Memórias do Comércio do Rio de Janeiro
Depoimento de Sílvio Guimarães Nascimento
Entrevistado por Paula Ribeiro e Edvaldo de Melo
Rio de Janeiro, 30/5/2003
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº MCRJ_HV003
Transcrito por Elisabete Barguth
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 – Bom dia, Sílvio.
R – Bom dia.
P/1 – Eu gostaria de começar a entrevista pedindo que você nos forneça o seu nome completo, o local e data de nascimento, por favor.
R – Meu nome é Sílvio Guimarães Nascimento, nasci em dezoito de abril de 1952 em Recife.
P/1 – O nome completo dos seus pais?
R – José Francisco Nascimento e Maria do Carmo Guimarães Nascimento.
P/1 – Avós, você conheceu, lembra do nome?
R – Não. Eu me lembro que ela me carregava quando eu era muito pequeno, o nome dela era Clementina Lobato. Meu avô é Henrique Nascimento, que eu não cheguei a conhecer, só através de fotos.
P/1 – São avós paternos ou maternos?
R – Minha avó é por parte de meu pai e meu avô também. Da minha mãe eu não cheguei a conhecer.
P/1 – Você conhece um pouco da história da sua família? Qual era a origem, por favor, deles?
R – Muito pouca coisa. O que me lembro é que minha avó era portuguesa, gostava de canto lírico e meu avô por parte do meu pai era médico. Inclusive tem uma rua no Recife que tem o nome dele.
P/1 – Qual?
R – Henrique Nascimento. O local exato eu não me lembro onde é, mas acho que é Jaboatão [dos Guararapes], interior do estado.
Por parte da minha mãe, minha avó era doméstica, era do lar. Meu avô, eu não sei qual era a profissão dele. Sei que minha mãe fala muito que ele era muito carinhoso, gostava muito de brincar com elas, mas a profissão, o que ele fazia, eu não sei.
P/1 – E como é isso? Uma família de origem negra e uma família portuguesa?
R – É uma complicação. Na época, a família do meu avô, por ser negra, não queria que ele se casasse com a minha avó, porque...
Continuar leituraMemórias do Comércio do Rio de Janeiro
Depoimento de Sílvio Guimarães Nascimento
Entrevistado por Paula Ribeiro e Edvaldo de Melo
Rio de Janeiro, 30/5/2003
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº MCRJ_HV003
Transcrito por Elisabete Barguth
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 – Bom dia, Sílvio.
R – Bom dia.
P/1 – Eu gostaria de começar a entrevista pedindo que você nos forneça o seu nome completo, o local e data de nascimento, por favor.
R – Meu nome é Sílvio Guimarães Nascimento, nasci em dezoito de abril de 1952 em Recife.
P/1 – O nome completo dos seus pais?
R – José Francisco Nascimento e Maria do Carmo Guimarães Nascimento.
P/1 – Avós, você conheceu, lembra do nome?
R – Não. Eu me lembro que ela me carregava quando eu era muito pequeno, o nome dela era Clementina Lobato. Meu avô é Henrique Nascimento, que eu não cheguei a conhecer, só através de fotos.
P/1 – São avós paternos ou maternos?
R – Minha avó é por parte de meu pai e meu avô também. Da minha mãe eu não cheguei a conhecer.
P/1 – Você conhece um pouco da história da sua família? Qual era a origem, por favor, deles?
R – Muito pouca coisa. O que me lembro é que minha avó era portuguesa, gostava de canto lírico e meu avô por parte do meu pai era médico. Inclusive tem uma rua no Recife que tem o nome dele.
P/1 – Qual?
R – Henrique Nascimento. O local exato eu não me lembro onde é, mas acho que é Jaboatão [dos Guararapes], interior do estado.
Por parte da minha mãe, minha avó era doméstica, era do lar. Meu avô, eu não sei qual era a profissão dele. Sei que minha mãe fala muito que ele era muito carinhoso, gostava muito de brincar com elas, mas a profissão, o que ele fazia, eu não sei.
P/1 – E como é isso? Uma família de origem negra e uma família portuguesa?
R – É uma complicação. Na época, a família do meu avô, por ser negra, não queria que ele se casasse com a minha avó, porque ela era branca e não tinha uma ascensão social a nível deles - [por] meu avô ser médico, ter toda uma formação médica, famoso. Eles não queriam que ele se casasse, então minha avó criou meu pai sozinho. Ela, sozinha, deu toda educação, ensinou desde corte e costura até ele ir para a faculdade. Meu pai veio saber o que era um trabalho com 28 anos, antes era só estudar.
P/1 – Ah, é? O que ele fez, o que ele estudou?
R – Ele estudou corte e costura, música - ele tocava violino, violão - desenho. Depois ele foi fazer a faculdade de comércio, fez contabilidade e continuou estudando, só estudando. Só andava, como ele gostava de dizer, [de] terno de linho, chapéu panamá, mas não tinha um centavo no bolso. (risos)
P/1 – Mas mantinha a linha.
R – Mantinha a classe.
P/1 – Ali, na linha.
R – Ah, é lógico. Ele era assim, muito… Acho que ele puxou essa coisa do meu meu avô, pelas fotos. Ele era muito orgulhoso, podia estar lá embaixo, mas não dava o braço a torcer. Eu me lembro quando nós viemos pro Rio, chegamos próximo do carnaval e ficamos muito tempo… Foi uma loucura, ele já estava desesperado, achando que não iria conseguir emprego aqui no Rio de Janeiro. Já estava querendo voltar para Recife. Faltando uma semana… Não, minto, arrumamos toda bagagem para voltar. Já estávamos indo para o Aeroporto Santos Dumont pegar o avião da FAB para retornar ao Recife, quando o voo foi cancelado, aí voltava tudo de novo, as bagagens… Depois ele conseguiu emprego na Universidade Gama Filho, aí as coisas começaram a melhorar.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho pra sua origem. Quais são suas memórias da sua cidade, da sua infância? Como era a casa...
R – Ah, eu me lembro era um casarão no [bairro do] Pina que era muito grande...
P/1 – Pina?
R – No Pina, era muito grande a casa.
P/1 – Quantos irmãos eram?
R – Quatro. Tinha a minha irmã mais velha que faleceu, que eu não cheguei a conhecer e tinha uns quatro irmãos. Eu me lembro muito que tinha um pé de fruta-pão - eu não sei se aqui no Rio tem isso - e nós brincávamos muito. Tinha um cachorro Colie que [a gente] tinha a mania de soltar de noite só pro meu pai sair correndo de cueca atrás do cachorro. Ele mordia todo mundo na rua, (riso) então era castigo na certa no dia seguinte.
Minha infância era muito solta, não tinha essa coisa que tem hoje. Era muito na rua, praia, sempre praia. Quando chegavam as jangadas, ajudávamos os pescadores a empurrar os tocos de coqueiros pra jangada chegar até a areia, pra eles tirarem os cestos de lagostas ou peixes, qualquer coisa assim. [Com] isso nós ganhávamos sempre lagosta, então era uma felicidade só. Chegava em casa com a lagosta, mas nem comia porque já enjoava da lagosta; vim sentir falta da lagosta aqui no Rio, porque lá não tinha isso. (risos)
Era uma infância muito tranquila, então quando nós viemos pro Rio foi um choque. Eu estava acostumado com o ritmo de vida, tinha seis pra oito anos. Aqui no Rio de Janeiro era completamente diferente. Lá eu andava descalço de short, aqui no Rio já tinha que andar calçado.
Havia um problema do sotaque, aquele sotaque carregado. Chegava na escola, na rua, os garotos: “Como é que é isso?” Ficavam rindo. Todo dia tinha uma briga na rua, porque eu achava um absurdo todo mundo rindo daquelas coisas que eu falava. Depois eu fui me acostumando e já nem ligava mais.
P/1 – Ainda sobre o Recife, quais são suas memórias, por exemplo, de música de carnaval, você lembra?
R – Lembro. Música nós tínhamos na matinê. Aparecia muito o [cinejornal] Canal 100, então apareciam as músicas, futebol. Uma música que me marcou muito, que eu escutava muito, era do Jamelão, tocava muito Jamelão. Benito Granda, porque onde nós morávamos era onde chegavam os navios de outros países. Os marinheiros iam pra lá, então tocava muito Benito Granda naquelas vitrolas antigas.
Era Benito Granda, Jamelão e as músicas do Canal 100; ficou marcado, ia pra matinê todo domingo ver as novidades do Rio de Janeiro. Achava uma coisa incrível quando mostrava a imagem de dentro do Aterro da Glória, mostrando a Baía de Guanabara. Eu ficava fascinado com aquilo, achava uma coisa linda. Depois de muitos anos, quando eu vim morar na Glória aí achei o meu ponto de referência. Era o Aterro da Glória. (risos)
P/1 – Porque essa imagem saía no Canal 100, que...
R – No Canal 100.
P/1 – Aparecia ao fundo...
R – Isso.
P/1 – ...a imagem da baía?
R – É, ele mostrava de dentro de onde tinham os sinos, mostrando a baía. Na época não tinha nem o aterro, estava começando a construir, então era uma coisa fantástica. Infelizmente, destruíram tudo.
P/1 – Em relação à escola, você chegou a frequentar a escola ainda no Recife?
R – Não, quem estudava era meu irmão mais velho.
P/1 – Qual o nome dos seus irmãos, por favor?
R – Everton, Ívison e Fernanda.
P/1 – Você era em qual posição dos irmãos?
R – Eu estou na escada de cima para baixo, eu sou o segundo. Eu vim estudar aqui no Rio. Quando meu pai trabalhava na Gama Filho, na época era só colégio, então fui fazer uma prova. Eu nunca tinha ido pra escola, nunca tinha visto um quadro negro; por eu ter acho que dez ou doze anos quando fui fazer esse teste, a professora achou que eu deveria ir pra admissão.
Quando ela botou o teste pra eu fazer foi um choque, tive uma crise de choro. Achei que não poderia decepcionar meu pai daquele jeito. Achei que teria que chegar, passar no teste. Mas depois conversei com meu pai, depois de muito tempo, aí eu mesmo fui à escola pública e fiz minha matrícula.
P/1 – Como era essa coisa da educação, do seu pai… Havia uma expectativa profissional, de formação de vocês? O seu pai e sua mãe tinha uma certa exigência...
R – Não, nenhuma.
P/1 - ...com os filhos?
R – Apesar de meu pai ter toda uma formação, eu acho que tudo que meu pai não fez na juventude ele resolveu fazer depois, então ele nunca teve uma responsabilidade de cobrar, tipo dever de casa. Tudo que eu aprendi foi por mim mesmo, então aquela coisa de ir para a escola fazer o dever…
Uma coisa que nós tínhamos uma dificuldade muito grande… Antigamente a escola pública tinha dentista, a merenda e tinha… Por exemplo, você já estava com o sapato ruim, aí você deixava o sapato velho e ganhava um sapato novo. Sua blusa estava meio rasgada, ela te dava uma blusa nova, então havia essa facilidade. Você tinha um dente cariado, ia ao gabinete dentário e eles faziam todo o tratamento na escola. Isso me ajudou muito, porque em casa não tinha essa cobrança.
P/2 – Em que colégio você estudou?
R – Estudei na Escola Pública Goiás.
P/2 – Ficava onde?
R – No Encantado.
P/1 – Sílvio, conta pra gente como foi essa vinda pro Rio de Janeiro, porque veio e quais suas memórias da viagem?
