Hoje senti vontade de contar a história de meu avô. Não sei se por mera erupção de ideias, por saudade, ou... Talvez seja por causa do episódio da semana passada: não me lembro porque, mas comentei com meu filho mais velho, com apenas seis anos, algo como “O seu bisa Zé fazia isto...&...Continuar leitura
Hoje senti vontade de contar a história de meu avô. Não sei se por mera erupção de ideias, por saudade, ou... Talvez seja por causa do episódio da semana passada: não me lembro porque, mas comentei com meu filho mais velho, com apenas seis anos, algo como “O seu bisa Zé fazia isto...” e senti o olhar perdido da criança que não sabe do que estão falando. Já prevendo a resposta, perguntei-lhe se ele se recordava do bisa. Não. Ele não se recordava e muito menos sabia quem era. Assim, para que fujamos do trecho profético do poeta Gregório de Matos, sobre o fim de nossa existência, quando diz “em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada”, e não deixar que meu avô, que hoje é terra possa vir a ser nada, aí vai esta história... José Barbosa dos Santos nasceu na década de 20, isto quer dizer que, quando se foi em 2010, estava com aproximadamente 90 anos! Difícil precisar sua idade já que na época de seu nascimento não era hábito registrar as crianças assim que nasciam. Talvez os pais tivessem medo de registrar e logo depois seus filhos morrerem. Preferiam esperar meses, até anos. Meu avô, por exemplo, dizia que, num belo dia de roça, seu pai o chamou do meio das plantações e disse para ele se arrumar. Iriam à cidade, registrá-lo.
Ele devia estar com 10 anos.
Enfim, sua idade era um enigma a todos nós. A primeira lembrança nítida de meu avô que carrego do auge de minha infância parece um conto misterioso: algumas vezes acordava com minha mãe dizendo que era hora de levantar para ir à casa do vô.
Eu sabia apenas que era no Jabaquara e que, como um mago, ele morava sozinho em um cubículo, nos fundos do galpão de uma fábrica que eu não sabia bem do que era. Íamos com meus tios, tia e primos e tudo para mim era muito misterioso: desde aquele senhor, Vô Zé, que vivia isolado naquele quartinho, até os mistérios do galpão vazio do domingo.
Em uma dessas visitas, lembro-me que ganhei meu primeiro balão a gás. Estávamos voltando quando o carro parou em um semáforo e o vendedor de balões se aproximou. Minha prima e eu rapidamente fizemos o show infantil do “compra mãe” e saímos com nossos balões voando pela janela do carro. Também me lembro que fui a primeira a deixar o meu escapar meu balão de gás hélio (ah, sim! Naquele dia aprendi que o balão voa porque tem gás hélio, ninguém sopra, e não pude deixar de ligá-lo à imagem de meu tio Nenê, cujo nome verdadeiro é Hélio). Apesar de tudo, ainda consigo ver meu singelo balão alçando voo no céu paulista e meus olhos o acompanhando até perdê-lo de vista... Tais visitas não voltaram a acontecer com muita frequência. Um dia, meu avô nos visitou na casa onde acabáramos de nos mudar em um terreno muito acidentado, e pelas conversas adultas compreendi que ele não moraria mais no galpão assombrado. Logo, sua pequena casa estaria erguida perto da nossa e a imagem de meu mago avô iria desaparecer para assumir a imagem do Zé Barbosa, velho turrão, bom de dominó e que bebia coca-cola todos os dias.
Apesar da minha crença, sonho muito com ele. Nos sonhos, sei que ele está morto e o vejo ainda senil, mas sem a curvatura das costas e a bengala que o acompanhou em seus últimos tempos... Vejo-o bem, em paz, sem as críticas e mau-humor a que era tão acostumado tratar quem o cercava.
Mas, acordada, vejo mais do que isto: vejo que nossa vida é um sopro. Que por mais que alcancemos status, poder, dinheiro, amigos tudo acaba. Apenas palavras restarão deste breve peregrinar. Palavras que talvez, apenas talvez, nos eternizarão.Recolher