Projeto Conte Sua História
Depoimento de Diógenes Serra Moura dos Santos
Entrevistado por Karen Worcman
São Paulo 01/08/2017
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV603_ Diógenes Serra Moura dos Santos
Transcrito por Ana Carolina Ruiz
Revisado por Eliana Giannella Simonetti
P/1 – Vamos começar por seu nome, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Diógenes Serra Moura dos Santos. Eu nasci em primeiro de janeiro de 1957, em Recife, na Rua do Lima, numa casa junto de onde funcionou e funciona a TV Jornal do Comércio. Na mesma rua, também, Castro Alves viveu o grande amor com a atriz portuguesa Eugénia Câmara. Há uma história poética dessa vivência nessa parte do bairro. O meu avô, imigrante português, tinha esta casa antes de as filhas casarem e ali elas, minha mãe inclusive, pescavam siri à noite.
P/1 – Já que você mencionou seu avô, qual era o nome dele?
R – Cesário Rodrigues Pereira Serra. Ele veio de uma pequena aldeia da região do Porto. Chegou a Recife sozinho, depois veio o irmão dele. Chegando, meu avô conheceu a minha avó, Georgina, casou e teve seis filhos, entre eles minha mãe. As filhas são: Hilda, Arlinda, Helena, Gilda; José e Paulo, são os dois homens. Minha mãe é Gilda. Nós somos todos pernambucanos, uma família grande. Depois da Rua do Lima vivemos na Avenida Doutor José Rufino, nesse bairro que é um arrabalde chamado Tejipió. Era uma casa grande, imensa, com quintal para um lado e para o outro e onde moravam três filhos de meu avô, entre os quais a minha mãe com o meu pai, João Moura dos Santos, casados.
P/1 – Casados, seu pai e sua mãe foram morar na casa do seu avô?
R – Foram morar com o meu avô, que era viúvo, já que minha avó morreu aos 78 anos. A gente chamava essa casa de casa grande, porque era verdadeiramente imensa. O quintal do lado direito era tão grande que os dois filhos homens, José e Paulo, construíram ali as sua próprias casas. Passei a infância convivendo com bichos, com a linha do trem, com frutas que eu nunca esqueci como sapoti e os pés de abiu, os pés de manga. Tudo isso que a gente conhece pela literatura, digamos, nordestina é real na minha vida, foi real e continua sendo na vida dos meus irmãos. Hoje eles moram em apartamento, mas todos tivemos uma infância muito feliz. Eu acho essa palavra felicidade completamente ultrapassada, mas se eu souber definir o que vem a ser felicidade, era ali que ela estava. Era um lugar de muita calmaria. Claro que eles deviam se odiar em algum momento, óbvio que deviam ter problemas seríssimos, silenciosos. Imagina que aquelas pobres mulheres que só conheceram os homens com os quais casaram nos anos 50, viviam todas juntas. As crianças não tinham a palavra, como depois se foi modificando nas famílias, na educação dos filhos, então eu fui um menino muito silencioso, meus irmãos também, nessa fase da casa grande. Mas havia a alegria de uma infância com festa de aniversário, com festa de Natal. Eu sempre odiei o Natal, mas eu gostava porque meu avô dava dinheiro para os netos. Essa era a parte fabulosa do Natal. Pouco me importava com o Natal com Papai Noel, gostava era do dinheiro.
P/1 – Qual era a profissão do seu avô?
R – Comerciante. Ele tinha uma loja que a gente chamava café e que de café não tinha nada. Eu não entendo até hoje. Era uma loja no centro da cidade, uma loja de secos e molhados, que vendia comida de passarinho. Meu avô tinha muito passarinho, meu pai criou muito passarinho em gaiolas e meu irmão Edson, que morreu de câncer, também tinha mania de passarinho e fazia gaiolas e pipas lindas. Meu avô era comerciante e meu pai foi sempre comerciante e comerciário.
P/1 – Seu pai trabalhou para o seu avô?
R – Não. Não trabalhou com o meu avô, mas trabalhou muito perto, na região central do Recife. Eu tenho imagens inesquecíveis da infância. Por exemplo, o meu avô saindo de terno branco ou cinza, de linho, e pegando ônibus do outro lado da rua. Nunca esqueci porque na nossa família ninguém nunca teve um carro. Eu não tenho a menor ideia do que seja um carro. Se você me oferecer dez bilhões para eu dizer a marca de um carro, eu não saberei. Eu aprendi a dirigir por necessidade, mas foi só. E ali, naquela casa grande, acho que se formou um embrião para a minha questão literária e a questão da fotografia que aconteceu depois. Havia um parreiral na casa, o lugar onde estacionava o único carro da família, do meu tio médico, casado com minha tia Helena, que vinha fazer visita aos sábados e domingos. Debaixo desse parreiral, meu avô reunia a família aos domingos, juntava os netos para contar histórias da família dele lá em Portugal, mostrando álbuns de fotografia. Infelizmente, com as mudanças todas da nossa família a gente perdeu muita coisa. Eu devia ter quatro, cinco anos. Isso me marcou porque meu avô mostrava essas fotografias para contar histórias, identificar os parentes de Portugal. E a gente tinha um primo poeta chamado Carlos Pena Filho, um poeta importante, que morreu num acidente trágico que sofreu junto com Gilberto Freyre. Gilberto Freyre sobreviveu, ele morreu, lá no Forte das Cinco Pontas, em Recife. Uma vez por mês ou a cada 40 dias, o meu primo poeta vinha para almoçar, para ter conosco na casa grande. Esse primo morava na Encruzilhada, um bairro distante, e a casa se preparava para recebê-lo. A notícia de que o poeta estaria presente modificava todas as flores e a arrumação da casa. Parecia que a gente ia receber alguém sagrado, um santo. Havia uma seriedade nas histórias que meu avô contava e nos poemas que ele dizia. Eu nunca esqueci. E essa ligação toda, que é barroca sem dúvida nenhuma, ficou para mim como uma ligação entre a literatura e a fotografia.
P/1 – Vocês se reuniam e seu primo Carlos Pena Filho dizia poemas?
R – Era como um sarau. Ele dizia poemas. Ou lia partes dos livros novos, ou comentava. Isso aconteceu três ou quatro vezes que nunca saíram da minha cabeça. Depois a minha tia Laurinda, mãe do Carlos Pena Filho, perdeu quatro filhos, inclusive ele, em desastres terríveis. Essa infância na casa grande foi fundamental para a minha formação, sobretudo depois, para minha literatura. Marcou uma paixão que eu tenho por nomes brasileiros, que sempre pesquiso muito; e marcou uma paixão que eu sempre tive pelas empregadas. Eu sei o nome de todas desde meus quatro anos de idade. Eu tive e tenho paixão pelas empregadas, que foram fundamentais na história da nossa família e na minha história pessoal como cidadão e como escritor. Elas não eram essa coisa atual que se diz que é uma pessoa da família, o que para mim é mentira: são empregadas com essa alcunha contemporânea, moderninha, de dizer que não são empregadas.
P/1 – Você pode contar um pouco sobre as empregadas?
R – Eram mulheres que moravam praticamente a vida inteira dentro das casas, como na casa grande. Tinha uma empregada que era uma “demônia” que eu amava profundamente, sobretudo porque ela não era simpática e eu não gosto de gente muito simpática. Chamava-se Maria Pezão. E a gente brincava muito, eu sempre me dei muito bem com todas elas. Eu não tinha medo das empregadas, de contar a elas alguma coisa errada que eu tivesse feito. Eu as entendia de uma forma que não sei explicar e elas não saíram mais da minha vida. Nenhuma delas saiu da minha vida.
P/1 – Como era a Maria Pezão? Ela era branca?
R – Enorme, branca, sarará. Ela morava na feira, em Cavaleiro, numa feira próxima a Tejipió. Tinha um marido que era um homem bacana, mas às vezes ela batia nele, o que era ótimo. Eu adorava isso, ver as mulheres baterem nos homens. Achava muito interessante as mulheres baterem nos homens, porque na minha família o silêncio fazia parte do casamento. Ela de certa forma vingava alguma coisa que eu não sabia o que era. Ela bebia, outra coisa que eu adoro. As mulheres pernambucanas para mim são muito incríveis e muito loucas, têm muita força. A linguagem pernambucana é muito bonita. E ela tinha essa força, uma loucura fabulosa perdida entre o sexo e a religião. É uma triangulação tenebrosa. O sexo, a religião e a família, que continua família, painho, mainha, mamãe, papai, tudo isso, essa grande doença que pode vir a ser a família. Essas mulheres marcaram muito, porque tinham uma liberdade que me cativava. Tanto que quando nós mudamos de Recife, porque meu pai foi roubado, faliu, ficou na miséria com seis filhos e veio trabalhar nas lojas de um tio dele na Liberdade, no bairro negro da Liberdade em Salvador, Adalgisa, a nossa empregada de Recife, que era uma mulher negra muito magrinha com 15 anos na época, veio conosco e está em Salvador até hoje. Tem 65 anos, por aí, porque ela mesma não sabe a idade. Esses nomes todos sempre foram fundamentais na minha vida: Adalgisa, Maria Pezão, Bidiu, Tereza. Isabel, empregada da minha tia, era uma “demônia” linda. Eu passava os fins de semana na casa de minha tia, Isabel era infernal e eu adorava tudo aquilo, porque tinha outra velocidade de raciocínio. Eu acho que elas sabiam direitinho o que estavam fazendo ali. Não havia submissão. Tinha uma coisa silenciosa, tinha o que o corpo delas falava, o que muitas vezes os olhares falavam. Bidiu era a mais fechada, mas as outras não.
P/1 – Como era a relação com as empregadas na sua casa? Elas usavam uniforme?
R – Não.
P/1 – Elas eram as responsáveis pelas crianças? Decidiam o que comer?
R – Não.
P/1 – Quem cuidava da empregada?
R – Não existia essa coisa “departamentada” na casa. Muitas vezes havia duas empregadas, uma que cozinhava e outra que arrumava.
P/1 – E elas moravam lá?
R – Algumas moravam e outras não. A Maria Pezão, por exemplo, morava em Cavaleiro. Mas elas não cuidavam das crianças: quem cuidava das crianças eram o pai e a mãe.
P/1 – Não tinha babá.
