A fotografia que eu segurava diante de mim mostrava uma garotinha pequenina, com os bracinhos gorduchos enlaçados em volta do pescoço de um rapaz ainda bem jovem. Tinha o tom amarelado, resultante do tempo que corria voraz e não perdoava nem mesmo as fotografias de garotinhas inocentes. Guardei o...Continuar leitura
A fotografia que eu segurava diante de mim mostrava uma garotinha pequenina, com os bracinhos gorduchos enlaçados em volta do pescoço de um rapaz ainda bem jovem. Tinha o tom amarelado, resultante do tempo que corria voraz e não perdoava nem mesmo as fotografias de garotinhas inocentes. Guardei o retrato na agenda, de onde o havia retirado, e enxuguei uma lágrima teimosa que insistia em saltar do canto de meu olho direito. Apesar das dificuldades enfrentadas durante os vinte e quatro anos de relacionamento com o rapaz da foto, sentia falta de meu pai. Mesmo agora, dez anos após a sua morte, o vazio e a dor eram grandes, e quase me faziam sufocar. Se eu ao menos pudesse voltar no tempo...
Doze anos antes... Era uma tarde quente e abafada. A rodoviária estava quase vazia àquele horário, poucos esperavam o próximo ônibus na plataforma. Repentinamente avistei uma figura conhecida subindo as escadas. Gelei. “E se ele me encontrar aqui? Não quero correr o risco de que algum conhecido me veja falando com ele. Provavelmente já está bêbado a essa hora... E veja as roupas que veste... Adora chamar a atenção... Meu ônibus chegou Ufa Escapei... Essa foi por pouco...”
Hoje faz dez anos que ele se foi. Morreu jovem, aos 44 anos, vítima de si mesmo: bebeu tanto durante praticamente toda a vida, até que a cirrose consumiu seu fígado e seu fôlego. Estou na mesma rodoviária, o calor não é tão forte quanto naquele dia, mas ainda assim há poucas pessoas por aqui. Instintivamente olho para a mesma escadaria que meu pai subiu alguns anos atrás, meio andrajoso e trôpego. E como se “Alguém” lá em cima tivesse lido meus pensamentos, parece que sou atendida e faço uma “viagem” no tempo. Pela escadaria vem um homem, com o mesmo estilo dele, com o mesmo tipo de cabelo e de roupas, provavelmente também está bêbado... Mas a realidade é que viagens no tempo só são possíveis em filmes de ficção. Não é meu pai quem vem ao meu encontro e não tenho a oportunidade de me redimir de minha falta. Ele está morto há dez anos. Há dez anos perdi a oportunidade de dizer que o amava apesar de seu gênio difícil e de seu alcoolismo. Brigamos por muitos anos. E também nos amamos durante todo esse tempo. Sempre que discutíamos, no dia seguinte aparecia ele em casa, com um Laka, meu chocolate favorito. Há dez anos não como desse chocolate. Minhas filhas o conheceram, mas quase já não se lembram dele. Minha neta o adoraria, ele sempre teve muito jeito com crianças, principalmente as bem pequenas. Olho mais uma vez para o retrato. O homem na escadaria está agora a poucos passos de mim. Meu ônibus chega, mas dessa vez não traz nenhuma sensação de alívio com ele. Olho mais uma vez para o homem, desejando voltar no tempo, poder me aproximar e dizer: “Oi, papai”, talvez lhe dar um abraço... Talvez molhar a gola de sua camisa com algumas lágrimas e dizer o quanto o amei a vida inteira e o quanto me arrependo por não ter demonstrado... Perdida em meus devaneios nem noto o ônibus indo embora. O homem se vai também, pela mesma escada que veio. Perdi meu ônibus. Mas perdi algo muito mais importante, perdi uma pessoa que me amava incondicionalmente, mesmo enquanto eu não soube amá-lo... Derrotada desço as escadas em busca de uma nova passagem. E de um pouco de alívio... (História enviada em abril de 2010)Recolher