Projeto Braskem, Um Novo Lembrar Compartilhando Experiência Entre a Comunidade e a Organização
Depoimento de Maria Lúcia de Souza
Entrevistada por Isla Nakano e Marcelo Batalha
Santo André, 21/09/2012
Entrevista BK_HV005
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Vinícius Rizzato
Revisado por Leonardo Sousa
P/1 – Bom, dona Maria Lúcia, primeiro eu queria agradecer muito a senhora por ter tirado um tempinho e vindo até aqui, trazer todas as suas fotos, ter esse trabalho de parar um pouquinho para voltar atrás na sua história e para contar a sua história para gente. E para começarmos, gostaria que a senhora falasse o seu nome completo, a sua data de nascimento e onde a senhora nasceu.
R – Bom, eu me chamo Maria Lúcia Pereira de Souza, nasci em Coroatá, Maranhão. A data do meu nascimento é 25 de junho de 1952. Hoje estou um passo da terceira idade, não é? Estou muito feliz e tenho várias experiências para contar da minha vida. Primeiro nasci lá no Maranhão e tive uma vida razoável. Não passei por muita dificuldade quando criança, apesar de que perdi o meu pai muito cedo e fui criada pelos meus avós.
P/1 – Qual que é o nome dos seus pais?
R – A minha mãe se chamava Luíza e o meu pai Domingos. E a minha avó que me criou chamava Raimunda. Eu me casei muito cedo. Me casei com 20 anos. Namorei com o meu marido por correspondência, eu lá no Maranhão e ele aqui em São Paulo. Eu até fiz uma aventura, porque eu que vim atrás dele, aqui em São Paulo. Eu tinha 20 anos. Nos casamos, tivemos três filhos. Meu marido sempre trabalhou e eu também contribuí trabalhando, sempre fui comerciante. Tivemos três filhos, graças a Deus. Conseguimos manter o nosso padrão, mantemos as crianças na escola, foi, assim, uma vida tranquila. Mas a gente pagava aluguel lá no centro da cidade, que era lá em São Paulo, na Tamandaré. Na rua dos japoneses. Quando nós decidimos comprar nossa casa, nós visitamos alguns lugares em São Paulo,...
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Depoimento de Maria Lúcia de Souza
Entrevistada por Isla Nakano e Marcelo Batalha
Santo André, 21/09/2012
Entrevista BK_HV005
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Vinícius Rizzato
Revisado por Leonardo Sousa
P/1 – Bom, dona Maria Lúcia, primeiro eu queria agradecer muito a senhora por ter tirado um tempinho e vindo até aqui, trazer todas as suas fotos, ter esse trabalho de parar um pouquinho para voltar atrás na sua história e para contar a sua história para gente. E para começarmos, gostaria que a senhora falasse o seu nome completo, a sua data de nascimento e onde a senhora nasceu.
R – Bom, eu me chamo Maria Lúcia Pereira de Souza, nasci em Coroatá, Maranhão. A data do meu nascimento é 25 de junho de 1952. Hoje estou um passo da terceira idade, não é? Estou muito feliz e tenho várias experiências para contar da minha vida. Primeiro nasci lá no Maranhão e tive uma vida razoável. Não passei por muita dificuldade quando criança, apesar de que perdi o meu pai muito cedo e fui criada pelos meus avós.
P/1 – Qual que é o nome dos seus pais?
R – A minha mãe se chamava Luíza e o meu pai Domingos. E a minha avó que me criou chamava Raimunda. Eu me casei muito cedo. Me casei com 20 anos. Namorei com o meu marido por correspondência, eu lá no Maranhão e ele aqui em São Paulo. Eu até fiz uma aventura, porque eu que vim atrás dele, aqui em São Paulo. Eu tinha 20 anos. Nos casamos, tivemos três filhos. Meu marido sempre trabalhou e eu também contribuí trabalhando, sempre fui comerciante. Tivemos três filhos, graças a Deus. Conseguimos manter o nosso padrão, mantemos as crianças na escola, foi, assim, uma vida tranquila. Mas a gente pagava aluguel lá no centro da cidade, que era lá em São Paulo, na Tamandaré. Na rua dos japoneses. Quando nós decidimos comprar nossa casa, nós visitamos alguns lugares em São Paulo, distante do centro, porque trabalhávamos no centro. E aí nós nos mudamos para o parque São Rafael. Do parque São Rafael, trabalhando lá em São Paulo, tomando a condução, passava ali pelo Sapopemba e dava para ver muitos lugares vazios, desabitados, que hoje são todos habitados. Já quase na minha fase de parar de trabalhar, podíamos observar de longe uma, como que se chama, uma invasão. Invasão. Então, o pessoal do movimento invadia os terrenos vazios para conseguir moradia para aquelas pessoas. E olhando para lá, eu via muitas crianças. Muitas crianças, mulheres, aquilo me chamou muito a atenção. Aquilo ficou na minha cabeça. Como que aquele pessoal conseguia sobreviver debaixo dos barracos de lona, porque não era nem fechado, nada. Eu passava todos os dias e via aquilo. Sentia, assim, uma curiosidade de conhecer esse acampamento. Cheguei, num final de semana que eu estava sem trabalhar, a ir nesse acampamento, que era justamente na Fazenda da Juta. Aí se passou o tempo. A outra vez que resolvi visitar essas mesmas crianças, fui por outro caminho, fui pelo Oratório, porque, na primeira vez, eu só via de ônibus e desci no Sapopemba. Depois eu peguei outro caminho que era para Santo André, passei no Oratório e vi os barracos. Já era outro tipo de vida das pessoas. Eles moravam em barraco e chamavam de favela, só que eram poucas casinhas. Eu desci para lá, conversei com uma amiga minha e falei que havia muitas crianças que andavam descalças, que andavam muito sujas, eu via que aquelas mães tinham muita dificuldade. Então, ela falou assim para mim: “então vamos juntar umas roupa e vamos levar para eles?” E nós fomos levar roupa para essas pessoas que moravam lá. Quando nós chegamos lá, para atravessar era muito difícil, porque tinha um rio que separava Santo André de São Paulo, nesse Oratório. Era uma tora de madeira. E justamente porque estava chovendo, era muito escorregadio. Se era muito difícil para nós, que éramos adultos, imagine para as crianças. Observei que nesse lugar, além de ter esses barracos, não tinha estrutura nenhuma. Não tinha escola, não tinha posto de saúde, e a única escola que tinha próxima era em Santo André. Então, as crianças tinham, de qualquer jeito, que atravessar esta ponte, pois se chamava ponte. Eu fiquei muito preocupada. O que eu poderia fazer para ajudar aquele lugar, porque dar roupa, dar alimento, para mim não era satisfatório. Eu me sentia desconfortável com aquilo. Aí eu cheguei para o meu marido e falei: “quero parar.”
P/1 – Dona Maria Lúcia, a senhora está contando um pouquinho como a sua história se cruzou com a da Juta, mas antes de chegarmos nesta parte, eu queria voltar um pouquinho, eu queria fazer algumas perguntinhas para entendermos um pouquinho da senhora mesmo. Então, eu queria perguntar: a senhora falou que foi criada pela a sua avó Raimunda. Me fala um pouquinho dela, como é que foi essa sua infância lá no Maranhão. Do que que a senhora gostava de brincar?
R – Então, eu fui uma criança normal como qualquer outra criança. A minha primeira dificuldade que tive com relação à família, eu falei que eu fui criada pela minha avó, foi assim: o meu pai, ele se separou da minha mãe quando eu era uma bebezinha, a minha avó, como a mãe da minha mãe, ela tinha seis filhas, e já eram todas moças, então, ela ficou comigo. E nessa trajetória de separação de mãe e pai, eu me apeguei muito à avó. Mesmo depois de crescida, os meus pais voltaram novamente a morar juntos e tiveram outros filhos, mas eu sempre fiquei junto com essa avó. E o que aconteceu? Lá eu estudei. Era uma criança sempre hiperativa, assim que se fala, não é? Naquela época, fazíamos... eu lembro do primário, meu pai sempre procurava também me ajudar muito. Estudamos em escola pública, naquela época. Existia uma certa diferença do tratar da minha mãe com respeito a mim em relação aos outros irmãos, porque hoje eu entendo, ela convivia mais com os outros, mas o meu pai, como ele ficou meio afastado, sempre procurava me defender. A procurar saber o que eu precisava. Naquele tempo, vendiam aqueles lanches na escola, e ele dava autorização para moça me deixar eu comprar os lanches, depois ele acertava. Eu sempre gostei de dividir o que é meu com os outros, então eu fazia dívida não só para mim, comprava para os meus coleguinhas também. E o meu marido também, ele foi o meu amigo desde a época em que éramos crianças. Quando nos conhecemos, eu tinha nove anos e ele tinha 14 anos. Meu pai tinha um comércio e eu sempre ia nesse comércio, e quando ele me deixava sozinha, aproveitava para tirar as coisas e dar para os meus amigos, entre os quais o meu marido fazia parte. Eram coisas assim: doces, lápis, cadernos. Aqueles que não tinham, eu queria ajudar. Quando eu fui para o ginásio, continuei em escola pública. No ginásio era um tipo de criança rebelde, defrontava muito com os professores, com os meus educadores, e quando estava fazendo a sétima série, meu marido já tinha vindo embora. O meu amigo que era o meu namorado. Ele tinha vindo pra São Paulo. Então, na sétima série, tinha uma diretora que, naquela época, eu achava que ela era muito rigorosa, então o que eu fiz? Ela dava algumas ordens, como se fosse ditadura, exigia muita coisa da gente como estudante. E eu comecei a fazer a cabeça do pessoal, que não éramos obrigados a ouvir e a abaixar a cabeça. Um dia ela chegou e falou assim: “A classe tá suspensa.” Aí eu falei: “Tudo bem.” Eu fui saindo primeiro e todo mundo saiu junto comigo. Então, naquele tempo, eu acho que eu já comecei a trabalhar a questão da liderança. Nos deram três dias de suspensão, mas nós voltamos. Quando ela entrou na sala para falar sobre a nossa suspensão, novamente saímos da sala, todos os alunos. Isso era o período dos anos 70. Por termos saído da sala, por causa dessa confusão dos alunos, pois estava uma agitação mesmo, a classe inteira perdeu o ano. Esse foi um desafio, foi uma coisa muito difícil para mim, porque eu ficava pensando assim: “poxa vida, eu não deveria agir daquela forma, porque, na verdade, eu não estava prejudicando a escola, eu estava prejudicando a mim e aos meus companheiro de sala.” E mais, em seguida eu perdi o ânimo pelo estudo. Voltei a estudar, mas entrei numa escola que era de freira. Já pagava lá, com muita dificuldade, mas pagava a escola. Eu só sei que quando eu vim pra São Paulo, não tinha concluído o ginásio.