R – Não tinha babá, não se usava farda, nada disso. Eram pessoas que ajudavam na casa grande. Na casa de minha mãe e de meu pai, que também teve empregada, era assim. Adalgisa, por exemplo, cruzou uma grande parte da nossa vida, os últimos 45 anos. Ela fazia a comida e cuidava das coisas da casa, da roupa. Quando passamos a ter máquina, a gente ajudava a lavar a roupa. Mas não tinha nada de roupinha, aventalzinho, aquele negocinho que bota na cabeça, uma espécie de um solidéu. Nada disso. Eu gostaria muito de ter a possibilidade de escrever sobre elas um dia. Todas passam pelos meus livros, mas gostaria de ter alguma coisa mais precisa. No livro que estou escrevendo, que se passa todo em cima do Minhocão, esses nomes todos aparecem. Há raios que entram, pontos de fuga que entram nos apartamentos e que dão origem histórias de ficção com realidade. E muitas das histórias aconteceram com essas empregadas da minha memória. Por exemplo, Bidiu morava num lugar violentíssimo próximo ao Coque, em Recife, e teve a filha assassinada. Muitas vezes ela acordava de manhã ou estava dormindo à noite e ouvia um barulho de uma coisa caindo no quintal da pequenina casa, levantava para ver, era alguém em fuga que jogava um pacote de drogas. Essas são histórias que me interessam muitíssimo.
P/1 – E ela contava isso para vocês?
R – Ela é de Recife, mora em Recife. Contava para a minha tia e minha tia me contava. A minha história com a minha família é muito oral. Muitas histórias que me foram contadas estão no livro que estou escrevendo há dez anos, mais, 12 anos, chamado A Placa Mãe. Começa com o câncer de minha mãe em 1996, e eu não consegui acabar ainda. Cada vez que vou a Recife, sento com minhas tias e elas me contam coisas que foram desaparecendo da minha memória e que eu vou anotando. É muito prazeroso e é bonito porque há nelas algo de superior em relação a essa coisa mesquinha e tão chata atualmente de preconceito, de determinados desejos. Nada disso. Ali tem uma condição humana, se fala da condição humana. Havia uma mulher, casada com meu tio, que traiu o meu tio com um motorista de ônibus, é uma história linda que está no livro. Elas falam disso com um respeito profundo. Porque eu imagino que de certa forma há uma pequena vingança ali, dessas mulheres, vivendo aquele período todo, por uma delas, da família, trair o marido machão pernambucano com o motorista de ônibus. Que coisa deliciosa.
P/1 – Ela foi expurgada depois?
R – Não. Claro que não. Houve um silêncio enorme. É uma história trágica, ela perdeu muitos filhos, um deles atropelado num ponto de ônibus. Ainda bem que ele estava bêbado, não deve ter sentido dor. Perdeu um filho na roleta russa. Uma filha com cirrose. Um filho de um ataque fulminante. Tem uma história de tragédia muito grande nessa família e eram mulheres muito bonitas. Essa não era bonita fisicamente: era imensamente gorda. Fazia o que na Bahia chama-se cuba de gelo. Ela fazia formas de gelo de suco de manga ou de outras coisas, enfiava um palitinho e vendia esse picolé caseiro. Eu descia por trás, por uma cerca da casa dela, para comprar esse picolé. Sempre achei essa mulher incrível porque ela era imensamente gorda e a casa dela era mais alta. A Avenida José Rufino passava embaixo e quando, no fim da tarde, a sombra passava inteirinha pela frente da casa, parecia que a casa estava mudando de lugar. Sabe quando você olha para as nuvens e pensa que é a cidade que está passando? Foi muito bonito esse período da infância em Tejipió. Lindo. Eu acho que um pouco da minha estrutura vem dessa infância. Uma infância muito amorosa. Depois, ainda lá em Tejipió, quando eu comecei a crescer, entrei na adolescência, com 12, 13 anos. Adolescência é isso?
P/1 – É. Você cresceu lá.
R – Tejipió sempre. Até vir embora para Salvador em 1971.
P/1 – E lá você frequentou escola?
R – Escola e tudo mais.
P/1 – Alguma coisa marcante dessa sua passagem?
R – Bastante. Primeiro porque a gente tinha professores particulares. Segundo pelas casas que tinham terrenos incríveis, imensos, até com campo de futebol. Minha mãe jogava futebol com a gente, era goleira, Gilda. Uma mulher muito definitiva. E olha que para mim família não é tudo. Família é família e ponto final. Tem problemas sérios. Mas o que eu gosto mais da minha mãe é que ela morreu e não morreu, porque ela é presente na minha vida. Ela me disse coisas tão lindas que foi sempre muito emocionante. O meu pai também, apesar de ter me batido muito. Quando começou a adolescência eu apanhei demais. Eu sofria, era horrível porque era sempre aos sábados à tarde, ainda em Recife, ainda em Tejipió, numa casa enorme em que a gente morava. O fato de esperar o sábado para ele chegar do trabalho e aplicar a surra, sempre no mesmo horário.
P/1 – Mas por quê? O que acontecia?
R – Eu e meu irmão Wellington apanhamos muito, os outros não. Por exemplo, porque ele pagou um curso de inglês que eu não suportava, eu já jogava vôlei, então ao invés de ir para o curso eu ia treinar. Quando ele foi comigo buscar o resultado não tinha uma presença no inglês.
P/1 – Aí ele te bateu?
R – É. Eu fui um craque de vôlei quando vôlei não era o que é hoje, a gente era amador, jogava no Sport, era um prazer enorme. Outras coisas que talvez não estivessem dentro do esquema da cabeça daquele pobre homem que perdeu os pais jovem, foi posto num trem no Rio Grande do Norte como um pacote, e foi retirado em Recife aos oito anos de idade por um casal de tios, José e Maria, meus avós, eu os conheci. Pessoas espíritas. A primeira mesa branca da qual eu participei foi na casa dela. Fundamental essa mulher na minha vida. E ele também, cozinheiro do Palácio. Foi com eles que eu aprendi a cozinhar. Uma casa linda na parte invadida de um bairro muito chique chamado Espinheiro.
P/1 – Eles é que receberam seu pai?
R – Eles criaram o meu pai. E é esse pobre homem, o meu pai, que me batia. Quando meu pai era criança, e meus avós achavam que ele tinha feito alguma coisa errada, castigavam o meu pai dentro de um buraco que era cavado para jogar lixo. Muitas vezes meu pai me contou que ficava de castigo ali até escurecer. Então a cabeça desse homem que não conheceu o pai direito, o pai abandonou a mãe por outra mulher, embarcou num trem como um pacote para Recife e acabou tendo seis filhos. Quer dizer, eu só tinha raiva na hora que ele me batia, depois eu não conseguia ter raiva dele porque ele era tão bonito, tão elegante de roupa, e fez tudo pelos filhos. Tudo. Foi até cafetão, porteiro de boate, quando perdeu o emprego.
P/1 – Você disse que seu pai era comerciante. Ele gostava de cultura, investia na educação de vocês?
R – Meu pai investiu principalmente na minha educação, me pôs para estudar no Colégio Salesiano. Antes disso eu tinha estudado em colégios no bairro de Tejipió, num colégio chamado Wanderley Filho. Era tudo feito nesse núcleo, a circulação familiar ela ali. Os meus irmãos estudaram em colégio de bairro. Eu pegava o trem todos os dias quando comecei a estudar no Colégio Salesiano, em Recife. Foi no Salesiano que eu conheci um amigo que jogava vôlei, e começou assim a minha vida no vôlei, que foi incrível. Meu pai era gerente de uma loja chamada Império dos Plásticos, na Rua da Imperatriz defronte à igreja, que vendia plásticos em tubos, por metro. Minha mãe ajudava meu pai, fazia umas capas de geladeira, de bujão de gás, de máquina. Eu sempre achei aquele mundo incrível, uns plásticos verde água, azul turquesa, ela sentadinha, essas imagens nunca saíram da minha cabeça. Nós passávamos os finais de semana e as férias em Carpina, que é uma cidade na Zona da Mata, Carpina, Paudalho, por ali, onde existe a tradição do Maracatu de Baque Solto. Eu conheço Maracatu de Baque Solto desde que me entendo por gente. A diferença do Maracatu de Baque Virado é apenas um instrumento, um xequerê. A gente ia passar férias nessa casa e também participava de uma festa de reis tradicional. Na loja, meu pai tinha uma funcionária que todo sábado, às 11 horas da manhã, enlouquecia para ir embora antes do meio dia, dizia que ia viajar para ver a mãe e ele deixava. Na feira de Carpina tinha uma barraca da mulher decapitada viva que nunca saiu da minha cabeça, uma encenação num pequeno palco com uma cama, um corpo sem cabeça e uma geladeira. Um dia estávamos eu, meu pai, meus irmãos, minha tia na frente e o cara anunciou: “Senhoras e senhores, esta mulher morreu, este corpo ainda treme”. A mulher fez um gesto com a mão e escorreu uma groselha vermelha Foi fabuloso. Terminou com o homem abrindo a geladeira. O público se deslocou um pouquinho para a esquerda para ver a cabeça da mulher decapitada viva na geladeira. E de quem era a cabeça? Da funcionária da loja! Por isso ela tinha que sair mais cedo do serviço. Eu falei: “Meu pai, é Maria, meu pai.” Ele respondeu: “Cala a boca”. São histórias inesquecíveis desse período de Carpina e de Recife. Depois o irmão do dono da loja veio do Rio de Janeiro, deu um desfalque, a loja faliu.
P/1 – Em Carpina vocês ficavam na casa de alguém?
R – Meu avô tinha uma casa em Carpina.
P/1 – É uma cidade de praia? Um sítio?
R – Zona da Mata. Cana. A gente ia passar férias. Minha tia Hilda casou com um farmacêutico de lá, tio Quito, um homem lindo que morreu também muito jovem. Ela mora em Carpina hoje. A gente ia e ficava na casa do meu avô, ou na casa dela, e vinham alguns primos. Era aquela coisa das famílias que viajavam para passar férias de 30 dias.
P/1 – Seu pai não ia?
R – Não ia. Meu pai trabalhava, minha mãe ficava com ele. Iam os filhos só. Nem iam todos. Eu ia muito porque sempre gostei de Carpina. Carpina foi um mundo de convivência com o meu avô, antes de ele morrer, muito bom, de convivência com minha tia e meu tio Quido. Devo muita coisa da minha memória a eles dois. Ele era um homem absolutamente amoroso, amava minha tia. A convivência dos dois era muito bonita, muito harmoniosa, e ele já tinha três filhos quando casou com ela, depois ela teve mais um, Quidinho. Depois meu avô morreu, a casa dele foi vendida, ela veio para Recife e há uns seis anos voltou para lá. E aí o que aconteceu? Como a loja O Império dos Plásticos, esse nome incrível, fechou por conta do desfalque do irmão do dono, o dono se chamava Jesus e eu acho que o irmão se chamava Francisco, meu pai ficou sem trabalho.
