Foi sozinha, em casa mesmo, que eu tive meus filhos. Sentia o aperto que dá quando está pra vir e tinha. Agora, quando a placenta ficava, era aquele sacolejo na barriga pra poder tirar a placenta. O parto era assim naquela época: fervia água e já deixava pronta. O ferro já estava no fogo. Limp...Continuar leitura
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resumo
Neste depoimento, Dona Sebastiana nos conta sobre a raiz de seus pais e o trabalho de subsistência na roça desde criança. Nos fala sobre a situação de sua cidade, Juruti - PA, seu casamento e alguns elementos de sua comunidade, como as festas, a igreja e o cemitério. Sebastiana nos fala então de uma onda de malária que assolou a região, sobre a vida de seus 10 filhos e como é ser mãe, além de falar sobre os hábitos alimentares do Pará.
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Projeto Memória de Brasileiros
Depoimento de Maria Sebastiana Alves Vieira Marialva
Entrevistado por Karen Worcman e Thiago Majolo
Juruti, 23 de abril de 2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV_112
Transcrito por Tânia Lima
R — ...ele trabalhava pra fora. Morávamos nós duas e...Continuar leitura
Projeto Memória de Brasileiros
Depoimento de Maria Sebastiana Alves Vieira Marialva
Entrevistado por Karen Worcman e Thiago Majolo
Juruti, 23 de abril de 2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista
MB_HV_112
Transcrito por Tânia Lima
R — ...ele trabalhava pra fora. Morávamos nós duas em casa com mamãe. O resto se bandeou pra um lado e pra outro... e ele trabalhava lá fora. Bebia...
P/1 — Como ele chamava?
R — João. João da Cruz Marialva.
P/1 — E a sua mãe?
R — Raimunda Euziel
P/1 — Eles já eram dessa comunidade?
R — Não. Eles vieram pra cá.
P/1 — A senhora se lembra de onde eles vieram?
R — Minha mãe era do Paraná e ele morava aí mesmo nessa região. Era deles essa região toda.
P/1 — Ah, a terra era deles?
R — Sim, era onde eles moravam. Aí, começaram vendendo, vendendo, vendendo e não ficaram com nada. Todos ou bandearam ou morreram e ficou ele. Então, ele trabalhava só pra fora, com essa gente aí pra fora.
P/1 — O que ele fazia?
R — Roçava.
P/1 — Mas não era pra casa dele?
R — Não, não Era como a gente fala, era lambaio do outro, né? Ficávamos em terra firme, depois íamos
pra várzea; deram um gado pra ele tratar, e também sarrava campo.
P/1 — O que é sarrar campo?
R — Era o que ele fazia, roçava o campo para o pessoal, para o patrão dele lá fora, e pra arrumar garrafa de bebida. Era uma semana que ele levava de bebida...
P/1 — Ele bebia?
R — Bebia. Mas era assim, ele levava uma garrafa que durava uma semana. Não é como agora, que uma garrafa vai rápido... termina rápido. E aí, quando foi uma época, ele veio, fez um rancho, dividiu conosco e foi morar pra fora. Ele vinha sábado e voltava segunda-feira. Teve uma vez que deu nele uma vontade de tomar, aí levou uma garrafa de ¬¬¬¬¬¬¬bebida. Quando chegou lá, ao invés de agarrar a garrafa da bebida, agarrou o querosene: foi o fim dele isso. Quando foi a noite, deu uma reação nele. Como não tinha sanitário, fazia onde dava. Inclusive, tinha dado uma chuva, e isso foi o fim dele, porque pegou uma doença, e foi fatal, né? Não levou nem dois dias e ele morreu.
P/1 — Mas ele estava na sua casa quando aconteceu isso?
R — Não, ele estava lá fora. Trabalhava lá pra fora e ficava pra lá mesmo, só vinha de sexta-feira pra casa. Ele vinha pra cá e nessa luta a gente ia. Depois que ele morreu,
ficamos com um irmão meu, que já morreu também. Agora, somos apenas nós três: essa aqui, a comadre Raimunda que mora ali, de fronte a mim, e só.
P/1 — Eram quantos?
R — Nós éramos dez. E assim foi, assim nós fomos crescendo...
P/1 — Mas, vocês viviam do quê?
R — De alguma coisa que tinha em casa. Porque naquela época, nós não tínhamos roça, também não tinha quem a fizesse, né? Aí, vieram os irmãos; eram dois: o Ardino e o Gato –
era assim que chamavam o Gaudêncio. Ele morava conosco, fazia casas, pescava. Depois arrumou marido pra filha, a finada Luzia, e assim
estavam todos conosco. Vinham, em tempo de cheia, os parceiros que moravam ali também, era o Domigos Gomes e era o Domingos Vitor que tinha uma família ali também. Nós parávamos tudo. Não tinha briga naquela época, não é como agora que, se você encostar aqui, já vai ter paulada. Nessa época, não, Graças a Deus
P/1 — Vocês se davam bem?
R — Se a gente se dava bem? Sim. A casa ficava cheia. Quando era aquela hora da noite, as muriçocas aqui já rondavam a casa, e fazia aquela “fumaçada”, espanava tudo aí, fechava novamente... mas, assim, nós amanhecíamos naquela luta e nós fomos indo assim.
P/1 — Mas nem roçada de mandioca?
R — Não, não, não tinha. Depois já de um certo tempo é que fomos fazendo, porque mato a gente tinha, toda área da casa tinha. Meu irmão é quem foi fazendo, aí
já era outra coisa, né? Isso, foi outra coisa que já deu mais um progresso pra gente, já não comprava, já não andava de carreira pra casa de farinha e outras coisas. Depois disso, já fomos em frente e foi diminuindo aquela carga grande que a gente tinha nas costas. Era mamãe que fazia tudo. Como ainda não tinha a roça, ela ia embora daqui pra Baixa da Serra... Conhece o curuá?
P/1 — Não.
R —
É uma palheira, né?
Ela juntava o curuá que caia, e aquela massa, que era tão bonita, colocava pra secar. Aí, nós fazíamos o mingau com a farinha.
Foi só depois que apareceu a tal da farinha espanca bode, que já era uma farinha seca. Ela agarrava, já tinha uma tigelinha assim, colocava no fogo, jogava água, então, peneirava e colocava pra cozinhar pra poder comer.
P/1 — Essa era a principal coisa que a senhora e todo mundo comia? Era farinha?
R — Sim.
P/1 — E o curuá?
R — O curuá era para o mingau...
P/1 — O mingau tinha leite também?
R —
Tinha a castanha, o leite da castanha. Ela trazia a castanha, secava aqui, socava pra fazer o mingau que a gente tomava, e assim a gente ia levando.
P/1 — A senhora ficava com fome? A senhora se lembra disso?
R — Ficava sim, mas ochê Mas aquilo passava Já estava acostumada Não é como agora, que a gente vê um peixe e acaba passando mal. (risos) Naquela época não, eu estava acostumada com aquilo. E assim a gente ia levando.
P/1 — E nem o peixe dava pra pescar?
