Enquanto contemplamos paisagens da cidade tantas vezes atravessadas por nós, novas representações surgiam sobre elas, os grafites nunca antes vistos, a voz dos grafiteiros, a religiosidade fora do seu espaço tradicional, e um outro Recife vai se apresentando. Em algumas imagens a religiosidade se apresenta de modo explícito, em total visibilidade e até agressividade, no bairro de Piedade dezenas de muros foram cobertos com a mensagem, "Deus vê tudo", enquanto em outros sua presença é mais sutil, como por exemplo, no Recife Antigo, um leque-espelho símbolo de Oxum é levado por uma mulher negra de grande cabelos roxos. Tinha-se dado início à descoberta dos grafites religiosos nos muros, portas, prédios, casas, postes, fiteiros e tapumes da paisagem da cidade. A arte do grafite se espalha de forma intensa nos centros urbanos, a cidade transforma-se numa grande galeria a céu aberto, onde qualquer pessoa, basta ter a tinta, pode comunicar algo. De acordo com Maurício Vilaça, "desde a pré-histórica o homem come, fala, dança e grafita” (VILAÇA, apud GITAHY, 1999, p. 11-12). As pinturas rupestres são os primeiros exemplos de grafite, “elas representam animais, caçadores e símbolos, muitos dos quais, ainda hoje, são enigmas para os arqueólogos". Se antigamente usava-se sangue e pigmentos para grafitar, hoje usamos tintas em spray, não mais pintamos as caçadas ou os rituais de dança, "mas ideias, signos que passam a compor o visual urbano” (Ibidem, p.11). De acordo com Celso Gitahy (1999) "o grafitar significa riscar, documentar, de forma consciente ou não, fatos e situações ao longo do tempo"(Ibidem, p. 13). Nesse sentido, o grafite dialoga com a cidade de forma subversiva, espontânea, gratuita e efêmera. Essa arte, por meio de imagens, mensagens, discute e denuncia os problemas sociais referentes ao contexto atual da sociedade contemporânea. O grafite está cada vez mais se deslocando de um lugar...
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Enquanto contemplamos paisagens da cidade tantas vezes atravessadas por nós, novas representações surgiam sobre elas, os grafites nunca antes vistos, a voz dos grafiteiros, a religiosidade fora do seu espaço tradicional, e um outro Recife vai se apresentando. Em algumas imagens a religiosidade se apresenta de modo explícito, em total visibilidade e até agressividade, no bairro de Piedade dezenas de muros foram cobertos com a mensagem, "Deus vê tudo", enquanto em outros sua presença é mais sutil, como por exemplo, no Recife Antigo, um leque-espelho símbolo de Oxum é levado por uma mulher negra de grande cabelos roxos. Tinha-se dado início à descoberta dos grafites religiosos nos muros, portas, prédios, casas, postes, fiteiros e tapumes da paisagem da cidade. A arte do grafite se espalha de forma intensa nos centros urbanos, a cidade transforma-se numa grande galeria a céu aberto, onde qualquer pessoa, basta ter a tinta, pode comunicar algo. De acordo com Maurício Vilaça, "desde a pré-histórica o homem come, fala, dança e grafita” (VILAÇA, apud GITAHY, 1999, p. 11-12). As pinturas rupestres são os primeiros exemplos de grafite, “elas representam animais, caçadores e símbolos, muitos dos quais, ainda hoje, são enigmas para os arqueólogos". Se antigamente usava-se sangue e pigmentos para grafitar, hoje usamos tintas em spray, não mais pintamos as caçadas ou os rituais de dança, "mas ideias, signos que passam a compor o visual urbano” (Ibidem, p.11). De acordo com Celso Gitahy (1999) "o grafitar significa riscar, documentar, de forma consciente ou não, fatos e situações ao longo do tempo"(Ibidem, p. 13). Nesse sentido, o grafite dialoga com a cidade de forma subversiva, espontânea, gratuita e efêmera. Essa arte, por meio de imagens, mensagens, discute e denuncia os problemas sociais referentes ao contexto atual da sociedade contemporânea. O grafite está cada vez mais se deslocando de um lugar marginal e se inserido em espaços de discussões diversos, inclusive no meio acadêmico. A pesquisa de José Guilherme Magnani “Religião e Metrópole" (2009), afirma que o religioso é uma dimensão inapelável do ambiente urbano moderno. Traduzindo a ideia do autor, podemos assumir que a diversidade religiosa na cidade é identificada, respeitada, valorizada a partir da produção de uma territorialidade em parte segmentada, em parte baseada em fluxos. A pesquisa de campo do autor é realizada em São Paulo, mas ele sugere