R – Bom, vamos lá. Nós viemos pro Rio… Primeiro veio meu pai tentar emprego, então ele ficou na casa da madrinha da minha irmã.
P/1 – Em que ano era isso?
R – Ele vem em 61. Tentou vários locais e nunca conseguia emprego. Depois ele conseguiu emprego; não estava ganhando bem, mas foi nos buscar, aí nós viemos para o Rio de avião. Foi um delírio entrar num avião; não tinha ideia do que era um avião, apesar de morar perto do aeroporto.
Saímos de lá era meio-dia e viemos chegar [às] seis horas da noite. O avião fazia escala em tudo que era meio metro de asfalto. Ele pousava e só serviam cafezinho. [Ficamos] sem comer nada o dia inteiro porque não tinha dinheiro pra chegar ao aeroporto e comprar comida pra todo mundo, então nós viemos só com cafezinho até o Rio de Janeiro.
P/1 – Quem veio?
R – Eu, minha mãe, meus irmãos, meu pai e toda bagagem.
P/1 – Qual era a bagagem, Sílvio?
R – Só roupa. Só deu pra trazer roupa, mais um montão de mala. Não gostava de sapato, já fui tirando no avião logo tudo. Aquela curiosidade de criança… Não estava acostumado a andar com calçado, estava acostumado a andar só descalço, sem camisa. Era morar perto da praia, vida de criança; era jogar bola e...
P/1 – Mas qual era a expectativa de você, como criança, do Rio de Janeiro. O que você conhecia do Rio de Janeiro?
R – Eu só conhecia do Rio de Janeiro o Maracanã. Tudo era através da imagem do Canal 100. Era o que eu conhecia do Rio de Janeiro: o Maracanã, mostrando o Flamengo, a praia ali da Glória. Até hoje tenho fascínio pela Glória e os letreiros que tinha. Tinha uns prédios… Não sei, acho que não deve ter mais esse letreiro. Tinha um prédio que tinha o Esso e na Augusto Severo tinha outro letreiro que eu não me recordo o nome agora, então eram meus pontos de referência. Sempre no Canal 100 aparecia isso, essa imagem e futebol, mostrando o Fluminense. Eu era mais o Fluminense, até um dia que meu pai me levou… Ele queria que eu fosse Flamengo, sempre via no Canal 100 e falava: “O Flamengo que é o bom.” No dia que eu vi o Garrincha driblar cinco falei: “Ah não, quero ser aquele outro ali.” Passei a ser botafoguense, até hoje.
P/1 – Ah é?
R – É.
P/1 – Como é a musiquinha do Canal 100, hein, você lembra?
R – Meu Deus do céu, agora não me lembro, não. Tenho uma fita em casa, devo tê-la gravada. Era Carlinhos Niemeyer, ele que produzia, o pai produzia os documentários.
P/1 – Esse avião em que você veio, tinha nome? Como era?
R – Era o DC3. A companhia, acho que era Real, se não me engano. Era Real ou PanAm.
P/1 – Essa era uma época que tinha muitos migrantes do Nordeste vindo pro Rio?
R – Tinha muito. Sempre tinha um parente ou um amigo que tinha vindo pro Rio e convidava pra vir pro Rio porque aqui haveria mais facilidade - entre aspas, né? - de conseguir melhor emprego, de uma vida melhor. Não era realidade...
P/1 – Não era?
R - Não, era muito diferente. Era um choque muito duro pra quem achava que isso aqui iria ser um paraíso. O paraíso era outro, naquela época já era matar um leão por dia pra conseguir alguma coisa. Sendo imigrante nordestino, pior ainda.
P/1 – Por quê?
R – Porque havia muito preconceito e não tinha o preparo que… Por exemplo, meu pai era contador da época, de pegar um livro com aquelas letras maravilhosas, de bico de pena [pra] escrever - até antes de morrer ele só escrevia daquele jeito. De repente, as coisas mudaram. Ele veio ser contador de um colégio como o Gama Filho, depois foi crescendo, aí passou à faculdade. Foi o próprio Gama Filho que nomeou meu pai para o tribunal de contas, de tanto que ele gostou do trabalho do meu pai. Quando ele entrou pro tribunal já melhorou, ele começou a ganhar três vezes mais do que ganhava lá no colégio. Foi uma coisa assim, fantástica.
P/1 – Vocês, quando chegam ao Rio, vão viver no Encantado?
R – No Encantado. Quando nós chegamos aconteceu uma coisa engraçada. Tinha dado um temporal e a casa que meu pai tinha alugado era no bairro de Quintino. A casa caiu. Disse ele, muito tempo depois, que aquilo foi uma benção, porque nós fomos morar no Encantado.
Depois que ele entrou pro tribunal de contas, ele e minha mãe se separaram, então ele ficou tomando conta dos quatro filhos. Só que nesse período ele nunca tinha tomado conta nem dele, quanto mais de quatro crianças, então era dificuldade. Tinha minha irmã, então o que acontecia? Ele arrumava minha irmã… A parte de trás da calcinha, que tinha uns babadinhos, ele colocava pra frente, achava que era ali. Tudo ao contrário. O cabelo da minha irmã que ele ia pentear era uma loucura. Foi uma confusão danada, quatro irmãos, quatro crianças.
Teve uma época que ele foi… Aliás, voltando lá nessa história… Meu pai, o nome dele é José Francisco Nascimento. Numa era de aventura dele, ele e o amigo dele, o que ele fez? Botou [o nome] José Francisco “do” Nascimento. Tinha uma outra namorada que ele tinha… Ele já era casado com minha mãe, já tinha três ou quatro filhos nessa época. Ele [se] casou com essa outra pessoa, que veio a ser minha madrasta, só que ele botou “do” Nascimento, tirou outra certidão, quer dizer, era outra pessoa. Foi uma confusão danada.
Depois que ele [se] separou da minha mãe, ele voltou pra Recife e buscou essa outra pessoa pra ficar conosco. Só que aí foi outro choque, porque a gente estava acostumado com minha mãe que não cobrava nada, dona de casa... Meu pai dizia: “Isso aqui é pedra.” Ela: “Amém.” Não tinha essa coisa de ver os direitos. Até no dia que meu pai foi casar, uma vizinha - sempre tem uma vizinha... “Olha, ele vai casar tal dia lá na igreja tal.” E ela não foi lá: “Não, deixa ele, ele quer casar, casa.” Nunca se preocupou com isso.
Ela [a madrasta] veio. Foi um choque, porque ela tinha que nos acostumar a uma maneira de vida e ninguém estava preparado pra isso. O tempo foi passando, aí com quatorze anos eu resolvi trabalhar. Eu pedia dinheiro a meu pai, aí ele [dizia]: “De novo?” Isso me irritou e falei: “Não, está na hora de eu trabalhar.”
Mas eu não tinha noção de valor, o que era ganhar o trabalho e o que eu poderia fazer com isso. Eu queria era trabalhar pra ter o meu dinheiro pra ir aos bailes [no] final de semana, ir ao Ademir Lemos, Big Boy, na época.
P/1 – Então conta um pouquinho as suas memórias do Encantado quando você chegou à década de 60.
R – Isso, era 62.
P/1 – Conta um pouquinho como que era o bairro, como são suas memórias.
R – O bairro era uma coisa muito tranquila. A diversão no bairro eram as festas na Igreja de São Pedro. Ou a gente ia pra casa da Aracy de Almeida; ela morava numa rua próxima, um casarão imenso. Ela tinha dois cachorros que eram pelados - a gente chamava de pelado porque não tinham pelo. Ela sempre me recebia a gente, dava bala, doces, deixava a gente a vontade na casa dela. Era uma pessoa fantástica. E [tinha] brincadeira de rua, soltar pipa, jogar bola; coisas normais, não tinha grandes diversões, né?
P/1 – Mas diferenciava muito daquilo que você estava acostumado no Recife?
R – Ah, completamente porque aí era outra fase. Eu estava acostumado com toda a liberdade, praia no Recife. Lá no Encantado não tinha isso, tinha horário pra ir pra escola. Lá não tinha nada disso. Comecei a me adaptar às normas, né? Tem horário pra tudo.
Nessa época eu tinha dificuldade dentro de casa, só meu pai trabalhava. Eu juntava ferro velho, jornal e vidro, juntava tudo; [quando] passava o carroceiro que comprava eu vendia tudo, aí ficava sempre com um dinheirinho pra matinê. Não podia perder a matinê, sempre aos finais de semana eu tinha dinheiro. Eu fazia sempre isso pra evitar de pedir dinheiro a meu pai, que nunca tinha. Muitas vezes, [com] esse dinheirinho que eu ganhava eu comprava coisa pra dentro de casa, sem ter aquela ideia que o que eu estava fazendo era ajudar dentro de casa. Comprava o que achava… “Ah, não tem, o irmão quer comer alguma coisa”, então eu comprava.
O lanche que a gente adorava muito era [refrigerante] Grapette com sonho. Acho que Grapette nem existe mais.
P/1 – Existe, voltou.
R – Voltou?
P/1 – Voltou, Grapette. (risos)
R – Ainda bem, vou procurar! (risos) Sonho era um lanche fantástico. A gente adorava, porque a gente não tinha nada disso.
P/1 – Do bairro do Encantado consegue se lembrar, por exemplo, de lojas no bairro...
R – Lojas?
P/1 – Alguma loja que tenha marcado, alguma loja que tivesse alguma vitrine que você, como criança, viu?
R – A loja que eu me lembro… Não tinha esse negócio de vitrine, essas coisas. Quem tinha loja no bairro era a antiga Casa da Banha. Eu me lembro bem que nós fazíamos compras de mês quando meu pai recebia dinheiro. Não tinha sacola, na época tinha um setor de pacotes. Eles faziam aquele embrulho, faziam o pacote, uma alça e você levava. Não tinha nada de bolsa. Você podia comprar meio quilo, escolher ali com a cesta… Vendia meio quilo, cem gramas. Não tinha os pacotes como tem hoje. Era a casa...
P/1 – Isso nas Casas da Banha?
R – Casas da Banha, não tinha shopping, essas… Shopping, eu me lembro que o primeiro que eu vi foi no Méier, isso nos anos 60 também. Acho que foi o primeiro shopping no Rio de Janeiro foi no Méier.
P/1 – Você tem essa memória, vocês iam a ele...
R – Íamos.
P/1 – ...você se lembra, por exemplo, como é que se anunciava? “Chegou um shopping center na…” Você lembra disso?
R – Não, não tinha isso porque quando tinha era carro de som. Era o carro de som que ia anunciando nos bairros, né?
P/1 – Você lembra dessa chamada de carro de som?
R – Não, ele anunciava várias coisas. Foi inaugurado um Bob’s nesse shopping no Meyer, então falavam muito do Bob’s, das atrações, das lojas que teriam nesse shopping, mas num… Tinha só falando das coisas que tinha no shopping; não tinha muita griffe naquela época, não existia essa coisa. O que se usava na época, muita coisa era importada, apesar de não ter importação livre. A Lacoste, Tiger, calça Lee, Levi’s era tudo importado, não tinha nacional.
P/1 – Como é que você se vestia, Sílvio?
R – Depois que eu comecei a trabalhar, só material importado.
