Zé Gangó - coveiro
Zé Gangó, 64 anos, teria se tornado padre, se dependesse da vontade de sua mãe. "Eu dizia que concordava, mas pensava em ir estudando e depois me formar em outra coisa". Órfão aos 13 anos de idade, Zé gangó abandonou a escola, para mais tarde escolher uma profissão que considera "enrascada", mas aprendeu a gostar. Virou o coveiro-chefe do cemitério de Porto Seguro, sua terra natal. "Tem gente que chora tanto, que chega a dar agonia na gente", confessa. Mas a própria morte não lhe causa espanto. Tanto, que exibe com orgulho sua catacumba, construída há 5 anos na parte nobre do cemitério. Pai de 25 filhos - 18 com a primeira mulher, 3 com a segunda e 4 "particular" -, José Cupertino foi duas vezes candidato a vereador. Nesta entrevista, a mesma naturalidade que marca seu depoimento de vida serve para revelar graves denúncias de abusos praticados pela polícia, sua principal fonte de contrariedades.
Como o trabalho de coveiro bateu em sua porta?
Sou funcionário da prefeitura tem 30 anos. No tempo de Valdívio, como fui contra a política dele, ele me deixou 2 anos sem trabalhar. Depois ele mesmo resolveu e me botou para ficar no cemitério. Aí pensei: - se eu não gostar, saio logo. Só que eu me dei bem, e estou aqui até hoje. Isso tem quase 10 anos. Aqui nunca chega ninguém para me aborrecer. Quando falo em sair, eles não deixam de jeito nenhum, porque eu zelo de tudo direitinho. É um trabalho meio enrascado, mas fazer o quê?
Entre os enterros que o Sr. já fez, em qual veio mais gente?
Foi o de Manoel Carneiro. Ele foi prefeito duas vezes e era muito querido do povo. O cemitério ficou que não cabia mais gente. Agora, leva 2, 3 meses sem morrer ninguém. Só morre velho, acidentado, ou alguém que vem matado. Outubro do ano passado foi o mês que mais morreu gente até hoje. Foi contado 29, quase um por dia, entre anjo e adulto.
O Sr. já se assutou com alguma coisa aqui no cemitério?
Desde que trabalho...
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Zé Gangó - coveiro
Zé Gangó, 64 anos, teria se tornado padre, se dependesse da vontade de sua mãe. "Eu dizia que concordava, mas pensava em ir estudando e depois me formar em outra coisa". Órfão aos 13 anos de idade, Zé gangó abandonou a escola, para mais tarde escolher uma profissão que considera "enrascada", mas aprendeu a gostar. Virou o coveiro-chefe do cemitério de Porto Seguro, sua terra natal. "Tem gente que chora tanto, que chega a dar agonia na gente", confessa. Mas a própria morte não lhe causa espanto. Tanto, que exibe com orgulho sua catacumba, construída há 5 anos na parte nobre do cemitério. Pai de 25 filhos - 18 com a primeira mulher, 3 com a segunda e 4 "particular" -, José Cupertino foi duas vezes candidato a vereador. Nesta entrevista, a mesma naturalidade que marca seu depoimento de vida serve para revelar graves denúncias de abusos praticados pela polícia, sua principal fonte de contrariedades.
Como o trabalho de coveiro bateu em sua porta?
Sou funcionário da prefeitura tem 30 anos. No tempo de Valdívio, como fui contra a política dele, ele me deixou 2 anos sem trabalhar. Depois ele mesmo resolveu e me botou para ficar no cemitério. Aí pensei: - se eu não gostar, saio logo. Só que eu me dei bem, e estou aqui até hoje. Isso tem quase 10 anos. Aqui nunca chega ninguém para me aborrecer. Quando falo em sair, eles não deixam de jeito nenhum, porque eu zelo de tudo direitinho. É um trabalho meio enrascado, mas fazer o quê?
Entre os enterros que o Sr. já fez, em qual veio mais gente?
Foi o de Manoel Carneiro. Ele foi prefeito duas vezes e era muito querido do povo. O cemitério ficou que não cabia mais gente. Agora, leva 2, 3 meses sem morrer ninguém. Só morre velho, acidentado, ou alguém que vem matado. Outubro do ano passado foi o mês que mais morreu gente até hoje. Foi contado 29, quase um por dia, entre anjo e adulto.