P/1 – Então ele era gerente, não era dono.
R – Ele era gerente. Comerciário. Não sei se era gerente-sócio, vamos ficar por aqui, não lembro mais. Aí ele teve que procurar emprego e não achou. Até que lembrou de um casal de tios, tia Ana e tio Antônio, em Salvador, que esses sim tinham duas lojas de tecido e uma de calçados. Ligou. Tio Antônio disse: “Venha gerenciar as lojas aqui”. Nós entramos numa Kombi, toda a família com Adalgisa, a empregada, e com Avon, um cachorro, às cinco horas da manhã, e chegamos no fim da tarde em Salvador, no dia dois de julho, dia da independência da Bahia, em 1971.
P/1 – Já no meio da ditadura.
R – Já no meio da ditadura.
P/1 – Voltando um pouco. O Colégio Salesiano era em Recife?
R – Recife.
P/1 – E por que só você foi?
R – Não tenho a menor ideia. Nunca perguntei para meu pai. Acho que talvez pelo meu interesse em determinadas coisas, em livros, porque eu leio desde muito pequeno. As coleções dele, José de Alencar, Machado de Assis, eu sempre li bastante. Naquela época não era da contracultura ainda, mas era da Jovem Guarda. Eu sempre pedi muito para ir ao teatro. Vivia pedindo a minha tia para me levar para o cinema. Então talvez ele tenha se ligado. Ou talvez, eu não entendo, eu não sei por que isso, uma sacação dele de estudar no Colégio Salesiano, que era um colégio caro, um colégio particular bem caro e eu fiquei lá durante dois anos. Aos 13 anos eu comecei a jogar vôlei no colégio.
P/1 – E isso foi muito importante para você.
R – Foi muito importante porque eu joguei vôlei por 17 anos. Fui da seleção pernambucana, fui da seleção baiana.
P/1 – Quer dizer, você virou um desportista.
R – Por isso eu sou todo quebrado. Eu virei um desportista. Tenho muitas medalhas, ganhei muitas, muitos prêmios de melhor atleta, de melhor levantador. Primeiro pelo Sport de Recife. Depois quando mudamos, em 71, fomos morar no bairro negro da Liberdade, em Salvador, eu fui estudar no Colégio Duque de Caxias à noite e perguntei se tinha vôlei ou basquete lá. Um menino disse: “Tem vôlei e basquete de manhã”. Como eu não estava trabalhando ainda, e ficava pertinho de casa, fui de manhã. Conheci um cara chamado Ernani, que era técnico de basquete. Ele disse: “Olha, a gente tem um time de vôlei aqui, mas não é um bom time. Eu sou técnico de basquete da Associação Atlética da Bahia. Então eu te levo lá”. Ele me levou.
P/1 – Você entrou em que time?
R – Eu entrei na Associação Atlética da Bahia. Em um dia, no primeiro treino eu passei para o time titular infanto-juvenil, depois adulto. Foi incrível. Comecei a viajar pelo Brasil. Com o vôlei eu conheci outro mundo. Eu jogava num clube de elite, a Associação Atlética da Bahia.
P/1 – Isso com quantos anos?
R – Eu tinha 13, 14 anos. Jogava e estudava. Eu sempre odiei estudar.
P/1 – Você detestava a escola?
R – Eu odeio escola até hoje. Ficar defronte do professor para estudar, fazer dever eu achava uma chatice total, absoluta. Eu passava de ano só para me ver livre. Gostava de estudar fora dali, sempre tive muito interesse. Mas eu tinha bons amigos, bons colegas, a gente quebrava tudo, a gente fumava maconha escondido, então era bacana. Salvador foi definitiva na minha vida.
P/1 – Isso já foi em Salvador.
R – Já era Salvador.
P/1 – Como foi a saída de Recife?
R – A gente chorou o dia inteiro dentro da Kombi.
P/1 – Você e os seus cinco irmãos?
R – Todo mundo chorando dentro da Kombi. Foi um dia de choro.
P/1 – Sua mãe também?
R – Minha mãe também. Menos o meu pai. O cachorro nem latiu. Todos chorando o dia inteiro. Era uma vida que se rompia ali. Recife morreu. Os seis filhos, eu era o mais velho.
P/1 – Você é o mais velho?
R – Sou o mais velho. Quando chegamos a Salvador, devastados por essa saudade imensa e tendo deixado toda a família para trás, fomos morar nesse bairro negro. Primeiro ficamos uma semana com os tios, os donos da loja, em Itapuã, até meu pai conseguir casa. Ele alugou uma casa que era um apartamento embaixo de uma padaria. A gente acordava com o inferno em cima da cabeça, porque eles faziam pão. Nós moramos em lugares muito estranhos.
P/1 – E por que seu pai foi morar nesse bairro?
R – Porque só tinha lá. E porque as lojas eram lá. Na Avenida Lima e Silva, uma avenida principal da Liberdade, um bairro muito violento atualmente, mas um bairro negro fundamental. Fiz parte de todo o início do Ilê Aiyê, do Muzenza, do Olodum. Fui eu que escrevi a primeira matéria de revista sobre o Olodum, para a revista Exu, quando trabalhava na Fundação Casa Jorge Amado. Não lembro o ano. Lá em Salvador começou outra vida.
P/1 – Vocês chegaram a Salvador e seus tios foram receptivos?
R – Sim. Tio Antônio e tia Ana pareciam bonecas de cera. E havia uma prima, Divani, uma mulher música muito bela, que tinha um pouco de atriz, de vedete mexicana, uma mulher muito maquiada, muito especial. Ela é viva. Casada com um cafajeste, obviamente, que vivia com uma amante. Teve dois filhos, se não me engano. Mas ela foi uma figura que para mim parece uma foto-pintura, não na parede: uma foto-pintura em cima de um móvel da sala. Tem uma diferença muito grande.
P/1 – Com seus colegas da Associação Atlética da Bahia você entrou em outra classe social?
R – Elite total. Outra classe, porque a Liberdade é um bairro pobre. E eu jogava na Associação Atlética da Bahia. Uma noite, depois que terminou o treino, eu estava tomando banho e um menino muito bonito de Sergipe, chamado Edmilson, saiu do banheiro e veio me agarrar. Eu fiquei sem jeito. Não estava com a cabeça naquilo, não que eu não goste de sexo com homem, não é nada disso, mas eu fiquei meio sem jeito. Um cara que lutava capoeira no clube passou e viu a cena, foi para o diretor do clube e disse: “Diógenes e Edmilson estavam transando no banheiro”.
P/1 – E aí?
R – Uma delícia. Isso foi numa quinta-feira. No domingo, quando eu cheguei ao clube para passar o dia, como fazia sempre, tinha uma carta da diretoria dizendo: “A partir de hoje você não faz mais parte do nosso time de sócio-atleta”. Eu tinha 17, 18 anos. Peguei a carta e disse: “Eu quero falar com o diretor para saber o que aconteceu.” Você sabe que não se falava sobre isso. Eu disse ao diretor: “Eu estava tomando banho, o menino me agarrou, é verdade. Só que eu não saí do meu lugar para nada, infelizmente, porque ele era um homem muito bonito, poderia ter tido muito prazer”. O diretor foi ficando branco. Eu disse: “O senhor deveria falar com o capoeirista que isso deve ser problema dele e não meu. Eu não tenho problema nenhum com isso. Essa carta aqui para mim não faz a menor diferença, porque qualquer time daqui vai ter o maior prazer em me receber como atleta. E no dia em que eu for para outro time, que vai ser essa semana, vocês nunca mais vão ganhar nada, sabe por quê? Porque eu não vou deixar”. O homem ficou parado na minha frente, a mulher aquela coisa, a filha outra coisa, ele disse: “O que você está querendo dizer?” “Eu estou querendo dizer que vocês não vão ganhar mais campeonato nenhum enquanto eu for vivo e jogar. Segundo que esse problema de ter visto um homem, Edmilson, um homem muito bonito, agarrar outro homem muito bonito que sou eu, não é problema nem meu, nem de Edmilson, é problema do capoeirista. Pergunte para o capoeirista qual é o problema dele, porque comigo não tenho problema nenhum”. Dei a carta de volta e me fui embora.
P/1 – E aí?
R – Na terça-feira, João Alfredo Soares de Quadros, um homem que morreu dois anos atrás, fabuloso, ligou para a casa da minha mãe e disse: “Didi...” “O que foi?” “Eu preciso falar com você urgente. Venha ao treino”. Eu fui, ele disse: “Nunca mais você sai daqui”. Nós ganhamos durante dez anos o campeonato, eles não ganharam mais um campeonato. Obviamente que eu não sou nenhum herói, não estou falando isso. Eu não fiquei com raiva, mas achei violento. Primeiro porque não tirei partido nenhum, não tive prazer nenhum, e segundo pelo fato de você fazer uma carta, dispensar alguém sem ouvir o outro. Eu sempre falo nisso quando vejo essa questão de gênero, de você ter que dizer o que você é. O que é que você tem que assumir? Você tem um desejo, isso pertence a você. O problema do preconceito é do outro, a tragédia do preconceito pertence ao outro, não a nós. Se alguém diz que sua sexualidade o incomoda não é problema seu, é problema dele, essa pessoa precisa se tratar ou então fazer outra coisa na vida, plantar flores, fazer curso de flores de papel do Japão, como os policiais fazem. Não estou dizendo que sou herói, mas na cabeça de outro adolescente mais frágil isso poderia ter sido um trauma.
P/1 – Você é de uma família tradicional, portuguesa.
R – Família muito tradicional, não era rica de jeito nenhum.
P/1 – Sim, mas nos costumes.
R – Nos costumes, mas muito sofisticada.
P/1 – Como a sua relação com a sexualidade, esse acontecimento no clube, por exemplo, chegou na sua família? Como foi a sua descoberta da sexualidade em relação à sua família?
R – A minha sexualidade sempre foi muito clara. Quando eu estudava com dona Julinha, uma professora particular, eu tinha dez anos, vivi meu primeiro triângulo amoroso. Eu me apaixonei por Nara e por Breno, dois irmãos, e foi lindíssimo.
