P/1 – Penélope, você pode falar seu nome completo?
R – Posso sim, é Penélope Jolie Silva de Oliveira.
P/1 – Qual é a sua data e local de nascimento?
R – Eu nasci na Maternidade São Paulo, na região de São Paulo mesmo, dia 24 de junho de 1977, ao meio dia e meia.
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Penélope, você pode falar seu nome completo?
R
–
Posso sim, é Penélope Jolie Silva de Oliveira.
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–
Qual é a sua data e local de nascimento?
R
–
Eu nasci na Maternidade São Paulo, na região de São Paulo mesmo, dia 24 de junho de 1977, ao meio dia e meia.
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– Penélope, seus pais são de São Paulo?
R
– Meu pai é baiano, é da Bahia, e minha mãe é cearense.
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– E seus avós maternos, são do Ceará também?
R
– São do Ceará e paternos da Bahia.
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– O que é que seus avós maternos faziam? Você chegou a conviver com eles?
R
– Minha avó, eu só conheci na verdade avós maternos, paternos eu não conheci, porque meu pai diz que minha avó era uma escrava, que meu avô a domou e (risos) casou com ela e assim foi construindo a família deles, né? E agora, por parte da minha mãe, minha avó era servente de escola, escolar, e meu avô era aposentado já quando eu o conheci.
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– E você conviveu com eles, com seus avós?
R
– Convivi.
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Tanto paterno como materno?
R
– Paterno não, não conheci.
P/1 – E seu, como é que seu pai da Bahia e sua mãe do Ceará, como é que eles se conheceram?
R – Meu pai veio pra São Paulo tentar a vida, conheceu minha mãe muito nova, com dezessete anos, e casou com ela.
P/1 – Por que sua mãe veio pra São Paulo também?
R
– Ela veio com meus avós.
P/1 – Por que eles vieram?
R – Atrás de vida também, porque todo mundo acha que São Paulo é um local onde as pessoas vão mudar a vida e vão crescer e vão desenvolver e ter tudo realizado sobre questão de sonhos e status.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram e aonde?
R – Não sei te informar (risos), não sei mesmo. Isso aí eles não contam muita coisa, né?
P/1 – E seu pai faz o que, fazia o que naquela época?
R
– Era motorista de ônibus. Era caminhoneiro e depois virou motorista de ônibus.
P/1 – E sua mãe?
R – Minha mãe era dona de casa, a vida inteira.
P/1 – E eles casaram, e você nasceu logo que eles casaram?
R – Não, eu sou a terceira dos filhos dele. Somos em cinco. Éramos em cinco. Minha irmã depois de mim morreu.
P/1 – E você é a caçula?
R – Não, tem a caçula ainda.
P/1 – A tá, eram..
R – Eu sou a do meio.
P/1 – Você é a do meio
R – São dois mais velhos, eu e duas mais novas.
P/1 – E quando eles casaram eles foram morar aonde? Em que bairro?
R
– No mesmo local, é, Vila Rica, Água Preta, Vila Nova Cachoeirinha, toda aquela região ali da zona norte, eles sempre moraram por ali.
P/1 – E você nasceu e morava nessa casa, nesse bairro?
R – Sim.
P/1 – Como que era esse bairro na época que você nasceu?
R – Era muito, era meio maloqueiro, muito maloqueiro, muita gente morrendo, assalto, era perigoso, na verdade. Mas aí hoje em dia o bairro está evoluído, está bem melhor. Melhorou acho que cem por cento do que era.
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E como era a casa que vocês moravam?
R – Bem simples, era um barraco... Era um barraco, não tinha muita coisa de luxo. Depois, com o tempo é que foi, que, meu pai alugou uma casa maior. E foi, levou a gente, tirou da favela, que era uma favela na verdade, uma comunidade na favela.
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Até quantos anos você morou na favela?
R
– Até os quinze.
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E quais eram suas brincadeiras de infância lá na favela?