P/1 – Ah é? (risos)
R – Sim. Sempre tinha alguém que viajava, que comprava lá fora e vendia, então eu comprei a [calça] Lee, Levi’s. Meu tênis era Tiger. Camisa Lacoste, eu tinha uma coleção de várias...
P/1 – Mas como criança, como é que você se vestia?
R – Ah, como criança, na época da pobreza, vamos dizer assim, meu tênis era uma sandália de plástico. Hoje é moda, naquela época, não; quem usava aquela sandália é porque estava nas últimas mesmo, né?
P/1 – Como é que era uma sandália...
R – Era uma sandália de plástico, é...
P/1 – Homem usava isso?
R – Usava.
P/2 – Parecida com Havaiana ou outra coisa?
R – Não, uma sandália. Como é que eu vou dizer, como se fosse uma sandália franciscana hoje...
P/1 – Sei.
R – Só que era de plástico, então você andava, você transpirava no pé. Muita poeira, ficava uma lama dentro do pé. Era uma coisa horrorosa, então só usava aquilo quem estava mesmo necessitado ou nas últimas, não tinha outras condições. Hoje tem até de várias cores, as pessoas usam...
P/1 – Modérrima.
R – É, coisa de louco, mas não tinha isso. Eu me lembro muitas vezes que não tinha nada em casa, nós íamos… A merenda na escola que era o importante, me lembro que tinha uma que eu adorava: macarrão com carne de baleia.
P/1 – Como é isso?
R – Macarrão com carne de baleia, depois tinha uma caneca de leite que era fornecida, acho… “Unidos venceremos”, que era uma coisa do governo americano. Tinha propaganda no pacote, “Unidos venceremos”...
P/1 – Ah, que sensacional!
R – Duas mãos, assim, entrelaçadas. Aquele leite era sensacional, era a salvação do dia. Eu me lembro também [que] antes de entrar em sala de aula tinha que ficar todo mundo em forma e cantar o hino durante o hasteamento da bandeira. Era um momento, que achava incrível que várias pessoas choravam, várias crianças choravam. Era uma coisa emocionante, a professora na frente cantando, todo mundo cantava o hino. Depois ia turma por turma pra sua sala em silêncio, não tinha bagunça não. (risos)
P/1 – Tinha uniforme na escola?
R – Tinha. Era calça curta, porque só usavam calça comprida as pessoas maiores; tinha esse estágio, pra usar calça comprida tinha que ter uma certa idade. A minha raiva era essa. Eu usava calça curta e a camisa branca escrito E.P., que era Escola Pública, então acho que…
É uma coisa que eu digo pros meus filhos, o ensino do primário daquela época eu não troco por um segundo grau agora, que é um absurdo. Falei pra ele, coisa que eu tive trinta ou quarenta anos atrás meu filho está tendo agora e tem a maior dificuldade. Isso é um absurdo, o ensino caiu muito.
Eu acho que toda escola pública daquela época… Em tudo, não só o ensino, mas no atendimento ao aluno… Você pagava uma caixa escolar se você pudesse pagar; se não pudesse, você não pagava e tinha todo o atendimento que você teria normalmente: de dentista, de uniforme… Que mais? Até passeios, tinha passeios. Eu ia a Petrópolis.
Foi um sonho conhecer Petrópolis, apesar de sair daqui com calor e chegar lá com o frio que estava, mas foi bom, Conhecemos museu, calçar aquelas pantufas; quarenta crianças calçando pantufas querendo correr dentro do museu, brincar de escorrega. Era uma loucura, mas era uma coisa fantástica, muito bom.
P/1 – Sílvio, você teve na escola, por exemplo, algum professor que tenha te marcado mais?
R – Teve a professora de…. Ela dava não só português, dava várias matérias, mas eu tinha um carinho muito grande por ela. Eu tinha gosto de estudar porque ela explicava direito, ela tinha paciência. Apesar das minhas bagunças no intervalo, ela nunca me botou de castigo.
P/1 – Ah, por isso que você gostava dela, né? (risos)
R – Não era pouca, não. Era uma coisa muito boa. Depois que a escola entrou em obra nós fomos estudar em outra escola e já era no Engenho de Dentro. Era próximo, só passar por baixo da passarela, aí já era o outro bairro, Engenho de Dentro.
P/1 – Qual era o nome dessa escola, você lembra?
R – Não lembro. Eram três escolas num espaço só, mas ficava no Engenho de Dentro.
P/1 – Você falou anteriormente sobre o ambiente de escola e um pouco… No fundo, era um preconceito com a família, que tinha vindo do Nordeste com sotaque.
R – É, pelo sotaque porque as crianças achavam diferente, engraçado e eu já achava, levava as coisas pelo outro lado. As crianças me chamavam pra conversar porque eles queriam ver a maneira que eu falava as coisas. Por exemplo, tangerina eu falava que era mexerica, aipim eu falava que era macaxeira. Se os garotos estavam debochando, dizia: “Vocês tão mangando de mim!” Aí era o auge...
P/1 – ‘Mangando’, né? (risos)
R – Mangando, eles achavam o auge, aí era briga na certa. (risos) Todo dia tinha briga na escola, mas era coisa de criança mesmo, não chegava a ser um preconceito. Eles achavam diferente, aquela coisa de… Eu diria até o idioma, porque chegava falando bem carregado.
P/1 – Você hoje quase não tem mais sotaque nordestino?
R – Não. (risos) Digo que eu estou naturalizado já há muito tempo, então já nem...
P/1 – Não tem, não?
R – Nem me lembro mais disso. Mas foi uma época muito boa. Tive, graças a Deus, uma infância. Eu dei sorte de ter uma infância “difícil”, porque isso me mostrou… É o que eu digo sempre: se nenhum dos nossos irmãos deu pra coisa errada, não foi porque teve cobrança dentro de casa ou por nada, [foi] porque a gente já tinha essa índole de não ter nada, mas pelo menos de ser honesto naquilo que a gente faz. Ninguém quis nunca alguma coisa dos outros.
A gente teve que conviver [com] todo mundo, né, gente boa... Na época, tinha os garotos que cometiam, na época o… Isso já foi na Glória. Nunca nos envolvemos com esse tipo de coisa, apesar de conviver todo mundo ali [na] escola. Sempre: “Não, a nossa vida não é essa.” Apesar de não ter nenhuma orientação, nós não tínhamos essa orientação.
P/1 – Tinha uma diferença, por exemplo, de educação pra sua irmã e pros meninos? Alguma expectativa, por exemplo?
R – Olha, não. Teve depois que minha madrasta veio, porque ela veio com… É uma coisa bem arcaica de ensino. As coisas que foram da minha madrasta funcionavam com a minha irmã. Qualquer coisa que minha irmã fizesse, [ela] batia. Ela não entendia a rebeldia da minha irmã no sentido de… Da criação que ela teve. Você não pode mudar as coisas de uma hora pra outra, tem um período de adaptação e no caso seria um período de conquista, ela conquistar minha irmã e nos conquistar. No primeiro dia foi um choque, porque meu pai nos apresentou, fomos passear na Glória, nos jardins e ela não gostou da gente. Ela achava que isso iria atrapalhar o relacionamento dela com meu pai e eu nunca me meti nisso, nunca quis saber disso. Tanto é que depois… Há pouco tempo meu pai faleceu. Eu fui ver a pensão pra ela do meu pai. Ela não teria direito, porque não tinha nenhum documento comprovando que era casada com meu pai. Eu fiz tudo pra ela receber a pensão, facilitar o máximo as coisas pra ela, mas nunca houve assim uma conquista, tanto é que com dezoito anos eu fui morar sozinho.
P/1 – Agora conta um pouco pra gente sobre trabalho e vida profissional. Qual foi seu primeiro emprego na vida, Sílvio?
R – Ih, já faz tempo. Trabalhei na livraria Mestre Jou, aliás não trabalhei, era uma brincadeira pra mim, porque tinha que fazer um trabalho na escola sobre o livro “Menino do Engenho”.
P/1 – Que escola, em qual dessas, você lembra?
R – Isso já foi na Glória, Escola Deodoro.
P/1 – Mas então conta… Quer dizer, a família sai do Encantado quando e vai morar na Glória?
R – Depois de meu pai se separar da minha mãe, foi buscar minha madrasta e ele alugou uma casa na Rua Benjamin Constant, na Glória. Viemos morar na Glória.
P/1 – Em que ano isso, Sílvio? Você recupera?
R – 60… Isso foi em 65 ou 66, por aí. Viemos morar na Glória. Arrumei um colégio pra estudar, esse Colégio Deodoro: fui lá, fiz a matrícula, conversei com a diretora. A diretora era Solange.
P/1 – Deodoro é ali na Glória, né, no...
R – Na Glória, então eu fui estudar de dia.
P/1 – Em que série você entrou?
R – Entrei no primeiro primário, né?
P/1 – Foi ginásio já, né?
R – Não, não era o ginásio. Fiz o primário no… Foi no quarto ou quinto ano primário, por aí.
Pela dificuldade, meu pai não tinha dinheiro, aí eu fui comprar o livro… Voltando a José Lins do Rego. Falei com José Gimeno, que era o gerente da livraria. Ele era um poeta, uma pessoa humana. Ele falou: “Bom, então eu vou fazer o seguinte: eu vou te dar o dinheiro. Você vai tirar o retrato, vai tirar a carteira de trabalho.” Era verde [a carteira] de menor, tinha essa diferença.
Levei em casa, meu pai teve que assinar. Ele assinou, nem acreditou muito que eu fosse trabalhar mesmo. Fui lá e tirei a carteira de trabalho, voltei. Ele me mandou pro Senai, porque eu tinha que fazer o curso de aprendiz. Eu trabalhava, estudava de manhã e à tarde eu trabalhava na livraria.
P/1 – Mas como é que você chegou a essa livraria?
R – Passando na porta. Eu queria o livro, aí perguntei ao vendedor. Ele falou: “Fala com aquele moço ali, que é o gerente.”
P/1 – Qual o livro?
R – “Menino de Engenho”. Foi a única livraria que eu vi o livro. Eu [estava] andando na cidade assim, meio desnorteado. O clima lá na minha casa não era bom por causa da minha madrasta, então eu preferia ficar na rua porque eu não teria atrito dentro de casa. Foi quando surgiu essa oportunidade de trabalho.
P/1 – Onde era a livraria?
R – Na Travessa do Ouvidor, acho que 11 ou 17...11. Eu me lembro que tinha um porão. As diferenças entre os funcionários eram tirada aos sábados; se alguém brigava com alguém durante a semana, no sábado resolvia porque o gerente não estava, então o vendedor… O Sebastião, que tomava conta, ele falava: “Vou cortar o cabelo e vocês resolvam isso aí…”
P/1 – No porão?
R – No porão. A gente tinha que lavar a loja, né?
P/1 – Era trabalho de um aprendiz?
R – Aprendiz consistia em… Na realidade, era o serviço de office-boy hoje. Seria levar uma correspondência, fazer uma cobrança porque antigamente não tinha cobrança bancária, era promissória: assinava, você recebia. Entregar livro quando o cliente comprava.