R — Tinha o peixe, mas não tinha quem fosse pescar. Depois que chegou essa gente, aí modificou. Eu tinha um cunhado, chamado Dangil, que ainda é vivo, lá na Maloca, ele ia pescar. Aí, foi outra coisa já Porque os meus irmãos nunca se dedicaram a pescar, só depois que arrumaram mulher é que foram pescar, e isso foi outra coisa. Mas cada um já tinha a sua parte noutro canto. Fomos ficando só nós, saiu todo mundo.
P/1 — Ficou quem?
R —
Antes disso, fiquei só eu e a mamãe. Aí, nós começamos andando de um lado para o outro, porque não tínhamos casa, tinha caído a nossa casa. Foi justamente nessa época em que eu já tava grande e arrumei "esse aí". Nós começamos andando de um lado pra outro, depois deram umas terras que não tinha como não querer ir pra lá, então fizemos uma casa ali pra baixo mesmo.
De lá é que nós fomos pra parte onde nos deram pra fazer a casa novamente. E assim nós andávamos...
P/1 — Mas andava como? Como é ficar andando? Me explica melhor?
R — A gente andava porque não tinha casa, né? Então, íamos ficar na casa de outros parceiros. A gente encostava porque sempre tinha parente, sempre tinha irmãos, íamos pra lá, pra casa deles, já pra pousar mesmo com eles. Mas, depois, como já tinha filhos, já não me dava muito bem, não.
P/1 — Ficava quanto tempo, por exemplo?
R — Ficávamos uns tempos, uns anos, até arrumar para onde ir. Depois, nós fomos lá pra baixo, lá pra onde o meu filho estava, pra lá tenho todos esses filhos. Eles trabalhavam pra Justina, trabalhavam na mandioca.
P/1 — Quem é a Justina?
R — É uma aparagem que tem em uma comunidade pra lá chamada Justina. Não sei se vocês passaram por lá, mas tem a comunidade chamada Justina de um lado e a Maloca de outro. A gente trabalhava pros lados da Justina. O Ardino fazia roçado, a gente ia
trabalhar, a Maria ia também com o marido dela, e assim, a gente fazia o plantio: plantava cará, plantava batata, a gente fazia pajiroba, tinha banana, plantava arroz. Assim, quando não tinha o que comer, essas coisas já davam pra gente se manter, sem contar que a gente ainda fazia a farinha. Desse jeito, foi endireitando mais. Mas sempre saindo de lá pra fora, pra juta. Desfibrava a juta...
P/1 — A senhora que...?
R — ...Sim. Lavava a juta, capinava, plantava, limpava, nossa profissão era isso. Era um lugar horroroso, mas o que podia fazer? Tinha que trabalhar, né? E agora, o que acontece com esses jovens daqui, eles não sabem nem o que é isso. Já os que estão aparecendo na roça não querem mais trabalhar. Vai passando de um lado para o outro, um vai roubando outros... a gente cria galinha, cria pato, e
eles quando tem fome chegam naquela hora e já querem comer (risos), mas nem ajudam... mas fazer isso aqui, trabalhar, não querem mais, não. Naquela época não, era diferente. Ainda nessa época, a minha mãe morreu, mas eu continuei. Os meus filhos eu agarrava, mas agora ficam tudo. Eu tinha filho de todo tamanho, os maiores já estudavam ali. Enquanto isso, eu levava as roupas deles tudo de caminhão pra lá, quando era de tarde, vinham berrando igual aos bezerros (risos). A gente vinha embora pra casa e, assim, chegavamos seis, sete horas da noite do trabalho.
P/1 — A senhora só chegava seis, sete horas da noite? O que a senhora estava fazendo, a juta ou...?
R — Farinha. Da juta, seis horas nós já chegávamos em casa.
P/1 — Mas deixa eu entender, primeiro a senhora trabalhou muito na juta?
R — Em todos os dois.
P/1 — Junto?
R — Na juta e na roça.
P/1 — Como que era? Quem era que fazia a farinha e quem fazia a juta?
R — Nós mesmos
P/1 — Mas no mesmo dia fazia as duas coisas juntas?
R — Não. Tinha época que fazia a farinha e tinha época que fazia a juta. Ia fazer a farinha pra continuar o trabalho. Porque a gente não podia passar sem comer, né? Aí, de lá mesmo, fazia a farinha e levava pra fora. E tinha que ficar em casa também. O passadio nosso era esse. Eu ia
buscar farinha ali, da Justina. Vinha de lá e nunca teve quem dissesse "eu vou te encontrar", não A gente mesmo, muitas vezes, não levava lamparina, vinha no escuro, até chegar em casa, com mais de um arqueiro de farinha. A medida agora é saca, como "aquele ali" óh, mas naquele tempo não, era “arqueiro” de farinha.
P/1 — Como era?
R — Era uma latada. Uma lata dessas de “queirósinho” era meio arqueiro de farinha. As duas eram arqueiros de farinha. E agora, não, agora já é saca. Três latadas parecem que leva uma saca.
P/1 — E levava onde, na cabeça?
R — Não. Colocava na saca, colocava no paneril, e vinha embora.
P/1 — E quem era que vinha andando? Era a senhora...
R — Éramos nós mesmos Não tinha esse negócio, não. Quando começamos, era tudo no ralo "Butava" dez panelas de mandioca na água, ou cinco, conforme a semana, né, e aí, olha... no ralo, no tipiti. Ia buscar lenha e não tinha parceria pra dizer, "fulano vai buscar lenha", não. Nós mesmos deixávamos o tipiti, colocava um pau de atravessado, colocava mais um peso e ia buscar lenha. Enquanto uns espremiam, outros estavam ralando e já ia torrando. Era assim o trabalho nosso.
P/1 — Mas e as crianças, ficavam onde?
R — Ah, rondando lá mesmo Também, não tinha outro jeito. Quando nós íamos plantar, e o Galdino não estava, a gente levava a rede, amarrava lá na beira do roçado e ia plantar, quando não, era capinar. Os meninos ficavam lá e quando chorava a gente ia ver (risos). E assim era a nossa luta Pra capinar era do mesmo jeito: levava a rede, pendurava lá, amarrava no pau e tratava.
Agora não, agora os jovens não querem mais, principalmente por causa do negócio da unha, né, que suja, quebra. Aí, pronto Aí, o cabra aqui vai se lascando. Vou trabalhar pra população comer, tirar aquele dinheiro e
comprar as coisas pra comer. Eles não sabem e não querem trabalhar com a mandioca porque ela fede. A mandioca quando está mole, ela tem um cheiro né, e aí, já não querem por causa disso, porque não sai da mão.
P/1 — Ela gruda?
R — Gruda. Aquele cheiro gruda, sim. Agora, do jeito que a gente tá fazendo, já não deixa mais a massa amolecer. De um dia para o outro já está raspando tudo, pra colocar em outra vasilha. Só no outro dia que você vai torrar pra não azedar. E é assim que a gente tá fazendo.
P/2 — Esse ralo era de lata?