R
– Não tinha brincadeira na favela. Eu inventei brincadeira quando eu saí de lá, né, porque na verdade morar na favela é meio complicado: você tinha que ter horário pra sair, horário pra chegar, tem que pedir licença pra sair, o pessoal tem que te conhecer. É, era complicado, o pessoal ficava armado, se drogava, se não conhecesse te dava um tiro na sua cara, te matava. É meio difícil, você tem que saber entrar e sair, né. Tem que entrar calado, não ver nada, não saber de nada, e sair igual.
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Mas assim, você gostava de brinca do que mesmo quando você estava em casa?
R
– Na verdade eu não brincava, só estudava. Não tinha o que fazer. A gente vivia em questão do medo. É, era uma favela, toda hora tinha tiroteio na rua. Então ficava dentro de casa, era só estudando, estudando. Saia pra ir pra escola e voltava.
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Com quantos anos você entrou na escola?
R
– Olha... Acho que eu entrei na escola na idade normal. Não me lembro qual era a idade, acho que oito anos, sete anos, uma coisa assim.
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E, como que você ia pra escola?
R
– De menininho, normal. Uma criança normal.
P/1 – Mas ia a pé..
R
– A pé, sempre fui a pé e voltei a pé.
P/1 – Você ia com os irmãos? Como é que você ia?
R – Não, ia só.
P/1 – Desde quantos anos você ia sozinha?
R – Desde quando comecei a me entender por gente, saber o caminho, que minha mãe começou a sentir segurança e me deixar ir só. Acho que era uns 12 anos?
P/1 – E você lembra das professoras na sua escola?
R – Algumas.
P/1 – Algum nome?
R – Tem umas marcantes.
P/1 – Quais?
R – Tem uma professora que falou que eu era abominação e eu cheguei até a chamar ela de cara de buldogue, porque ela tinha uma bochecha muito grande. E aí ela me pôs pra diretoria, e aí, bom, tomei suspensão, mas não fui expulsa, porque era uma boa aluna. Só que eu não gostei de ela ter me chamado de abominação, porque eu já era uma pessoa que me entendia como se eu fosse uma menina. Desde os 12 anos eu queria ser uma menina. Eu achei estranho não crescer nada em mim como crescia nas meninas e eu sempre gostei de menino, então era meio que abominação. Hoje eu entendo o porquê ela me chamava de abominação. Mas na época eu achava isso um insulto. Tanto que minha mãe me levou no psiquiatra e até hoje eu tenho um laudo lá: homossexualidade, homossexualismo. E depois eu batia nos meninos na escola, porque me xingavam. A escola foi um pouco turbulenta também, também pelo local que eu morava, tudo tinha, tudo eu acho que envolvia, né? Eu batia nos meninos, minha mãe chegou a me levar na delegacia pra eu ser internada no juizado de menor, e queriam me internar como menor infrator. Aí depois o moço colocou medo nela, falou que poderia sair pior, aí ela acabou não me internando.
P/1 – Mas ela queria te por lá porquê?
R – Pelo homossexualismo (risadas).
P/1 – A sua mãe?
R
– Tudo isso girou em torno do homossexualismo, porque eu baita nos meninos na escola, pela violência porque eles me xingavam, bullying hoje em dia, e porque ela achava que eu era louca, que era coisa de doença isso, me levou no médico. E deu lá, diagnóstico homossexualismo. Foi esse diagnóstico que eu tenho até hoje.
P/1 – Desde quando você sabia que você era homossexual?
R
– Desde dez anos.
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Você já sabia?
R
– Sim, eu sempre gostei de menino. Eu nunca olhava pra uma menina e tinha vontade de pega, de fazer. Teve uma história engraçada na minha vida, que veio uma menina quando eu tinha 15 anos que veio assim: "Ai, me dá um beijo, me dá um selinho", na escola até. Eu falei: "Ah, te dar um beijo. É nojento". Ela: "Não, me dá um beijo". Eu dei um beijo nela, um selinho. Quando foram três meses depois ela apareceu grávida. Eu falei: "Gente! Engravidei a menina". Sabe, assim, eu pensei que eu tinha engravidado a menina pelo beijo, porque depois eu não a vi mais e aí ela teve um filho, o filho até parece comigo, mas eu não sou, não fui eu, foi de outra pessoa. Mas sabe quando a cabeça da gente não criou aquela malícia ainda? Não sabia como tinha engravidado a menina. Mas foi engraçado. Então, o que mais que você quer saber da minha vida?