Eu preferia limpar os livros, então eu queria sempre... Pedia pros vendedores antigos me ensinar como seria um vendedor, aí eles falavam: “Tá aqui a flanela, a escova. Você começa lá por cima: tira o livro, escova, passa a flanela. Lê o autor, lê o título e a editora, vê o assunto e coloca no lugar.” Assim eu ia, todo dia eu fazia isso. Depois de varrer fazer tudo, lá ia eu com a flanela, a escova, limpar o livro. O autor, título e a editora…
Assim foi indo. Em menos de um ano eu já tinha passado pra auxiliar de escritório, mas só por causa do aumento. Ele deu aumento de salário, então tinha que mudar de função, mas continuava com os livros. Não exercia nada no escritório, só na área de venda. Eu sei que no ano eu tive cinco aumentos, aí ele me passou pra auxiliar de venda, depois de vendedor. Eu fiquei [na livraria] durante doze anos.
P/1 – Como era essa livraria no contexto da cidade? Ela era especializada em alguma área? Eram livros em português, eram livros antigos, usados, novos?
R – Não, acontecia o seguinte: naquela época...
P/1 – É Mestre Jou?
R – Jou, J-O-U. O dono era catalão, Engenheiro Felipe Mestre Jou. Aqui era a filial, a matriz era em São Paulo...
P/1 – Ah, tá!
R – Os livros, a maioria era tudo importado, então era em espanhol. A especialidade era em idioma espanhol. A maioria era [da] área [de] Sociologia, todas as áreas, mas em espanhol. No segundo andar era a parte de Medicina, tinha os vendedores que iam em porta em porta vender aos médicos, mas tudo material importado, não tinha nacional - tinha, mas era muito pouco, era insignificante.
Tinha as grandes livrarias, hoje eles falam megalivraria. Há um tempo atrás tinha a Edição Brasileira. Eram três andares, devia ter uns oitocentos metros cada andar de livro e tinha vendedores assim… Dizia pela cor, pelo autor, ele já ia lá, pegava o livro e dava ao cliente. Era um mundo. Tinha a Civilização [Brasileira], Freitas Bastos, que era outro mundo.
P/1 – A Civilização ficava onde?
R – Era [na Rua] Sete de Setembro, 111 e a Freitas Bastos era [na] Sete de Setembro, 127. Depois a Freitas Bastos pegou fogo e o Ênio teve problemas políticos, então, infelizmente, acabaram com a Civilização - a livraria, a editora continuou. Ele não largou até o final, manteve o idealismo dele. Poucos mantêm.
Tinha a Livraria Francisco Alves, na Rua do Ouvidor. Digo as livrarias tradicionais, livrarias mesmo. Francisco Alves, na Rua do Ouvidor. Tinha uma coisa fantástica: no teto da livraria tinha uma clarabóia, que é a coisa mais linda que tinha. As luzes ficavam todas apagadas e a clarabóia iluminava a loja toda. Era uma coisa fantástica, aquela livraria.
P/1 – Que altura é da Rua do Ouvidor?
R – Próximo… Entre [a Rua] Gonçalves Dias e [Rua] Uruguaiana. Hoje não tem mais, é um prédio imenso onde tem um banco; acho que é Unibanco que está no lugar.
Outra tradicional, mas aí já era na parte de cima do Carlos Ribeiro, que hoje está desmembrado. Tem uma livraria que está com a filha dele e a outra na Rua da Carioca com a Dona Luci, que é a filha do Carlos. Tem a… Na Sete de Setembro, 207.
Tem as mais antigas, que eu me lembro quando era garoto, que eu ouvia falar [e] infelizmente não frequentei, como a São José. Grandes livrarias. Na época da São José tinha quatro ou cinco livrarias na rua, o ponto das livrarias era ali na [Rua] São José, onde é o [Terminal] Menezes Côrtes. Justamente era ali a livraria. As mais tradicionais eram essas.
P/1 – Mas como é que funcionava? Vocês, como empregados de livraria, tinham, por exemplo, intercâmbio com outras livrarias? Todo mundo do ramo se conhecia?
R – Não, isso até hoje continua assim porque nunca, isso em 35… Eu nunca vi falar até - ver, então piorou -, que um anúncio de jornais pedisse vendedor para livraria. Eu não estou falando de supermercado, é livraria porque existe… Eu considero supermercado: você chega na livraria, pede um livro. O cara não sabe te atender, não sabe o que está vendendo e, quando muito, recorre a um computador.Se o computador disser que tem, muito bem, ele diz: “tem” e vai ver onde é que está, senão ele pergunta a uma pessoa mais antiga na loja.
Infelizmente existe isso, porque não existe uma formação pra livreiro. Há pouco tempo em São Paulo que criaram, estão querendo criar uma Universidade do Livro, justamente pra suprir essa demanda, mas isso não é o caso, porque eu acho que a pessoa do livro tem que gostar do que faz. É fundamental você gostar do que faz porque aí você vai render muito mais. Eu tive companheiros que não tinham o primário completo, mas no livro, no atendimento, eram sumidade. O sujeito chegava dizendo um assunto, ele ia lá e pegava o livro. Ele não sabia dizer qual era o assunto, mas sabia que aquele livro teria aquilo que você queria fazer da pesquisa, em qualquer idioma. Pessoas fantásticas que conheciam muito, eu tive o prazer de aprender com várias, nesses 35 anos. É [uma] coisa fantástica.
P/1 – E você fica na livraria Mestre Jou de quando a quando?
R – De 67 a 79. Foi quando faleceu o… Não, o senhor Gimeno se aposentou. Veio outro vendedor de São Paulo e havia choque, porque ele era vendedor de São Paulo e eu era vendedor do Rio e muitas vezes ele queria - a coisa [era] até antiética - furar a minha praça aqui no Rio. Se como vendedor a gente já não se dava bem, ele como gerente, um cargo superior ao meu, não ia dar de jeito nenhum.
Eu saí, apesar dele não querer que eu saísse. Ele reconhecia realmente que eu tinha condições de exercer a função ali, mas eu preferi sair pra deixá-lo mais à vontade. Fui trabalhar na Livraria Kosmos.
P/1 – Mas o que era ser um vendedor da praça do Rio? Qual era o seu trabalho, como era a sua função?
R – Não, eu não era vendedor pracista, era vendedor interno. Depois passei a ser vendedor, visitar firmas e repartições, ou seja, vender para o público. Na época, começaram a surgir faculdades particulares, então o MEC exigia um número determinado… Por exemplo, [na] área de História, vamos supor, tinha que ter três mil livros...
P/1 – A universidade, a faculdade?
R – A faculdade, a biblioteca teria que ter três mil livros de História, então eu iria fazer essas vendas pras faculdades que iriam fazer o processo de Brasília. Brasília exigia os livros, então ele procurava as livrarias e fazia o contato, fazia todo o levantamento de livros. Era 90% de importado e 10% de nacional, porque não tinha muita coisa nacional. Era em espanhol, em inglês, mas no nosso caso nós fornecíamos tudo em espanhol pras bibliotecas. Várias faculdades depois viraram universidades, que nós fornecíamos… Eram muitos e vendia muito, não só essa coisa de universidade, mas ao público em geral.
P/1 – Quem eram, por exemplo, os clientes da Mestre Jou?
R – Era mais universitários, médicos, psicólogos. Tinha muita coisa também de economia, mas o forte era psicologia e a área técnica, de engenharia. Depois a Mestre Jou começou a publicar livros, a traduzir aqueles livros que eram muito adotados em espanhol, como História Social da Literatura, da Arte. Depois teve vários livros de Larroyo, História da Filosofia, aí ele foi traduzindo o que tinha muita procura. Ele achou que o caminho era esse, aí foi traduzindo. Quando ele faleceu, veio o filho dele, que trabalhava na editora Danai, na Espanha.
P/1 – Na editora qual?
R – Danai. [Ele veio] achando que poderia publicar dez livros por mês e aí foi uma loucura. A firma foi praticamente à falência, acabaram as livrarias. Tinha uma no Rio, oito em São Paulo.
P/1 – Chamada também Mestre Jou?
R - Tudo Mestre Jou. Acabou tudo, era um grande império que tinha problemas de administração. Era uma grande rede, com pessoas super competentes, mas a direção, depois que o Mestre Jou faleceu, complicou.
P/1 – Como é que se deu então o convite pra você trabalhar na livraria Kosmos?
R – A Kosmos surgiu porque eu estava insatisfeito lá na Mestre Jou, então eu tive contato com - sempre assim - uma pessoa do ramo que indica: “A Kosmos está precisando de vendedor.” Fui lá conversar com o Joaquim, que era o gerente na época e trabalhava há trinta anos lá na livraria.
Aconteceu uma coisa engraçada. Desde garoto ele trabalhava lá. Ele é formado em Física, começou a fazer um mestrado dele em Física, mas o livro falou mais forte e ele largou tudo pra ficar com o livro. Tentou dar aula de Física, mas não houve jeito. Ele só queria ficar… Até hoje ele só faz isso.
P/1 – Ele ainda está na loja?
R – Continua lá...
P/1 – Na livraria?
R – Joaquim Ferreira Marques. [Uma] pessoa fantástica. Foi ele que me levou pra lá e acreditou no meu trabalho, porque acontecia uma coisa assim: quando eu entrei houve um choque. “Pô, vai chegar um negro aqui.” Uma firma de austríaco. Era o seu Walter, que é um doce de pessoa, e na época a direção era do Luís Popi, Luís...
P/1 – Luís?
R – Luís Cipriano Popi. Na época, ele achou que eu não ia dar certo. O Joaquim insistiu e, graças a Deus, eu consegui fazer um bom trabalho lá. Depois até frequentei a casa dele em São Paulo. Mandava a passagem de avião pra eu passar o final de semana lá com ele.
P/1 – Com ele quem?
R – Luís Popi.
P/1 – Que era o dono?
R – O dono. Qualquer coisa que tinha que fazer, um envelope: “Manda o Sílvio. Pega o avião e vem aqui pra São Paulo.” Coisa que poderia vir por um… Na época não tinha sedex, mas poderia ser uma entrega rápida, né?
P/1 – Esse é um ponto interessante, essa coisa do preconceito como negro. Você sentiu isso em outras vezes nesse ramo de trabalho?
R – Não, eu nunca me preocupei com isso.
P/1 – Sei.
R – Nunca houve essa preocupação de achar que por eu ser negro eu não vou conseguir. Não, nunca pensei nisso, sempre falei: “O difícil foi vir do Norte. Já que eu sobrevivi do Norte aqui, então o resto é fácil. Eu vou fazer as coisas naturalmente, é o que eu gosto de fazer, então eu tenho que fazer o melhor daquilo que eu sei fazer.” Em virtude disso, sempre deu resultado ótimo, porque eu sempre atendi bem as pessoas, procuro atender da melhor maneira possível.
Se não tem a gente tenta conseguir, tenta informar. Se eu não tenho, mas eu sei que um colega pode ter, eu digo: “Você vai nessa livraria, tem.” Ou ligo antes pra avisar, “Deixa separado que a pessoa vai passar aí e buscar.” Não tem aquela coisa: “Não vou indicar porque é um concorrente.” Eu quero ver o cliente satisfeito, porque se ele ficar satisfeito ele vai voltar.
“O rapaz me indicou você”, mas ele sabe, ele conhece. Acontece muito isso, [em] determinadas livrarias os clientes criam uma amizade muito forte e só querem ser atendidos por você. Você já sabe como ele quer, do que ele gosta, da maneira que ele vai ser atendido. Tem pessoas que pegam o livro, sentam na livraria - que tem até o sofá onde Drummond sentou-se, ia lá, sentava, pra ver os livros dele - ficam vendo os livros. Deixo à vontade, a hora que cismar são atendidos: “ Ah, tira a nota pra mim?” Acontece muito isso, as coisas funcionam assim.