R — Era de lata, sim. Quando a mandioca escapulia, vinha “até aqui” olha Tudo isso aqui cortado, ainda aparece, olha o ralo enterrava o dente na unha da gente aqui. Tudo isso aparece até hoje em carne viva Mas, a gente ia de novo, né, porque não tinha outra coisa. E agora, não tem mais quem faça isso. Não tem mesmo. O outro pessoal só está andando bem equipadinho, né? Não quer saber mais dessas coisas.
P/1 — Mas quem que não quer saber mais?
R — Toda essa população Não chame pra mandioca, que nem cuidar do peixe eles sabem. Aí tem uns peixinhos, uns pacuzinhos, que já vêm assim, tudo pra retalhar, mas eles não sabem fazer Agora, põem frito aí que eles comem. É assim a situação que agora está se formando Só gostam mesmo do “venha a nós” que as outras coisas, não dão mais.
P/1 — Quando que isso foi mudando, hein, dona Sebastiana?
R — Mas agora, vamos dizer, nessa busca... no Lula.
P/1 — Foi aí que mudou?
R — Foi aí que mudou, que a população não fez mais nada.
P/1 — Por causa da Bolsa Família, a senhora acha?
R — Por causa da Bolsa Família. O pessoal estava esperando trabalhar pra acrescentar aqueles produtos que faltam, né, mas eles não querem Quando acaba aquilo,
aí começa, eles vão em busca daquilo que falta no fiado, né? Depois quando recebe o dinheiro é só “vupt”, não dá pra nada, porque tem mais dívida do que outra coisa. Muita gente compra tudo, inclusive compra a farinha, sabem que a carne ali do açougue ainda “fia” pra gente,
mas o peixe não. Se você ficar devendo, o cara já vem cobrar. E é assim, a população que está decorrendo agora é isso. É o problema que tá acontecendo é que a população não quer mais trabalhar, mas ela come. Eu não, eu vim lá de fora, os meus filhos já estudavam aqui, um dos filhos. Eu sei Eu sei que é um problema mesmo quando o filho falhava na escola, mas eu vinha de lá, de fora, e ia pra lá pro trabalho, levava dois dias fazendo farinha e a gente ia então. Era só eu com eles que morava lá fora. Então, eles tinham que ir comigo, o que ia fazer?
Chegava a época da reunião da escola, mas é claro, eu sei, eu sabia que eles não podiam faltar, mas não tinha outro jeito, éramos só. Fiquei só eu com esses dois filhos, aquele que foi daqui e mais outro, o Galdino. Era só eu e eles que morávamos lá fora. Então, eles tinham que ir comigo, o que ia fazer?
P/1 — Aí a senhora não levava pra escola, levava pro campo, é isso?
R — Eu levava pra lá por dois dias. Falhava a aula, claro que falhava Aí, ralhão, pegavam na cara, que não era só eu. Nós comíamos, tinha que comer, não tinha de onde vir, não tinha quem fizesse. E agora não Agora não querem mais saber disso
P/1 — Mas, dona Sebastiana, vamos voltar àquela época em que a senhora estava casada com o senhor Galdino. Como que era esse dia-a-dia? A senhora já tinha todos os filhos, moravam na casa? Ele fazia o que e o que a senhora fazia? Melhorou a vida quando vocês estavam juntos com os filhos?
R — Piorou.
P/1 — Por quê?
R — Porque ele bebia muito. Bebia muito e a briga era certa.
P/1 — Quando ele voltava? Ele bebia o quê?
R — Cachaça. Era assim a situação: essa filha mais velha que eu estou te dizendo que mora lá pra baixo, em frente ao Galdino, ela era magrinha, mas, quando ela cresceu mais, era ela quem me ajudava.
P/1 — A senhora tinha os filhos e ele não ajudava, não fazia roça?
R — Ele fazia. A verdade é que ele tinha a gente que fazia por ele, né? A gente fazia, mas muitas vezes não capinava. Assim a gente ia com as brigas pra frente. Ele ia pescar, e pescava, mas depois de certo tempo, já não deu mais.
P/1 — Onde que ele arrumava o dinheiro para beber?
R — Ah, da aposentadoria. Ficou assim, defeituoso dos olhos. Ele estava trabalhando para uma comunidade ali, pra fora. Fazia roçada, inclusive essa foi até para o finado Hildebrando.
Foi num sábado desses, ele tava limpando e a mulher disse "não vai",
mas ele disse “o que eu faço hoje, não faço mais segunda-feira”. Veio lá do roçado, derrubou o pau que estava bem na beirada, derrubou um que a casca estava saindo, aí, foi olhar pra cima. Na hora em que ele olhou, a casca veio despencar bem no olho dele, entre o preto e o branco. Ficaram aqueles pedacinhos de casca e ele ficou, para um lado e outro em casa, com aquela dor. Lá perto de casa tem uma mangueira,
lá morava um senhor que chamava Basílio, a mulher dele foi lavar com amoníaco o olho do Galdino, foi aí que desgraçou tudo. Quando ele chegou em casa tava com os olhos em lágrimas. Aí, veio um senhor lá de Areial e disse que era pra gente ir ao hospital. Fui com a Maria José, mas tinha que mandar ele pra longe. Aí, fizemos tudo, fizemos farinha, juntamos dinheiro, fomos pedir para o prefeito lá de Juruti, mas só deram dez reais para nós, assim mesmo, já valeu à pena. Arrumamos pelo menos quem levasse ele no verão e
levou ele. Mas quando chegou lá já tinha saído a casca e os olhos já tinha...
P/1 — Perdido?
R — Já. Já tinha
perdido o olho.
P/1 — E o outro?
R — O outro estava bom. Aí, fui pra lá e trataram, deram um remédio, mas era aquele tratamentozinho mesmo. Foi uma sobrinha dele, lá, quem cuidou, fazia as coisas pra ele. Como
eu ia lá pra casa dela, trabalhava com essa Maria José, fazia farinha, tirava o dinheiro e mandava pra lá e eles entregavam nas mãos dele
que saia pra tomar a cachaça e assim foi. Quando foi um dia, ele veio embora de lá. E disseram pra ele que era pra fazer muitos tratamentos, porque, se não, mais tarde ia perder o outro. Mas era bebida, era bebida, era bebida, depois se endireitou mais um pouco e, aí,
ia pescar.
P/1 — Mas aí ele parou de beber ou não?
R — Parou porque ele não conhecia o lugar pra onde ia, então ele não comprava.
P/1 — A senhora não dá?
R — Ah Da minha mão mesmo, não Acha? Era péssimo. Aí eu o deixei e fui embora pra Belém.
P/1 — Pra casa de quem a senhora foi?
R — Da minha filha, dessa que está aqui. Ela tá pra Juruti, foi pra Juruti.
P/1 — E como foi quando a senhora foi pra Belém? A senhora já tinha ido para uma cidade grande?
R — Não Mas como? Nem em Juruti eu tinha ido, nem Tabatinga eu conhecia. Não tinha como ir, não tinha quem levasse, foi ela quem me levou. Já tinha levado duas das minhas filhas pra lá, aí ela me levou e eu fui com eles. O Sabá estava com três anos, me parece, e o Galdino estava com um ano.