P/1 – E a professora, sem ser essa professora, que outra, assim?
R – A outra, a outra foi a diretora, que ela foi minha professora... A outra professora, na escola. Eu sempre fui uma pessoa muito conhecida, né? É, porque as pessoas via que eu ia de menina pra escola, sutiã, tudo, peitinho de mulher. Que eu tomava hormônio, comecei a tomar hormônio, peitinho começou e crescer. E chamava muita atenção, mas ninguém me batia na escola, depois de uma certa fase, porque eu sempre fui estudiosa. O pessoal sempre quis, trabalhar, eles precisavam trabalhar, e eu, e eu fazia o trabalho deles na escola, né? Então eu cobrava tipo cinco reais, eu vou na biblioteca, faço seu trabalho, depois você lê, estuda, entrega pra professora e faz a prova, acabou. Então todos os meninos tinham amizade comigo, ninguém me batia mais. E as meninas também tinham, né, mas não na questão de ficar com meninos, é porque eu achava que eu parecia uma menina, entendeu, daí eu ficava com as meninas. Aí teve uma professora que ela, ela era professora na época - deixa eu ver do que, acho que ela era de matemática - e, a dona Vanda. E depois ela se tornou diretora. Aí, na época que ela foi professora ela levou o filho dela pra escola. E saiu da sala, deixou o menino na sala de aula! Eu não sei hoje em dia se as professoras podem levar os filhos pra escola e ficar lá com ela na sala de aula, mas na época ela levou e o menino começou a tirar com a minha cara na escola, na sala. Eu levantei e dei uma cadeirada nele, eu não tive preguiça. Aí ela voltou depois da encrenca toda, porque o pessoal da sala estava tudo quietinho e eu sempre fui comunicativa, e aí o que aconteceu? Foi eu e ele pra diretoria, só que aí ela falou assim: "Olha, eu não vou te dar suspensão porque ele é meu filho e ele não estuda aqui, e você estava na sala de aula, mas isso é errado". Aí brigou comigo, brigou com ele e, por fim, porque eu era gay, e ele estava zoando comigo. No final de tudo, anos depois ele se assumiu pra ela, a mulher teve um infarto, morreu. Sério. E eu sempre fui assumida. Então assim, é complicado. É complicada a vida, né?
P/1 - E seu pai, com a notícia?
R
– Meu pai, ele só teve a notícia, na verdade, depois que, depois que ele foi embora. Ele foi embora da minha casa, ele abandonou minha mãe com os filhos, teve briga por causa de questão, ele tinha amante e tudo, mas ele já sabia que eu era gay, entendeu, até os 15 anos ele já sabia. Só que eu nunca contei pra ele, porque ele me batia muito na casa. Eu tinha que fazer as coisas dentro de casa, eu tinha que deixar tudo certinho. Uma vez ele me bateu porque ele mandou eu fazer um café e achou que eu tinha cuspido no café e não era, era o açúcar, quando você mexe faz aquele negocinho amarelo em cima. Ele achou que eu tinha cuspido e me bateu. Ele não sabia bater, batia de fio, pau, mangueira, tudo que ele achasse ele batia, até a panela ele tacava. Então eu, chegou uma época que eu enfrentei ele, falei: "Você não vai me bater mais" (risos). Ele queria me tirar da escola pra eu trabalhar, eu falei: "Também não vou sair". Ele: "Então sustenta seus estudos". Então, eu comecei a fazer sobrancelha da mulherada e pagar meus estudos sozinha. Meu pai se separou da minha mãe quando eu tinha 15 anos. Sabia, sabia, tenho certeza que ele sabia que eu era gay, mas nunca aceitou. Aí ,depois de 11 anos ele apareceu doente. Ele foi embora pra Bahia, constituiu outra família, apareceu doente. Quem teve que ajudar pra ele poder vir pra São Paulo se tratar fui eu. Aí quando ele chegou em São Paulo que me viu, ele falou assim: "A, você não é meu filho. Você não é meu filho". Aí eu falei: "Não, não sou seu filho. Eu sou sua filha, se você quiser". Eu já estava transformada, entendeu? E foi meio chocante pra ele (risos). Eu falei: "Se você quiser você me aceita assim, se não, enfim, a vida continua. Vivi até agora sem você, posso continuar". Ele falou: "A é, mas você é meu filho, mas eu te amo assim mesmo." Virou pro meu irmão e falou: "Vamos embora". Foram embora da minha casa, sabe assim, uma situação sem sal sem açúcar? E meu irmão também é gay. Meu irmão também é gay e não se assumiu até hoje pro meu pai. Mas eu fui fofoqueira. Eu contei. Falei: "Ó, ele é gay, ele gosta de homem, entendeu? E você vai ter que aceitar ele, vai ter que aceitar eu se você quiser". Ficou meio assim, porque ele precisa da gente. Querendo ou não ele precisa da gente. Ele veio da Bahia pra São Paulo e é a gente que hospeda, a gente que gasta dinheiro com ele, na verdade tudo mais eu do que meu irmão. E assim, está por aí...