P/1 – Uma coisa: na livraria Kosmos… Voltando, em que ano que você entra na Kosmos?
R – Entrei em 79.
P/1 – E como é que era essa livraria no contexto da cidade, onde ela ficava e qual era… Ela tinha uma especialidade, era frequentada por quem?
R – Ela ficava na Rua do Rosário, 137. Depois, [por] problema de contrato, ela foi pro 155. Eu a peguei ainda no 137.
Na época que eu conheci a Kosmos, era garoto, ia entregar livro lá, a direção era do Eric Eischner e Walter Geyerhahn, que são os fundadores. Seu Walter ficava mais com a parte de livros raros. Tinha a editora, tem livros sobre o Rio de Janeiro, sobre o Brasil que viraram antológicos; hoje são raridades vendidas a preços absurdos, não pelo preço, mas sim porque realmente representam... A especialidade era livros importados; eu me lembro que nós ficamos à noite abrindo containers, caixotes imensos de livros pra subir… Não dava pra subir tudo de uma vez, era muito livro que chegava. A maioria, 90% [era] de material importado.
Tinha a área muito forte que era de Física, História Natural, Arte… Era assim, a maioria dos livros [eram] importados ou livros publicados de pintores nacionais: na época tinha Di Cavalcanti, Portinari, Tarsila eram os mais… Que eu me lembre [eram] os mais famosos, muitos procurados. Essa área era a área mais forte e tinha a parte do antiquário, que é onde se vendia raridades, onde a Margarete atendia [o político português] Mário Soares quando ele vinha ao Brasil. Geralmente vinha aos sábados, aí vinha bombeiro, segurança, aquela coisa toda. Fechava a livraria só pra ser atendido. Várias personalidades iam lá na Kosmos, quando era a Margarete.
P/1 – E você trabalhava… Qual era a sua função?
R – Venda...
P/1 – Era vendedor da loja?
R – Na Kosmos eu comecei com venda externa, depois eu passei a venda interna. A maioria das pessoas foram saindo, eu fui suprindo. Atendia as universidades e a parte interna também, mais como ajudar as pessoas de lá. Às vezes iam pra almoço, um saía pra almoçar então não tinha ninguém pra ficar. Mas isso já foi mais… Que eu me lembre, quando eu entrei tinha, acho que, 38 funcionários.
P/1 – Nossa!
R – Mas depois foi caindo, chegou a onze e hoje, acredito que deva ter uns dez funcionários, no máximo.
P/1 – Você fica, você trabalha qual período na Kosmos?
R – de 79 a 95.
P/1 – De 79 a 95?
R – A 95.
P/1 – Numa avaliação sua durante esse período, o que mais mudou nesta época, final da década de 70, no ramo livreiro?
R – Até 95?
P/1 – É, antes de você entrar na Da Vinci?
R – Começou a surgir a chamada modernidade. Algumas livrarias passaram a ter cafés, outras [a] diversificar livros e papelaria ou megas… Começaram a surgir as megas, mas as megas… Falam “megalivrarias”; não é megalivraria porque o espaço pra livro é mínimo. Lá se vende CD, computador e outros produtos. Falam: “Tem dois mil metros quadrados de livraria.” Não é livraria. Vende-se revista, qualquer coisa, mas espaço pra livro é mínimo.
Surgiu o advento das megas e começou a…. Uma coisa que eu acho muito engraçada, muitos clientes reclamam comigo isso. As megas preferem… Nada contra, mas eu só acho o seguinte… Querem vendedores universitários. Eu vejo muitos bons vendedores, não vamos citar nomes, mas de uma grande rede… Rapazes sensacionais, eu conhecia muitos, foram mandados embora porque não tinham nível superior ou não estavam fazendo uma faculdade. Não fizeram por opção ou por ‘n’ fatores, mas naquilo que faziam eram muito bons, juntariam uma equipe de vinte que não ia dar um.
P/1 – Mas o que faz ser bom um vendedor de livros?
R – O tempo. O tempo é fundamental, porque todo dia você vai estar aprendendo alguma coisa, todo dia vai estar sendo publicado um livro. O que tem acontecido? Hoje tem as informações: tem o Prosa e Verso, Ideias, Veja, Folha de São Paulo, vários suplementos que tem um caderno dirigido ao livro, de lançamentos. Algum tempo atrás não tinha isso, então você, como era mais novo, você tinha essa informação com os vendedores. Ele que vai lhe levar: “Olha, esse é um livro novo, saiu [sobre] determinado assunto.” Você ficava conhecendo o livro a partir daí. Hoje, com o suplemento, você lê… Você entra na internet, vê lançamentos, tem até um resumo do livro, alguma coisa assim, mas isso é com o tempo.
Se você for arrumar setores, tomar conta de um, vamos supor, de filosofia, você vai guardando os filósofos. Você vai arrumando filosofia da ciência, o que é filósofo da ciência; os períodos, vai separando então fica mais fácil. Todo dia você fazendo isso, você adquire um conhecimento muito grande. Não adianta eu entrar hoje na livraria e querer conhecer, que eu não vou conhecer nem o morto, por mais cultura que eu tenha eu não vou saber. Chego, vou atender uma pessoa com três meses de firma: “Eu quero um determinado livro.” Eu não vou saber, né?
É difícil, isso é dia a dia. Por exemplo, pega lá o Leonardo Da Vinci, são quatro lojas. Cada loja tem mais ou menos uns trezentos metros de livros. Às vezes o cara sabe que tem um livro que tá na… Não tem na sessão, mas tá no estoque. Ele vai dizer: “Tá em tal lugar”, coisa que alguma pessoa nova que entrou na firma [não tem] essa, ainda, capacidade de ver.
(pausa)
P/1 – Sílvio, como é que se deu o convite pra ir trabalhar na livraria Leonardo Da Vinci?
R – É aquela coisa que eu tava falando anteriormente, que no ramo do livro todo mundo se conhece. Havia necessidade da Da Vinci ter uma pessoa que conhecesse livros nacionais. Eu trabalhava na Kosmos e eu conhecia o gerente; conheci a dona Vanna na época que eu ia vender lá, mas era aquela deusa, eu tinha até medo de falar com ela. (risos)
P/1 – Como é o nome dela?
R – Vanna Piraccini. É a antiga mamma italiana: dá bronca, daqui a pouco tá te beijando e fazendo carinho. Eu conhecia, tinha muito contato com Jorge Guge, que era o gerente na época, então ele sempre me via. Na época, eu trabalhava aqui no centro e [aos] finais de semana eu trabalhava na loja do Copacabana Palace, que era uma loja voltada mais para o turista, dentro do hotel.
P/1 – Da Kosmos?
R – Da Kosmos.
P/1 – Ainda existe?
R – Não, acabou.
Ele sempre passava por lá e me via trabalhando, conversava comigo. A gente se encontrava no metrô porque ele morava também na Glória, ele mora até hoje lá. A gente sempre ia conversando. Ele sempre falou: “Vamos trabalhar comigo”, aí eu sempre pedia um salário mais alto. (risos) Eu falava: “Pô, Dona Vanna é brava. Se eu for, vou pra ganhar bem.” Aí ele: “Ah, não. Tá querendo ganhar mais do que eu, assim não pode.”
Um dia, ele falou: “Vem aqui. vamos conversar.” Fui lá, conversamos. Achei que a proposta era interessante, fui ganhar três vezes o que eu ganhava na Kosmos. Mas não foi pelo dinheiro, foi mais pelo desafio de recomeçar. Depois de você trabalhar doze ou dezesseis anos na Kosmos, partindo do zero era uma coisa meia complicada. “Não, vai trocar o certo? Tem aqui dezesseis anos. Pra recomeçar…” Eu falei: “É isso que eu quero, porque se eu ficar aqui eu vou me acomodar.”
P/1 – Mas recomeçar de que forma, se é o mesmo ramo de comércio?
R – Mas aí é diferente. Os clientes eram quase os mesmos, mas a maneira de comercialização era diferente.
P/1 – O que diferenciava?
R – Por exemplo, lá na Kosmos eu atendia vários segmentos, venda externa e interna. Na Leonardo era só interna. E tinha um problema, eu teria que atender mais ao público. Por exemplo, chegava um cliente: “Eu quero um livro nacional.” Como as pessoas cuidavam mais da parte dos importados, ficava toda essa responsabilidade comigo.
P/1 – Na Kosmos?
R – Na Leonardo. Tinha que saber tanto os livros de arte quanto técnicos, quanto qualquer assunto. É impossível você conhecer tudo, aí essa modernidade do computador, coisa que não tinha anteriormente. Acredito que [por] uns 25 anos de trabalho não tinha esse recurso do computador. Ou você sabia ou não sabia, perguntava a quem sabia.
P/1 – E quem sabia, também sabia de cabeça?
R – Tudo de cabeça.
P/1 – Ou, por exemplo, tinha listagem?
R – Não, tudo de cabeça. Algumas… Por exemplo, quando chegava um livro, [se] fazia uma fichinha pro livro. Tinha um arquivo, então você iria lá no arquivo pra ver se localizava, mas era aquela coisa manual, era demorada. As coisas eram muito mais de cabeça. O sujeito fala um autor, você já sabe qual o assunto, onde ele está, onde não está.
P/1 – E qual é o ano em que você entra na Da Vinci?
R – Eu entro em primeiro de dezembro de 95.
P/1 – E onde era, qual endereço?
R – É na Avenida Rio Branco, 185, no edifício Marquês de Herval. São quatro lojas que tem no subsolo. A Leonardo tem cinquenta anos de existência e sempre com a direção da Dona Vanna. Há uns cinco anos que aquilo ali é da Milena, que tá trabalhando com ela agora. Ela era médica e professora da Fiocruz, deixou tudo pra assumir a direção da Leonardo. Dona Vanna já não tá querendo esquentar muito a cabeça. (risos) Quer só ficar fazendo importação de livro, viajando pra ver as feiras no exterior, ver as novidades pra trazer.
P/2 – Silvio, você sabe a data de fundação da Da Vinci?
R – A Da Vinci foi em 1952. Era na… Quando ela foi fundada, foi na [Avenida] Presidente Vargas, acho que 435, se eu não me engano. Como o espaço foi crescendo, a Dona Vanna foi pra… Ela e o marido dela, né? Era lá na [Avenida] Rio Branco. Ficaram com a sala, depois compraram outra sala, foi ampliando e hoje já estão com quatro salas, quatro lojas.
P/2 – Quando você chegou já tinha as quatro?
R – Não, tinha três. Depois compraram a quarta loja, a loja que eu fico atualmente.
P/1 – E no que uma livraria num subsolo do centro do Rio de Janeiro se diferenciava da Kosmos, por exemplo, que era uma loja de rua?
R – A diferença é imensa, pela tradição. Acho que… Ambas são livrarias tradicionais. Apesar da Kosmos ter mudado de dono, hoje quem é o proprietário é o genro do seu… [O] irmão do seu Walter, Estéfano, que é o dono, mas ele era de um ramo de algodão, ele morava na Suíça. A partir [do momento] que o sogro dele morre… Ele é casado com a filha do seu Estéfano, então veio pro Rio pra assumir a livraria, só que ele não tinha ideia dos problemas que tinha a Kosmos.
P/1 – Estéfano era um dos sócios...
R – Um dos sócios.
P/1 – Da Kosmos?