P/1 — Levou eles?
R — Levei. e ele ficou.
P/1 — O que a senhora achou de Belém?
R — Bacana, muito bacana, mesmo Seria melhor se eu estivesse bem, né? Mas doente não dá. Eu já fui bem umas dez vezes pra lá, pra Belém. Fui fazer tratamentos que não deram em nada.
P/1 — Tratamento do quê?
R — De todos os problemas Dor nos ossos é o que mais me ataca Quando eu estou sentada e tento levantar, quase travo; tenho problema nas pernas, nos braços, estômago. No estômago tenho um problema que, às vezes, nem consigo comer, mas tem dias em que como ou um pão, ou uma bolacha. Já fui ao médico, mas não deu nada. Tenho que tomar remédio mesmo. Já tomei bastante pra verme, já tomei outros remedinhos aí. Mas como tava dizendo, já vim de Belém com essas dores no braço, tinha umas enfermeiras pra quem perguntei se daria alguma coisa, e elas disseram que não era nada Oxê Aí, perguntei assim pra Lúcia: "Lúcia, e se descobrirem quando estiver já nas últimas?" Digo, "eita coisa", aquela doença, Deus que me perdoe, ôh meu Deus, que não tem mais cura (risos), Essa daí já está velha E agora o que a gente vai fazer que a gente não sabe O jeito é ir pelejando até o dia que der, que aquela uma chegar, a que a gente sempre espera. Tanto faz ser velho como novo, a gente tem que ir, né? Aí, vai indo essa situação. Essa minha irmã também, pelo mesmo jeito, essa caiu da ceizeira, se quebrou toda. Caiu, pegou um rebulejo do carro, se quebrou toda de novo, mas ainda está reagindo. E agora sabe o mal da idade, o reumatismo, vai aparecendo. Trabalhou bastante na água, na mandioca, negócio de juta, e sabe aquele problema que a gente tem e não há um tratamento que preste, vai indo, até a hora que essa doença chega a fraqueza. Ela tem um problema, teve derrame. Quando eu estava pra Belém, teve derrame, entortou a boca, língua, tudo, mas endireitou. A pele da cabeça dela, a gente olha e vê uma vermelhidão
só. Como ela ta sempre assim, nessa situação, quem toma conta do cartão dela é o filho, então...
P/1 — Dona Sebastiana, voltando lá atrás, a senhora chegou ir à escola alguma vez?
R — Não. Não tinha. Quando apareceu a escola, era para os filhotes que tinha Tinha, mas era para alguns que tinham “pano pra manga” pra pagarem os professores.
P/1 — Na época que a senhora era criança?
R — Sim.
P/1 — Quem pagava o professor?
R — Eram os pais que pagavam.
P/1 — Quem que tinha dinheiro para pagar naquela época?
R — Mas eram dos trabalhos que faziam
P/1 — Mas quais eram os pais que tinham dinheiro e quais pais não tinham?
R — Justamente o que não tinham dinheiro era os que não iam à aula, porque não tinha jeito para os filhos irem à escola. Tinha lá pra baixo, depois veio pra cá, pro Castanhal, veio pra Justina, mas tudo era pago pelos pais. Tudo.
P/1 — Aí, a senhora nunca foi?
R — Não. Nunca fui.
P/1 — Os seus filhos foram?
R — Agora, já
eles foram. Foram, porque eu não queria que fossem iguais a mim. Depois fui pra Belém, dei eles pra essa minha filha levar, ficaram muito bravos. Mas, não, eu não quero que eles façam igual a mim, quero que eles conheçam alguma coisa. Agora quem ficou foi o Sabá, Galdino, Maria José, Maria de Nazaré, que moram tudo ali no Adventista. Esses que ficaram pra cá, a gente se esforçou, ainda quando a Maria Iza estava novinha, para que eles estudassem.
P/1 — Quantos dos seus filhos foram à escola?
R — Nesse tempo ainda era o João, Maria José, Maria de Nazaré
P/1 — Eles iam à escola aqui mesmo no Castanhal?
R — É.
P/1 — Quem que dava aula?
R — Era a Maria Isa, ela ainda é professora, mas não dá aula mais. Ela vem, passa bem aqui perto aqui, era ela quem dava aula. E agora passou para a filha e a filha, acabou que passou pra outros, né, aí, foram embora.
P/1 — Mas pagavam pra ir?
R — Era pago sim.
P/1 — Ah, era pago?
R — Era.
P/1 — E a senhora pagava?
R — Nós pagávamos sim.
P/1 — Era com dinheiro ou era com troca?
R — Era com dinheiro, sim. Era dinheiro e naquela época não era muito, né? Mas pra quem não trabalhava, era sim Era cinco, era dez, tinha que pagar. Tinha que comprar os livros, os cadernos, acabava um e já começava outro.
P/1 — E o lápis?
R — O lápis era a gente que comprava.
P/1 — Comprava onde?
R — Era aqui mesmo, tinha uma venda. Nela sempre tinha lápis. E era assim que a gente agia naquela época. A gente agarrava, juntava inajá, quebrava croá, ajuntava croá, tudo isso a gente vendia.
P/1 — O que é croá?
R — Croá é uma palheira, e inajá é "desses que tem ali, igual a "esse aí". A gente ia juntando, colocava no sol, quando secava, a gente quebrava e
ia vender, e até dava pra comprar alguma coisa. Nessa época era assim, não tinha de dizer que vendia peixe pra cá como agora, não. Não tinha isso. Peixe, às vezes, davam era em troca, mas agora, quem faz isso? Se você for ver, só o filho ainda traz, né? Graças a Deus.
P/1 — O filho é quem traz o peixe?
R — É, mas os outros, como naquela época, já não trazem mais.
P/1 — Por que lá na época,
aqueles que pescavam muito, traziam pra todo mundo?
R — Não. Sempre quando a gente ia lá, sempre era feliz de ou ter algum pedaço de peixe, ou um inteiro, ou uma banda. A gente falava com eles, então, davam pra gente. Era assim naquela época.
P/1 — Agora, a senhora se lembra como foi que conheceu o senhor Galdino? Por que a senhora se casou com ele? Como foi?
R — É porque algumas pessoas aqui na Justina eram dessa família dele e estavam em uma festa.
P/1 — A senhora conheceu ele na festa?
R — Sim.
P/1 — Achou ele bonito?
R — Ah, ihh, uma maravilha, né? (risos) Ai, ai Só depois é a que a gente vai ver o que é, né? A ida é boa, mas a volta era sempre melhor, muita gente ao redor e você no meio, né, aí...
P/1 — Mas a senhora casou ou se juntou com ele?
R — Casei. Nós nos juntamos primeiro e depois a gente se casou.
P/1 — Quantos anos a senhora tinha, a senhora lembra?
R — Não, ihh, a cabeça não lembra mais.
P/1 — A senhora se juntou com ele, depois teve os filhos e, então resolveu casar?