P/1 – Vamos voltar lá, aí você tinha, Quando você disse que você começou a tomar hormônio com 15, 16 anos?
R – Catorze pra 15.
P/1 – Como, quem te ensinou, como você foi atrás disso?
R
– A, a fase do hormônio foi legal (risos). A fase do hormônio foi legal. No bairro tinha uma travesti que tomava hormônio. A gente tem olho clínico, não adianta. Se você vê um Pokémon de longe você vai reconhecer um Pokémon, que você é um também. Aí, o que acontece. Eu falo Pokémon porque Pokémon é um bichinho que evolui e gente acaba evoluindo também, de menino pra menina, então a gente acaba sendo Pokémon. E aí eu vi um Pokémon passando assim, na rua, e eu corri atrás. Não tenho preguiça, tenho vontade de falar com você eu falo: "Oi, vem cá. Olha, eu achei você bonita; ó, achei você feia". Então eu chamei essa menina e falei: "Vem cá. Como que você faz pra ter peitinho?". "Ah, mas eu sou mulher". Eu falei: "Você não é mulher. Eu sei que você não é. Você é que nem eu, só que você tem peitinho, eu quero ter também". Aí a gente fez amizade e ela falou assim: "Ah, você toma hormônio". Ai, quais são os hormônios? É, Gestadinona, que tinha na época, e Perlutan. Eu falei: "Tudo bem, então eu vou tomar, onde encontra?". Ela: "Ah, você compra na farmácia". E eu trabalhava nessa época na farmácia, e aí eu comecei a tomar. Então foi começando a crescer, eu já não tinha mais pai mesmo. Aí quando, pelo fato do meu pai terminar com a minha mãe, ela ser dona de casa - ela tinha profissão de costureira que minha avó ensinou - e aí a gente ficou no olho da rua. Meu pai foi embora, minha mãe ficou nervosa e acabou me pondo pra fora também, de casa, porque eu me assumi. Eu falei: "Olha mãe, sou gay e sou fumante. (risos). Não sou drogada". Aí ela me pôs pra fora. Minha vida foi ser prostituta, depois dali, porque eu não tinha pra onde ir.
P/1 – Com quantos anos ela te pôs pra fora? Quantos anos você tinha?
R – Eu estava com 15 pra 16 já, né, porque...
P/1 – E você foi morar aonde?
R – Na rua. Eu saí, eu saí no mundo, assim, porque eu já tinha conhecido, através dessa travesti que me ensinou a tomar hormônio, eu já tinha conhecido o centro da cidade. Aí eu tinha conhecido shows, aí queria fazer shows, estava fazendo shows no meio do povo, conheci as travestis que se prostituíam, conheci a noite, conheci o mundo. Aí quando minha mãe me pôs pra fora, eu já estava já por dentro desse meio. E, aí eu fui pra rua.
P/1 – Onde foi a primeira noite que você foi dormir quando você saiu de casa?
