Somos muitas pessoas em um lugar que parece um porto. Estamos em uma espécie de setor de embarque. Estamos próximos da água, mas não a vemos. Há muitas pessoas e movimento, pequenos arranjos que precisam ser feitos, coisas que precisam ser carregadas. As embarcações que partem dali e ali cheg...Continuar leitura
Somos muitas pessoas em um lugar que parece um porto. Estamos em uma espécie de setor de embarque. Estamos próximos da água, mas não a vemos. Há muitas pessoas e movimento, pequenos arranjos que precisam ser feitos, coisas que precisam ser carregadas. As embarcações que partem dali e ali chegam são enormes. Da altura em que estamos só conseguimos ver parte dos cascos enormes, da pintura velha, sinais de óleo e alguma corrosão. Um porto antigo e muito usado. E as pessoas conversam, alguns são amigos, conhecidos, outros não, mas há um clima de camaradagem daqueles que enfrentarão uma longa viagem, não necessariamente escolhida, juntos. Ninguém está particularmente triste ou alegre. Há um misto de entusiasmo pela partida com resignação pelo que está sendo deixado para trás. Um clima de dia comum, uma situação incomum que já foi absorvida como a única realidade possível. Embora não falemos disso, sei muitos estão indo embora para sempre. As pessoas estão partindo dali com seus pertences, mochilas, malas, caixas, mobília, animais. Estão indo embora porque não parece mais possível viver ali. E no meu intimo sei que cidade está ficando vazia. Sei que vai ficar totalmente vazia rapidamente, com mais alguns embarques. E sei que vou ficar ali no porto me despedindo e dando abraços amorosos em todos que partem. Sorrindo, e sentindo uma pontinha de tristeza pela saudade antecipada. Mas esse sentimento não predomina. O que se sobressai é a alegria porque estão conseguindo fazer ali que aparentemente desejam fazer, ou pelo menos algo que é necessário. Sei que quando chegar minha hora de embarcar terei a oportunidade de ter uma vaga em algum dos navios. Mas sei não irei. Não compartilho essa informação com os amigos para não os alarmar. Não estou alegre nem triste. Saber que não vou é só um saber. Não chega a ser uma escolha. Não chega a não ser uma escolha. Quando os últimos habitantes da cidade estão subindo as escadas para chegar ao convés da última embarcação, meu olhar começa a percorrer outros pontos da paisagem do lugar: vejo um pouco do céu, um pouco da água se revela, cinza escuro, está um pouco frio e ensolarado. Vejo alguma vegetação, e as cores das coisas, das construções, de uma ponte, algumas plantas rasteiras. Sei que ficarei morando no prédio do porto, a única parte viável da cidade agora abandonada. E começo a sentir uma felicidade imensa porque o prédio do porto é aconchegante, tem um pequeno quarto e uma cozinha que me servirão muito bem, e estarei perto da água. Me aproximo da água maravilhada com as cores de tudo e penso: passarei o resto da minha vida pintando. Vou pintar tudo que eu enxergar. Nesse momento percebo um volume brilhante redondo e róseo que boia à deriva bem próximo do cais. Uma foca morta. Já deve fazer um tempo. O que vejo é sua barriga inchada. Logo identifico isso porque vejo os pelos a, as nadadeiras e a cabeça pendida para trás. E eu imediatamente se que vou pintar a barriga da foca morta. Sei que dali em diante, para o resto da minha vida, vou morar no quarto do porto e acordar de manhã para tocar a superfície de todas coisas que existem nesse resto de mundo com a pele do meu olhar com cuidado, com tempo para cada planta, cada casa abandonada, cada foca morta, cada árvore, cada pedra, cada panela de arroz da cozinha, todas as coisas amadas igualmente
Que associações você faz entre seu sonho e o momento de pandemia?
pra mim ele é muito transparente: diz das mortes, do afastamento, fala muito da sensação de estar vivendo uma espécie de limbo infinito, de resignação, de impotência, da solidão, e da comoção de amar, a despeito de tudo, através dos olhos que tocam a testemunham a morte. Amar a barriga da foca morta, e a panela de arroz sobre o fogão sujo.Recolher