muito organizada em Curitiba; você vai atravessar, todos os carros param, tanto do lado esquerdo, como na direita. Fiquei passada.
Eu sei que o Brasil é um país tão abrangente, tão multidiverso, porque a gente tem esse tipo de cultura também.
(1:53:31) P/1 - Quais são as coisas mais importantes para você hoje em dia?
R - Hoje em dia eu tenho pretensão no meu crescimento pessoal, profissional. Hoje em dia eu quero ter um cargo de gestão, quero dar esse retorno do investimento do mestrado para a minha irmã.
(1:53:58) P/1 - E qual é o seu grupo de apoio? As pessoas que você sabe que você sempre pode contar?
R - Bem, primeiramente a minha família, e em segundo lugar os meus colegas de trabalho. Eu falo: “Vocês não são meus colegas de trabalho, vocês são minha família.”
Na verdade, graças a Deus eu tenho esse trabalho. Por exemplo, a minha irmã mais velha, que é médica… A maioria dos colegas ficam com esse receio, mas se eles olham que você está preparada, se você está conseguindo se especializar, eles já ficam, não sei se inveja, não sei… [Foi] o que eu escutei da minha irmã mais velha.
Eu já fiquei também assim. Quando eu entrei no Inec, eu fiquei assim, entrei toda calada, mas ansiosa de saber, de conhecer. Quando eu vi que era outra coisa, outro tipo de cultura organizacional, eu falei para minha irmã: “Ilze, você não sabe como eu estou me sentindo aqui. É tão agradável, que eu nem sei como explicar.” E ela me falou: “Xiomara, eu tenho mais de três anos aqui no Brasil e eu ainda não senti isso no meu trabalho”. Ela sente um tipo de competição: quem ganha mais, “eu sou especialista, eu moro aqui, eu moro lá.” Aí eu falei… não sei se é o grêmio dela, como médica, ou sorte, não sei! Mas no meu trabalho estou muito, muito bem, me senti tão acolhida.
Na época da pandemia, eu senti muito apoio, porque eles sabiam que eu estava sozinha aqui em Fortaleza, sem família, sem nada. Todo mundo longe da família e todo mundo me escrevendo por WhatsApp: “Xiomara, você está bem?” Quer fazer alguma coisa? Vamos tomar um café.” Então você sente isso, seja por mensagem… Eu sentia essa preocupação. E até agora a gente tem um laço, uma união; agora eu vou para happy hour com as minhas gestoras. Quando na minha vida eu poderia imaginar que eu ia sair com a gerente de Recursos Humanos para tomar um drink, imagina! Você nem sente que é a gerente de Recursos Humanos, não é minha gestora; a gente compartilha tanto que eu me sinto família.
(1:56:38) P/1 - Qual o legado que você gostaria de deixar? Uma mensagem que com a sua experiência de vida você gostaria de deixar para as pessoas?
R - O legado que eu quero deixar é, mais que tudo, ter olhar para si mesmo e saber o que a gente quer. Por exemplo, se eu quero continuar a fazer uma carreira profissional, eu vou lutar por isso que eu quero, mas se você não tem essa visão, não sabe o que você quer, então é isso, se reencontrar com você mesmo e dizer: “Eu quero isso, eu vou lutar por isso.”
Por exemplo, eu quero ter amizades, quero ter um companheiro de vida, quero casar; eu vou lutar por isso, vou procurar por isso. E, por exemplo, se eu quero viajar para todo o mundo, então eu vou me preparar, vou juntar dinheiro e traçar uma meta, traçar essa questão. Mas se você não tem essa visão, se você não traçar um objetivo na sua vida, você está vivendo o dia a dia sem contar nada. Então hoje em dia eu dou essa dica: o mais importante é crer em si mesmo, saber o que a gente quer e perseguir esse sonho.
(1:58:16) P/1 - Conta sobre esse curso que você está fazendo na USP.