P/1 – Eles eram da sua sala?
R – Da mesma sala e vizinhos de casa, e depois jogadores de voleibol, mas uma geração depois da minha. Cobras. Ele menos, ela da Seleção Brasileira. Então eu nunca tive problema com o meu corpo. Tinha grande curiosidade pelo corpo masculino, porque o corpo feminino era mais visível, sempre foi muito mais visível. Eu via coisas escondidas dos meus tios, no quarto do menino que cuidava dos coelhos, do rapaz que morava no quarto de empregada e tinha na parede fotos de mulher. Mas nunca tinha visto um homem nu.
P/1 – Você não conviveu com os seus irmãos?
R – Sim. Mas era outra coisa, eram crianças, eram adolescentes. Eu nunca tinha visto um homem nu.
P/1 – Você nunca viu o seu pai nu?
R – Jamais. Vi meu pai nu depois. A casa tinha um corredor muito grande, do lado esquerdo tinha uma sala com o santuário, do lado direito eram os quartos dos filhos, o do meu avô era o penúltimo, o meu era o último. Muitas vezes eu ficava olhando pela fechadura para ver se via meu avô nu, porque eu queria entender que corpo era aquele e não tinha nada de desejo nisso. Nunca vi meu avô nu. Só conheci o corpo masculino adulto nu no vôlei. E foi muito importante para mim ver, reconhecer outro corpo que fosse igual ao meu, com a puberdade, com toda a transformação. Voltando à questão da sexualidade, houve essa primeira paixão aos dez anos, que foi ótima, a gente só não sabia dizer o que era, os três. Depois houve um silêncio muito grande. Eu tive uma vida sexual muito tardia talvez. Porque as pessoas fazem sexo com nove, dez, 11 anos, sei lá. Eu comecei a jogar vôlei e não existia mais nada no mundo que me interessasse a não ser o vôlei, ser um grande atleta como verdadeiramente eu fui. Só depois em Salvador, morando no bairro da Liberdade, veio a contracultura dos anos 70 e uma sexualidade de surubas maravilhosas com homens e mulheres. E os ácidos, as drogas que foram fundamentais na minha vida, devo muito aos ácidos, às cabeças de Mickeys, aos baseados, ao haxixe. Cocaína eu nunca gostei. Aos ponches, aos chás de cogumelo que nós tomávamos em Arembepe. Esses eram os demônios, porque dois dias depois estouravam uns tumores na gente. Do chá de lírio, na verdade, não de cogumelo. Eu não seria o homem que eu sou sem as drogas. Claro que a droga pode fazer muito mal. Eu escrevo sobre o crack aqui em São Paulo desde que surgiu, há 19 anos, lá perto da Pinacoteca, na Rua Mauá. A droga do meu tempo era uma descoberta, uma transgressão. Eu ficava doido e voltava para casa doido. Nunca fiquei pela rua. Para mim, Salvador foi fundamental. Salvador antes de entrar nesse processo de carnavalização a partir dos anos 80, 86. Hoje, para mim, Salvador é a cidade mais órfã do ponto de vista cultural do Brasil, é a que mais se vendeu. Mas a Salvador nos anos 70 até início dos anos 80 foi referência no mundo, era vanguarda com escola de teatro, música, cinema. Eu via shows do Projeto Pixinguinha. Vi um show de Simone e Sueli Costa onde Simone cantava Medo de Amar Nº 2. As mulheres quebraram o foyer do Teatro Castro Alves para invadir. Era Simone no auge da beleza, com um macacão de renda branco, deitada numa plataforma, cantando: “Você me deixa um pouco tonta assim, meio maluca.” E as mulheres desesperadas. Era o início do amor entre as mulheres. E ainda tinha os ácidos da Concha Acústica, Ney Matogrosso, Caetano de batinha. Tudo aquilo foi lindo.
P/1 – Sua vida de atleta foi muito diferente dessa de droga, de arte.
R – Não. Foi tudo junto. Não tinha separação.
P/1 – Como você entrou em contato com esse outro mundo?
R – No mesmo período em que eu joguei vôlei, a partir de 1971, havia os treinos, as surubas e as drogas. Tudo junto. Cheguei a Salvador com 14 anos. Um ano depois, já tinha passado pela história da Associação Atlética da Bahia, estava estabelecido como jogador de vôlei na AABB (Associação Atlética do Banco do Brasil). Era tudo junto porque os treinos eram à noite e eu tinha o dia inteiro livre. Só comecei a trabalhar depois.
P/1 – Você não estudava?
R – Eu estudava à noite. Tinha dispensa da escola para ir ao treino à noite, porque eu também jogava pelo time da escola. Eu ia às aulas segunda, quarta e sexta. Terça e quinta ia para o treino e eles sabiam, até porque eu tenho três prêmios intercolegial para o Duque de Caxias como atleta e fui o melhor atleta da escola.
P/1 – Então você tinha essa vida, tinha o dia inteiro livre?
R – Tinha o dia inteiro porque só depois de três anos em Salvador eu fui trabalhar num lugar chamado Sindicato dos Gêneros Alimentícios de Salvador. Fazia pagamentos e tudo mais o dia inteiro. Era uma loucura, porque era um lugar onde tinha secos e molhados, bacalhau e peixe seco, tudo mais, e quando eu voltava para casa de ônibus ninguém queria ficar junto de mim, porque meu corpo inteiro cheirava peixe seco.
P/1 – Por que você foi trabalhar lá?
R – Meu pai falou com um irmão do meu tio de Recife e ele tinha um amigo, que era diretor do sindicato, e conseguiu esse emprego. Então eu fiquei lá na Ilha do Rato. No meu segundo livro, Tire a Cadeira da Chuva, tem um conto que se passa todo na Ilha do Rato, onde fica a Igreja de Santa Luzia, na Cidade Baixa. Tudo isso aconteceu nesse período. Era tudo junto, as drogas, o vôlei, o Porto da Barra, a contracultura, a ditadura gritando no país, Salvador como referência no mundo das artes e a gente no meio de tudo isso. Muito bom.
P/1 – E você pleno?
R – Eu pleno. Totalmente pleno. Aos 60 anos vendo essa moral, isso que a gente está vivendo, fica parecendo que não houve passado. A gente quebrou tudo isso lá atrás para voltar e chegar onde a gente está. É chato. E talvez a cidade que trate isso da forma mais chata possível seja a nossa cidade tão amada, São Paulo. Porque os ingleses inventaram, no final da década de 80, essa questão de politicamente correto, e isso faz que pareça que estamos vivendo na Idade Média. Toda aquela liberdade, ter feito tudo aquilo, passado por tudo aquilo, não teve muito sentido – ou teve? Teve para nós, para a gente poder contar essa história. Eu penso muito na nova geração, como ela vem e como ela enfrenta todo esse acúmulo de informações, de mídias, Facebook, Instagram, WhatsApp, tudo isso. Essa certa superficialidade. Deve ser muito difícil ter um filho adolescente e deve ser muito difícil ser adolescente. Se você verdadeiramente quiser ver o mundo como ele é. Mas a ignorância às vezes é uma válvula de escape e ajuda.
P/1 – Diógenes, vamos voltar para o período das drogas. Como era sua vida? As festas? Como foi a sua relação com as drogas?
R – Foi tudo muito, muito suave. Esse período foi todo em Salvador. Eu mudei para São Paulo em 1989. As festas de rua, de largo, dois de fevereiro, oito de dezembro, a festa do Senhor do Bonfim, a procissão do Senhor do Bonfim dia primeiro de janeiro, dia do meu aniversário, isso do ponto de vista público. Não havia essa história de bloco, isso é antes do axé music. Anos 70 até 81. Os carnavais da Praça Castro Alves, tudo isso que você ouve falar em documentários que parece que têm um século, era absolutamente genial. O trio elétrico de outra forma, a violência que era muito menor, a possibilidade de sair à noite e não se preocupar em andar pela rua bêbado, ter uma segurança maior com a sua individualidade. Em 82 eu fiquei um ano na Europa, voltei para São Paulo, fiquei um ano e voltei para Salvador para passar o Natal. Então me convidaram para fundar e dirigir a TV Educativa em Salvador, fazer parte da equipe. Então eu fiquei de 84 a 89.
P/1 – A sua relação com as drogas te transformou?
R – Claro. Até hoje eu preciso fazer uma farra por mês. Não faço mais porque não tenho mais saúde. Se Deus existisse uma pessoa que bebe não teria ressaca. É incompreensível uma pessoa que bebe ter ressaca. Então eu bebo, eu faço uma farra grande, fumo minha maconha porque preciso. Mas isso não tem nada a ver com a minha criação. A minha criação desde sempre foi careta. Eu escrevo desde os 12 anos sem nada.
P/1 – Então nessa época você já escrevia.
R – Eu escrevo desde os 12 anos.
P/1 – E a sua relação com a imagem, com a foto?
R – A relação com a imagem começou mais profundamente em 1984, 85, quando eu estudei fotografia e imagem para a televisão, do ponto de vista técnico.
P/1 – Para esclarecer: você escrevia, estava no mundo do esporte, ia à escola. Continuou os estudos?
R – No final dos anos 70 eu fiz Letras e depois Jornalismo.
P/1 – Na Bahia?
R – Letras na Bahia.
P/1 – Jogando vôlei?
R – Ainda jogando vôlei. Em 83 eu parei de jogar vôlei porque minha vida mudou.
P/1 – O que aconteceu?
R – Eu tive o meu segundo emprego, a TV Educativa. Fiz parte da equipe que fundou a TV Educativa. Antes disso, em 1978, 79 e 80 eu fui convidado para trabalhar no departamento de comunicação da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Continuava tudo junto, menos a suruba: maconha e ácido. Mas já tinha feito Letras, estava fazendo Jornalismo, e tinha um trabalho das oito às duas.
P/1 – Isso mudou a sua vida?
R – Mudou. Foi uma mudança muito boa porque eu entrei no mundo cultural já praticamente como criador. O meu primeiro livro, Mingau de Alma ou o Traço Fixo da Loucura, foi publicado em 1980 pela Fundação Cultural do Estado da Bahia na Coleção dos Novos. A editora e autora do projeto era uma mulher incrível chamada Miriam Fraga, diretora da Fundação Cultural Casa de Jorge Amado.
P/1 – Então nesse mundo da cultura você também já foi se tornando um personagem.