R — Sim. É assim que foi.
P/1 — E a igreja? Tinha igreja aqui? Como que era?
R — Não, não tinha. Sempre quando o padre vinha, tinha uma casa, mais lá embaixo, onde dava o atendimento. Do outro lado ali, onde fica a comadre Yolanda, na Tabatinga era onde tinha. Só tinha em Tabatinga e Óbidos, nem em Juruti tinha, só depois veio a ter. A gente ia pra Tabatinga e a comadre Yolanda vendo isso, se animou e convidou a população a fazer a igreja no barracão, ali pra baixo, onde as pessoas se reuniam para ouvir o padre, fazer batizados, casamentos, e acabou, graças a comadre Yolanda, virando nossa igreja.
P/1 — E a senhora ia muito à igreja?
R — Graças a Deus Na Tabatinga a gente ia com a Ana Maria. Nós íamos e passávamos três dias lá Levava filha pra batizar e depois a gente ia embora. Pra lá, nunca mais nós fomos
P/1 — E tinha padre lá na Tabatinga?
R — Sim
P/1 — A senhora é católica?
R — Sim.
P/1 — A sua mãe era católica?
R — Todos Graças a Deus. Agora, tenho uma filha que dobrou pra outra, pra Adventista.
P/1 — A Maria José virou Adventista?
R — Não, a Maria de Nazaré.
P/1 — Quando foi que ela mudou de religião?
R — Não me lembro.
P/1 — A senhora não gostou dela ter virado adventista?
R — Não. Ainda dei uns tapas na cara.
P/1 — A senhora bateu nela?
R — Ãn-hã.
P/1 — Por quê?
R — Porque eu não queria Já pensou que, ao invés de agradar a gente, começa a falar mal da gente, dizendo que a católica não presta, né? Que só a deles presta mesmo. Mas o mesmo que fala mal sobre a católica é o que faz
ainda pior.
P/1 — O que ela diz que é ruim da católica?
R — É porque eles dizem sempre que não presta Que vai prostituta, que se vai quase nua, vai bêbado, muita gente entra na igreja, né, e aí, eles "tacam o pau" mesmo. Mas não adianta de nada. Porque assim como a gente é, né, a gente não pratica uma coisa que dê resultado. Porque a gente sabe o que a gente é, agora, pessoas dessas querer abrir a boca e falar que eles tomam conta do mundo, ah, isso é o que não é Eles, que não pratica também uma coisa que dê resultado, e fica falando das outras, “quando estava na católica, estava na beira do poço, estava com os olhos fechados, igual a cachorrinho. Eu digo mesmo assim, “mas não adianta de nada, porque assim como a gente morre, eles morrem também. Assim como a gente não presta, eles não prestam também, porque eles não praticam coisas boas também. Porque o mais necessário que a gente pode fazer, é querer bem, ter amor, e eles não têm, porque chega o parceiro de um jeito e eles já estão falando. O que a gente pode fazer? A nossa situação aqui é pra ser chegar perto de Jesus Cristo. Tenho certeza que eles não adotam, não, porque eles não querem isso. Ele quer amor e não crítica Porque não adianta de nada, pra quem não pratica. Ele teve o amor até na hora daquela aflição que teve. Ainda pediu
pra perdoar os outros que não sabiam o que nós aqui viemos fazer. O que nós podemos julgar; o nosso próximo? Ninguém pode julgar ninguém, porque nós somos as mesmas pessoas. O que eles tem nós temos também Agora, só não pratica. Não pratica por que? Porque não quer Agora, eu vou ter amor? Não tem Às vezes, muita gente, nem os próprios filhos tem. Agora, quando tem uma ocasião, diz, "eu tenho amor". Não tem Às vezes nem sabe o que é amor. O amor é uma coisa e querer bem é outra.
P/1 — Qual é a diferença?
R — É que o amor, quando se tem, é no coração, mas se não tiver, o que acontece? Nada Quando você se dá conta, chega aquele ali, e o que diz, te esculhamba logo, né. Se não presta, dá logo uma paulada, porque esse não presta e ele diz que não. E é pra orar por aqueles que odeiam a gente e faz isso, dá logo uma pedrada nos outros. O que acontece é essa situação. E então sobem, gritam qual o quê. Aí atiço bem o cachorrinho, bate na mesa e acorda o mundo. É aquela peleja então, o cachorro, eu faço. É demais. Grita e não se conforma.
P/1 — Então, a senhora continua firme na igreja, né?
R — Graças a Deus.
P/1 — E a senhora participava das festas da igreja?
R — Tudo Nós ajudávamos, cozinhar, essas coisas todas aí. Capinava, limpava, lavava, eu e a Maria.
P/1 — Pra ajudar na festa?
R — Sim. Todo tempo Nós éramos todo o tempo. Era o trabalho que nós fazíamos. E leva assim, e vai aqui e vai ali, manda um, manda outro, e vai ficando aquela situação que ninguém quer, só quer agora se tiver o negócio da grana, e só.
P/1 — Mas teve padre aqui?
R — Sim.
P/1 — E nessa época que a senhora trabalhava, tinha o padre?
R — Tinha. Tinha padre sim.
P/1 — E quem que ajudava muito na igreja? A senhora...
R — Eram todos Nesse ponto de vista, graças a Deus, quem vai andando de casa em casa, pedindo, fazendo aquela cooperação, tudo dá Graças a Deus Tudo dá Era assim: bingo, com a população mesmo. Graças a Deus, nessa situação, graças ao criador, é bem aproveitado.
P/1 — E qual era a principal festa que a senhora mais trabalhava? Tinha alguma festa de algum santo muito importante?
R — Tinha, mas nessa época era só tempo de Santo Antônio que mais se festejava. A gente ia pra lá ajudar eles onde eles moravam. Fazia farinha, fazia bejú, naquela época dava, agora não, eu não tinha dinheiro, não tinha uma xícara de café que se tomasse, né? Nessa época não, era tudo dado. Era comida, era café, bejú, tudo tinha. Graças a Deus.
P/1 — E pra comer era pago ou não?
R — Não.
P/1 — Fazia a festa e todo mundo comia?
R — Todo mundo comia e sobrava e todo mundo ficava tranquilo. No tempo do boi, ia pra lá, comia, tomava manicuera. Era tudo isso o trabalho que a gente fazia. Mas tudo, graças a Deus, dava certo
P/1 — A senhora gostava das festas?
R — Oxê Eu ia muito
P/1 — O que a senhora mais gostava de fazer nessa época de tanto trabalho, tanta peleja?
R — Ah, afinal de contas, não tinha distinção, porque caía pro lado da gente e tudo isso a gente fazia, ajudava. Era limpeza, encher a água, cortar a carne, cozinhar, de tudo a gente fazia. Tudo era na lenha, não é como agora que é no gás. Tudo era na lenha. Todos os trabalhos que hoje não tem.
P/2 — Dona Maria, tinha cemitério aqui nessa comunidade?