R - Como eu sou parte do comitê do Inec, a gente tem um grupo no WhatsApp e a gente tem que estar compartilhando notícias, cursos. Uma pessoa compartilhou esse curso gratuito da USP e eu nem sabia o que era a USP. Aí já procurei, pesquisei, porque se você vai tirar do seu tempo para fazer um curso, que seja um curso legal, que vale a pena. Então eu procurei o que é USP, aí pronto, “eu vou me inscrever.”
Eu me inscrevi e estou adorando o curso. Você tem opções para escolher esses módulos de gênero, LGBT, raça, etnia, e como estou aprendendo, ainda estou aprendendo sobre diversidade, eu pensei: “Vou para o caminho de gênero, ou LGBT, para conhecer mais, me aprofundar sobre esses temas.” Mas quando eu vi esse módulo de imigrantes e refugiados, pensei: “Talvez eu tenha, porque eu não conheço nada… Apesar de eu ser uma imigrante, do que vivenciam outras pessoas eu não conheço nada, por exemplo, na África.”
Para mim está sendo excelente, estou tendo muitos conhecimentos sobre esse mundo de imigrantes, refugiados. Mas eu estou sempre em contato com os meus colegas da parte do comitê e a gente compartilha também dicas de livros, podcast, filmes. Também estou me aprofundando no sistema LGBT, porque não é uma coisa fácil. Você vê dois casais, dois homens se beijando, tem uma história. Como a gente vai abranger todos tipos de pessoas? Não só tem só LGBT, tem outros tipos de diversidade. Por exemplo, eu não sabia do tema da gordofobia, esse conceito; tem o nome também para discriminação de baixa renda, discriminação de religião.
Graças a Deus, eu me sinto assim: quero conhecer mais, quero me aprofundar mais nesses temas, adquirir conhecimento, colocar em prática.
Para resumir, além de eu ter nascido na Nicarágua, o núcleo familiar também importa muito. Se você vai ser criado por uma família que tem racistas, você vai ser criada também com essa mentalidade. Na Nicarágua, eu vi que parte da minha família é muito fechada, mas eu penso, como eles nasceram nos anos 40, 50… Por exemplo, o meu pai: “Um piercing? Não, não, não. Tatuagem? Não, não, não”. Quando alcançamos essa maturidade, eu penso: “Isso não é normal. Se eu vou ter uma filha, tudo é comunicação. Se ela quer pintar o cabelo, é só ter uma comunicação.”
Como eu fui criada nesse núcleo de família muito fechado, isso repercutiu na minha vida, e por isso que quando eu cheguei no Chile tive um choque cultural. Ver uma menina de quinze anos tatuada, por que eu vou ter agora um choque? Eu tenho que mudar! E eu tinha pensado isso: “Preciso mudar. Alguma coisa não está correta aqui na minha família. Se eles querem ser racistas, tá bom, eu vou deixar eles serem racistas, não ter tolerância de LGBT, mas eu não vou ser assim. Preciso mudar, preciso saber o mundo como é.”
Independentemente de fazer parte do comitê, eu quero conhecer mais, e estou me relacionando com outros tipos de pessoas, porque antes eu lia e não sabia… O que é pansexual? Uma coisa é ler e outra coisa é viver com esse tipo de pessoas. Então é muito diferente. Estou tendo esse tipo de experiência aqui no Brasil, por isso eu me sinto muito, muito confortável aqui.
(2:03:37) P/1 - Como foi para você contar a sua história para a gente hoje?
R - Foi ótimo! Agradeço o convite de vocês. Nunca imaginei ter este momento, fazer parte do Museu da Pessoa. Eu me sinto honrada.
Obviamente que a gente, lembrando as coisas do passado, se emociona também. Mas é muito bom a gente ter falado isso, lembrar coisas do passado, porque se você vai se desprender dessas coisas do passado, é muito melhor; você vai ser uma pessoa mais forte, mais corajosa. Então eu me sinto honrada, primeiramente, e segundo, fiquei à vontade pra contar a minha vida. É disso que se trata a vida, lembrar do passado; independente de a gente se emocionar, faz parte da sua vida, você não vai esquecer.
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