R – Exato. Entrei na TV Educativa de uma forma mais profissional. Até esse emprego na Fundação Cultural, digamos assim, fazia parte de uma paisagem da cidade. Nós éramos do grupo da cidade que fazia a contracultura, fazia arte, e que dançava. Mas aí não, aí era uma coisa profissional.
P/1 – Você procurou isso? Isso chegou para você?
R – Eu acho que eu nunca saí disso, dessa questão toda cultural. É por isso que eu não tenho mais paciência para nada, porque desde lá de atrás foi tudo muito complicado, e agora só está pior. Eu sempre ouvi dizer que o Brasil era o país do futuro, que a nossa criação é fabulosa, e é o que nós temos de mais profundo. Depois de 85 começou a não ter políticas públicas definidas, a ser tudo uma dificuldade, a você ter que falar que faz cultura por amor. Eu não faço cultura por amor coisa nenhuma, até porque não acho que cultura salve ninguém. Você precisa de cultura, mas precisa de feijão, de arroz, de televisão, de um sofá, de um ventilador, de um batom, de sexo, de roupa. “Leva cultura que cultura vai resolver”. Cultura não vai resolver nada, as pessoas precisam de tudo, de química, de física, de biologia. Até a TV Educativa, em 1989, quando eu voltei para São Paulo, no dia 29 de setembro, ainda havia certa leveza comigo. A partir dos anos 90, quando eu comecei a trabalhar em São Paulo, essa leveza foi desaparecendo.
P/1 – Em que sentido, Diógenes?
R – Em todos os sentidos, sobretudo dessa questão de você ter lucidez, ter certeza de que não há futuro. O futuro só é aqui, o que a gente está fazendo aqui, o nosso projeto com o Sesc. Para mim, a condição humana nunca teve nem terá futuro, é assim desde sempre, desde antes de Cristo, desde o banquete do julgamento de Sócrates. Eu estou vendo muito o programa Investigação Discovery na TV. Muito. Porque é uma família feliz, a mãe amanhece morta e aí você descobre que foi a filha que matou e picou em 20 pedacinhos, botou no Tupperware e pôs no congelador. A representação é mal feita e tudo mais, mas você tem um extrato real de uma condição humana que me interessa muito. A fase de São Paulo, essa cidade pela qual sou totalmente apaixonado e que para mim é o único lugar onde é possível viver, foi fundamental.
P/1 – Como foi a chegada em São Paulo e por que você voltou para cá depois? O que aconteceu?
R – Eu vim para São Paulo em 82. Fiquei um ano. Fui para a Europa e fiquei um ano aqui. Arranjei dois empregos: primeiro eu fui vendedor de uma loja da Ellus no Shopping Ibirapuera, e foi infernal. Depois, Kid Diniz e Carlito, DJs de um lugar espetacular chamado Radar Tantã, uma danceteria no Bom Retiro, chamaram e eu fui ser barman nessa casa. Aí foi um mundo maravilhoso. Eram outras noites, só baseado, “baurete” mesmo, e muitos drinques. Os lançamentos de Cazuza, de Marina, de Velô. Outro mundo que se abria para mim, porque sempre fui muito louco por música, e eu tinha a possibilidade de ter tudo isso, os lançamentos e tudo mais. Lá no Radar Tantã mesmo.
P/1 – Onde você morava?
R – Morava com o meu amigo Giovanni Luquini, que era bailarino do Teatro Municipal, num prédio que eu chamo de Pirâmide, na Rua Major Diogo. Esse período foi lindo. Isso foi 82, 83. Uma fase muito bonita mas muito trágica também, porque muitos amigos meus morreram de HIV que era a peste gay daquele período. Muitos. A gente perdia amigos semana por semana, Galízia, depois Ney Galvão, enfim. Muitos amigos próximos. E a noite era espetacular porque a gente saía do Radar Tantã e ia para o Val Improviso. Eu sempre gostei da marginália, não me convide para festinha branquinha, de coisa arrumada, que você passa a noite, fica bêbado, sai de lá sem uma palavra. Eu não gosto. Eu gosto do “underground”. É desses lugares que você pode sair com alguma coisa. E é o que eu faço, eu saio dos lugares cheio de guardanapos escritos com frases, tudo isso está nos meus livros. Quando eu voltei para passar o Natal em Salvador com a minha família, aconteceu o convite para a TV Educativa. Eu não voltei mais.
P/1 – Como foi na Europa?
R – Eu fui para Paris e fiquei seis meses porque tinha uma amiga que tinha ido para lá, e ela disse: “Venha”. Eu fui e fiquei. Trabalhava como todo mundo naquela época, tomava conta de um ser humano pequeno que era um demônio e fazia faxina. Fiz muita faxina. Foi bom, mas nada significativo.
P/1 – Não foi nada?
R – Eu gosto de Paris agora, quando vou. Nunca tive esse sonho, Nova York, essa coisa classe média: “Eu vou para lá para voltar mais cosmopolita”. Viajei bastante, viajo ainda por causa do meu trabalho, e nunca tive nada disso. Para mim estava ótimo o quintal da minha casa. Para mim estava ótimo Recife. Para mim Salvador era o melhor lugar do mundo. Eu fiz essas viagens maiores já em São Paulo, comecei a viajar muito aqui por causa do meu trabalho. Paris naquela época não significou nada. Eu fui, fiquei seis meses e voltei. Aqui eu dividia um apartamento com Alberto Gieco, que era o assistente de direção do Hector Babenco no filme O Beijo da Mulher-Aranha. A gente conviveu muito, alguns atores, Raul Julia, Sônia Braga, William Hurt, o pessoal da equipe, era um momento muito bonito da cidade, mesmo com essa tragédia dos amigos todos morrendo, porque a gente não sabia o que era aquilo ainda, esse tal do câncer gay. Foi tudo muito importante para mim. Porque quando entro numa loja, eu entendo que aquela pessoa está ali para vender. Era um inferno ser vendedor da loja da Ellus no shopping, mas tinha um gerente ótimo lá, um menino muito divertido, e a gente se curtia para caramba. Depois, o Radar Tantã foi onde eu reencontrei Vânia Toledo, por exemplo, reencontrei algumas trans que eu já tinha conhecido em 80, 81. A gente convivia muito com Dedé Veloso, que é uma mulher especial. Muitos artistas, muitas noites de loucura que iam até amanhecer o dia, seis, sete horas. A gente amanheceu muitos dias no Val Improviso. Eu conheço bem São Paulo.
P/1 – Quando você se apaixonou por São Paulo?
R – Eu sempre fui apaixonado por São Paulo. Desde que eu vim jogar pela primeira vez, em 1974, a seleção baiana contra o Pinheiros. Foi um amistoso de três jogos, nós ganhamos uma de três a dois, três a um e três a zero. Perdemos as outras duas. Ficamos hospedados no Clube Pinheiros. Viemos de ônibus de Salvador. Quando eu desci em São Paulo eu disse: “Vou viver nesse lugar um dia”. E não era porque era grande, não. Salvador bastava. Lá atrás. Agora eu sei do que eu mais gosto em São Paulo: do anonimato. De não ter ninguém que possa saber da minha vida.
P/1 – Como seria em Salvador?
R – Salvador é uma província. São Paulo também é uma província, mas eu acho que a gente não tem muito tempo para se preocupar com a vida alheia. Basta dizer que minha casa foi assaltada, cinco pessoas ouviram barulho e não fizeram nada, de tão individual que se é nessa cidade. No Nordeste isso jamais teria acontecido. Se cinco pessoas tivessem ouvido um barulho estranho, teriam gritado, chamado a polícia, feito um escândalo. Mas isso não é a cidade, isso é quem habita a cidade, quem ocupa a cidade. Eu gosto do caos. Eu sou louco pelo caos de São Paulo. Eu vivo num lugar que eu adoro ver, sentir, que é o Minhocão. Acho que essa proposta de reformar o Minhocão, implodir, tudo bem, vamos conversar. Acho que para fazer um parque ali em cima teria que mudar a cabeça das pessoas, ou teria que gradear o parque inteiro, porque os moradores de rua cada vez estão em maior número, o crack está pulverizado. Não dá para fazer um projeto e publicar. Tem que se pensar profundamente, a cidade merece ser pensada. Eu acho que a cidade tem alma, como todas as cidades, e no caso de São Paulo, que é muito mais veloz, ela te diz: “Olha só, se você não souber que eu tenho alma eu te engulo em 30 segundos”. E ela faz isso. Ano passado eu aluguei um apartamento com meu irmão e fui passar todo janeiro em Salvador para fazer parte de um projeto, escrever um livro dessa série Sublimação Atualizada. Fiquei desesperado porque eu estava em casa a campainha tocava, o interfone tocava. Eu estava escrevendo e chegava uma pessoa, entrava, sentava, ficava duas horas conversando. Quer dizer, se isso é neurose, se for neurótico, eu não conheço ninguém que não seja. Nasceu, é neurótico. Eu vivo em São Paulo como se vivesse no interior do Piauí, minha vida é absolutamente tranquila. O bairro em que eu moro é tranquilo depois das seis. No fim de semana parece uma cidade do interior, a cidade tem tudo que você quer, se você quiser dormir, você dorme, se quiser acordar três horas da manhã para ir a algum lugar, ele existe. A cidade tem uma potência cultural e de criação muito grande. É a única cidade do Brasil onde você recebe 12 convites por semana para exposições. Em que lugar desse país e do mundo isso acontece? Quando eu estava na Pinacoteca houve uma pesquisa uma vez, eu não lembro que ano foi, 2009, oito: quais as cidades do mundo com mais aberturas de exposições por mês. Sabe qual é a cidade? São Paulo. Mais que Nova York, mais que Londres, mais que Paris.
P/1 – Como você entrou na Pinacoteca? Qual foi a sua relação com a fotografia?
R – Quando eu fui para a TV Educativa, comecei a estudar tecnicamente a fotografia do ponto de vista da imagem. Porque eu dirigia os clipes poemas, os documentários. Junto com isso tinha toda a minha pesquisa dos álbuns de família, que eu fazia muito silenciosamente. Em São Paulo, eu vim para uma agência chamada Textos e Ideias, uma agência de comunicação. Ficava lá e odiava, porque era uma coisa de assessoria de imprensa, mas como minha carreira é de jornalista, eu fazia os textos. Mas logo eu recebi um convite para ir para o departamento de comunicação da Secretaria de Cultura do município.
P/1 – De quem?