R — Tinha. Era lá na rua de cima. Aqui, naquela época, quem morria ia pra Tabatinga. Era tudo pra lá, ia enterrar tudo pra lá, toda a população. Depois, fizeram aqui, porque já tinha os que morreram no tempo da febre, e ficaram tudo aí pelos matos. E então foi limpo, agora é aí pra cima. Já não vai mais pra Tabatinga, já fica aí. Tabatinga, chega aquela época da cheia, a gente vai tudo pescar, e vamos todos dentro da água.
P/1 — Os mortos?
R — Sim.
P/1 — Por que eles ficavam embaixo da água?
R — É, enche e a água transpassa tudo e vem embora pra cima. Esse ano que passou, chegou bem "aí mesmo", aí em cima perto de uma casa que tem lá perto do campo, tudo isso fica inundado de água. E agora estão achando uma diferença, porque ano passado estava muito cheio, e até agora não encheu, mas pra Deus não há nada impossível, né, agora pra gente, a gente diz que a cheia não tinha, de repente encheu. A cheia ia ser pouca, mas quem manda é só um. A gente não sabe o que fala, né?
P/2 — Que tempo de febre foi esse que a senhora falou?
R — O paludismo. Nessa época eu não assisti, só a mãe dele ficou. Ela ainda escapou da febre.
P/1 — Do paludismo?
R — Sim. Assim que ia chegando, iam carregando, iam arrastando, quando chegava ia até o outro que ficou em casa e já estava morto de novo. "É vai novamente". E aquele que ia carregar, quando era depois de uns minutos, já ia de novo. Era rápido e matava Acabou com quase toda a população.
P/1 — Morreu muita gente?
R — Muita gente morreu. E ficaram tudo espalhado por aí e depois enterravam, porque o bicho comia, e assim foi. Já estava liquidado.
P/1 — A senhora já estava casada?
R — Não, não era nessa época não. Só minha mãe que "escapuliu" no tempo da febre grande, o paludismo.
P/1 — Deixa eu perguntar uma coisa pra senhora: a senhora teve dez filhos?
R — Eu tive 14.
P/1 — Quatorze
R — Três abortos.
P/1 — Como que era? A senhora engravidava e o filho a senhora tinha onde? A senhora abortava na hora que nascia, ou antes?
R — Antes. Era tudo em casa mesmo.
P/1 — Quem que fazia o parto?
R — Era a Lessa, era mais outra que tinha, que já morreu, eram as parteiras aí.
P/1 — Ela era parteira?
R — Era.
P/1 — Doía pra ter o filho? Como que a senhora sabia que estava na hora?
R — Ah, era o aperto mesmo que dá pra vir, na ocasião pra ele nascer, ele vem mesmo Agora, quando você sente aquela dorzinha, que ainda dá pra andar, tudo bem, né? Aí, quando
dá o apuro, já não tem mais o equilíbrio pra continuar andando.
P/1 — Aí a senhora corria pra casa?
R — Mas eu estava em casa sim. Não ia pra canto nenhum.
P/1 — E o que acontecia no parto? É que eu não conheço um parto assim, dentro de casa. Era só a sua irmã que fazia? Como que funcionava? Ela vinha sozinha?
R — Só.
P/1 — A senhora ajudava a tirar o neném? Como que era?
R — Não, era meio. Na verdade, na ocasião dele vir e ele já vinha com tudo, né? Agora, quando não vinha a criança, a placenta ficava, agora aí, tem muitas vezes que atrasava né? E aí, era aquele sacolejo na barriga pra poder...
P/1 — Tirar a placenta?
R — Tirar a placenta.
P/2 — Tinha tigela de água, garrafa?
R — Sim, tinha. Naquela época, fervia água e já deixava pronto. O ferro já estava no fogo. Limpava bem aquele ferro, colocava no fogo, cortava o umbigo...
P/1 — Com o ferro?
R — Cortava o umbigo com a tesoura, amarrava e queimava bem queimado, colocava aquele algodão e embrulhava, amarrava com tudo na barriga da criança. E com uns três dias, caía, ficava livre. Pegava a água, destemperava a água e dava banho.
P/1 — Na criança?
R — Na criança. E agora não fazem isso, né? Não são todos que fazem. Eu acho um absurdo.
P/1 — O que a senhora acha um absurdo?
R — Eles não lavarem Naquela época não, era lavado, amornava a água, tinha o sabão pra lavar, a roupa, tudo separado, aí, era fervido aquelas roupinhas, se tinha tempo pra passar o ferro, passava, dobrava e guardava tudo numa caixa, ficava tudo. Era só esperar Chegava na hora. Agora, nem isso tem mais, agora já é tudo comprado, não tem negócio de pano, não tem nada. Naquela época não. Comprava pano. Trocava a farinha pelo pano pra fazer cueiro, era assim a situação. Tinha gente que não tinha nada. Você já pensou? Eu tive a Maria José era mês de fevereiro, nós tínhamos um alguidar assim, que era tempo de castanha, a mãe colocava na chuva dia e noite, como? A Vó Dina comprou uns metros de pano e tinha a panela, colocava aquela brasa e colocava o pano por cima pra enxugar nas crianças que faz xixi, faz coco a toda hora, ai meu Pai Aí, pro fim, quase que ela queima todos os panos. (risos) Os panos estavam todos furarados de tanto colocar na labareda em cima do paneiro pra enxugar. E era assim que a gente fazia. Agora, quem tinha pra agir, pra comprar, não passava muito... sabia que tinha, né? Mas nós fomos assim, a luta
P/1 — E a criança vivia do peito?
R — Era.
P/1 — Só peito?
R — Só peito. Aliás, quando tinha leite, porque eu não tinha.
P/1 — A senhora não tinha leite?
R — Não. Era, durante uns cinco, seis dias, era só o chá. Só dava chá.
P/1 — Ah é? Chá de quê?
R — Era chá de alfazema, alecrim. Usava o tártaro, o arsênico, que eram os remédios que a gente dava. Mas a gente prevenia logo, comprava alfazema, alecrim, e fazia chá de arruda, era isso. Cipó puçá, cipó caatinga, fazia o chá, e deixava ali pra criança beber. Era isso.
P/1 — A senhora só tinha leite cinco dias?
R — É. Agora quando tinha leite, acabava já.
P/1 — Ah é? A senhora teve leite pra quantos?
R — Muitas vezes tinha que dar o chazinho, porque ficava "empanzinado", né, a criança fica "empachadinha", e a gente dava.
P/1 — Mas a criança vivia só do chá?
R — Nessa época quem não tinha leite, era só do chá, sim Eu não acostumava dar pra outra que tinha filho pra dar, porque muita gente não sabe o que tem e eu não queria. Eu não gostava.
P/1 — Pra dar o quê?
R — O leite. Pra dar o peito.
P/1 — A senhora não deixava mamar em outra?
R — Não. Não deixava não, era só quando já tinha no peito da gente, que vinha e mamava.
P/1 — Mas, nenhum deles ficou fraquinho, adoeceu, não aconteceu nada?
R — Não. Graças a Deus, nenhum.
P/1 — Todos vingaram?
R — Todos. Todos vingaram.