P/1 – E dona Maria Lúcia, como que era a cidade da senhora lá no Maranhão? A senhora se lembra onde a senhora passeava? Quem eram os seus vizinhos?
R – Uma cidade pequenininha, mas bem aconchegante. Bem aconchegante porque nós tínhamos muito verde. As nossas praças eram conservadas naquela época, o rio, o rio Itapecuru que era a coisa mais linda, onde tomávamos banho. Era lindo, lindo. Fora a convivência, passeávamos, fazíamos caminhadas, era assim, um ar puro. Os vizinhos, todo mundo se conhecia na cidade. O meu pai chamava Dominguinho. Então, o comércio era do seu Domingo, era como eles falavam. Todo mundo se ajudava. Agora, teve um fato muito triste na época, lá nessa cidade, ainda quando eu estava estudando. Teve um passeio, porque eles faziam excursão, a escola trabalhava não só na sala de aula. Nós trabalhávamos fora também, visitávamos roças. E teve uma excursão que era justamente na semana santa, foi um fato muito triste que marcou a minha vida, porque a minha avó me salvou de ir nessa excursão. Era um dia santo e ela era muito devota, fazia as orações, o jejum da semana santa. E a escola foi em peso fazer uma excursão naqueles caminhões, não sei se vocês se lembram, os caminhões eram abertos. Era caçamba como se chamava. Caçamba. Ele não tem cobertura. Então, entrávamos no caminhão e ia para a excursão. Cada um levava o seu lanche, chega lá fazia um picnic ao ar livre. Levava o som, a música, era muito legal. E nesse dia minha avó falou assim: “você não vai. Pode deixar de preparar esse lanche. Você não vai, porque é sexta-feira santa, e sexta-feira santa não ficou para a gente se divertir. Tem que ir para a igreja orar.” Ela era muito católica. E assim que saíram, logo em seguida, duas horas depois, a gente soube do acidente. E como a cidade era pequena, no dia desse acidente, faleceram cinco companheiros nossos de uma mesma sala. Isso marcou bastante, a saudade, os velórios feitos nas casas.
P/1 – Como que era?
R – Os velórios, como que eram feitos? Por exemplo, pegava o corpo e fazia o velório na sua própria residência. E nós saiamos de uma sala, de uma casa e ia na outra, encontrava as famílias chorando, nem podia ver o corpo, porque o caixão era lacrado, porque foi muito feio o acidente. E naquele tempo comecei um trauma com relação a acidentes. Isso foi uma coisa triste, mas com o tempo vamos superando. Logo em seguida, o meu pai também faleceu. Meu pai teve uma morte repentina. Ele estava dormindo, ele até tinha me chamado para ver as dívidas, porque naquele tempo eles vendiam e marcavam num caderninho. Ele me chamou pelo fato de eu ser a mais velha, e ele falou assim: “olha, eu quero te mostrar como que esse comércio funciona.” Tinha um caderno que continha as dívidas e cobranças. Então, logo depois, eu nem sabia que ele iria morrer naquele dia... Quando foi duas horas da manhã, nós acordamos, os vizinhos, todo mundo correu para lá, e meu pai já estava morto. Ele enfartou. Isso me deixou triste também. E dois anos depois minha avó foi morar com minha mãe, fui morar junto também, todo mundo ficou morando junto. Eu, meus irmãos, minha mãe. Minha mãe muito nova, sem experiência. Eu também muito nova, sem experiência. A gente não conseguia pegar o trabalho do meu pai. Então, a minha mãe se apaixonou por outra pessoa, se casou com ele, construiu outra família. Foi no momento em que tomei a decisão de sair de casa e vir atrás do meu namorado.
P/1 – Dona Maria Lúcia, a senhora contou desse acidente, do velório, dessa parte que vem depois da história do seu pai, essa parte mais triste, mais difícil de se lidar. Eu queria que a senhora contasse também a parte boa de lembrar, assim, das festas da cidade, como que era comemorar? Tinha festa junina, conta para gente um pouquinho?
R – Até hoje tem. A diversão do Maranhão é em junho. É a festa junina. Se chama o Bumba-meu-boi. Não sei se vocês já ouviram falar. Então, o Bumba-meu-boi é como se fosse um carnaval, junta toda cidade e todo mundo brinca e dança. E tem também o carnaval. Naquela época, não era banda de carnaval, era como se fosse pessoas mascaradas que saiam correndo, só que eu não era muito envolvida com as danças devido a criação religiosa. Eu fugia algumas vezes para conhecer, para participar, mas a família não apoiava muito o Bumba-meu-boi, o carnaval, eles achavam que era coisa que levava os jovem a se perderem.
P/1 – A senhora lembra alguma dessas vezes que a senhora fugiu?
R – Lembro.
P/1 – Conta para gente.
R – Nossa mãe. Essa vez foi assim. As minhas colegas, todas tinham programado que iriam se encontrar e iriam se fantasiar para sair no carnaval. Aí eu falei assim: “Poxa vida, mas eu queria ver e conhecer.” E elas falavam assim: “Eu vou passar na sua casa – porque eles entravam nas casas – você não vai nem me conhecer.” Eu falei: “Ah é? Mas não vai acontecer não.” Mas saí escondidinha, e fui ver aonde elas estavam se preparando, qual que eram as máscaras que elas estavam usando, que era para depois não fazer o papel de boba. E eu gostava também, era a minha maior atividade desde pequena, sempre gostei do campo. Eu sempre gostei da terra, então tinha o evangélico, o católico, essas coisas religiosas, e aos 15 anos eu me voltei para a religião. Eu fui para Igreja Adventista e depois eu não fazia... eu não tinha preconceito, porque assim... o católico puxava para o lado dele a religião. Mas na minha concepção de jovem todo mundo era igual, não tinha que ter isso, não é? Naquele tempo, pela cidade ser pequena, os padres eram muito próximos das famílias, eles visitavam. Eles fizeram uma campanha lá, isso me deixou muito feliz, pois fizeram uma campanha para levar alimentos para o povo do campo, porque o povo do campo é assim, nem todo período eles têm o arroz, o feijão, tem um certo período que não tem. Eles plantam para colher, se alimentar, então são poucos os que guardam para comer nos períodos em que não tem. Eles fizeram a campanha na cidade, na cidade inteira, para todo mundo. Os estudantes, nós saímos pedindo de casa em casa. E juntamos bastante coisa e fomos junto com a igreja levar os alimentos. Eu fui junto. Então, eu entrava nas casas, brincava com as crianças e me sentia muito feliz com aquilo. Só que quando eu voltei para a igreja, a outra igreja que eu frequentava falava que não, que eu tinha que fazer um trabalho diferente. E assim eu fui perdendo a graça com a religião. Falava: “Ah, religião não é isso. Religião você tem que realmente conviver com as pessoas.” Então, o momento mais feliz que eu lembro eram dessas caminhadas, de auxiliar o povo. Eu não sei se ia para auxiliar ou se ia para conviver com aquele povo que vivia no interior. Eles faziam gangorra de madeira, não sei se vocês conhecem: pegam um tronco de madeira, põe assim, um senta de um lado, outro do outro. Fazia balança de cipó, era muito, muito, muito interessante conviver com eles. Fora os banhos de rio, porque era muito famoso naquela época ir tomar banho de rio. Muito gostoso.
P/1 – E tinha um rio que a senhora ia sempre?
R – O rio Itapecuru. Até hoje existe, pena que também lá é poluído. A cidade, quando voltei, está mais ou menos como uns três anos atrás. Nós fizemos até algumas caminhadas lá em volta, recapitulando o nosso tempo de criança. Realmente é uma pena, porque o progresso chega, mas parece que as pessoas não progridem, vai se acabando. Eu falo assim: a alegria da gente é a convivência com a natureza. Eu sempre me senti muito feliz quando estou próxima da natureza.