R – Quando eu dormi foi, acho que foi na Amaral Gurgel, num hotel que tem ali, que é próximo do meio da prostituição mesmo. E na época tinha uma boate chamada Prohibidus, da Andréia de Maio. E eu me montava - se montar é um termo que a gente diz, se dá, pra poder se transformar, de menino pra menina - pra fazer show na boate da Andréia de Maio. Aí ela me dava uma moedinha, me dava um dinheirinho pra mim e eu pagava o hotelzinho. Depois eu comecei a fazer amizade, aí fui morar com os gays, um dia virei doméstica do pessoal, aí ficava nessa: morava com os outros, depois ia pra rua, depois morava com os outros, até que eu consegui alugar um quartinho pra mim numa pensão, onde minha cama era minha roupa - era só um quartinho que eu aluguei - minha cama era minha roupa, minha coberta era minha roupa, meu travesseiro era minha roupa. Aí depois eu vi um mendigo na rua com uma coberta, porque eu ia me prostituir, voltava com um dinheirinho aí eu falei: "Moço, quanto que é essa coberta?". "Dez reais". "Ah, dez reais, você me vende?". "A, vendo". Pronto, já tinha uma coberta. Aí depois comprei um colchonete fininho, tudo eu comprava nessas coisas de mendigo, que eles vendiam, porque o pessoal dá, né, de doação pra eles, então vem limpinho. E eu não tenho vergonha de falar. Comia num bom prato, dormia numa pensão onde eu pagava pelo meu mês, aí fui tendo minhas coisinhas. Fui, comprei minha caminha, comprei tudo usado, só colchão, coberta, essas coisas que não foi. Aí depois eu comecei a ter uma caixa, que era meu guarda roupa, e fui tendo minhas coisinhas. Aí, com, acho que dois anos morando na pensão que já tinha tudo, quarto, cama, televisão, DVD, videogame, bicicleta, aí roubaram meu quarto. Roubaram tudo. E a minha conta nas Casas Bahia estava lá em cima. Eu saí pra fazer show, quando eu voltei estava vazio. Só ficou a cama e as roupas. Falei: “Ah não, tudo bem”. Eu não vou deitar. Minha mãe sofreu, perdeu tudo que ela tinha pra criar os cinco filhos quando meu pai abandonou, porque quando meu pai abandonou ela foi parar na casa da minha vó, perdeu todos os móveis, perdeu tudo, minha vó que ajudou, a criar a gente. Então eu também vou lutar. Então eu fui nas Casas Bahia, fiz carnê de tudo de novo, do que eu tinha, coloquei tudo de novo na pensão pra mostrar pro pessoal que eu podia, me enforquei, mas eu paguei todos os carnês. Aí depois de uns dois meses, três meses que eu tinha comprado tudo de novo eu juntei um dinheiro, loquei um apartamento e mudei pra lá. Aí fiquei mais uns três quatro anos, pagando, na época eu pagava 600 reais, mais 200 de condomínio, era uma quitinetezinha pequena, com banheiro dentro da cozinha, não tinha separação. E aí eu falei não, eu sempre fui pensando no melhor pra mim, né? E vou juntar outro dinheiro e vou locar uma casa, porque apartamento você não pode fazer nada! Não pode andar de salto, não pode falar alto, não pode ouvir música, não pode fazer nada. É uma chatice, eu nunca gostei. Aí loquei uma casa. Juntei dinheiro, loquei uma casa lá depois da Casa Verde, no bairro onde eu cresci mesmo, que é onde eu estou, não, eu não estou mais até hoje. Depois eu te conto porque eu não estou mais até hoje. É, aí, eu tava lá até semana passada. Loquei uma casa, que era...
P/1 –
Você tá há quantos anos nessa casa?