P/2 — E as parteiras também cuidavam das crianças, faziam remédios?
R — Não, não. As parteiras só vinham quando era de noite e quando clareava, já iam embora de manhã. Não tinha nada. Já as outras coisas quem fazia, se tinha em casa, arrumava outra pessoa pra tratar da gente que tava em casa. Porque nessa época não era como é agora que tem e a pessoa já vai embora. Eram oito dias.
P/1 — Que a senhora ficava na cama?
R — Na rede, nem cama tinha
P/1 — Ficava na rede oito dias?
R — Sim.
P/1 — De resguardo?
R — É. Eram oito dias.
P/1 — E o neném onde ficava?
R — Lá também. Tinha a rede dele, porque eu não gostava que estivesse junto comigo, levava quase a noite inteira pra dormir, eu ficava sentada, esperando ele dormir pra não acostumar ele a dormir comigo (risos). E era assim, que a gente vivia, que a gente fazia. Mas agora não. Agora vai "desbuchando", vai ficando e vai seguindo, né? Eu tinha muito medo de estar saindo, assim de um lado para o outro...
P/1 — Por isso a senhora ficava em casa os oito dias?
R — Ficava em casa. Dois meses então que ia fazer alguma coisa de fora a parte, o trabalho.
P/1 — Mas conta pra mim, se a senhora ficava em casa os dois meses, os outros meninos e a farinha, quem cuidava disso?
R — Eram os outros que cuidavam. Dava pra fazer em sociedade. Era tudo dividido meio a meio, e assim a gente ia. Mas nós nunca trabalhamos. E agora, não. É um perigo esse negócio de aborto que eu vejo aqui, que acontece nessa região onde nós estamos. Bem não querer se resguardar pra isso é um perigo, pode dar muitas coisas, até câncer muitas vezes.
P/1 — Mas antes ou depois que a senhora está falando que é perigoso?
R — Mas é depois do aborto A pessoa que não faz resguardo, não toma remédio ou então parou aquela menstruação, logo diz "pronto, estou livre", mas não sabe por dentro como é que está, né? Não tem um tratamento.
P/1 — Quando a senhora tinha o aborto a senhora ficava de resguardo também?
R — Mas ficava sim Nem pense Graças a Deus Vixi Maria Esse negócio de menstruação, quando a gente estava no lado da mãe da gente, ela não deixava a gente fazer nada. Ela fazia remédio e dava pra gente beber, e agora, nem isso Não sabem nem o que é o remédio pra tomar.
P/1 — Mas qual era o remédio que a sua mãe dava?
R — Era tudo Tinha umas plantas que eram ótimas pra isso, que fazia a infusão coma casca de sucuba, o cajuaçu, e outras cascas que eram apropriadas pra isso mesmo: o "saramento por dentro", pra baixar o que ainda tinha dentro...
P/1 — Quando vinha a menstruação no meio?
R — Sim, pra sarar, porque quando vem, só pode ter algum ferimento, né? Mas graças a Deus, pra isso não. Graças ao criador, nunca fizemos varia por causa disso. O primeiro ano, nós não comíamos banana, não comíamos gordura, não comíamos tucupi. A banana que a gente comia era a grande e ainda era assada. Fazia o fogo, tirava o bagacinho pra assar e poder comer, mas, agora não tem nada disso, não tem mais nada.
P/1 — Mas isso no primeiro ano do aborto ou no primeiro ano do nascimento?
R — É tudo, menstruação também. E agora não, agora o que vier come. É por isso que tem sempre a consequência, e não se sabe o que é. E por isso eu digo que, dou graças a Deus, dou glória a Deus Não tenho nada com a gente, né?
P/1 — A senhora acha que piorou muito?
R — Piorou.
P/1 — Pioraram as coisas?
R — Pioraram sim. Porque todo tempo é banho, até tarde hora da noite, tendo sol quente, chuva, aí tem aquela dor de cabeça, mas por quê? Porque a menstruação ao invés de baixar, ela sobe, também com quentura do sol. Não tenho nada com isso. Não tem resguardo, é tudo só uma coisa. E é tudo. Tenho umas netas, agora filha, acho que até já pararam com isso. Já estão velhas, já não tem mais (risos). Agora, não tem mais nada disso. Elas vão à festa, bebem tudo, quando é de manhã estão com aquela ânsia de vômito, tem aqueles que vão deixando por lá. Cada qual que já não enxerga onde se guardar (risos), se ensacando, é aquela que vai levando camisinha, é sem camisinha, já foram (risos) Ai, ai Ai com o tempo os filhos vão crescendo e “funhanhando”. Ai, não dá Graças a Deus na nessa época não tinha isso não.
P/1 — Mulher não ia dormir assim com um homem sem casar nessa época?
R — Não. Tinha sim. Ah, o que tinha bastante mesmo. Mas não era como está agora, né? Tinha mais um pouco de respeito, né? Mas agora não tem respeito por nada. É homem casado, amasiado, tudo.
P/1 — Mas e a parte assim da comida, do dia-a-dia, a senhora acha que melhorou ou que piorou?
R — Não, nessa parte está meio a meio. Quem tem quem pesque, está melhor, mas pra quem não tem, não melhorou nada. Porque se você não tiver uma criação aí no terreiro, muitas vezes você não come, porque você não tem o dinheiro, né? Fiado eles não fazem. Agora, como eu estava dizendo, no açougue quando tem, graças a Deus, ele é bonzinho. Só quando tira o dinheiro é que paga ele. Até 50 reais nós já gramamos de pagar, porque quando tem o dinheiro, nós vamos "notariando" com o dinheiro. Agora depois que acabar é só no fiado mesmo. E é assim que a gente vai, mas o peixe não, o peixe não tem quem faça isso, porque quando eles vendem o peixe, já querem o dinheiro, e não tem.
P/1 — Quem que pesca o peixe aqui?
R —
Ihhh, toda essa cambada aí, pra baixo.
P/1 — Aí, eles vendem?
R — Eles vendem.
P/1 — Como é que pescam o peixe aqui?
R — É de malhadeira. Porque igual naquela época que nós nos criamos, não tem mais. Ainda tem o Wilsinho que é lá pra baixo da Serra que ele pesca, né, com o espinheco. Não sabe como é o espinheco?
P/1 — Como que é?
R — Vamos dizer que eles estiram a linha, né, daí é agarrando o anzol naquela linha, encastoa bem seguro, pra pendurar aqui, ali, e espalhava.
P/1 — No chão do lago assim?
R — É. Pendurava, colocava a isca que o peixe gosta, né, e deixava lá. Quando ia, já tinha o peixe pendurado lá, nadando. Mas agora não, agora é só na "malhadeira", porque não tem mais onde puxar, é a água que puxa. Puxa Pacu, e esses outros peixes aí. Aí, nessa imediação aí, a gente vinha do trabalho com a Maria e o marido dela, ainda mais no mês de Junho, que dá aqueles temporais, ele se atacava pra lá, demorava e chegava com dois, três Tambaqui, e já ia. Mas agora, nem pense de colocar.