O Sr. já se assutou com alguma coisa aqui no cemitério?
Desde que trabalho aqui, nunca vi nada. Se tiver precisão, venho aqui qualquer hora da noite. Tenho pai, mãe, vô, bisavô, tio e até irmão enterrado aqui. Os que estã aí não abusam ninguém. Eu acho que eles já se acostumaram comigo e eu com eles. Já tomei conta de dois defuntos, a noite toda, sozinho, sem ninguém. Teve um, que morreu num fio de luz na Festa da Pena. Fiquei com ele até os parentes trazerem a roupas e ainda ajudei Dr. Marcos a abrir o corpo pra ver se foi choque mesmo. O outro tinha sido matado, à tôa, na garagem da prefeitura.
É verdade que o Sr. prometeu bom enterro para quem votasse no Sr.?
O pessoal ficava me fazendo gozeira. Aí eu disse um comício: - agora que sou candidato, vocês ficam desfazendo de mim. Mas não há de ser nada. Todos aqui quando morrerem vão ter de passar pela minha mão - . Foi isso. Da última vez, perdi por dois votos. Se eu fosse vereador, hoje a Câmara estaria muito melhor. Eu ia defender o benefício do povo. Mas o povo é burro, só escolhe rico, que depois fica brigando com o prefeito por causa de dinheiro. Agora já estou velho, não quero mais sair candidato.
O Sr. bebe?
O dia todo. E não sinto nada. Não perco um dia de trabalho por causa dela. Pra beber, é só achar o litrão. A mulher reclama e eu digo que se eu parar de beber, eu morro. Se tomar minhas cachaças é que eu vou aturando, alegre.
Quais são as principais dificuldades de seu trabalho?
Não temos água, luz, nem assistência nenhuma aqui. O pior de tudo é quando a polícia mata e traz o corpo pra cá, dois, três dias depois, já podre, e a gente tem que enterrar. Quando é a polícia que traz, ninguém está recebendo mais. Já andei botando eles porta afora e eles pararam mais. Já avisei o juiz que eles viviam me abusando. Aí o juiz chamou a atenção e eles passaram a trazer os presos para fazer o enterro. Quando são eles que matam , a gente vê logo o buracão do tiro de escopeta.
Vem gente ao cemitério à noite?
Aqui vem muita gente fazer coisa errada. Aí sou obrigado a mostrar o facão. Graças a Deus nunca precisei dar uma facãozada, mas não posso ficar sem ele na cintura. As pessoas entram pra domir junto, pra roubar terra e pegar osso. E depois usam pra fazer bruxaria. Quando aparece um osso eu enterro logo para eles não fazerem isso. Um dia eles roubaram uma caveira, mas graças a Deus não levaram. Aí eu fechei o porão dos ossos bem fechado. Osso não pode ficar à tôa, porque a macumba que se faz com ele é muito forte. Ninguém escapa. Os meus eu já pedi pra depois de 8 anos deixarem bem guardado, pra ninguém bolir.
E a terra, serve pra quê?
Você não sabe? A terra eles pegam pra jogar em cima da casa. Ave Maria, se eles jogarem um punhado de terra no telhado de alguém A vida do seujeito só anda pra trás. A terra aqui é deles mesmo (referindo-se aos mortos), de mais ninguém. Se eu estiver aqui, não deixo pegar, de maneira nenhuma.
O Sr. já pensou na sua morte?
Tanto pensei, que minha "catatumba" já está prontinha, tem 5 anos. Só que ainda tenho 3 filhos pequenos e se fosse depois deles criados, melhor. Agora se Deus quiser me levar antes, fazer o quê? Acho que vou morrer com 88 anos, como meu pai. Avisei minha mulher que quando eu morrer não quero enfeite, nem luto e muito menos choro. Só vela e o povo bebendo cachaça a noite toda. Ela fala que eu sou doido. E eu digo que se der, pra botar um pouquinho na minha boca que eu bebo e agradeço.
(Publicado na edição 23 do Jornal do Sol de Porto Seguro - Bahia, maio/93. Entrevistado pela jornalista Hilda Rodrigues)
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