R – Era, o Estéfano...
P/1 – E o Walter?
R – O Walter e depois o Luís Cipriano Popi. Tinha muita dívida, problema com INSS, tributos, isso que atrapalhou um pouco a Kosmos. Na Leonardo já tinha... É Dona Vanna, o pilar da Leonardo é Dona Vanna. Tudo gira em torno dela, apesar dela não gostar disso. Ela nunca fala: “Eu tenho a firma”, ela diz: “Nós”. Ela disse: “Meu filho, eu nunca tenho nada, nós temos tudo aqui.” Ela não diz “meus funcionários”, ela fala “nossa gente”. Ela até tem um sítio em Jacarepaguá, que ela transformou numa colônia de férias pra nós; ela construiu quadra de futebol, fez piscina, então: “A hora que vocês quiserem, podem ir pro sítio.” Ela é a primeira… Quando tem festa, ela vai com todo mundo. Eu não a considero como uma patroa, eu acho que ela é uma grande mãe. Uma pessoa que conhece muito, conhece tudo de livro.
P/1 – Essa relação interessante patrão/empregado… Existe essa peculiaridade no ramo livreiro?
R – Não, principalmente dessa nova geração que está aí. Poucos são aqueles que têm a sensibilidade de reconhecer - eu não digo nem a qualidade, eu digo o talento das pessoas para o livro. Não é qualquer um que trabalha que conhece livro. Precisa gostar muito, muito mesmo.
P/1 – Como é que se dá esse reconhecimento?
R – Pelos anos, porque geralmente funcionário de livraria não muda de emprego todo ano; é uma coisa assim, que vai… Existem funcionários que entraram garotos; estão já com cinquenta, sessenta anos e continuam na mesma empresa.
P/1 – A Da Vinci tem um funcionário mais antigo, você sabe? Quem é o mais antigo da Da Vinci?
R – Os mais novos que tem, quer dizer, os mais antigos estão na faixa de uns vinte, 25 anos.
P/1 – Trabalhando na loja?
R – Trabalhando na loja. Ali no universo de 25 funcionários, mais ou menos, você tem uns oito nessa faixa. São funcionários de muita dedicação, que conhecem tudo da empresa. Dona Vanna sai, Dona Milena sai, a livraria fica na mão deles e continua a funcionar normalmente.
P/1 – Então descreve, por favor, Silvio, como é a loja. Como era quando você chegou e como é hoje? O que mudou?
R – Bom, na época que eu entrei eram três lojas, divididas mais na área [de] Humanas. Tem uma loja que é a parte Culinária - na época era Culinária, Literatura, de uma maneira geral, Português, Francês, Inglês, Alemão e Italiano. Depois houve algumas modificações de adaptação, então passou a ter Teatro, na loja, e Linguística. Já tinha, mas em outra sala, então nós procuramos colocar tudo junto: Teatro, Linguística, Crítica, Teoria, tá tudo junto. Na sala da frente estão Filosofia, Política, Sociologia, Antropologia, Relações Internacionais, os clássicos da PlayArte e Cinema, Música Clássica e Popular. Na sala da frente também foi Poesia, que ficava na sala principal, mas depois passou pra outra sala pra ficar tudo junto. Tem a segunda sala onde tem Design, Moda, Religião, História do Brasil - era um setor que não tinha, aliás, tinha alguns livros, mas ficava espalhado. Procurei juntar todos eles e botar em ordem alfabética, por assunto. Só história do Brasil e história do Brasil, mas pegando o período mais moderno: política, reforma agrária, alguma coisa ligada. Depois eu criei o setor de violência, que está junto com a parte de Sociologia; tem desde Lampião até livros mais recentes, como “Rota 66”. Esses livros sobre violência de favela, criminalidade, “Cidade de Deus”.
P/1 – Ah, que interessante isso. Quer dizer, a própria livraria acompanhou, no fundo… Houve uma produção literária maior sobre esse tema que fez vocês criarem uma parte, foi isso?
R – Com certeza, muito grande. Inclusive mudou… Quer dizer, não mudou o perfil, mas a Leonardo passou a ter mais livros. Não mais, mas eu digo numa quantidade bem maior do que tinha, de livros nacionais. Com o advento da vinda da Milena que começou essa parte de livros nacionais a ter um impulso bem maior. Não só nessa área, mas principalmente de arte, que era um setor mínimo, bem acanhado; foi um setor que teve uma expansão muito grande, os livros de arte.
P/1 – Em termos de loja, você falou dessa coisa de informatizar. Quando você vai trabalhar na Da Vinci, [a loja] já era informatizada?
R – Não. Era informatizada no sentido de encomenda, não do cadastro. Depois passou a ter essa parte de cadastrar todos os livros. Todos os livros foram cadastrados, principalmente os que estão chegando agora, estão todos no sistema. Com a internet também, automaticamente, todo o acervo está registrado pras pessoas acessarem.
P/1 – As pessoas, o cliente da loja ou...?
R – É, o cliente. Tem um computador para os clientes fazerem consulta: ele vê autor, título, o que ele deseja, então ele vai lá e faz a pesquisa dele. Quando ele não sabe, ele pede ajuda, o pessoal mostra o que ele quer realizar.
P/1 – Você acha que esta modernidade, como o próprio cliente poder consultar um sistema, vai fazer com que cada vez tenha menos livreiros e vendedores de livro na loja?
R – Não, ele vai auxiliar as pessoas que estão começando no livro agora. Chega um cliente pedindo determinada informação, ele vai direto no computador pra ver essa informação, mas é uma coisa meio complicada, porque se tem ali cadastrado no nosso sistema, ou tem ou não tem. Se não tem, ele não sabe dizer se saiu, se está esgotado; esse tipo de informação você tem com os vendedores das editoras ou das distribuidoras.
No meu caso, eu faço os pedidos pros vendedores. Eles informam: “O livro está esgotado”, então eu passo para o sistema essa informação. Quando o cliente vier fazer essa informação, ele vai acessar e vai estar lá: “esgotado em 22/10”, qualquer coisa assim e o ano. Ele vai dar uma ferramenta pra auxiliar numa dúvida, não que ele vá substituir o vendedor.
P/1 – Não?
R – Nunca, porque tem aquela coisa do cliente querer ser atendido só por um [vendedor], cria uma amizade. Ele te telefona: “Eu quero esse livro, você manda ele pra mim?” Você já sabe todos dados do cliente, já sabe o que ele quer, você cuida da encomenda dele. Na Leonardo, [há] cinquenta anos, Dona Vanna sabe de cabeça a conta da maioria dos clientes dela. O cliente não sabe, ela diz: “Sua conta é número tal, tal, tal.” Você bota o computador na frente dela, ela quebra o computador. (risos)
P/1 – A dona não usa computador?
R – Não, ela diz que isso é infâmia. “Isso é infâmia.” Quando dá qualquer problema… Às vezes dá, no ligar do terminal, qualquer problema desse. [Ela diz:] “Isso não funciona, eu sou mais minha pata. Sou mais na minha pata mesmo, eu faço tudo aqui rápido.” Xinga o computador, não há jeito dela lidar com aquilo.
P/2 – Silvio, e a venda pela internet, isso vai ter um impacto maior nessa questão do vendedor do livro, do contato com o cliente?
R – Olha, o problema da internet é uma coisa… Veio pra ajudar, mas também veio pra atrapalhar porque muitas pessoas perderam o hábito de frequentar a livraria.
Desde que comecei, por causa das taxas de importação, alfândega, frete aéreo, todas as moedas, para o livro, sempre tiveram um valor acima. Vamos supor, o dólar comercial tá três [reais], o dólar livro tá cinco, então sempre teve essa diferença. As pessoas não conhecem essa parte, então é um susto quando você informa o preço.
Livros importados geralmente são caros, tanto nacionais quanto importados são caríssimos. É aquele choque, então muita gente fica só pela internet, não tem o hábito de ir a uma livraria. Você quer o livro, mas vai lá fazer uma pesquisa, olhar a livraria. Você não vai comprar, mas vai olhar, de repente tem alguma coisa interessante.
P/1 – Mas você acha que ainda existe o cliente que vai pra olhar uma livraria pra ver se tem? As pessoas têm tempo pra isso, ainda, como tinha antigamente...
R – Têm.
P/1 – Ou mudou o perfil do cliente?
R – Não, o que eu vejo muito é o seguinte: muitas pessoas chegam na Leonardo e não imaginam que a Leonardo é aquilo tudo. Não só clientes, pessoas comuns, mas profissionais do ramo mesmo, de outros estados, se admiram com o tamanho, com a quantidade de livro, que é livro debaixo até em cima. As pessoas se admiram: “Pô, que livraria imensa, num subsolo.”
P/1 – Voltando à história do subsolo, você tinha dito que era a tradição da loja no fundo, que...
R – Sim, mas olha só: um subsolo que se fosse um porte de rua, eu acredito que venderia, mais ou menos, umas dez vezes mais, tranquilo. Não tem nenhuma sinalização na rua, indicando que ali tem uma livraria; quem conhece, já sabe, vai. Na Leonardo tem gerações… Já chegou a ter três gerações, o avô, o pai e o filho, frequentando a Leonardo, sendo clientes.
P/1 – Você sabe citar uma família, por exemplo?
R – Tem.
P/1 – Você pode citar uma?
R – Agora não me lembro, mas Dona Vanna com certeza vai te dizer. Ela conhece todo mundo. [Carlos] Drummond [de Andrade] era um cliente - na lateral, comemorando os cinquenta anos da Leonardo, foi feito… Tem um poema que Drummond fez pra Leonardo. Na outra porta tem um outro poema que Antônio Cícero fez pra Leonardo. Esses poemas estão impressos na porta, [do] tamanho da porta. Uma homenagem que eles fizeram.
Drummond era habitual, ali era o escritório dele, como ele dizia. E várias… O Marcelo Itagiba, superintendente da Polícia Federal, está sempre lá. Quando ele vai, sempre vai dar um abraço na Dona Vanna. Itamar Franco também, quando vem ao Rio de Janeiro passa lá na Leonardo. Várias personalidades estão sempre lá.
P/1 – Entrando um pouco nessa coisa do cliente, como é um perfil do cliente? Por exemplo, existe aquele leitor obcecado, tem um cara que compra em todas as áreas? Existem clientes folclóricos na livraria, como é?
R – Tem cliente que compra tanto livro que tem um apartamento pra ter livro. Havia um cliente - ele está vivo ainda - [que] sempre comprava livro. Desde a época da Kosmos ele comprava livro. Tinha um apartamento no Grajaú onde ele guardava esses livros, só que muitas vezes ele nem abria os livros. Ele não levava livro pra casa porque a esposa dele não queria que ele levasse livro, mas era livro que não acabava. Você imagina que eu o conheço há uns vinte anos, a quantidade de livro que ele comprava…
Quando a esposa dele faleceu, ele ficou doente. Ele falou: “Sílvio, vem aqui na minha casa. Tenho uns livros aqui que eu queria que você visse, ver se arrumava alguém que pudesse comprar isso. Eu não tenho mais lugar pra botar.” Pensei: “Bom, [coloca] prateleirazinha lá, né?” Quando eu entrei, embaixo da cama, em cima do fogão, tudo cheio de livro. Aí ele: “Sílvio, o que eu vou fazer com isso? Eu estou sentindo que...” Ele achou que se estivesse se desfazendo do livro, ele estaria morrendo. A dor dele era essa. “Se o livro sair daqui eu vou morrer, então o livro não pode sair daqui.” Eu já tinha uma relação de amizade muito grande com ele; conversando com ele, [perguntei] se ele não fazia pesquisa. Os livros estavam todos embrulhados, então era melhor se desfazer e investir em outra coisa que ele gostasse. Ele fez isso, está vivo, não sentiu. Depois ele me chamou de novo, porque tinha outro apartamento cheio de garrafas de vinhos: “Sílvio, o que eu faço com isso, meu Deus do céu”... (risos)
P/1 – Bebe, lê o livro e bebe vinho. (risos)
R – Mas ele não poderia em virtude da doença. Chamei uma pessoa que gostava de vinho, mostrei a ele. Eles se entenderam. Sei que ele se desfez da adega dele. Eram coisas assim que aconteciam. Comprar o livro, se nem pra abrir...
