Meu nome é Karla. Sempre vivi no mesmo bairro. Toda a família do meu pai mora lá: meus tios, meus primos. Minha mãe sempre presente. Ela nunca precisou trabalhar fora de casa, tinha aquela vidinha protegida. Não tinha noção do que acontecia lá fora. Antes, eu não entendia as razões q...Continuar leitura
Meu nome é Karla. Sempre vivi no mesmo bairro. Toda a família do meu pai mora lá: meus tios, meus primos. Minha mãe sempre presente. Ela nunca precisou trabalhar fora de casa, tinha aquela vidinha protegida. Não tinha noção do que acontecia lá fora. Antes, eu não entendia as razões que levavam as crianças e os adolescentes a viver nas ruas. Achava que estavam lá por vontade própria. Trabalhando no projeto ViraVida, a forma como eu vejo hoje a realidade em minha volta, mudou. Mudou a minha visão de mundo.
Outro dia, uma aluna me contou que tinha apanhado do ex-namorado. Eu disse a ela que, se fosse eu, teria denunciado à polícia. Só que ela respondeu: “Você fala isso porque não mora onde eu moro. Se tivesse denunciado, ele teria me matado e colocado fogo na minha casa. Se eu fosse na delegacia, a polícia ia aparecer no meu bairro e outras pessoas poderiam me matar, porque ia atrapalhar o negócio deles.”
Sempre aprendi a me defender, não levar desaforo pra casa. Mas a realidade dos nossos alunos é bem diferente. A gente tenta mostrar a eles que no ViraVida não é como na rua, não é a comunidade onde moram. Aqui não precisam ter determinado tipo de comportamento. Quando falamos que os meninos e as meninas do ViraVida têm pavio curto, pode parecer exagero. Mas, a verdade é que eles não têm é pavio nenhum! Uma das meninas um dia me explicou o porquê: “Se alguém me chamar pra briga, tenho que ir e bater. Se abaixar a cabeça, o bairro inteiro vai saber que pode aprontar comigo.”
Tenho ouvido histórias desses jovens de que até Deus duvida. Mas hoje já não fico tão chocada. Tenho que ser um pouco fria, respirar fundo. Se você ficar nervosa, estressada, você não consegue ajudá-los. Todo dia tem imprevisto!
No início, eu ficava chocada com a maneira como falavam, como se vestiam, como se comportavam. Hoje, entendo que eles só querem chamar atenção, precisam que alguém os ouça, querem desabafar. Devemos estar sempre prontos para ouvi-los se quisermos ajudá-los. Temos que estar atentos ao menor sinal de estresse e atuar de forma preventiva, para evitar que o problema de um aluno transborde para o restante da classe.
Aprender a escutá-los foi uma grande lição. Ser persistente, foi outra. A gente não desiste deles, faz várias tentativas para mantê-los conosco. Se é difícil para nós, para eles é muito mais. Por isso, reconhecemos o esforço que eles fazem para permanecerem aqui.
Nós nos dobramos para convencê-los a aceitarem ganhar em um mês o que poderiam faturar em uma noite nas boates. Imagine como é difícil para eles se contentarem com tão pouco dinheiro. Só que aqui o ambiente é de respeito, de acolhimento e de capacitação para o trabalho. São argumentos que vão além de promessas, são convincentes. “Aqui no ViraVida sou tratada como gente, não como bicho”, resumiu uma jovem ao justificar sua escolha em ficar no projeto.
Eu percebo as diferenças de comportamento entre os alunos que sofreram abuso e os que vieram da exploração sexual. Os que sofreram abuso são introvertidos, se culpam por tudo. Em vários casos, a menina denunciou o pai e a família inteira ficou contra ela. Essas meninas choram muito e precisam de acompanhamento psicológico. Os meninos e meninas que vieram da exploração sexual são os líderes, dominam o espaço.
Esses jovens não alimentam a ilusão de que o ViraVida vai resolver todos os seus problemas. Por isso incentivamos seus protagonismos, para que sejam autônomos e compreendam a importância de se sentirem responsáveis na vida e no trabalho. Nós, que trabalhamos com esses jovens sem referências adultas positivas na família, devemos estar preparados para dar a eles muito mais do que conhecimentos técnicos profissionais. É por causa disso que eu, todas as manhãs ao acordar, peço proteção e sabedoria a Deus para enfrentar os problemas que certamente vão aparecer naquele dia.
Uma das coisas que aprendi aqui foi a ter paciência e, além disso, ter jogo de cintura: parar, escutar, saber se realmente é ou não é e como lidar com essa situação. Se esse adolescente está gritando, xingando. Se ele está nervoso hoje, é porque alguma coisa tem aí. Às vezes é só deixar falar e ele já desabafa. Tem que escutar muito e ter essa paciência. Acho que o ViraVida não muda só a vida deles, mas a dos técnicos, dos professores e de todo mundo que se envolve com eles.Recolher