R – Eu trabalhei com Marilena Chaui, por quem tenho um profundo respeito, porque ela tem uma linguagem linda, ela é clara. Você pode dizer o que você quiser de Marilena, mas eu acho Marilena ótima. Nossas conversas eram lindas e eu fiquei lá durante dois anos. Até receber uma proposta para ir para o mesmo setor de comunicação da Secretaria da Fazenda. Olha que maluquice. Porque tinha uma amiga que tinha mudado para lá, Roseli, e ela assumiu a comunicação no tempo em que Frederico Mazuqueli era secretário da Fazenda. Com o Fred a gente fez uma coisa chamada Gincana da Nota Fiscal em todo o Estado de São Paulo. Eu viajei por muitas cidades do interior coordenando essa Gincana da Nota Fiscal. Quando isso terminou, eu falei não. Foi muito boa a experiência, mas não era a minha, a minha era o meio onde eu vivia.
P/1 – Que era?
R – Eu liguei para Emanoel Araújo.
P/1 – Você conhecia Emanoel?
R – Conhecia de Salvador já há muito tempo. Fui conversar. Ele falou: “Fica aqui. A gente vai fazer um departamento de comunicação”. Eu entrei na Pinacoteca em março de 1992 como diretor de comunicação. Ali já por conta da minha pesquisa com fotografia e com televisão e com tudo isso, foi o momento em que a Pinacoteca começou a explodir, em 1992. Você entrava no táxi e as pessoas não sabiam nem pronunciar Pinacoteca, se atrapalhavam com o P. Emanoel era uma cabeça genial. A gente ia chegando junto, conversando sobre fotografia. Ele me ensinou muita coisa de como ver fotografia de época, que ele tinha aprendido com um amigo que era um colecionador de Nova York. Aquela observação, a Pinacoteca foi fundamental nesse início. Em todas as exposições coletivas sempre havia fotografia. E eu comecei a fazer pequenas exposições já como curador de fotografia a partir de 1999.
P/1 – Você saiu da comunicação e começou a fazer curadoria?
R – Exatamente. Depois de Emanoel, assumiu o Marcelo Araújo, que não tem parentesco com Emanoel. Outro cara incrível, educadíssimo e que faz toda a diferença. Nós criamos o acervo do museu. Quando eu entrei lá o acervo tinha 78 imagens, quando eu saí, em 2013, tinha 600 imagens. Eu fui aprofundando, a fotografia foi ganhando os espaços do museu inteiro. Começa na cafeteria e vai aumentando, aumentando. Houve uma repercussão nacional, depois uma repercussão internacional. Entre 1999 e 2013 foram nove prêmios, três deles internacionais.
P/1 – Um por ano, praticamente.
R – Foram mais de 150 exposições. Só fotografia. Nem sei quantos livros estão publicados em catálogo, cerca de 70. É um acervo importante porque foi construído por doações de fotógrafos, 95% das obras foram doadas, e muitas delas foram feitas a partir de projetos desenvolvidos para o próprio museu.
P/1 – Cada vez que você organizava uma exposição ela se tornava parte do acervo?
R – Foi uma coisa muito orgânica. A partir do momento em que a cidade tomou conhecimento de que existia um curador de fotografia, a procura começou a ser grande e foi preciso fazer uma seleção, uma programação. Se tinha uma programação de 2000, todos os fotógrafos que expuseram no museu em 2000 doaram duas ou três imagens para o acervo. Ou seja, o acervo começou como foi possível começar. E é possível notar uma diferença de papéis, de estilos. Foram feitas muitas exposições sobre arte e religiosidade nos anos 90, momento em que os fotógrafos se voltaram em grande número para arte e religiosidade do Brasil. Eu devo ter feito umas seis ou sete exposições sobre arte e religiosidade. Depois o museu investiu nas pesquisas de acervo, depois houve exposições sobre o retrato, de fotógrafos que nunca haviam feito exposições representativas, como dona Aracy Esteves Gomes e como Voltaire Fraga; e também exposições coletivas como a do ano do Brasil na França, A Procura de um Olhar. Este é um acervo de fotografia brasileira, que é pelo que eu me interesso. Não dá mais tempo de conhecer o mundo inteiro, conhecer todos os fotógrafos. E nem quero. Não cabe mais na minha cabeça.
P/1 – E esse foi um período muito bom na sua vida?
R – Muito bom e muito ruim.
P/1 – Por quê?
R – Muito bom porque era de uma criação grande. Mas exigia um compromisso muito grande e depois de um período eu estava cansado. A Pinacoteca se profissionalizou de uma forma muito bonita, o trabalho de Marcelo é espetacular. Nossa conversa, nosso diálogo foi sempre muito límpido. Quando Marcelo saiu para assumir a Secretaria de Cultura, começaram as dificuldades, porque a minha cabeça não batia com a cabeça do novo diretor, eu não estava mais disposto, comecei a me programar durante dois anos para deixar o museu. E deixei o museu em 2013.
P/1 – Você sofreu muito com isso?
R – Eu sofri porque eu não tinha vontade de entrar mais ali. Aquelas pessoas que estavam ali em determinados cargos não tinham nada a ver comigo, nem eu com elas. Eu achava aquilo absolutamente careta. O fato de você ter mestrado, doutorado, post-doc, isso funciona em determinada situação. Numa situação de lidar com o museu, de exposições, de conhecimento visual, fotográfico, isso não funciona. Os três últimos anos lá foram bem difíceis, não havia prazer nenhum, eu já tinha tido a minha primeira crise de pânico, mas tive momentos muito bonitos lá.
P/1 – Antes disso?
R – Antes disso. De 2000 até 2010 foi muito incrível. O trabalho todo, a relação com os fotógrafos foi bonita. Eu não fiz nada achando que ia ser imortal ou definitivo, o que eu fiz foi o meu trabalho, eu faço sempre o meu trabalho, não tenho essa viagem. Faço meu trabalho do melhor jeito possível, e eu sei fazer o meu trabalho. Tenho certeza, segurança de tudo. A minha dificuldade é trabalhar com a mediocridade de que o Brasil e o mundo e São Paulo estão cheios. A mediocridade me acaba. Estou ganhando muito menos agora porque não quero gastar meus ditongos, não quero gastar minha palavra. Não tenho mais tempo para isso. Porque a mediocridade é imensa, cada dia mais, mesmo nessa cidade pela qual eu tenho profundo respeito. Mas da mediocridade estou fora total. E aí no meio de tudo isso vieram os livros que sempre foram a minha vida cotidiana.
P/1 – Como você começou a escrever e como isso foi se desenvolvendo na sua vida?
R – Eu nunca deixei de escrever. Eu acho que o que faz com que eu seja um escritor, sobretudo um cronista e um contista, é a minha curiosidade para com o mundo e a minha disponibilidade em ver o mundo. Se você me perguntar o que eu percebo na minha personalidade, eu vou te dizer que eu falo da fotografia com toda segurança porque eu sempre enxerguei bem. E eu tive dois problemas grandes desse ponto de vista na minha vida: minha avó Maria, aquela que criou meu pai, morreu cega, e meu pai ficou cego, por um erro médico, a partir dos 60 anos. Ele morreu cego aos 94 anos.
P/1 – Ficou 34 anos cego?
R – Ficou. E nas últimas vezes em que estive com ele, eu andava em volta do quarteirão da casa, pequenas voltas, porque ele tinha medo. Ele não foi um cego que foi para a rua, ele se fechou. Eu traduzia as imagens para ele poder captar, o que sempre foi muito provocante porque parecia que ele via melhor do que eu. Na Pinacoteca eu encontrei o Evgen Bavcar, fotógrafo cego que vive na França, e senti mais ou menos a mesma coisa. O Evgen tinha outra percepção, tinha uma técnica fotográfica de ver. Ele me pedia para passar a mão numa escultura de Rodin e ia dizendo a forma. Para o meu pai eu falava sobre a vida cotidiana, a casa, a parede da casa, a janela, como está o sol, qual é a árvore, como está o cachorrinho. Como está minha mãe, os cabelos da minha mãe.
P/1 – E ele tinha curiosidade por isso?
R – Às vezes ele perguntava e muitas vezes não perguntava. Os últimos anos foram terríveis, numa casa no Garcia em Salvador, mas mesmo assim a gente conversava muito.
P/1 – Ele continuou trabalhando depois de cego?
R – Não. Ele se aposentou e parou. A minha escrita vem de muito antes, vem dos 12 anos, mas eu sempre tive interesse pela imagem. E um interesse bom no mundo, a minha infância foi muito boa. Se eu tivesse grana, não precisaria sair da minha casa, não precisaria sair da minha janela nos Campos Elíseos, bastaria sentar ali porque o mundo inteiro está ali naquela janela. Eu tenho muito material para escrever dentro da minha cabeça. A minha infância inteira, só essas mulheres que foram as empregadas domésticas… Está certo falar empregada doméstica? Porque eu já nem sei mais, porque não se pode falar coisa nenhuma!
P/1 – Estas mulheres ocupam a sua cabeça.
R – Elas são inesquecíveis. Totalmente inesquecíveis. As mulheres da minha família são completamente inesquecíveis. O meu pai é completamente inesquecível e é uma figura que passa por todos os meus textos e todos os meus livros. A minha mãe nunca morreu. Meu pai morreu em Salvador quando eu estava abrindo a exposição do Luiz Braga, em maio. Minha irmã me ligou e disse: “O nosso pai acabou de morrer. Você vem?” “Eu vou abrir a exposição, vou voltar para casa, vou sentar no sofá e vou pensar se eu vou ou não”. Voltei para casa, sentei no sofá durante duas horas, passou o filme todo, eu liguei para ela e disse: “Eu não vou. Minha vida com o meu pai está resolvida”. Inclusive porque ele tinha me dito: “Se você estiver trabalhando, não venha”.
P/1 – Ah é?
R – Foi. Claro. A gente tinha isso claramente.
P/1 – Ou seja, você se tornou uma pessoa muito próxima dele.
R – Muito. Éramos completamente apaixonados um pelo outro. Talvez depois, eu como adulto tenha preenchido o fato de ele ter feito aquele sacrifício tão grande de me colocar num colégio tão caro que foi o Colégio Salesiano de Recife. Ele sempre foi aos lançamentos dos meus livros, esteve presente na minha vida como minha mãe. Minha mãe, Gilda, uma mulher inesquecível.
P/1 – Como é escrever para você?