P/1 – O perfil do leitor carioca mudou ao longo dos anos? A faixa etária mudou, gente jovem lê mais, lê menos? Qual é a sua avaliação?
R – A parte jovem tá lendo bastante, muito, inclusive em outros idiomas, não só em português. Isso é bem provável pelo sucesso da Bienal, apesar de ser uma coisa muito comercial. Acho que não deva ser por aí, deveria ser um evento mais de informação do que de venda, mas tem que vender porque o custo é altíssimo. Eu vejo um público muito grande de jovens, lendo bastante. Isso depende muito da mídia, se for um livro que tiver uma mídia muito grande a repercussão é bem maior. Por exemplo, teve um filme, tem o livro do filme, então há uma procura muito grande por determinado livro.
P/1 – Você que trabalha nesse ramo há muito mais tempo, você pode dizer se se lê mais ou se lê menos agora?
R – Muito mais, não só pelo número de pessoas que tem atualmente, do que... 70, tinha 110 milhões, como diria aquela música. Hoje aumentou muito, muito mesmo. Não só agora porque, de uma maneira geral - não tô falando da Leonardo, tô falando a nível do livro -, não só o livro novo como livro usado porque surgiram muitas livrarias de livros usados. Em Copacabana então, nasceram umas cinco ou seis. É um segmento que tá crescendo muito pelo preço do livro novo; as pessoas não têm dinheiro pra comprar o livro novo, mas compram o livro usado.
P/1 – O livro ainda é uma mercadoria cara?
R – Infelizmente é. Você imagina que pra sair um livro agora do Caco Barcellos [vai custar] cinquenta reais, quer dizer, um quarto praticamente do salário mínimo. Quer dizer, [se] o garoto tá começando, não tem condição de comprar um livro desse.
P/1 – A Da Vinci vende livros usados?
R – Está sendo criado agora um sebo - eu não considero nem um sebo, eu digo mais livros usados, porque são livros que estão [há] muitos anos na prateleira e que estão sendo transferidos pra esse setor, uma sala que Dona Vanna comprou, pra ser vendido a um preço de… Pra facilitar as pessoas...
Dona Vanna também fazia muita doação. O quinto andar tinha muitos livros antigos. Chegava uma biblioteca, uma escola, então ela fazia muita doação desses livros pra esses setores - pra igreja, pra biblioteca da Columbia ela doou várias e várias caixas. Tem livro que não vendeu, vai ter que retornar ao exterior, então só tira a capa, fica o miolo do livro; ela faz doação pras pessoas, melhor que chegar e vender como papel usado. Não tem sentido, não vai ter a mesma utilidade que servir pra outra pessoa.
P/2 – Existe uma distinção entre o vendedor de livro e o vendedor de livro usado? Existe um preconceito ou alguma coisa assim?
R – Não, são muito respeitados porque o conhecimento deles é muito grande. Havia uma diferença uns anos atrás, os sebos não era tão organizados como são hoje; alguns são até informatizados. Tem um sebo, por exemplo, como a Berinjela. Você chega lá, tudo organizado: setores, novidades, os preços certos, vamos dizer assim, então é uma coisa muito boa.
P/1 – O Berinjela é em frente à Leonardo. Há concorrência?
R – Não, o público é o mesmo, mas não há essa concorrência. [Há] uma convivência muito gostosa até, mas não há concorrência, pelo contrário. É até uma coisa salutar.
P/1 – O que mais a Da Vinci vende? Livros, vende outros produtos? Vocês vendem CD, por exemplo?
R – Temos os CDs, mas só de poesia e não são nem muito expostos, ficam mais atrás do balcão. Tem um display muito pequeno. A Da Vinci é só livros, realmente; e o CD é mais pra quando o autor faz o CD e quer deixar consignado. Nós ficamos com ele, mas...
P/1 – Mas o cliente pode ouvir, por exemplo, o CD na Da Vinci?
R – Não, não tem um setor pra você ouvir ou ver um DVD, qualquer coisa assim. Tem uma caixa de DVD da história do Rio de Janeiro, qualquer coisa assim, não tem como a pessoa...
P/1 – Mas ainda há um sofá na Da Vinci, que pode sentar pra ler?
R – O sofá de Drummond continua lá. Aquele é sagrado. Nos cinquenta anos até foi comemorado, foi com um… Fizemos um mural só com as coisas do Drummond, então teve caneta do Drummond, material que ele usava, livro que ele fez à mão e depois foi impresso. Tudo ficou exposto lá na Leonardo.
P/1 – A Leonardo tem editora própria?
R – Não. Dona Vanna, no início, criou uma editora pra livros infantis. Na época, não ia dar certo nunca. Ela tentou escrever na época que imigrou, tentou fazer isso com o marido dela, mas foi a falência. Ela achava que poderia contribuir pra leitura, fazer uma editora infantil, mas na época não tinha condições de fazer isso.
P/1 – Qual é a época que você está falando?
R – Isso pelos anos 50, logo depois que ela criou a livraria.
P/1 – Ela veio de onde?
R – Ela é italiana. Esteve na Romênia, tem família na Romênia. Ela estudou em Sorbonne, depois veio pro Brasil com o marido dela, que era romeno.
P/1 – Você o conheceu?
R – Não. Eu tinha acabado de nascer quando eles fundaram a Leonardo. Eu nasci em 52, ela foi fundada em 52...
P/1 – Mas ele era do ramo de livros também, você lembra dessa figura?
R – Não, ele era médico, mas gostava, tinha o hábito da leitura. Quando ela veio pro Brasil, ela sentiu dificuldade de ter livros para os filhos dela. Ela sempre gostou muito de ler, tinha dificuldades de ter livros no Brasil, então ela começou a importar. Isso teve um sucesso entre os amigos dela muito grande [e] ela resolveu fundar a livraria.
P/1 – Você conhece, um pouco, o porquê desse nome, de ter homenageado Leonardo Da Vinci?
R – Eu acho [que] por causa do humanismo do Leonardo Da Vinci. Ela sempre cita isso, o humanismo, por isso que ela colocou o nome do Leonardo Da Vinci. Como ela é também, muito… O que ela faz pelos funcionários é coisa de… Ela faz compra de um terreno, deu dinheiro pro cara construir a casa dele; o outro estava comprando a casa, ela comprou a casa pra ele. Uma coisa assim, ela não espera retorno, não espera gratidão. Ela sempre diz: “Isso é nosso” Se alguém fala: “Eu tenho”, ela sobe no teto e desce. “Meu filho, você não tem nada; nós temos alguma coisa.” [É] o hábito da pessoa falar “Eu pego o livro, eu tenho.” Ela diz [que] nunca quer… “Nós temos.”
P/1 – Em termos de embalagem do produto livro, o que mudou durante esses anos todos? Como é a embalagem da Da Vinci?
R – Ah, mudou bastante. Na época, você embrulhava no papel, não tinha sacola. Hoje são sacolas personalizadas, né?
P/1 – A Da Vinci tem sacola?
R – Tem.
P/1 – Como é? Você consegue descrever, por favor?
R – Ela é na cor creme, com os caracteres da Leonardo.
P/1 – Que é um caracter diferente também?
R – Isso, aí tem o logotipo. A cada ano, por exemplo, os marcadores… Ela criou um marcador. A cada remessa de marcador ela faz uma imagem diferente do Leonardo, mas sempre com a reprodução do Leonardo Da Vinci em vários períodos.
P/1 – Quer dizer, quem compra um livro sempre leva um marcador?
R – Sempre leva um marcador. Esse ano já mostra… Tem uma régua de um lado, do outro os dados da Leonardo e vem citando alguma coisa do Leonardo Da Vinci.
P/1 – E na sacola também tem a imagem, o retrato do Leonardo?
R – Não, essa que foi feita agora não...
P/1 – Ah, não tem mais?
R – Não, a anterior tinha...
P/1 – Então conta, o que você lembra das embalagens da Da Vinci, como é que eram?
R – Olha, o que eu peguei já foram essas bolsas. Agora fizeram uma bolsa menor.
P/1 – De que material, Sílvio?
R – De plástico, sempre de plástico. Pra comemorar os cinquenta anos, fizeram em tipo de cera o busto do Leonardo Da Vinci, pra presentear os clientes.
P/1 – Como um busto de cera, um bustozinho, pra dar pros clientes?
R – É, pra dar pros clientes, com a imagem do Leonardo: barba, aquele cabelão tradicional. (risos) Ela criou há pouco, há uns cinco anos a Piccola Da Vinci, que é uma filial pra atender na zona sul.
P/1 – Onde?
R – No shopping da Gávea. É uma livraria já moderna, não com o estilo da Leonardo aqui do centro, mas um perfil mais moderno.
P/1 – O que é um perfil moderno de livraria, Sílvio?
R – Até pelas próprias instalações. Já entra um projeto arquitetônico. No caso da Da Vinci foram feitas as madeiras, as prateleiras até o teto. Há pouco tempo é que pintaram as prateleiras, deram um ‘layoutzinho’. (risos) Estão colocando as placas, antes não tinha isso. então está sendo feita essa parte. Era tudo assim: a prateleira branca, o teto preto. Agora mudou, as prateleiras agora já são tipo caramelo, o teto já mudou de cor pra ficar mais claro.
Dona Vanna odeia essas modernidades. (risos) Ela prefere ainda tradicional e as coisas funcionam como eram antigamente. Agora que é obrigatório ter máquina pra emissão do cupom fiscal, antes não tinha isso, era feito tudo na mão.
P/1 – Era o quê, notinha?
R – Notinha fiscal, e tem os clientes mais tradicionais que tinham contam. Alguns antigos ainda têm conta, né?
P/1 – Como é que funciona o sistema de conta e quem é que ainda tem conta?
R – Ah, várias pessoas. Você pega um livro, vai comprar um livro; tem a pasta com o seu número da sua conta, então é anotado o dia que você pegou, o valor. Se for livro nacional, fica na moeda de origem, e a outra parte onde é anotado o livro. Você vai pagando aos poucos, é com crediário.
Quando a Leonardo Da Vinci pegou fogo uns anos atrás - acho que em 69, 70, se não me engano -, muitos clientes chegaram: “Dona Vanna, tô lhe devendo tanto.” Ela não tinha como cobrar ninguém, nem sabia quanto que cada um tava devendo. Valia a consciência de cada um. Vários clientes foram lá e pagaram a conta a ela.
P/2 – Esse ramo não sofre com a inadimplência, seria uma ilha de bom pagador?