P/1 – A senhora tem amigos? Quem que brincava com você? Conta desses amigos para gente.
R – Tenho. Naquela época... tenho. Olha, eu tinha uma amiga muito próxima, eu perdi o contato com ela nesse período que eu vim para cá. O nome dela é até Francinete, a gente morava bem pertinho. Quando foi nessa última viagem que eu estive lá, chegando a São Luís, pois para ir para Coroatá, temos que ir para São Luís. De São Luís para Coroatá são umas quatro horas de viagem. E é muito difícil. E eu estava lá – olha como as pedras se encontram, é interessante – a gente estava no restaurante, eu e meu marido, fazendo a refeição, de repente, eu olho para um lado e vejo a minha amiga de infância. A Francinete. A Francinete também era travessa, ela fazia muita arte junto comigo, quando pequena e quando jovem. E de repente ela falou assim: “Nossa!” Ela me chamava de mana. Tínhamos um tratamento carinhoso de mana. Aqueles amigos da escola que gostávamos mais eram os manos. A mana, então, era muito próxima. Ela falou: “Mana!” Nós gritamos assim. Daí fomos recapitular nossas travessuras. Estava me sentindo tão sozinha lá em São Luís, só eu e o Val, não conhecíamos muito, apesar de fazer muito tempo, não conhecíamos as partes turísticas de São Luís. Então, ela chegou com o filho dela, um moço, e falou assim: “Olha, essa é a minha amiga de infância”. E ela falou: “Você não vai ficar nesse hotel, vamos lá para casa.” Me pegou, me pôs no carro, me levou para a casa dela e me mostrou toda a cidade de São Luís, contou as aventuras dela e eu contei as minhas também, daqui de São Paulo. Hoje mantemos essa amizade. E tem alguns, alguns amigos que muitas vezes a gente nem reconhece porque mudam, as pessoas mudam a fisionomia, não é? Aqueles que permanecem junto, não perdemos o elo, mas aqueles que ficam muito distantes, muitas vezes falamos: “Será que é fulano mesmo?” Aí quando nos aproximamos falamos assim: “Ah, você é fulano, lembra?” E ele fala: “Nossa, a Lúcia.” Assim os amigos ficam, mesmo que a gente se mude de cidade, fica no coração, e quando a gente se encontra...
P/1 – E dona Maria Lúcia, a senhora falou que a Francinete era a sua amiga de fazer artes. Vocês ficaram relembrando isso. Conta uma das artes de vocês.
R – Aí, as nossas artes sempre eram com relação ao namoro. Menina, naquela época, a gente começava a namorar muito cedo: 12, 13 anos. Hoje o pessoal fica falando assim: “porque que as crianças com nove anos já tá...” Mas na nossa época também, já tinham os namoricos. Hoje se fala ficar, não é? Nós falávamos “o nosso namoro.” E a Francinete era sempre assim, quando estávamos a fim do menino, combinávamos assim: “primeiro você vai, se ele te dar bola é porque ele tá gostando é de você. Se ele não quiser nada, então eu sou a próxima.” Aconteceu até com o meu marido. Nós disputamos a conquista do coração dele, nós duas. Tinha a firmeza que era uma coisa séria. E fazíamos outras artes também. Muitas vezes mentíamos para os nossos pais, falávamos que íamos para a casa de uma tia e na verdade íamos era para a casa da outra. Eu falava que ia dormir na casa de uma tia minha, mas na verdade eu queria ficar era na casa da Francinete, para conversar. E os nossos pais nem sabiam.
P/1 – E agora, dona Maria Lúcia, a senhora comentou conosco da escola, contou o caso da professora, o rigor. Mas eu queria saber o que a senhora mais gostava da escola, qual a matéria. Teve algum professor que tenha te marcado?
R – Eu tenho sim. Eu tenho uma professora. Não era nem uma professora, era um professor de matemática, porque eu sempre me destaquei mais em matemática do que em português. Eu era muito ruim em português. Então, eu gostava de matemática, de história. Eu tinha um professor, que era o Milton, o Miltinho. Chamávamos ele de Miltinho. Então, no fato de eu não me dar bem na matéria de português, quando era na hora do recreio, que naquela época eu levava o meu caderno, ele era professor de matemática, mas falava: “olha, eu não quero que você me ajude em matemática, eu quero que você me ajude em português.” E ele sempre tinha sempre uma horinha para me dar umas aulinhas, para eu me dar bem nas provas de português. Então, o Milton, até hoje, mora no meu coração. Eu falo. Meu marido teve até momentos em que chegou a ter ciúmes do meu professor. Mas era uma amizade de mestre. De mestre. Porque ele realmente contribuía com o meu aprendizado.
P/1 – E a senhora se lembra dos seus primeiros dias de aula, assim, a primeira semana na escola?
R – Olha, na verdade eu tive muita dificuldade na escola. Teve uma professora, que tem algumas que marcam também a gente, era Meridalva o nome dela. Nem sei se é viva ainda. A Meridalva era uma professora muito linda, muito bonita. Todo mundo admirava pela sua beleza, mas ela era muito rigorosa. Naquela época, eles para ensinar matemática – isso já era no primário –, para ensinar a tabuada ela usava a palmatória. Que se chamava palmatória. Era uma régua, uma régua que tem um pedaço redondo e um cabo. Então você disputava com o seu coleguinha a continha, quanto que era dois mais dois, cinco mais cinco, se você errasse você pegava um bolo. E eu não gostava daquilo. Achava um absurdo você apanhar, mas era normal na sala de aula daquele tempo. Daí comecei a implicar com ela – isso foi no primário. O castigo que ela me dava: ficar em pé na frente da sala, os outros dando risada de mim, mas o meu castigo em matemática não era porque eu não sabia tabuada, era porque eu não queria bater no meu amigo. Eu achava um absurdo ter que bater, e daí ela falava: “você não vai bater? Então vai ficar de pé.” E saía da sala. Ela ainda fazia a gente carregar os cadernos dela até a casa dela, o aluno que não obedecia na sala. Teve um dia em que a desafiei, mesmo sendo criança. Quando eu fiquei de pé na frente da turma, saí e ela me deu aquele monte de caderno para carregar até a casa dela, quando chegou no meio da rua, sabe o que eu fiz? Peguei os cadernos, joguei tudo no chão e corri. E ela ainda foi até a minha casa contar para o meu pai, porque a cidade era pequena e os professores iam nas casas mesmo. Ele chegou e falou assim para mim: “por que você fez isso?” Eu falei para ele a causa, que eu não ia dar bater no meu colega. Como é que eu ia dar. Ele falou: “mas é regra filha. É regra.” Aí eu falei: “pois eu não vou mais pra escola.” Mas foi, ele também me tirou, me mudou de uma escola para outra. Ainda hoje têm essas dificuldades nas escolas, nós percebemos. Nós não podemos cobrar muito da criança sem antes conversar com ela. Então, foram momentos bons, que eu acho que, assim, eu tomei uma atitude. Mas muitas vezes quem sai prejudicada é sempre a criança.
P/1 – Dona Maria Lúcia, o que a senhora queria ser quando crescesse?
R – Olha, eu não queria ser mãe. Eu não queria ser mãe, eu queria é realmente tocar o meu trabalho. Eu trabalhei lá também. Eu cheguei a trabalhar depois que meu pai morreu, quando perdemos um pouquinho dos bens. Perdemos bens, passamos uma certa necessidade. Eu trabalhei como professora do Mobral, naquela época. Trabalhei também com criança quando eu tinha 16, 17 anos. Trabalhei na prefeitura, cuidando dos arquivos e trabalhei no CENSO. Recenseamento no interior. Fazendo pesquisa dos moradores.
P/1 – E o primeiro emprego...
R – O meu primeiro emprego foi dar aula para adultos. Foi o Mobral. Eu peguei todos os meus vizinhos, até o meu padrasto que não sabia ler, e montei uma sala de aula na minha casa. Naquele tempo não tinha luz elétrica. Se tinha, não podia gastar muito, porque tinha um certo limite de luz. Então eu comprei um lampião, uma espécie de luz que você põe a querosene e sai vários faróis para iluminar a sala. E as cadeiras os vizinhos traziam. A mesa nós improvisamos mesmo, só tinha uma mesa e ali dava aula. Depois que o aluno vinha, queria escrever e se aproximava da escola e fazia. A escola, eu falo, foi uma grande experiência para mim, porque eu não me preocupava em seguir o roteiro do professor. Eu inventava. Então o que é que eu inventava? Como eu tinha muita vontade de que eles participassem, falava assim: “vamos fazer um lanche diferente para nós hoje.” Aí cada um trazia uma fruta, alguma coisa. Todos eram pessoas de idade, eu era jovem naquela época. Daí, fazíamos uma salada de fruta, era o nosso lanche. E inventávamos também assim: “vamos fazer um cartaz, vamos fazer um cartaz, mas a gente vai destacar alguma coisa que a gente gosta nesse cartaz. O que você gostava de fazer?” Eu lembro que chegou um aluno que trouxe uma enxada que era para por no cartaz. Mas não tirava nem fotografia, naquela época, então eu pedi para ele desenhar a enxada dele, que era para montar o cartaz com o que ele fazia. Eu não consegui fazer um curso universitário. Achei interessante também que, voltando na minha cidade, encontrei algumas pessoas que foram minhas alunas, umas duas senhoras. Foram lá me agradecer, porque hoje elas atuam na escola pública. Fizeram magistério. E elas não sabiam nem escrever o nome. Eu falei: “Nossa!” E elas falaram assim: “Olha Lúcia, quando nós soubemos que você estava na cidade, nós viemos te abraçar, te agradecer.” E até nos convidou para ir almoçar na casa delas. Hoje ela é mãe de médico. E eu penso assim: “Poxa vida, eu não sabia que eu tinha contribuído para essa senhora ser a pessoa que ela é hoje, e ter educado os filhos que ela educou.” Então, eu fico pensando assim: “Poxa, tão jovem.” Eu faço. Tem hora que eu paro e falo: “Mas como é que veio aquela ideia de alfabetizar aquelas pessoas?” Mas é que o problema estava na minha casa, que o meu padrasto não sabia e ele queria ser motorista. E pelo fato dele não saber, eu falei: “uma sala de aula é tudo. Vai estudar ele e todos os vizinhos.” Foi muito legal essa fase para mim.