R – Eu não sou um homem de romances, de livros longos. Eu li muito poucos romances na vida, eu leio muito conto, gosto de reportagens, de poesia. Só que poesia ou é boa ou é uma catástrofe: não há meio termo, como na fotografia. Você sabe quando uma foto é boa ou não é, quando um texto é bom, quando não é. O Caio Fernando Abreu, que é um amigo, fez um prefácio de um livro meu que nunca saiu, chamava-se Vende-se Carne, de crônicas que eu escrevia para a Folha da Tarde. No prefácio ele diz que Diógenes poderia ser um romancista por causa das histórias. E muitas vezes a gente conversava, ele tomava um copo imenso assim de conhaque, e dizia: “Às vezes quando você não tem o que fazer você mata o personagem para não ir mais adiante”. Eram muito engraçadas as conversas nossas. Mas não era verdade, eu não matava. Os personagens morriam porque todo mundo morre. Estava cansado de escrever talvez. E tudo isso foi crescendo, o tempo foi passando, e eu fui enxergando mais, fui achando tão legal viver assim mesmo nesse abismo, mesmo com todas essas questões que a gente tem que enfrentar diariamente, com as mortes de pessoas tão próximas. Meu irmão morreu de câncer, minha mãe morreu de câncer, meu pai morreu cego, os três sem seguro saúde, mas eu nunca fiz tragédia de nada disso. Tudo isso para mim é literatura pura, como foi e continua sendo literatura o arrombamento do meu apartamento 40 dias atrás num bairro que se modificou, onde ocorrem quatro arrombamentos por semana. Eu nunca fiz tragédia de nada verdadeiramente. Eu tenho um prazer enorme em escrever, então eu escrevo do nada. Eu escrevo muito em avião, por exemplo, porque a falta da educação das pessoas nos aviões é comovente. Sobretudo quando levam os seus filhinhos, esses mini-humanos que são uns pequenos monstros que correm e gritam, e amassam um saco de uma coisa para comer e os pais acham tudo lindo. No Brasil pai acha lindo o que filho faz, seja o que for: ele pode estar furando seu olho o pai está achando lindo. Tudo isso é um material literário dentro da condição humana. Isso é uma coisa. A segunda coisa é que eu acho que eu escrevo e reescrevo sempre é o mesmo livro. Com exceção do Elásticos Chineses: poemas físicos porque a minha relação muito próxima com minha mãe e antes dela morrer, para mim foi muito dura. Antes de ela morrer brincando eu disse: “Você faria tudo de novo?” “De jeito nenhum. Eu só conheci um pau que foi o de seu pai. Eu amo vocês, vocês são minha vida, mas eu não faria nada disso novamente. Eu queria era ser uma borboleta para estar pelo mundo”. Eu achei: “Puxa, que mãe ótima eu tenho. Mesmo com câncer na coluna, sabendo que daqui a pouco vai fazer a passagem, ela não disse: `Ah, vocês são minha vida. Seu pai foi meu amor’”. Sabe essa conversinha tipo editorial daquela mulher que fala com o papagaio de manhã na televisão? Nada disso. Isso me fortaleceu muito. Falei: “Porra, essa é a Gilda”. Porém, há 21 anos, toda vez que eu ia a Salvador eu me despedia de minha mãe e de minha família.
P/1 – Sua mãe voltou para Salvador com o seu pai?
R – Sim, ela morou em Recife quatro anos, quando descobriu o câncer. Mas como em Salvador tínhamos um tio médico, ela foi para lá, e conseguiu medicamentos do governo. Ela voltou para lá com o meu pai, minha irmã, os três filhos de minha irmã e meu irmão Edson que era alcoólatra, o que morreu de câncer. Foi em Salvador também que o filho de minha irmã que eu criei, Marcelo, que hoje é Marcele, fez a transformação e é trans. Tudo isso é outro livro que está dentro dos meus livros. Em Salvador e mesmo em Recife, cada vez que ia me despedir para entrar no avião eu voltava morto. Até hoje eu tenho isso, mesmo nas cidades em que eu vou trabalhar, pesquisar: quando estou dentro do avião, esperando que ele levante voo é praticamente como se eu estivesse morto, me sinto oco, vazio. Depois, eu sinto uma alegria imensa quando o pneu do avião toca Guarulhos.
P/1 – Isso tem a ver com a sua mãe?
R – Eu agora fiquei dez dias trabalhando em Fortaleza. Quando eu entrei no avião, estava completamente oco. Aí o avião começou a voar e em 20 minutos eu melhorei. Mas parece que ficou um pouco ali. Minha mãe era a última pessoa que eu abraçava e beijava. Muitas vezes chorei no táxi até o aeroporto pensando: “Eu estou deixando a minha mãe mais uma vez, eu estou deixando a minha família mais uma vez, estou deixando o meu passado mais uma vez”. Em 1998, quando fiz o Elásticos Chineses, fiz um poema para ela, Bolero, que fala disso: “Teus olhos rasos d’água, os meus olhos rasos d’água, dois em cima, dois embaixo...”. E aí vai o poema inteirinho que é essa despedida. Era muito doloroso, minha mãe teve câncer durante dez anos. Mas não era porque ela ia morrer, está tudo certo ela morrer, inclusive ela morreu na hora certa, não aguentava mais. Era a despedida, o fato de eu de deixá-la ali, de deixar a minha família, meu núcleo familiar. E eu sou um homem cético, mas adoro que essas pequenas fraquezas permaneçam.
P/1 – Você pode descrever sua mãe? Quem é ela? Por que ela não morreu?
R – Não morreu porque elas não morrem, as mães não morrem, elas são as demônias. Eu acho que mesmo que você odeie uma mãe, ela não morre, está presente. Eu lembro de minha mãe diariamente, dou muita risada sozinho, às vezes sonho. Tenho só duas ou três fotos dela, fotos normais assim de casa. Uma está em cima da televisão velhinha lá de casa, é uma foto linda que eu fiz dela com meu pai. Essas pessoas não morrem. Os meus mortos estão vivos, muitos deles estão vivos. Gilda era na dela. Era uma mulher com pequenos preconceitos, mas ao mesmo tempo era muito aberta. Era abria a casa para todos os meus amigos, um bando de malucos. Às vezes chegavam dez para almoçar, todos “emaconhados”. E ela tudo de boa. Naquele período a gente não vivia tão miseravelmente, então tinha comida para todo mundo. Iam as travecas, iam as bichas, iam os meus amigos malucos. A casa sempre foi aberta, mas aberta com uma disciplina. Era aberta durante três horas do almoço, aí a gente saía para voltar para o jantar, ou para as pequenas festas do meu aniversário. Não havia essa democracia horrorosa de hoje em dia. A gente não tem outro sistema e a democracia num país como o Brasil obviamente é muito bem-vinda, mas aqui ninguém tem limite. Eu fui atropelado duas vezes no Minhocão porque as pessoas andam voando de bicicleta ou de skate. Você está lá escrevendo, vem aqueles cachorros horrorosos e começam a lhe lamber e o dono acha lindo. Todas essas coisas não têm muito sentido. Outro dia eu tinha um homem afinando um clarinete às sete e meia da manhã de um dia de domingo no Minhocão. Desculpe, as pessoas estão dormindo às sete e meia da manhã. A minha casa foi uma casa sempre muito aberta, mas havia uma disciplina, havia um respeito, havia uma hora em que as portas se fechavam, havia uma hora em que havia silêncio. Minha mãe era gentil mas também era revoltada.
P/1 – Ela era revoltada?
R – Revoltada assim: “Essa pessoa é uma imbecil. Olha para isso”. Ela chamava sempre as pessoas de imbecis. Por exemplo, hoje eu saí e quando fui atravessar a rua vi na minha frente para uma senhora jovem de 26 anos, no máximo 30, com um bebezinho no braço e mais quatro crianças, indo para o posto de saúde. Aquilo mudou o meu dia. Se minha mãe estivesse junto, iria dizer: “Olha para essa imbecil com cinco filhos. Não tem nem condição”. Mas isso não era por raiva, era compaixão. O linguajar dela era muito bonito porque tinha compaixão. Mudou o meu dia. Minhas observações sempre foram muito próximas das observações de Gilda, minha mãe. A gente sempre se deu superbem. A família, claro, tem todos os problemas possíveis e imagináveis. Mas ninguém teve que se matar ou matar alguém, ou picar e botar no congelador porque nunca teve dinheiro. Não teve disputa. Os irmãos são todos casados e vivem em suas casas. É uma família bem legal.
P/1 – Como foi você ter um enteado que era uma enteada?
R – Maura, minha irmã, era casada com um cara que era alcoólatra, Ari. Acho que ele era frágil. Eles casaram porque ela engravidou, e tiveram três filhos que foram criados dentro da casa de meu pai e de minha mãe. Nós, eu porque era o filho mais velho, meu pai e minha mãe, ajudamos a criar os três, num apartamento de segundo andar no bairro da Liberdade, em Salvador. Marcelo, o do meio, sempre foi um menino lindo. Não brincava de boneca, nada disso, teve namoradas e tudo mais. Mas em Recife ele começou a viver uma vida noturna no meio das baladas, das trans, do “mundo gay”. Digo “mundo gay” entre aspas porque essas coisas estabelecidas me incomodam um pouco. A partir daí ele começou a passar por um processo de transformação interior, não físico ainda. Então um dia de quinta-feira ele disse à minha mãe, que nessa época estava em cadeira de rodas, que ia passar o fim de semana na casa de um amigo. Ela disse: “Vá. Só não fume maconha, beba e saia dirigindo para não ter acidente.” Passou a sexta. No sábado, ela estava vendo o jornal local na televisão, e aparece na um acidente de carro com dois jovens não identificados. Isso era meio dia, uma hora. Ela continuou na cadeira. Três horas da manhã Marcelo entra enfaixado do pescoço aos pés. Ela começou a passar mal e dizia: “Eu vi o acidente na televisão, eu lhe pedi para não fazer isso com o seu amigo.” “Minha avó, eu não sofri acidente nenhum. Eu apenas virei mulher”. Aí ela disse: “Como?” “Eu não sou mais Marcelo, minha avó. A partir de hoje me chamo Marcele. Eu apenas virei mulher”. Tinha botado silicone do pescoço aos pés. Pegou o dinheiro de minha irmã para pagar uma trans no Edifício Holiday que aplicou o silicone com a agulha que se aplica coisa em cavalo. Botou peito, bunda, perna, ficou linda. Mas não operou, tem pinto. Minha irmã tinha um namorado médico que ficou a noite inteira ao lado dela, porque se entrasse na corrente sanguínea, ela morreria.