R – Olha, essa parte não. As pessoas ficam tão… Há pouco tempo tinha cliente que estava devendo até um ano, aí Dona Vanna ligava, nos outros dias eles iam lá e pagavam. O problema - tem acontecido algumas vezes, não muitas - é cheque, problema de cheque que volta, mas a inadimplência não é muito grande, é mínima.
P/1 – Quando é que começa a se pagar livro com cheque, você sabe?
R – Desde muitos anos, sempre se pagou com cheque...
P/1 – Quando você trabalhava na Mestre Jou, por exemplo, se pagava com cheque?
R – Era mínimo, mas sempre se pagava. Era mais dinheiro vivo mesmo. Cartão de crédito não se usava, é mais de uns vinte, 25 anos pra cá...
P/1 – Você compra muito com cartão, livro?
R – Muito, a maior parte é com cartão...
P/1 – Ah é?
R – Somando o pagamento diário de pagamento à vista e de cartão, que não deixa de ser uma venda a vista, mas pra diferenciar é 60%, 70%.
P/1 – Mas ainda existem esses clientes novos que podem ter suas fichas individuais, pegam os livros e vão pagando depois ou não?
R – Não, não.
P/1 – Não se tem mais clientes assim?
R – Só muito antigos.
P/1 – O pessoal da velha guarda?
R – É, ou então que vem de geração, né, o avô, o pai. Geralmente, ele entra com o número do...
P/2 – Conta hereditária. (risos)
R – Hereditária, aí tem A, B ou C. (risos)
P/1 – Ah é?
R – Tem essa parte, mas novos não tem, porque eles preferem agora trabalhar com cheque por problema de controle. Como nada disso está informatizado, então não tem como se lembrar; só quando faz uma varredura, pega pasta por pasta e vai verificar quem pagou, quem não pagou.
P/1 – Essas últimas mudanças de moeda… Teve uma época, uns dez anos atrás, que a gente sofria muito, as mudanças constantes - real, cruzeiro, cruzado. De que forma isso refletia no mercado de livros?
R – Muito. Por causa dos preços, a moeda ficava muito instável...
P/1 – Instável?
R – O livro que estava oito reais no dia seguinte já ia pra doze, porque você comprou um livro, mas estrangeiro, você tinha que fechar o câmbio. Você não recebe o livro e paga na hora, você tem um tempo pra pagar; nesse fechamento de câmbio, se a moeda subiu, muitas vezes você tinha prejuízo, porque se você comprou o livro a dez, vendeu a doze e vai pagar vinte. Isso quebrou muita gente, muita gente ficou inadimplente com o fornecedor do exterior.
Tinha vários colegas meus que [estavam há] muito tempo no mercado [e] resolveram abrir um negócio pra eles. Com esse negócio do câmbio, quebraram muitos, ficaram devendo no exterior.
P/1 – Você já pensou em abrir uma livraria?
R – Já. Aliás, já tive uma livraria no início, com mais dois colegas que trabalhavam comigo na Mestre Jou. Foi de uma faculdade que nós montamos a biblioteca, e é até hoje o deputado Mesquita Bráulio. Era em Jacarepaguá e ele deu um espaço: “Vocês ficam aí.” Não cobrava nada pra nós, cedia um espaço grande.
Nós montamos a livraria. Saía daqui à noite, ia a São Paulo. Chegava de manhã, pegava os livros que eram adotados que não tinha no Rio, que o professor tinha que dar aula então vendia pra turma. Depois as coisas foram evoluindo, [houve] problema de divergência de mentalidade, eu preferi sair e deixei os dois.
P/1 – Tinha nome?
R – Tinha. Não, na época não chegou a ser registrado firma, não botamos nome na livraria. Depois que eu saí, eles legalizaram. Botaram o nome de Bizu, depois o rapaz vendeu e foi pra...
P/1 – Bizu é ótimo! (risos)
R – Foi pra Campo Grande trabalhar lá perto da livraria da faculdade Castelo Branco.
P/2 – O que ficou marcado nessa diferença entre empregado e agora patrão, nesse período?
R – É o tal negócio, aquela mentalidade. Eram três, tinha eu, o Jorge e… Como é o nome do outro, meu Deus do céu? Acho que é Aurélio. Eu e o Jorge queríamos trabalhar, nossa finalidade era da coisa dar certo pra gente ganhar dinheiro e ir em frente. O Aurélio não, queria ficar namorando as meninas na faculdade. (risos)
Não tinha cabimento eu deixar minha família aqui, sair de noite pra viajar a noite inteira, pegar um [ônibus da viação] Cometa, chegar em São Paulo - eram oito horas de viagem, não era como agora, cinco ou seis horas, no máximo -, voltar no dia seguinte, sem dormir, pra entregar o livro [às] seis horas da noite pros alunos. Enquanto nós dois estávamos trabalhando ele estava só namorando, aí eu falei: “Não tem cabimento uma coisa dessa.” (risos) “Não, chega!”
P/1 – Você já se envolveu com cliente de livraria?
R – Não. (risos) Não tem como. Tem até isso, mas nunca coincidiu comigo não.
P/1 – Pra gente finalizar eu queria que você me falasse um pouco da sua família, se é casado, não é, se tem filhos?
R – Fui casado, tenho três filhos...
P/1 – O nome deles, por favor?
R – Joyce, com 28 anos, faz enfermagem. Tem o Fábio, que é meu terror, e tem a Kênia, com doze anos, isso separado. As coisas acontecem. (risos) Não programo nada, deixo acontecer. “Amanhã vou fazer isso, depois eu vou fazer isso.” A única coisa que eu programei foi a entrevista de hoje mesmo, fora disso… (risos)
P/1 – Tem tempo pra lazer, pra curtição?
R – Ah, tem. Gosto muito de teatro, de ir a show. Gosto muito de ler, tem sempre cinco ou seis livros na fila pra ler.
P/1 – O que você está lendo?
R – Eu tô lendo agora a memória do Luiz Felipe, o rei da Espanha. Eu gosto muito de História, então gosto de ler mais essa parte de História.
P/1 – Seus filhos leem?
R – Meu filho lê, tá lendo muito gênero policial. “Estação Carandiru”, Caco Barcellos, essas coisas meio policiais ele gosta de ler muito. Minha filha também lê, mas eu tenho que forçar uma barra.
Eu acostumei os dois a ler da seguinte maneira: quando eles iam dormir, eu ficava lendo Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes, tanto é que minha filha sabe Drummond de trás pra frente, de frente pra trás, de tanto que eu li. (risos) Eu ficava falando sempre assim pra eles: “Vamos ler.” Muito livro de historinha, achava melhor ler um livro de Drummond pra eles, então ______ poesia. “Lê de novo, pai.” Eu lia de novo, então por isso que eles gostaram de ler.
P/2 – Silvio, desculpa interromper. Você é um cliente exigente na hora de fazer compra de livro? Você quer aquele atendimento que você dá, quando você vai comprar um livro, ou você não compra _________?
R – Não, compro até. Eu compro mais em livros usados porque eu gosto mais da parte de História. Por eu saber a diferença de preços, compro muito da Berinjela, porque é em frente. (risos) Eu chego lá pro Daniel: “O que chegou de História?” Sei que ele recebe lançamento e compro os livros lá, adoro. A primeira coisa que eu faço quando vou em algum lugar ou algum outro estado é visitar livraria. Ver como é, como funciona, conhecer outros livreiros, ver o que tá se fazendo de novo.
P/1 – Na Da Vinci, por exemplo, você pode pegar um livro e levar pra casa ler?
R – Pode.
P/1 – A Dona Vanna não se importa?
R – Por exemplo, se eu quiser um livro na Da Vinci eu tenho o preço de custo. Se o livro sai líquido pra Leonardo por quinze reais eu vou pagar quinze reais. Se quiser botar na conta, paga quando puder. (risos) Um dia que ela estiver meio invocada ela sai: “Desconta dele.” (risos) Mas é assim que funciona.
[É uma] coisa muito boa trabalhar na Da Vinci. Acho que foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Talvez não pudesse ser antes como o Jorge, o antigo gerente, queria, mas eu acho que foi o momento certo. Aprender muita coisa com a Dona Vanna, de livro, de conhecimento, de várias posturas, vícios que se tem. Ela [diz]: “Meu filho, não é assim, é assim”, então você vai aprendendo, assimilando. Você aprende com os clientes, os clientes trazem a informação: “Saiu um livro assim, que é bom vocês terem.” Essa troca de informação é muito importante.
P/1 – Sílvio, então pra finalizar, você tem alguma coisa… Se você pudesse mudar a sua trajetória de vida você mudaria alguma coisa?
R – Em relação a livro?
P/1 – Em relação à sua vida.
R – Eu acho que a única coisa que faria é não ter parado de estudar, porque isso está me fazendo um pouco de falta, tanto é que eu voltei a estudar. Não por necessidade de trabalho, mas você vai querendo conhecer mais as coisas, você vai se aprofundando, então quer saber mais. O estudo é fundamental pra tudo isso.
P/1 – Você está concluindo agora o quê, o segundo grau?
R – Já concluí. Vou fazer o vestibular agora, acho que vai abrir em junho pra UERJ. Eu pretendo fazer História.
P/1 – Por quê?
R – Eu gosto, sou fascinado por História, então a maioria dos meus livros é sobre História. “A História do Brasil”, uma personalidade que fez história… Geralmente tem alguma coisa ligado a História. Gosto muito dessa área, vamos ver. Tanto gosto, que eu falei: “Vou fazer a faculdade pra ver.” (risos) Gosto de ler, gosto de escrever, isso é fundamental pra mim.
P/1 – Uma pergunta de avaliação: o que você acha desse projeto de memória do comércio da Cidade do Rio de Janeiro e o que achou de prestar um depoimento pra esse projeto?
R – Olha, quanto ao projeto, eu achei a ideia excelente porque acho que as coisas não pode ficar só no conto oral. Acho que as coisas têm que ser documentadas pras gerações futuras. Ver como era, quem começou. Aqueles pioneiros dos livros, eu acho que merecem estátua em praça pública. Batalhar pra ter uma livraria, pra trazer informação, formar gerações é muito importante, eu acho que isso é fundamental mesmo.
P/1 – E o que achou de falar sobre a sua experiência nesse ramo de livros nesses últimos… Quase quarenta anos?
R – Sinceramente, não sei se deu pra acrescentar alguma coisa. (risos) Espero que tenha dado pra dar uma ideia do que realmente eu vivi. Não a experiência a nível de que foi o comércio, seria muita pretensão minha dizer o que foi o comércio, mas o que eu vivi.
Acho que foi uma experiência muito boa, principalmente pra um garoto que não tinha… Fui trabalhar no livro sem saber o que era trabalho. A ideia inicial era ter um livro pra ler pra fazer um trabalho na escola. É um livro que marcou muito mesmo, então isso pra mim foi o fundamental, não foi o: “Ah, vou trabalhar numa livraria”, sabendo o que era trabalho, sabendo o que era uma livraria. Eu não tinha ideia. A primeira vez que eu entrei numa livraria foi justamente pra ver esse livro e pra pedir emprego - na realidade, eu pedi pra trocar o trabalho pelo livro, essa é a parte fundamental. Espero sucesso pra esses projetos e que não parem por aí. Que venham outras, mais pra frente.
P/1 – Então muito obrigada, Sílvio...
R – Obrigado vocês.
P/1 – ...pelo depoimento, foi ótimo.
Recolher