P/1 – Dona Maria Lúcia, como que foi essa história de namorar à distância na sua mocidade? Como que vocês namoravam à distância, como que vocês conversavam, falavam?
R – Ah, a minha história com o meu marido... nós vamos fazer 34 anos de casados. Quarenta, não é, bem? Quase quarenta. E foi assim: quando eu era pequena, nove anos, eu acredito que ele já gostava de mim, porque estudava nessa escola da palmatória. Era João Lisboa o nome da escola. Tinha uma janela, era uma sala que tinha um janelão, então, de vez em quando, eu via o meu marido subindo na janela do lado de fora da escola para ver a nossa sala de aula. Na verdade ele era o meu vizinho. Mas aos 9 anos, eu não tinha noção de namoro, dessas coisas, eu só gostava dele como amigo. Nós fomos crescendo um pouquinho e, um dia, ele chegou lá no comércio do meu pai, com uma caixinha. Escreveu – porque, naquele tempo, os rapazes, muitas das vezes, eles não tinham a coragem de se declarar para a moça – então ele fez uma caixinha e mandou o coleguinha dele entregar essa caixinha para mim. Quando eu abri a caixinha, na frente dele, ele estava me pedindo em namoro. Mas nós éramos amigos. Daí o que eu fiz? Devolvi a caixinha para ele e falei assim: “olha, nós somos amigos.” Ele ficou muito triste com isso. Até evitou passar na minha calçada, já não passava na porta da minha casa mais. Foi um período em que ele também teve muita dificuldade, ele saiu de Coroatá. Foi estudar numa cidade próxima, em São Luís. Ele ia e voltava. Só que o menino estava crescendo e estava ficando bonito. Estava ficando lindo, não era mais aquele menino feio. Comecei a vê-lo com outros olhos. Foi quando essa amizade foi crescendo. Amizade, nada de namoro. Amizade. E aí ele falou assim: “Eu vou embora. Vou pra Teresina.” E nós saímos. Tinha um mercado também, nessa cidade que a gente comprava todas as coisas. Um dia fui a pé fazer compras no mercado e encontrei ele indo de bicicleta, e ele falou assim: “Você quer uma carona?” Eu falei: “Olha, eu vou lá no mercado comprar ovo.” Aí ele falou: “Você quer uma carona?” Eu falei: “Quero.” Eu montei na garupa da bicicleta dele. Quando eu cheguei lá no mercado a moça falou assim: “Vocês são noivos?” Eu olhei assim para ele e me despertou interesse. Eu falei: “Somos, somos sim. Nós somos noivos.” Ela falou assim para mim: “Ó, muita sorte, porque vocês formam um casal muito bonito.” E daquela conversa adiante, eu comecei chamá-lo de meu noivo e ele me chamar de minha noiva. Mas ele veio embora para São Paulo. Passou, mais ou menos, dois anos, ele voltou a escrever para mim. Eu recebi a carta, ele falava do sentimento que tinha da nossa amizade, mas nada de falar de namoro. Daí nós começamos a nos corresponder. Cartinha vai, cartinha vem, e pela carta ele me pediu em namoro de novo. Pela carta eu respondi que aceitava, só que ficou nisso aí. Ficamos nesse negócio de carta, mais ou menos, cinco anos. Quando chegavam as férias ele falava que iria lá me visitar, e eu ficava ansiosa. Ele não ia. Sabe o que eu fazia? Mandava uma cartinha terminando tudo e paquerava os outros, namorava outros. Quando voltavam as aulas, eu fazia uma carta pedindo perdão, queria receber cartas dele de novo. E assim, nós passamos 14 anos. Quando ele resolveu, com oito anos depois, visitar Coroatá, o homem estava lindo demais. Ele foi, mas eu já estava namorando outro. O que é que eu fiz? Terminei com o outro e fiquei com ele. Um ano depois ele veio novamente embora. E ele falou assim: “Olha, daqui um ano eu volto pra gente se acertar.” E esse um ano passou, dois anos, e o homem nunca aparecia, só escrevia. Mas eu tive aquela dificuldade lá que eu já te contei, de querer também sair da cidade. Eu peguei e escrevi uma carta para ele, porque se ele quisesse eu viria para onde ele estava, apenas que ele me mandasse a passagem. Ele era tão apaixonado que me mandou passagem, mandou tudo. Quando eu recebi tudo em mãos, eu falei: “Nossa, eu vou.” A única pessoa que ficou sabendo dessa minha viagem de Coroatá para São Paulo foi a minha avó. Eu cheguei e contei para ela: “Vó, eu já tô cheia dessa vida, aqui nessa cidade.” As minhas amigas já tinham, a maioria, ido embora, foram estudar fora. Eu falei: “eu vou atrás do Val.” Minha situação com a minha mãe estava tão difícil, porque tinha a diferença, o marido. Então eu vim. Quando eu cheguei, estava lá o homem já com a casinha montada, uma casinha pequena. E nós já ficamos nela. Um ano depois, já veio neném, porque eu não soube me prevenir. Veio o meu primeiro filho, graças a Deus, que está aí. E nós continuamos a nossa vida até hoje.
P/1 – E como que foi essa chegada em São Paulo, uma menina de uma cidadezinha do Maranhão. Como que foi chegar aqui?
R – Nossa, foi um ano de dificuldade, viu? Ao chegar, nós fomos diretamente para o centro. Naquela época, a vinda do Maranhão até chegar aqui passávamos sete dias de viagem. O ônibus era muito demorado, muitas vezes tinha que parar, dormir. A dificuldade já começou na viagem. Só que o Val sempre manteve as suas palavras, ele sempre falava assim nas cartas: “Vem, eu tô te esperando, eu não vou sair da rodoviária.” E quando eu cheguei na rodoviária ele estava lá. Ele estava me esperando. Então ele foi meu amigo e meu namorado. Eu falo assim: “Fez até o papel de pai.” Porque ele não me deixou na mão. Só que eu senti muita dificuldade no começo, porque moravam todos os irmãos dele na mesma casa. Era como se fosse um casarão. E eu não trabalhava e sempre fui acostumada a ser independente, a trabalhar fora. Mas não conhecia nada na cidade e, logo engravidando, acho que tive um pouco de depressão, porque tinha medo de sair. Tudo para mim era muito difícil. A cozinha, fazer comida, eu não sabia fazer comida, apesar de ser do interior. Eu inventava as minhas comidas, mas não tinha prática. Cuidar de uma casa era muito difícil, não tinha uma mãe para orientar. Foi muito difícil. Eu tinha 19 anos. Só depois que passou isso aí. Então, eu tive muito, muito apoio. Teve uma vizinha também, a dona Alice, que foi a minha primeira vizinha. Eu falo que ela fez o papel de mãe. Ela me apoiou muito na gravidez. Ela era enfermeira ali no Hospital Modelo. Meu filho nasceu na Liberdade, no Hospital Modelo. Não tinha experiência de gestante, de ser mãe, então, ela me orientou muito. Do pré-natal até o primeiro banho do neném essa vizinha é que me ajudou. Então, eu tive dificuldades? Tive. A falta do pessoal da cidade, a falta da minha mãe, a falta da minha avó. Eu tive essa saudade, mas eu tive esse acolhimento da vizinha, do meu marido também. Com as minhas cunhadas não tinha muita ligação, mas devagarinho a gente foi se arrumando. Eu acho que tudo é uma conquista, porque eu acredito que mesmo que você esteja numa cidade estranha, que São Paulo, para mim, era uma cidade estranha, mas a convivência com vizinho faz com que a gente crie um elo muito grande. A gente nunca está desamparada.
P/1 – Dona Maria Lúcia, depois que a senhora se adaptou, qual que foi a primeira profissão da senhora, como que a senhora começou se envolver mais na vida fora de casa?