P/1 — Por quê?
R — Porque não pega.
P/1 — Não pega mais? Diminuiu muito?
R — Acabou.
P/1 — É por causa das geleiras?
R — É, é isso Entram aí mesmo essas geleiras aí. Aí que fica frio, aí que não cai mesmo peixe. Só você indo para aquele lado de lá.
P/1 — Então diminuiu muito o peixe, né?
R — Muito. O Pirarucu mesmo nessa época, por onde ia, sempre tinha. Aqui no campo vinha em tempo de cheia e agora é bem ralado. Bem ralado, mesmo ,que a gente encontra.
P/1 — Quer dizer que agora então a senhora come mais carne?
R — É. É mais carne mesmo.
P/1 — A carne vem de onde?
R — A gente compra, vem até de Juriti.
P/1 — Ah, a carne é comprada?
R — É comprada. Aqui ele faz negócio com
essa população, agora está enchendo, agora
estão gordos, eles estão vendendo, aproveitando. E por causa da cheia, a gente não sai.
P/1 — Mas conta pra mim, o que a senhora come todo o dia aqui na casa? O que a senhora cozinha todo dia?
R — Ah, quando tem, eu cozinho peixe, quando não, mato galinha, ou uma carne.
P/1 — Todo dia tem uma carne? De peixe ou de frango...
R — Uma carne
P/1 — E o que acompanha a carne?
R — Maxixe, cebola, pimentão. Tem maxixe dos grandes. É isso.
P/1 — E mistura com farinha também, ou não?
R — Arroz.
P/1 — Arroz. E a farinha, já era?
R — A farinha eu coloco um pouco dentro daquelas latas e num instantinho, uma colherada, outra e outra e aí vai. É bem pouco, é mais o arroz do que a farinha, porque a farinha já não é pra gente comer, podendo não comer a farinha é melhor. A farinha faz mal para o estômago. Mas eu como Comigo não tem... se é que a gente nasceu pra viver na face da terra, então, diga que não presta (risos) Diga que não presta mais, que...
P/1 — Já vai, né?
R — É. Já vai. A gente não come, está sempre naquele problema de doença, a gente come, então, não adianta de nada.
P/1 — A senhora come isso no horário do almoço e do jantar também?
R — Ah, uma curiosidade de como é a janta. Come só mesmo um pedacinho e daí pronto e quando não, nada. Nós tomamos um pouco de café, e com isso eu vou dormir. Que era pra emagrecer, que é duro pra emagrecer, o problema que acontece comigo é por causa do problema da gordura, mas eu sempre fui assim. Não adianta de nada, porque esforçar pra gente não comer, porque outras frutas a gente não tem, porque aí pra fora, ainda tem que dá pra fazer um suco, e aqui a gente não tem, porque é muito vadio, porque quando dá aqui só dá numa safra. Acabou, acabou.
P/1 — O que? As frutas?
R — O caju eu já experimentei ele de todo jeito, não tem como guardar o caju, sempre ele azeda. Eu até fervi e nada. Deixei assim pra cozinhar no sal, nada também. Então...
P/1 — E a goiaba? Dá muito aqui?
R — A goiaba aqui não dá, porque o que a gente planta a molecada não deixa (risos). É (pouco?) umas três, quatro. Agora quando tem que a gente vai pedir por aí, a gente faz A gente faz suco, faz chupinha. Sempre tem. Quantas vezes, desde que eu cheguei aqui, tentei plantar coco e banana, mas não dá.
P/1 — Não dá? Essa terra não é boa não?
R — Eu acho que pra isso não dá. Limão também do mesmo jeito e antes de vir pra cá nós plantávamos. Não sei, a terra acho que não dá pra isso. Falta alguma coisa que a gente não sabe e assim vai. Porque eu plantei aí, e deu "esse pouquinho aí", também não plantei mais.
P/1 — É difícil de dar então.
R — É difícil, se eu estou dizendo É difícil dá e eu acho que é porque a gente não sabe, né? Do estrume, vamos dizer, porque ali tem um senhor, logo que ele chegou ele plantou, mas já tem comido bem, tem vendido.
P/1 — Ele soube plantar?
R — E nós dançamos (risos). Não sei, não sei. Ele estava dizendo parece que aqui, se a gente tiver o dinheiro, a gente come, se não tiver a gente olha, porque, pra pedir não dá, porque o que eu faço em cima da terra, não planta
P/1 — E os filhos, ajudam hoje em dia? Os filhos que estão por aqui?
R — Ajudam. Uma parte ajuda, outra parte a gente fala, "entra aqui e sai aqui", não estão nem aí, aí vão embora. O que a gente pode fazer? Não pode fazer nada.
P/1 — Dona Sebastiana, a senhora tem um sonho ainda?
R — Não. Como? Do que?
P/1 — Um sonho, "olha na minha vida eu quero que aconteça..." Tem?
R — O que eu penso, que se tivesse um negócio de uma grana, ajudaria a população aqui, mas infelizmente...
P/1 — Ajudaria em que?
R — Mas em tudo que precisasse que a gente vê que não tem. Porque têm muitos que na ocasião que anda e um lado para o outro e não tem quem ajude. Não tem. Esse problema que a gente pensa e imagina que nós nunca tivemos. O que tem é esse povo mesmo que tem. A gente podendo servir, a gente serve sim, mas não é assim, uma comparação do que a gente ia fazer, ajudar a população. Quem não tivesse, né? É isso. E outras coisas não mais. Não tem mais, não adianta mais agora. Eu acho que a gente já está no final da picada, que um dia sim outro dia não, a doença sempre ataca. Quando ataca é mesmo pra ficar jogado, mas aí como ainda não é pra ir, se levanta de novo. Aí, torna a levantar e torna a fazer novamente. Já trabalhamos bastante, graças a Deus, tivemos assim, compramos, ajudamos os outros, a gente ia, trabalhava em casa, servia os outros, acabou, acabou Pronto O trabalho acabou, e também aquela freguesia acabou também, então, é assim. A situação da gente foi essa. Está sendo essa.
P/1 — Mas a vida foi boa ou foi ruim?
R —
Nããão... durante o período da gente ter força, pra seguir, pra trabalhar, era uma coisa ótima Mas que quando cai, não acha. O problema é esse Você vê jogado, ainda vai e dá um chute, mas ao invés de dizer que eu vou acudir aquelas pessoas que já me ajudaram bastante, não. E por isso vai se acabando, né? E o que dá pra fazer, né? Aproveitar pra fazer o que já fez e se eu não fiz, então não tem mais jeito de fazer, porque já não dá mais pra fazer. A doença já tomou conta e agora o problema já chegou, pronto. Acabou. A memória vai acabando, você vai esquecendo, e o que eu vou fazer com isso? Estou só esperando aquela chegar, porque eu não tenho outro jeito. Estão vendo aí, pego esse remédio e toma, outro vem dali, "mas esse que é bom", nenhum vai lá no problema que eu estou sentindo. E é isso.
P/1 — Dona Sebastiana muito obrigada...Recolher
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