R
– Há nove anos. Nove anos, fiquei. E sempre paguei direitinho minhas contas. Eu gosto de pagar adiantado. E aí eu mudei pra essa casa, onde eu aluguei, ela na época era 350 reais. Eu falei ai que bom né, 350 reais eu economizo dos 600 mais os 200 de condomínio, sobra um dinheiro. Aí fui no banco, meti as caras com o que sobrava, falei: "Olha, eu quero tirar um carro". Peguei o dinheiro, o banco financiou pra mim, e as parcelas que era pra eu pagar era o valor do dinheiro que sobrava, justamente, do que eu economizava do apartamento, que eu já não estava mais lá. E até hoje eu tenho meu carro, porque eu paguei. Assim, pensando de uma forma evolutiva. E, eu não estou mais nessa casa hoje em dia, porque surgiu na mesma rua pra eu morar uma casa onde eu não pagaria aluguel, e aí eu fiz a mudança sozinha, não tinha ninguém. Morou muita gente comigo, ajudei muita gente, mas, eu fiz a mudança sozinha, porque não tinha mais ninguém morando comigo, fiz melhorias na casa, aí com três semanas que eu estava lá o pessoal chego em mim, tipo, quarta-feira, e falou assim: "Ó, sexta-feira você tem que sair da casa porque a gente vai demolir". E eu fiquei sem chão. Pensei em me matar, chorei bastante. Nossa, você, você não espera uma coisa assim. Porque eu tinha entregado a outra, que eu morava de aluguel, e não tinha como locar novamente. E estava sem dinheiro porque eu fiz melhorias na outra. Aí eu falei nossa, mais uma vez né. Me derrubaram, passaram a perna. Aí eu pensei, falei não, não vou me matar. Eu vou ter que superar.
P/1 –
Você chegou a pensar em se matar?
R
– É, pensei, porque você fica sem chão. Eu ainda estou meia desorientada. Mas eu estou tentando me situar, entendeu? E, e aí eu falei não, não vão me derrubar. Eu não caí até hoje. Eu cheguei a ir pra Europa, voltei, paguei a cafetina, voltei sem nada, foi uma máfia lá também, não morri, não é agora que eu vou morrer. Com a experiência que eu tive da Europa, com a cabeça que eu vim de lá, eu consegui comprar um terreno aqui trabalhando aqui. E foi onde eu pensei: ‘poxa, eu tenho meu terreno, eu vou pro meu terreno’ (risos). Entrei no meu carrinho e fui pro meu terreno, que é num município de São Paulo, Itaquaquecetuba. Carpi… estou até meio preta, mas (risos), carpi meu terreno, sozinha. Ele é cinco por vinte e cinco e eu falei, é aqui que eu vou viver. Ainda não construí nada. Juntei um monte de caixa, guardei minhas coisas, guardei na casa de um amigo e meu carro tá sendo meu quarto e eu vou pra lá e pra cá. Vou cobrando quem me deve, juntando dinheiro e vou ver o que eu consigo fazer. Na verdade, agora eu já coloquei a cabeça um pouco no lugar, fui atrás de uns paletes, uma fábrica de paletes, o moço falou que vai me dar um caminhão de paletes, eu vou desmontar esse caminhão no meu terreno e vou fazer um barraco de paletes. E vai ser minha casa por enquanto até eu poder construir uma casa de alvenaria normal. É difícil, mas eu sei que eu consigo.
P/1 –
Vamos voltar?
R
– Vamos.
P/1 – Aí você estava com 16 anos, 15, você conheceu esse travesti e começou a tomar hormônio que você já trabalhava na farmácia. Você já estava trabalhando na farmácia? O que você fazia na farmácia?
R
– Estava trabalhando na farmácia. Era atendente. Eu era atendente na farmácia, aplicava injeção no pessoal, tudo. Mas o pessoal me aceitava super de boa. Depois da farmácia fui trabalhar numa casa de artigos religiosos, onde a mulher era fã da Roberta Miranda, vivia ouvindo Roberta Miranda o dia inteiro, sei todas as músicas dela. E aí depois saí dali, fui trabalhar numa padaria. Depois eu saí, fui trabalhar de carregar lenha.
P/1 –
E aí você estava morando aonde nessa época?
R
– Eu morava na cidade. Morava na cidade.
P/1 –
Você tinha um emprego fixo?
R
– Não eram fixos, duravam um mês, dois meses, porque o pessoal ficava meio que com preconceito, aquela época o preconceito era muito forte. Hoje em dia é mais liberado. Porque na época que eu me assumi foi logo quando que acabou acho que a ditadura, mais ou menos assim. O pessoal sempre contou pra mim que na ditadura era mais perigoso: se você fazia show você tinha que sair com a peruca na mão, a polícia te prendia, tinha um monte de coisa. Que eu estou por fora, na verdade, eu só sei isso por causa de histórias. Mas, é, por causa do pessoal da ditadura, hoje em dia é bem mais liberal, né?