R – Olha, eu já parti para o comércio. Eu trabalhei na rua Direita. Fui procurar trabalho. O meu primeiro emprego foi na Marisa, trabalhei uns três meses, três a quatro meses na Marisa. Depois eu fui direto para a loja que se chama, hoje já não existe essa loja, a Sabrina Modas. Ali fui vendedora da Sabrina Modas. E eu me destaquei como vendedora dessa loja. Trabalhei 20 anos na mesma loja. Eu fiz muitas viagens por conta dessa empresa. Pelo fato de ser uma boa vendedora, quando iam inaugurar outras, essa empresa chegou a abrir, mais ou menos, umas 36 lojas... eu conheci muito o Brasil. Eu fui para Campo Grande, para Bahia, para Maceió, Campinas, até para São Luís por conta dessa empresa. E nesse período, nós estávamos iniciando a nossa vida, eu e meu marido. Eu tinha os bebês pequenos e eu trouxe alguém do Maranhão para ficar na minha casa ajudando a cuidar dos meus bebês, porque tinha muita vontade de progresso, de progredir. De ter uma casa, porque pagávamos aluguel. E quando a firma falava assim: “Olha, nós vamos abrir uma loja em Natal. Vamos precisar de você.” Eu já concordava com eles e ia. Conversava com o meu marido, que estava iniciando também uma carreira profissional, e ele estudava. Então, a empresa dobrava o meu salário quando eu viajava. Foi fazendo essas viagens que eu cresci profissionalmente. Só que, 20 anos atrás, como sempre fui cheia de polêmica na questão de greves, de lutar pelos mais fracos, eu fiz protesto dentro da empresa por salário. Por salário. E não concordei com algumas propostas que eles fizeram. Como eu tinha família, a coordenadora geral dessa empresa queria me colocar como gerente de uma loja no interior. Eu não aceitei, porque o meu marido trabalhava. E como que eu iria me separar da minha família para tocar uma empresa fora de São Paulo? Eu não concordei. Daí começaram as nossas discussões, ela deixou de me convidar para as viagens, fiquei chateada, e terminou por ter que sair da empresa. Depois que saí da empresa nunca mais trabalhei para ninguém. O que é que eu fiz? Comecei a fazer vários cursos. Então, eu já tive várias profissões por conta própria. Já fui cabeleireira, já fiz artesanato. Fiz muitas coisas. Fui comerciante. Tentei montar uma lojinha, que não deu certo. Passou muito tempo e, graças a Deus, meu marido continuou trabalhando, meus filhos também foram crescendo, se formaram, foram cada um ter o seu ganha-pão. Teve certa vez que eu estava até pensando em continuar trabalhando, mas eu já tinha conquistado o meu espaço, já tinha a minha casa, meus filhos estavam formados. Só tinha a minha filha caçula que ainda tinha que calçar para ela continuar a faculdade, mas eu sofri um acidente na avenida do Estado. Eu já tinha conhecido lá, até te falei sobre a Fazenda da Juta, já tinha visitado aqueles ambientes, mas ainda não tinha me decidido o que iria fazer na vida. E, de repente, o meu marido dirigindo, eu, minha família e ele, quando nós chegamos ali na avenida do Estado, aqui próximo da Braskem, quando você vira... o carro capotou. Teve uma virada e eu fiquei muito machucada na época. Demorei muito para me recuperar desse machucado, desse acidente. E o que aconteceu? Até processo foi aberto, na época, acusando meu marido. A minha filha não sofreu nenhum acidente. E eu comecei… eu tinha seis cicatrizes, que eu tenho na mão, quebrei o queixo, meu lado esquerdo ficou todo deformado, ainda tenho problema no joelho. Daí eu tomei uma atitude: eu não precisava mais ficar lutando pelo meu ganha-pão, eu precisava me dedicar a ajudar o próximo. Foi com essa doença... por isso que se fala: “se você não faz por amor, você faz pela dor.” E no período que eu fiquei no hospital me vinham aquelas cenas, as mulheres, as crianças, a tora de pau. Sempre vinha aquilo. E eu questionava a mim mesma: “o que é que eu posso fazer? O que é que eu posso fazer para auxiliar?” Então foi um período de decisão, pela dor, de ajudar o próximo. Fazer alguma coisa pelo próximo foi uma decisão certa. Eu falo assim: nós temos que ter a nossa experiência de vida, mas tem um momento que, realmente, você tem que se preocupar com o próximo, porque achamos, principalmente o jovem, porque pensamos na nossa carreira, no nosso casamento, no nosso futuro, mas tem um momento que temos que pegar o tempo que temos e fazer alguma coisa para o próximo.
P/1 – E dona Maria Lúcia, agora já falando sobre a Juta, como é que a senhora construiu o primeiro espaço para a associação? Conta um pouquinho essa história.
R – Então, daquelas visitas que eu te falei, que nós adentramos na Juta, que nós conhecemos moradores, a situação deles, a minha mãe também foi morar na Juta. A minha mãe conseguiu uma casa lá na Juta, e o que aconteceu? Eu conversei com o meu marido sobre comprar um terreno lá, para que eu pudesse trabalhar e ver a situação do povo de lá. Para isso eu teria que viver ali. E o meu marido fez essa vontade minha, comprou um terreno, trouxe uma irmã dele, começamos a montar uma lojinha lá dentro. Só que no ano que eu montei a loja os ladrões vieram e levaram tudo. Mais uma vez voltei a fazer a reflexão: “eu tenho que mudar essa questão.” Eu já estava lá havia um ano. Quando eu fui visitar, o meu primeiro passo foi levar roupa, mantimento para as crianças, e depois compramos o terreninho e montamos esse espaço de trabalho. Até então para ajudar a minha cunhada que precisava também manter as filhas dela. Mas quando aconteceu isso a minha revolta foi tão grande que eu cheguei para a minha cunhada, eu não estava nem na loja quando aconteceu isso, eu cheguei, liguei, ela ligou para mim, eu estava lá em Itanhaém, ela ligou para mim e falou: “Lúcia, levaram todas as coisa da loja.” Aí eu voltei. Quando eu cheguei, falei: “Ah é?” Então, eu vou chamar a polícia. Quando, nessa de chamar a polícia, chegou alguém, outra mulher que eu nem conhecia, e falou assim: “Olha, aqui não pode entrar polícia.” Daí a coisa foi pior para mim. Eu falei: “poxa vida, além desse pessoal morar nessa situação, você não pode lutar pelos teus direitos?” Ela falou: “Não, não chama não, que eu vou fazer eles devolverem tudo.” Os outros vizinhos chegaram: “Olha, dona Lúcia, é bom não fazer nada.” Foram chegando crianças com sacolinhas de roupas usadas, manchadas, roupas nossas que eles tinham levado, sabe, aquelas crianças, aquilo ali foi aumentando a minha vontade de trabalhar naquela comunidade. E quando passou essa fase, eu conheci esse grupo de jovens que vinha da Itália, que vinha da África, eles eram jovens seminaristas. Eu comecei a conversar com eles. Eu falei: “O que é que a gente pode fazer?” Porque eles estavam apoiados pela Igreja Católica. Falei: “O que é que a gente pode fazer? O que é que vocês me sugerem pra que a gente possa fazer um trabalho nessa comunidade, nessa favela?” Porque chamávamos de favela na época. Eles falavam assim: “Olha, dona Lúcia, aqui não tem nem espaço pra gente fazer nada.” Eu falei: “Vamos fazer uma brincadeira de rua.” Eles toparam. Eles toparam fazer essa brincadeira de rua. O que é que nós fizemos? Compramos muitos pirulitos, muitas balas e, quando espantamos, tinha muitas crianças em nossa volta. E nós começamos o que? A todo domingo fazer uma recreação no meio dos barracos. As crianças iam, brincavam de roda, um contava uma historinha. Eram todos jovens. E eu ficava ali. Eu era mais observadora, sabe? Nós começamos a visitar as casas, começamos a sentir as dificuldades que as pessoa viviam. A maioria das mulheres, naquele tempo, era mãe solteira. E elas não tinham nenhuma profissão também, era muito difícil. Fomos conversando, a primeira coisa que tivemos a ideia foi de procurar ajuda na vizinhança, porque existiam outras associações ali no Sapopemba, tinha um movimento de moradia que fazia construção dos prédios, então, nós começamos, eu e principalmente outro, que era o Dario, que era da Itália, até hoje é meu amigo, mora no meu coração. Eu o Dario, nós começamos a visitar a comunidade e a visitar as associações. Depois fizemos um levantamento de quantos moradores existiam ali naquela favela, naquela situação. Nós cadastramos, escrevemos o nome de cada um, quantas crianças tinham, procuramos saber quem estava na escola, quem estava fora, do que eles viviam. Então, nós fizemos por nossa própria conta esse levantamento. Depois falamos assim: “Poxa vida, agora nós temos tudo isso na mão.” E nós começamos, através do seminarista, a fazer, em cada casa e cada barraca, um encontro. E num domingo fazíamos as brincadeiras de rua. Depois surgiu a ideia: “Por que a gente também, se ali era tudo ocupado, por que a gente não podia ocupar uma área que tinha lá e fazer um barracão” Mas precisávamos de apoio. O Dario chegou para mim e falou: “Olha, Lúcia, a única maneira é a gente ir atrás do movimento de moradia.” Não sei se você já ouviu falar. Nós fomos atrás desse movimento que apoiava a construção. E foi aí que nós conhecemos um rapaz, se chamava Valdir, e ele nos deu toda a orientação que poderia sim juntar toda a comunidade, e do dia para a noite, construir esse barracão. Aí nós nos juntamos. Eram mais mulheres, teve alguns homens, o Vicente, todos moradores de lá. De um dia para o outro, nós levantamos as paredes de