P/1 – Como sua mãe reagiu?
R – Minha mãe fingiu que estava tudo bem. Minha irmã teve uma crise de choro de duas horas. Meu pai já não enxergava mais, portanto não via. Quando Marcele via que meu pai vinha pelo corredor, se encostava na parede de costas, porque como meu pai vinha tateando, não esbarrava nos seios dela e não descobria. Nesse tempo eles moravam em Recife. Depois de um ano minha mãe ligou e disse: “Quero voltar para Salvador. Faça a minha mudança que eu não fico mais aqui. Não quero ver as pessoas da família olhando para Marcele desse jeito”. Em Recife a violência é pior, o machismo é pior, o preconceito é pior, a ignorância é pior.
P/1 – E essa sua irmã e a Marcele hoje vivem aonde?
R – A Marcele mora em Salvador com minha irmã. Minha irmã estava em Recife porque queria se afastar um pouco. Mas quando ela foi preencher uma ficha no prédio onde morava o porteiro perguntou: “E o seu marido?”. Ela disse: “Não, eu não tenho marido.” “Como a senhora não tem marido? A senhora vai morar sozinha nesse apartamento?” “Vou”. Idade Média em 2017. Então a Marcele ligou dizendo:
“Minha mãe, eu to ligando apenas para lhe dar um abraço de despedida”. Maura disse: “Você vai morrer?” “Vou. Eu estou com HIV, sífilis, suspeita de câncer no fígado e hepatite C”. Minha irmã me ligou, eu falei: “Eu vou ligar para dar os parabéns, porque realmente é um combo fabuloso. Uma pessoa para chamar atenção fazer tudo isso, está de parabéns”. Marcele fez a transformação física, mas a cabeça não acompanhou o corpo. Embora há 15 anos ela tenha me dito uma frase linda. “Eu não fiz opção. Eu nasci no corpo errado”. “Opção você faz quando tem saída. Eu nasci no corpo errado”. Então a minha irmã voltou para Salvador, vive lá e Marcele está se tratando. Ou seja, veja como eu tenho sorte. Se eu juntar essa história com a história da gerente da casa de meu pai, que era a cabeça, mais duas ou três, preciso mais o que? Para que sair de casa? Tá tudo ali. E os livros são todos assim.
P/1 – Diógenes, na sua vida amorosa, afetiva, tem alguma coisa que te marcou?
R – Eu tive dois casamentos com duas mulheres ótimas, em casas separadas, óbvio, que eu não sou maluco de morar na mesma casa. Esses casamentos terminaram porque elas queriam se reproduzir e eu nunca quis me reproduzir. Esse negócio de ter filho não é comigo. E tive um casamento que não era casamento, com um cara muito importante, Teo, Teodomiro, que durou cinco anos. Eu nunca tinha me aproximado de um homem assim, para viver e dormir juntos, então foi muito engraçado também.
P/1 – Isso foi depois das mulheres?
R – Depois das duas meninas lindas. Ficamos cinco anos juntos. O Teo foi muito importante. É um amigo até hoje. Muito importante. A gente se divertiu muito, mais do que eu me diverti com as meninas, porque era uma coisa mais de homem. Mulher é mais certinha.
P/1 – Todos em São Paulo?
R – Todos em Salvador. Nunca tive nenhuma relação amorosa que fosse representativa em São Paulo. Há 29 anos. O que estou te contando é bem antigo. Depois que cheguei em São Paulo não teve nada realmente importante. Eu tenho muita coisa escrita sobre isso.
P/1 – A sua última relação importante foi com o Teo?
R – Acabou em 1982. Há 35 anos eu não tenho nenhum casamento, nem com homem, nem com mulher. E não quero.
P/1 – Mas o que aconteceu?
R – Não tenho a menor ideia, não tenho a menor explicação. Existe paixão? Existe. E é sempre bem vinda. Até que uma paixão me traia. Talvez eu tenha me fechado um pouco. Sexo é absolutamente outra coisa. Eu adoro sexo e faço sexo bastante. Não tem nada a ver com isso. Às vezes eu até sinto falta, mas eu gosto muito de ficar sozinho. Outro dia eu vi no Instagram, por acaso, o Agnaldo Silva andando por Portugal ou Nova York, e ele estava dizendo: “Eu não sei que diabo é isso que eu sinto tanto prazer em ficar sozinho”. Eu fiquei pensando: “Puxa, que ótimo que eu ouvi isso porque eu fico absolutamente ótimo sozinho”. Cada dia mais. Pode ser ruim, não sei, mas eu fico muito bem sozinho, a minha casa é ótima, os meus amigos são ótimos, a cidade em que eu vivo é ótima, o Minhocão está lindo na frente lá de casa. O meu pôr de sol é o Minhocão. Está tudo certo. Eu gosto do caos, eu vivo muito bem sozinho. Até que uma paixão me surpreenda, não dá para abrir mão de tanta coisa bacana e legal para viver pequenas picuinhas de ciúme, do dia a dia. Eu acho que intimidade é como luz, quanto menos melhor. Quando gosto muito de uma pessoa, não fico muito próximo, porque o dia a dia é muito chato. Porque nós somos todos iguais, faz cocô, espirra. Tenho mais o que fazer.
P/1 – E essa sua opção de não ter filhos sempre foi clara?
R – Muito. Eu nunca quis ter filhos. Eu não nasci para ter filho. Não acho a menor graça. Ajudei a criar os filhos da minha irmã por respeito a ela, que engravidou muito jovem, com 17 anos. Porque naquela época meu pai ameaçou voltar para Recife e ela estava apaixonada. Veja bem a inocência dessa menina. Ela pensou que ficando grávida obrigaria o meu pai a ficar, e foi o que aconteceu. Mas um dia eu cheguei em casa e ele estava sentado na cama puxando os cabelos e dizendo: “Minha filha é uma puta. Minha filha é uma puta”. Depois de dois dias eu disse: “Minha mãe, o que aconteceu?” “Maura está grávida”. Se eu fosse rico eu pagava essas pessoas todas, como eu faço quando vou para os inferninhos do centro da cidade e vejo as travecas, os bêbados dizendo coisas que eu anoto. Eu pago 50 reais, cem reais, dou dinheiro a eles. Porque as pessoas dizem coisas inacreditáveis. O título do meu monólogo novo foi uma menina que me disse numa farra às cinco horas da tarde.
P/1 – Qual é?
R – Remédio para sentimentos. Eu estava falando e ela falou: “Eu tenho uma amiga que também toma remédio para sentimentos”. Coisa linda. Remédio para sentimentos, era tudo que eu precisava. Aí eu fiz o monólogo em Serrinha e mandei um convite para ela. Eu disse: “Olha, o título é seu, eu estou ligando para saber se posso utilizar.” “Como? Eu disse isso onde?” “Em tal lugar, a gente estava comendo acarajé na casa de Luana, estávamos eu, você, Cris, Ganecha, seu namorado. Você falou isso e eu anotei na hora.” “Ah, eu não lembro”. Eu sou bom de título, mas remédio para sentimentos é como ganhar na loteria. Tudo isso que estamos dizendo aqui poderia ter esse título.
P/1 – Você descreve sua vida como um livro. Qual o seu olhar sobre essa narrativa? Onde você está nesse livro?
R – Eu gosto. Tem momentos que fico mais frágil, como agora, contando essa história da síndrome de pânico. Minha pressão subiu, o zumbido aumentou. A gente sempre acha que tem estrutura, mas chega um momento em que é muito bom você provar que tem resquícios de humanidade. Agora já estou bem porque o remédio do pânico estabilizou. Tenho um combo: pânico com depressão, com angústia, com ansiedade. É muito lindo tudo isso. Eu gosto de tudo. O que eu não consigo mais suportar é a mediocridade. Isso está acabando comigo. E essa coisinha de politicamente correto, dessa moral no meio dessa bandidagem toda, dessa corrupção toda. Essa caretice desse mundo no qual a gente está vivendo. Isso para mim é muito difícil. Saio e tento diariamente aproveitar algo de um dia. À noite eu sempre deito e digo: “Bom, vamos lá, e aí? Hoje eu ganhei de presente essa imagem dessa mulher com os cinco filhos. Então está bom. Está ótimo”.
P/1 – Essa é a conta que você faz na vida.
R – É. Acho que a vida é para ser vivida. Se você não consegue, suicida. Eu acho lindo também. Sei que cada dia que passa a gente se aproxima mais da morte, tenho um respeito profundo pela morte, acho linda a morte também. Não quero morrer agora, se for possível. Não sou uma pessoa que tem uma religião, mas tenho uma religiosidade muito grande. Eu me divirto muito, do meu jeito, dentro do meu silêncio, dentro do meu respeito pelo outro. O fato de poder enxergar o que está ao redor é muito bom. Então está tudo certo. Não tem nada errado. O que me incomoda um pouco mais é que eu estou trabalhando três vezes mais para ganhar três vezes menos. Como criador, como escritor, isso atrapalha. Mas estamos aí, não tem jeito, o país está dessa forma.
P/1 – Você se sente só?
R – Nunca me senti só. Eu fico abismado como alguém diz que sente solidão, que está sentindo solidão. Nunca senti solidão na minha vida. Eu sinto muito raramente angústia, muito raramente, uma coisa doce. Angústia é algo um pouco doce. Agora, o tal do pânico é terrível porque ele embute a depressão, é muito desconfortável. Solidão jamais. Eu sou capaz de viver sozinho assim tranquilamente. A gente não vive sozinho porque nós temos o mundo inteiro do lado. A gente tem famílias. Quer dizer, a minha família mora longe, mas eu tenho amigos, então essa história de solidão, me desculpem os psicanalistas, os psicólogos, talvez até uma coisa de uma deficiência psicológica de estrutura mental. E numa cidade como essa deslumbrante, a cidade mais segura do país. Veja bem. Eu viajo, a gente vive na cidade mais segura do país. Num momento como esse é muito importante isso, mesmo sendo do jeito que é. O que acaba comigo é a mediocridade. Eu tenho que arranjar uma técnica ou um medicamento contra a mediocridade. Às vezes vou para reuniões, vejo as pessoas falando, e isso se torna desconfortável, porque a gente trabalha numa área cultura onde se acha erradamente que as pessoas são mais inteligentes. Mentira. Que são mais sensíveis. Mentira. Que são menos preconceituosas. Mentira. Que existe menos rivalidade. Mentira. C’est tout la même chose. O bagulho é sinistro. É isso.
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