P/1 – E você, quando foi seu primeiro programa? Você Lembra?
R – Foi na época de 15 anos, quando minha mãe pôs eu pra fora.
P/1 – Como que foi, a história, com quem foi, como foi?
R – Ah, eu não conhecia a pessoa, era um senhor. Ele parou o carro pra mim, perguntou quanto que era, o que eu fazia... Eu falava: "Olha moço, eu não sei quanto que cobra não, mas o que eu faço é só passiva." Na época eu era passiva. Não gostava que fosse ativa por causa da libido do hormônio. O hormônio tirava toda a libido sexual. Então eu não tinha vontade de ejacular, de ereção, essas coisas. E acabou que foi. Ele pagou acho que 50 reais na época. Na época dava dinheiro. Hoje em dia decaiu bastante. Hoje em dia as meninas cobram 30 reais completo, 10 o oral. Eu acho que aí super desvaloriza e aí ninguém trabalha. É onde elas começam a roubar e desvaloriza mais ainda a classe. Aí hoje em dia eu não faço mais, não gosto. Se eu for, vou falar 80, 100, 200, 300. Eles não vão querer pagar. Pagam bem pra mulher, pagam pra homem, na rua, e pras travestis que são artigo de luxo, que deveriam se dar valor porque fazem plástica, fazem laser, gastam com cabelo, maquiagem, um monte de coisa, eles não dão valor, porque elas mesmas fazem isso com elas. Então acho errado. Mas na época foi, acho que 50 reais, eu fiz passiva mesmo, ele quis brincar um pouco, mas eu, não reagi, não reagi; foi num hotel ali próximo da Amaral Gurgel mesmo e eles tinham mania de pegar, deixar a gente no mesmo local; até hoje é assim, mas eles hoje em dia tão preferindo ir na casa das pessoas porque diz que é mais, diz que é mais discreto, eles não gastam mais com hotel também. E diminuiu o valor de programa. É, tudo isso.
P/1 –
Onde que você ficava no Centro, que ruas?
R
– Amaral Gurgel.
P/1 –
E como era a Amaral Gurgel naquela época?
R
– Bem movimentada. Se eu tivesse cabeça naquela época acho que eu já tinha bastante dinheiro. É porque eu tinha meio que medo, receio, porque vinha aquelas travestis da Europa com um monte de carrão, parava ali, naquele, em baixo do minhocão, e ficava em cima do carro, abraçando o peito, só de calcinha, eu não tinha nada! Aí eu não tinha seio, não tinha nada, só tinha um rostinho bonito, um corpinho magrinho. O pessoal vinha parava, mas elas tinham umas que cortavam a outra. Na época tinha uma travesti chamada Cris Negão, que entrou na minha onda, ela era muito perigosa, multava todo mundo, batia em todo mundo. Era uma mulher negra, enorme, toda grande, forte, voz grossa também. E, e eu tive encrenca com essa mulher, por causa da rua. E depois, como eu fui uma pessoa que enfrentou, essa pessoa, eu não deitei pra ela, entre aspas, não tive o medo como as outras tinham que: "Você não vai ficar aqui! Você tem que me pagar tanto!" e as pessoas pagavam. Ela foi morta com vários tiros; por cafetão também; por briga de ponta, essas coisas. Mas, eu não tive medo dela, então ela acabou me respeitando, nós nos tornamos amigas.
P/1 – Mas você, você tinha alguma cafetina, cafetão?
R – Não, sempre fui eu por mim. Era eu, a faca do lado. Na época que eu caí na rua - que eu caí na rua, parece que a gente tropeça e cai, né? Não é, caí na rua é um termo que a gente usa quando a gente se prostitui, caí na rua a primeira vez - as bichas tinham gilete na boca. Parece que eu sou velha, mas, são histórias meio das antigas, mas são assim. As bichas usavam gilete na boca, diz que cuspia nas pessoas. Eu cheguei a usar gilete na boca também, mas nunca cuspi em ninguém.
P/1 – Pra que colocar gilete na boca?