alvenaria e cobrimos de telhão. E lá começou nossos trabalhos. Só que nós tivemos muitas dificuldades de manter o trabalho, porque começamos a ver a necessidade, não era só de fazer aquele lazer, sentimos falta do pão, do alimento, ter uma vida digna, porque era assim: havia alguns barracos que eram a coisa mais linda por dentro. Caprichado, limpinho, mas tinham outros que davam dó. Tinham outros que as mães muitas vezes era envolvida com a droga, chegamos a presenciar coisas assim, que a gente, de repente, até chorava. Enchente, aquele rio Oratório enchia, levava as coisas das pessoas. Uma vez, nós pegamos o meu marido, não podia saber disso, nem meus filhos, que nós ficávamos até oito horas – ele estava trabalhando, ele chegava tarde em casa – então, a gente ficava oito, nove horas lá no barracão, muitas vezes conversando, ouvindo as pessoas. Um dia estávamos fazendo oração... A gente ouvia, depois o que a gente poderia fazer. Fomos fazer uma prece para incentivar o pessoal. Daí teve uma enchente que a moça chegou, uma chuva muito forte, eu nunca tinha passado por isso, e eles falaram assim: “Lúcia, a casa de fulana se foi.” Nós saímos, eu e o Dario, correndo feito loucos para ver o que tinha acontecido. Cheguei lá, tinha uma criança, já tinha ido a casa toda e ele segurando o vasinho sanitário. Não foi para o rio porque ele se agarrou a esse vaso. E eu cheguei a entrar na água suja, até o meio da canela, sem nem me preparar. O seminarista era ainda mais louco, ele chegou a entrar na água até o meio da cintura para salvar as pessoas. Foi daí que cresceu aquela vontade de tirar aquele povo daquela situação. Eu falei assim: “Meu Deus, o que é que eu posso fazer?” E ele falava assim: “Olha, a única maneira é a gente se aliar ao movimento de moradia.” Eu nem sabia que existia esse movimento. Mas eu comecei. Fiz um estágio com eles. Íamos em reunião do movimento, cheguei a acampar junto com o movimento. E fui aprendendo, fui aprendendo, e sempre que tinha a reivindicação do movimento de moradia eu levava a reivindicação daquele povo, que era moradia para eles. Eram 160 famílias. E levava faixa falando da favela Beira-rio, porque, até então, não tínhamos construído a associação. Depois fui aprendendo com eles, nos reunimos e colocamos no papel. Foi a construção da associação. Eu comecei a ir no CDHU, o primeiro governador que tivemos contato foi o Mário Covas, e todo ano íamos duas, três vezes levar o nosso pedido, que era para as famílias. Conseguimos matricular todas as crianças, participamos de pedidos para vir a escola, vir a ponte. A ponte foi também um fato muito desafiador para nós, principalmente para mim, porque perto dessa tora de madeira, que era a ponte, tinha um barraco, era um barraco de uma família com mais ou menos uns cinco filhos, e de tanto pedirmos para que eles pudessem, tem até documento desse pedido da ponte, eu vim em várias reuniões em Santo André, na prefeitura. Fui na prefeitura de São Paulo para que eles pudessem consertar, porque as crianças foram estudar aqui no Oratório, aqui na parte de Santo André, e eles tinham que atravessar aquilo ali. A primeira proposta que eles fizeram: “Olha, dona Lúcia, você vai tirar aquela família e nós vamos construir a ponte.” Conseguimos com muita dificuldade, junto com os moradores, a afastar o barraco da família. Quando eles vieram construir a ponte, fizeram uma ponte de madeira. Essa madeira que tem, uma ponte, falamos assim, não é uma ponte, não é? Foram mais ou menos cinco, seis anos de luta pela moradia e pela ponte decente. Mas graças a Deus, um dia eles atenderam o pedido da passarela. Não era mais a ponte, era uma passarela, que ligava o Oratório ao Sapopemba. Nós tivemos apoio não só da Beira-rio, mas de todas as comunidades em volta, uma associação lá do Sapopemba, um vereador que tinha aqui em Santo André, que começou a ir lá visitar e ver se realmente era cabível construir aquela passarela. Na primeira negociação que quase me tiraram a vida, chegaram para mim e falaram assim: “Olha, o CDHU entrou em negociação e, dona Lúcia, nós vamos arrumar um apartamento para essa família, para que eles possam liberar esse espaço.” Eu falei: “Tudo bem.” E eles: “Você assina?” Eu peguei e assinei. Fizeram a mudança da família, eu fiquei super feliz. Quando foi no outro dia estávamos lá na associação e chega a família. A mãe, pois o pai tinha ido trabalhar. A mãe chegou com as criancinhas no colo e um monte de gente ameaçando ela, porque aquele apartamento não era do CDHU, era deles, e como que eu tinha tido essa autoridade de pôr alguém naquele espaço. Eu falei: “Meu Deus. Eu tô num beco sem saída.” Quando olhei, havia cinco homens em volta, todos armados, porque o apartamento era deles. Olhei bem para eles, tremendo de medo, e falei: “Olha, não fui eu quem coloquei a família, foi o CDHU que negociou o apartamento para a família. Só que nós não sabíamos que tinha dono. Então, já que você tá falando que é o dono, você fica com o seu apartamento, mas você vai fazer um favor pra mim, você não vai tocar num fio de cabelo dessa família, e nem nos objetos deles lá.” Aí ele falou: “olha, dona, nós vamos te dar duas horas pra você tirar a família.” Eu falei: “Não, você tem que me dar no mínimo umas seis horas.” Aí ele olhou e falou: “Tá bom, nós confiamos em você.” Eu falei: “Palavra de homem, palavra de mulher. Pode confiar.” A moça ficou lá comigo, entrei em contato através do telefone com o CDHU, que graças a Deus foi muito atencioso da parte deles, e vieram resolver o problema. Tiraram a família e eu não sei como que ficou o caso, só sei que a família foi acolhida. Esse ato foi um incentivo para que eles pudessem olhar a gente com outros olhos, aquelas famílias que estavam lá. A partir daí se abriu a porta para que pudéssemos ver o que é que nós podíamos fazer para eles construírem os prédios para as famílias. O Edson Marques, eu lembro que era um coordenador famoso do CDHU, falou: “Tudo bem, nós vamos atender as suas famílias.” E conseguimos, graças a Deus. As mulheres não tinham renda, nós conseguimos montar trabalhos com artesanato para as mulheres, porque já fazíamos com as crianças do barracão. Elas começaram a aprender a bordar. Sabe bordadinhos? Começamos a entrar em contato com shoppings, com pessoas que sabíamos que costurava e que passaram a contratá-las. Então, eu acho que, mais ou menos, umas 10, 15 mulheres, hoje, vivem do bordado que aprenderam na associação. E todas elas conseguiram suas casas, graças a Deus. E a nossa associação novamente ficou sem barraco, porque com a saída das famílias, nós perdemos o barracão. Havia muitas propostas nessas coisas, sabe, você vai pedir uma coisa e muitas vezes você recebe outras propostas indecentes, principalmente quando você está defendendo uma causa. Tinha gente, não podemos nem citar o nome, que falava assim, quando eu chegava lá no CDHU: “O que você quer pra deixar essa favela, pra deixar esse povo?” Porque eles me apelidaram de Maria Pidona, porque eu ia lá pedir casa para aquelas famílias. Foi um momento muito difícil para mim, foi um desafio. Abrimos mão da associação, porque se falássemos assim: “Ah, vamos lutar pela associação, por um salão para a associação” Nós não queríamos isso, queríamos moradia para aquele povo. Moradia digna. E também que as crianças tivessem um lar, porque elas também sofriam com o preconceito. Chegavam pessoas e falavam assim: “Por que que a criança mora num barraco?” E a criança se sentia inferior, em relação aos que moravam em casa, em apartamento, enquanto outros morando em barraco de madeira. Então, eu acho que foi uma causa bem justa. E isso foi, eu acho que foi o melhor momento da minha vida. Foi a luta na Fazenda da Juta.
P/1 – Dona Maria Lúcia, a senhora chegou a enfrentar algum momento de dificuldade na comunidade, alguma resistência da comunidade em relação à senhora?
R – Não com relação à minha pessoa, mas eu sentia assim, com relação a quem não queria sair da condição que estava, sabe? Não com relação à “dona Lúcia está se metendo demais.” Mas, assim, aqui está bom para nós. Encontrei certas pessoas que falavam: “Ah, como que pode? A gente morou tanto tempo aqui, como que a gente pode, de repente, mudar pra um apartamento e ter que pagar por ele?” O que aconteceu foi isso aí, mas foram poucas pessoas. A maioria realmente queria. Até hoje o meu marido fala assim: “Poxa vida, parece que é uma família.” Mas a gente se torna uma família quando a gente convive procurando ouvir, porque, na verdade, eu não resolvi a questão, eu mais ouvia lamentações. Então, até hoje o meu trabalho é esse, é mais de ouvir. É uma mãe desesperada, é uma criança necessitada. E a associação não resolve, ela encaminha. Por exemplo, de repente, se descobre que uma criança está tendo algum problema de violência doméstica, então a encaminhamos para outra entidade. Se descobrimos que uma criança está sendo maltratada, na escola ou em outro lugar, procuramos encaminhar para as pessoas que são responsáveis por isso. Hoje, graças a Deus, lá tem o CEDECA que cuida, tem o Conselho Tutelar, que está sempre presente, tem os advogados da OAB, quando é alguma coisa jurídica. Então, a associação faz esse caminho.