que não somente ali, mas em todas as grandes cidades cosmopolitas do globo, a existência dessa modulação de diversidade seria evidente. É através da chave religiosa que podemos identificar em grandes cidades brasileiras dissensos, conflitos e violências, como o racismo religioso (VITAL DA CUNHA, 2015). A capital pernambucana é um mosaico multifacetado, de acordo com o IBGE (2010) temos seguidores do hinduísmo, espiritismo, islamismo, judaísmo, testemunhas de Jeová, esotéricos, umbanda, candomblé, cristianismo, budismo, etc. Sendo a fé, em suas diferentes expressões, habitante de cada canto da cidade. É o que mostra, por meio de fotografias, a cartografia da fé, intitulada "Fé na Cidade", realizada com recurso do "Edital de Formação e Pesquisa LAB PE" (2021) que busca narrar a interseções do grafite com a religião nos tempos de hoje, explorando o background político, as tramas religiosas, e traçando características e/ ou peculiaridades desses grupos ou sujeitos. São através dessas imagens, das pinturas rupestres modernas, que os artistas ancoram o sagrado, não só como um refúgio e conexão, mas como protesto. Ao longo da etnografia visual realizada de modo intermitente entre os meses de janeiro, fevereiro e março de 2022, na Região Metropolitana do Recife, percorremos as zonas norte, sul e centro, através dos bairros de Água Fria, Peixinhos, Arruda, Campo Grande, Casa Amarela (Morro da Conceição), Macaxeira, Centro da Cidade, Ibura e Jaboatão dos Guararapes. Ao todo foram mais de 100 km/h rodados. Escolhemos espaços públicos que são significativos para o cotidiano da cidade (as avenidas, ruas de grande circulação, praças, pontes, parques, e o entorno dos espaços religiosos). Também realizamos entrevistas semi-estruturadas com os grafiteiros. Por mais que a arte contemporânea esteja imersa na ordem da sensação pura e do significado imediato, Sausset (2003), contudo, aponta para a importância de termos algumas informações sobre o artista para que possamos ampliar nossa apreensão da obra. Sendo assim, vamos apresentar um pouco dos grafiteiros e suas trajetórias no grafite e na religião. Luis Felipe é espírita kardecista, nascido em família espírita, tem 26 anos e faz parte da Comunidade de Pescadores Z-2, em Paulista. Também atua nos coletivos "Mova-se" e utiliza da tag @fil. Nathalia Ferreira é do candomblé e da jurema, tem 28 anos e nasceu em Jaboatão do Guararapes, formada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É grafiteira no "Poder Feminino Crew" e nos "Cores Femininas" e utiliza da tag @nathêferreira__. Por fim, Márcio Felipe tem 25 anos, é evangélico, nascido em família cristã, graduando em Licenciatura em Dança pela UFPE, mora no bairro de Cavaleiro, em Jaboatão dos Guararapes. Além de voluntário da ONG Cores do Amanhã, faz parte do Movimento Negro Evangélico Pernambuco, além de fazer parte de uma crew de grafiteiros evangélico, e utiliza da tag @marcianof_. O grafite é uma arte urbana responsável por ativar e operar signos e significados num território de convivência coletiva e do encontro das diferenças sociais, religiosas, políticas, ideológicas e culturais. Não há cidade sem grafite, como não há grafite sem cidade. Isto é, não existe nem grafite, nem cidade sem as trocas, disputas e comunicação. Diante disso, buscamos, com este trabalho, nos debruçar não só nas conexões entre religião e arte (como os referenciais religiosos são operados e ativados pelo grafite), mas também entender, como se dá a relação, através da expressão do grafite religioso, da religião com a cidade, isto é, que projeto de cidade eles anunciam? Qual conteúdo político os grafites religiosos nos informam? No caso dos grafites religiosos, as fotografias anunciam, que a expressão através do spray caminha na direção de uma ampliação do que há de transcendente, desprivatizando e desecularizando ainda mais a religiosidade como experiência. Na verdade, como afirma Grace Davie, não há uma "necessária incompatibilidade entre religião per se e modernidade” (2007, p. 48). A religião é moderna e se moderniza. Nesse sentido, o grafite como uma arte moderna, urbana, como uma experiência estético-política, não nasce no vácuo cultural, político e social, expressa e dialoga com modos de vida típicos da sociedade que as produzem, por isso, reflete as disputas e violências interreligosas, como o racismo religioso.
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