P/1 – Agora queria que a senhora falasse um pouquinho da relação de lá com o Polo.
R – Então, a nossa relação com o Polo, eu falo assim, foi um presente de Deus. Foi um presente de Deus. Ainda foi no barracão. Foi em 1997, mais ou menos. Nós conhecemos uma pessoa que trabalhou no Polo e foi aposentado aqui, ele era uma pessoa muito bem vista, era o seu Jaime. Ele tinha um conhecimento muito grande aqui dentro e ele foi nos visitar. Nós fizemos amizade fora, mas ele foi visitar o nosso trabalho e falando do trabalho, estávamos começando a fazer lá, falei das nossas dificuldade. Ele falou: “Nossa, Lúcia, vocês têm uma empresa tão próxima de vocês, tenho certeza de que o pessoal de lá vai estender a mão pra essa comunidade.” Então, eu já estava em negociação no CDHU, mas queria alguém que pudesse apoiar a questão social, o apoio às crianças. Daí, ele me trouxe até aqui. Quando eu cheguei aqui, ele me apresentou a Isabel, a Isabel Cristina, sabe? A Isabel também ouviu a minha história, as minhas necessidades. Eu falei para ela que algumas crianças estavam fora da sala de aula e que tínhamos muita dificuldade, alguns que passavam muita necessidade. Fiz o relatório das famílias de lá e ela falou: “Eu vou lá visitar.” Eu falei: “Tá bom, então nós estamos te aguardando.” E ela foi até a associação Beira-rio, foi o seu Jaime também, e levou uma equipe daqui. Eu acredito que até nessa época tinha o Nogueira, tinha o Mané, tinha o Rafael, eram muitas pessoas jovens. Muitos jovens. O pessoal era muito jovem. A Isabel era a mais experiente. Andamos um pouquinho na comunidade, ela virou para mim e falou assim: “Lúcia, em que eu posso te ajudar?” Eu falei: “Olha, Isabel, não é que você vai me ajudar, mas que vocês pudessem pensar num projeto, em alguma coisa para essas crianças daqui.” Ela ficou de me dar um retorno. Passou-se um tempo, ela preparou uma festa aqui. Foi a nossa primeira vez. De repente, o seu Jaime me ligou e falou assim: “Lúcia, a Isabel tá preparando uma festa de Natal e falou que vai acolher, vai levar as crianças daqui para a festa.” Eu fiquei muito feliz. Essa festa foi num clube. Ela era uma pessoa que gostava de coisas muito bonitas, lindas. Quando eu cheguei com as crianças, a Isabel tinha preparado a quadra. A equipe dela transformou aquilo ali num salão de festas muito lindo. A decoração estava lindíssima. E eu cheguei, mais ou menos, com 150 crianças da favela. Aí eu falei: “Meu Deus!” Eu não sabia como que elas iriam reagir, porque até então nunca tinham saído de lá. Hoje é diferente, aquelas crianças, no começo, pareciam que elas tinham um desejo de mudar de lugar, não sei. Mas eu cheguei num cantinho, eu e uma professora estagiária, a Cida. Nós conversamos com as crianças: “Olha, vocês estão num lugar completamente diferente. Nós aqui não teremos pirulito, nós teremos bolo, frutas, mas não esqueçam o comportamento, porque vocês estão sendo observados.” Gente, aquelas crianças pareciam que tinham sido instruídas. Eles entraram num comportamento tão lindo, tão lindo que eu, na minha cabeça, falei: “Nossa, do jeito que eles passam necessidade vão avançar naquela comida, naquelas frutas.” Porque ela tinha comprado muitas frutas. Nada disso, pareciam gente grande. Do pequeno até o maior. Tudo na filinha, sentaram, ouviram as palestras, depois liberaram para eles se alimentarem, e eles procurando fazer a parte deles. Quando íamos saindo com as crianças, a Isabel correu lá: “Lúcia, pede para as crianças levarem aquelas frutas.” Eu falei: “Não, não acredito!” Imagina, os cachos de uva lindíssimos. Eu só vi as crianças voltarem e falei assim: “Olha, vão lá, mas peguem educadamente, não quero ver nada no chão.” Gente, foi uma festa. Voltaram da festa tudo carregado. Com fruta, com alimento. A equipe que era da petroquímica novamente foi lá no barracão, no sábado. Estávamos com o salão cheio. E a Isabel ficou apavorada: “Como é que você consegue fazer uma atividade com tanta criança?” Eu falei: “Não sei, fazendo. Fazendo, né?” Ela falou: “Lúcia, nós vamos te ajudar. Nós viemos aqui, os meninos vão saber o que é que pode fazer.” Nossa, meu coração chega ficou assim, pulando de alegria. O Rafael era, acho que era o mais jovem da equipe, ele era do clube. Ele falou: “Ah, dona Lúcia” e começou a olhar todo o barracão, dizendo que iria mudar tudo, mas acontece que aquilo ali era tudo irregular. Nós tínhamos ocupado, não tinha jeito. Eu sei que eles também pesquisaram e sabiam que a terra não era nossa. Passou-se o tempo. O Rafael e a Isabel sempre em contato com a gente. Todo natal tinha festa, dia das crianças eles levavam doces, coisas para as crianças e sempre ia um lá no sábado. Até que chegou um momento em que o Rafael falou assim: “Olha, estamos reformando o clube, então, nós não podemos fazer aqui, mas nós vamos abrir um projeto lá no clube, e dona Lúcia, a gente vai levar suas criança para lá.” Minha nossa mãe, foi uma alegria. Foi uma alegria. Nós até comemoramos. Estava tudo dando certo. Até que, realmente, eles conseguiram trazer as crianças, e começamos, mais ou menos, com 80 crianças, depois foi aumentando o número, o projeto foi se adequando à comunidade. A ajuda, eu acredito, foi o plano piloto que começou, porque depois veio o Clyde, veio o posto de saúde, veio o outro, depois a Isabel saiu, ficou a Gisele – a moça que eu estava tentando lembrar – a Gisele ficou no lugar da Isabel Cristina. A partir daí contrataram as meninas e deixou de ser petroquímica, voltou a ser Quattor. Depois entrou a Braskem. E graças a Deus as crianças estão até hoje, não é? Claro que a gente fica torcendo bastante por esse projeto, porque, para nós lá da comunidade, é um projeto de Deus, porque eles saem do habitat deles para fazer atividades fora. Lá nós não temos, apesar de que agora tem muitos projetos ligados com a prefeitura, mas eles ficam meio período. Algumas crianças, não as que vêm para cá. As que vêm para cá só estão na escola e nesse projeto aqui, mas lá nós temos, hoje, uns cinco projetos que atendem gente jovem. Não sei se vocês ouviram falar desses projetos de São Paulo. Gente jovem são núcleos pequenos que atendem meio período a criança que está fora da escola. Só que a atividade deles não é igual a daqui da Braskem, porque a da Braskem a criança tem esporte. A criança, eu até falo assim: “A única maneira de a gente tirar a criança da má conduta, de não seguir um caminho errado é o esporte. Pra criança pobre. Porque qual é o menino que não gosta de uma bola? É raro, né?” E a natação. Lá não tem piscina, lá só tem o rio Oratório poluído, então, quando fala que a criança vai adentrar na Braskem, que tem natação, que tem esporte, todos os pais querem. Hoje o nosso projeto está meio diferenciado, porque no início atendíamos só as crianças da favela. Hoje não, hoje o campo está aberto. Nós atendemos qualquer criança carente. Qualquer criança, pode morar nos prédios, pode morar em casa, mas que o pai tenha baixa renda. Nós fazemos a ficha para a criança. Primeiro é cadastrado na associação. A associação se responsabiliza por visitar a família, seja lá onde ele mora, e nós fazemos um levantamento. O pai está desempregado, de que estão vivendo, quantas pessoas são? Trazemos a criança para a associação. No sábado falamos assim: “Mutirão da educação.” Então, são os estagiários. São pessoas que muitas vezes é universitário, ou professor aposentado, até pais que já tiveram experiência em criar os seus filhos, eles vêm e falam assim: “Ah, dona Lúcia, eu posso dar uma atividade?” Eles trazem temas para as crianças. Falam, vamos supor, do respeito, da proteção, da amizade. Têm muitas atividades. No sábado sempre foi mutirão da educação. Entra brinquedoteca, contador de história, o futebol, muitas vezes levamos as crianças para jogar numas quadras lá que não é nem apropriada. São essas quadras que se constrói pela prefeitura, porque, agora, a prefeitura deu para fazer isso: umas quadras pequenas que é para a comunidade ter o lazer. Muitas vezes não são aproveitadas. Meu marido também faz essa parte. Ele pega a criançada no sábado, primeiro tem a atividade dentro da associação, que é de 40 minutos, depois leva para a quadra, para jogar uma bolinha. O foco maior, lá da Fazenda da Juta, é nas atividades das crianças. Eu vejo mais meninos, porque o menino vem através do interesse pela bola. E o que falamos para os pais: “Não é a criança que tá matriculada na associação.” A gente recebe a criança por um mês, vamos supor. A criança vem, se ele gostar da atividade, se ele gostar de conviver com os amiguinhos, aí sim a gente faz um cadastro da criança na associação. E no final do ano a Braskem vai até a associação e faz a matrícula da criança que está frequentando lá, para vir praticar esporte. É um trabalho muito grandioso para nós. E o que a gente tem conseguido são os elogios das escolas de lá, porque a criança que está aqui no esporte tem um comportamento diferente. A disciplina, o desempenho, porque chega no final do ano a gente exige o boletim. Eu falo: “É uma benção.” Seria bom se atendesse à todas as demandas. Não falo só da Braskem, mas de outras empresas em nossa volta, que pudessem fazer um trabalho assim, porque acolhendo a criança já está acolhendo a família, está acolhendo a comunidade. Para mim foi um presente divino. Um presente de Deus. E sobre a parte da reciclagem, achei divino. Divino, porque a gente sempre bateu na tecla do não poluir os rios. E hoje vemos as crianças fazendo brinquedo de garrafa e de outros materiais. Todo ano já fazemos aquela campanha de brinquedo para o Dia das Crianças na associação. No natal já fazemos a sacolinha com os amigos. Pedimos para a vizinhança, para as pessoas que conhecemos, que adote uma criança. Adotá-los, tem gente que diz assim: “Adotar? Mas eu já tenho tantos filhos.” Eu falo: “Não, comprar um presente pra uma criança no natal, para que eles possam receber um presente novo.” Esse ano, devido o trabalho aqui da Braskem, teve aquele desfile das roupas feitas de reciclagem. As crianças estão fazendo os brinquedos deles, do Dia das Crianças, com tampas de garrafa. Tudo lá na associação. Eu falo assim: “Olha, gente, que coisa linda.” O grupo de artesanato está usando também muita sobra de material para criar as peças artesanais, tapete. Então, eu falo: “Nossa, essa comunidade está se desenvolvendo bem nesse sentido.” E graças ao Polo.
P/1 – E dona Maria Lúcia, agora eu vou encaminhar a entrevista para a parte final. Eu queria saber da senhora, além da associação, pensando nas outras esferas da sua vida, o que a senhora gosta de fazer nas horas de lazer?
R – Bom, na hora de lazer... É isso que o meu marido está me exigindo muito, para que eu viva. Tem hora que eu falo assim: “Eu vivo quase a minha vida voltada para o próximo.” Além de trabalhar na associação, eu faço parte da minha equipe na parte religiosa, que eu também auxilio. Eu sou espírita. Fora isso, tem os filhos, num sábado, um domingo, porque a minha folga é no domingo. Sábado é da associação. Então no domingo eu tenho que visitar um, visitar outro. Fora isso, eu tenho o meu lazer quando quero me recolher, tenho uma casinha na praia, em Itanhaém. Mas lá também nós já começamos um projeto. Tenho uma amiga, a minha amiga Dirce. Ela também montou um projeto que hoje atende 30 crianças. Quando eu vou para lá, o meu lazer é caminhar na praia e o tempo de folga fico eu conversando com ela sobre o projeto. Vejo o que ela está fazendo com a luta dela, incentivo. Porque, assim, na redondeza aqui de São Paulo, há muita necessidade, é minha concepção de vida, abrir pequenos núcleos para ajudar o ser humano. Assim, nós já estamos ajudando o nosso planeta. E como é a minha filosofia de vida, acredito que nós vamos viver para sempre, então, tenho que preparar uma terra boa para que os meus netos, meus bisnetos possam usufruir dessa coisa boa. Lá em Itanhaém, quando nós construímos nossa casa, ainda no período em que eu trabalhava, fiquei muito triste. Assim como eu fui atacada pela violência aqui em São Paulo, lá eu também fui. Meus filhos quase nem vão lá na nossa casa, eu já pensei duas vez de vender, mas eu falo assim: “Não, vamos continuar porque lá está aparecendo um trabalho, e se um dia eu conseguir estabilizar o trabalho da Fazenda da Juta, o meu sonho é continuar fazendo trabalho lá.” Porque a minha amiga está trabalhando só com as crianças, mas eu gostaria que trabalhasse a família, que é a mesma coisa que fazemos aqui. Não só a criança, mas através da criança chegarmos até a família. O meu lazer é isso: gosto de ler, gosto muito de leitura. Gosto de meditação. Agora também preciso fazer caminhada, porque é ordem do meu médico, apesar que eu falo que eu já caminho demais, mas ele falou que isso não é caminhada, tem que realmente deixar um tempo só para mim. Sobre o meu lazer mesmo, fico me questionando, não tem muito. Não tem muito, e tem tudo, porque tudo que eu faço é lazer para mim. Por exemplo, quando eu vou visitar alguém que me fala assim: “Ah, minha filha arrumou emprego. Fulano já está melhor.” É uma alegria que vem no meu coração. E quando uma criança chega e fala: “Ai tia, eu tô tão feliz. Eu consegui isso...” Porque a nossa dificuldade maior no Brasil,é essa questão da família mesmo. Separação, desunião, a violência. Então, quando vemos uma criança feliz, a gente fica feliz. É esse o meu lazer, ver a criança feliz.
P/1 – E dona Maria Lúcia, o que a Juta representa na sua vida?
R – Ela representa uma história para mim, é a experiência, toda a experiência que tenho de lidar com o ser humano. Tudo bem que comecei na família, que eu fiz essas experiências desde jovem, mas na minha época de jovem, era uma aventura, até dar aula foi uma aventura. Agora o trabalho na Fazenda da Juta foi um desafio. E nesse desafio eu mais aprendi do que eu contribui.
P/1 – E qual foi a sua maior conquista nesse tempo de associação?
R – As minhas maiores conquistas foram a vinda das crianças para a Braskem e a conquista da moradia para aquele povo.
P/1 – E como que a senhora vê o futuro da Fazenda da Juta?
R – Sabe que hoje já não penso tanto assim nos moradores, porque já tem escola, tem posto. No futuro, o meu desejo é que, acho que é o desejo de todo o nosso país, é a atuação na questão da educação e da saúde. É uma necessidade geral. Se você vai num posto, por exemplo... tem três postos de saúde lá, mas em cada posto, porque até nesse projeto, no início, fizemos parte – pedir médico, médico da família. Daí você vai lá e tem um médico. Procuramos saber quanto é o salário do médico. Ficamos muito tristes. Por que que não vai ter médico? Porque o jovem estuda, ele gasta, se forma e quando chega lá como profissional não é valorizado. O que que ele faz? Ele deixa de atuar numa comunidade para procurar uma melhoria. É o direito dele. O meu desejo agora não é só a Fazenda da Juta, mas o nosso país, a questão da saúde, da educação. Vemos que os professores são desrespeitados, não são valorizados pelo poder maior, o salarinho é bem pequeno. Nessa caminhada ficamos muito tristes de ver isso aí, e, de repente, vemos uma luta pelo maior salário, as greves dos bancários, a greve de alguns órgãos, que se aproveitam dessas greves. Infelizmente, o nosso país cresce dessa forma para pedir aumento. E quando chega o resultado, quem que é beneficiado? Os que estão lá em cima. Os salários deles aumentam. Quantos jovens nós vemos na comunidade que fazem só o ensino médio, depois não tem condição de ir para uma universidade. Por que? Mesmo que seja de graça, tem um livro, tem o gasto com a passagem, tem muita coisa. Então, o meu sonho, o meu desejo é que mude essas políticas.
P/1 – E agora para encerrar, dona Maria Lúcia, o que a senhora acha desse projeto, da gente resgatar a memória das pessoas que estão ao redor do Polo, da relação com o Polo?
R – Olha, eu acho assim, quando o Polo abriu as porta para a comunidade, já foi o primeiro passo para estar bem próxima. Por que? Porque bem antes, a vizinhança via a petroquímica como poluidora. Hoje não, hoje a gente já passa e já vê que a comunidade está tendo conhecimento do trabalho, da questão da reciclagem, de trabalhar o cuidado com o ar. Quando o Polo começou a mostrar esse trabalho de preservação do meio ambiente, a comunidade parece que se aproxima mais. Eu não vejo isso só na Juta, porque ando por aqui, eu moro aqui nessa redondeza há quase 40 anos. Então, vemos dos nossos próprios vizinhos: “Olha, que trabalho lindo. As crianças uniformizadas.” É grande essa questão. Agora, o que eu gostaria é que esses núcleos de trabalho com as crianças ou com a comunidade pudessem abrir espaço, não dentro da petroquímica, mas na própria comunidade. Quem sabe para o futuro? Ter ali um projeto e falar assim: “Olha, esse é da Braskem.” Ali, na própria comunidade.
P/1 – Então para gente encerrar. Dona Maria Lúcia, como é que foi para a senhora contar a sua história, voltar lá atrás, lembrar tantas coisas da tua vida?
R – Olha, não deu para contar tudo, né? Porque, eu nem tinha me parado para fazer uma reflexão sobre a minha história. Quando voltou, assim, a minha memória, de ver o meu passado, a minha caminhada, teve os momentos muito gratificantes, teve outros tristes, mas eu falo assim: “Se eu voltasse de novo, eu faria tudo de novo. Eu faria tudo de novo.” E, na verdade, quem aprendeu com tudo isso fui eu. Fui eu, não é? Foi gratificante. Eu me sentia, assim, tranquila também. Vou refletir mais sobre a minha história. Quem sabe escrever um livro?
P/1 – Bom, então em nome da Braskem e do Museu da Pessoa, eu agradeço muito a participação da senhora no nosso projeto.
R – Eu que agradeço.
P/1 – Muito obrigada.
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