R
– Pra se defender, porque, se a polícia parar você com alguma arma eles prendiam você. A gente corria muita da polícia, apanhava muito da polícia. Sempre teve essa repressão. E, a gilete na boca eles não pegavam. Então, que, tinha, forma de defesa e de ataque também. Porque como as travestis roubam, os clientes também roubam. Então, tinha cliente que pegava a pessoa, fazia programa, saia com ela, pagava direitinho, na hora de descer ele põe a arma e fala: "Me dá tudo". E até hoje acontece. Ou a polícia vinha, pegava você com um cliente e falava assim: "Me dá tudo. Ou eu vou ligar pra sua mulher, vou fazer uma chantagem." E da travesti ele pegava o dinheiro dela e mandava sir andando. Tinha essas máfias, então, você tinha que ter uma forma de se defender, ou do cliente ou da polícia. E era complicado.
P/1 – Mas não cortava, assim? Como é que põe, com gilete?
R – É que você tem, tem que corta ela no meio, quebrar ela no meio, aí fica só um pedacinho. Aí esse pedacinho você vem e coloca aqui, com a parte que corta pra baixo. E colocava assim. Aí a forma de defesa era, eu não sabia cuspir essa gilete, mas a forma de defesa era: você colocava a parte que corta aqui no meio dos dedos, pra na hora do soco você cortar. Ou algumas travestis tiravam da boca e se cortava e falava: "Ai, eu tenho HIV! Sou doente!", pra não ser presa, essas coisas todas. Era, era uma época meia complicada, (risos),verdade, quem viveu, viveu, e hoje em dia você não, você, não vê mais isso, na verdade.
P/1 – Você chegou a ser assaltada?
R – Fui, arrastada por carro e tudo.
P/1 – Como foi?
R – Horrível.
P/1 –
Onde? Descreve como aconteceu.
R
– Não fui assaltada com uma arma. Eu fui assaltada, estando parada, o cliente parou, parou um carro com um monte de boyzinho bonitinho, "ai que delícia, que lindo!" Aí, eles falaram: "Dá uma voltinha". A bolsa sempre aqui, no que eu dei a voltinha o cara grudou na bolsa, o outro acelerou. E eu não queria largar minha bolsa. Meu dinheirinho tava ali, meu celular, meus documentos, tudo. E eles saíram me arrastando, até que eu saí, rolando na avenida. Fiquei toda quebrada, machucada. Doeu pra caramba, foi uma experiência horrível, não desejo pra ninguém, porque você fica de molho mais ou menos um mês... E, é feio isso. É feio, que você sobreviver disso, às vezes pode passar um carro, passar por cima da sua cabeça também, dependendo da onde o carro vai você vai correndo.
P/1 – Você
falou que você, você já teve cafetão, cafetina...
R – Não, nunca tive.
P/1 – Mas essa experiência sua na Europa, como é que foi?
R – A, então, eu tive na Europa, aqui no Brasil eu nunca tive.
P/1 – Mas como que você foi parar lá?
R – Era uma amiga minha que teve aqui em São Paulo, que eu morei com ela, quando eu estava me prostituindo. E eu dividia aluguel com ela, foi na época que eu fui colocada pra fora de casa, tudo.
P/1 – Você tinha o que, 16 anos?
R – Não, eu já era de maior. Eu já estava já no mundo, já estava com 19 anos. E ela, ela falou assim: "A, você quer ir pra Europa? Você paga..." - como é, 8 mil? - Acho que: "Paga 8 mil…”ou 16 mil, “…e eu te mando pra Europa". Mas achava que 8 mil ou 16 mil eram reais. E não eram, eram euros. Eu falei: "A, está bom". Aí ela foi comigo, fomos, tiramos meu passaporte, tudo bonitinho.
P/1 – Mas você tinha o dinheiro?
R – Não tinha dinheiro nenhum, nenhum real.
P/1 – Ela ia te emprestar?
R – É, ela me financiou, entre aspas, ela comprou a passagem, me emprestou 1000 euros pra eu entrar no país. E o caminho que eu fiz pra ir pra Europa, porque eu fui enganada. Ela falou assim: "Você tem vontade de comprar uma casa pra sua mãe," - até hoje eu tenho - "Com um mês você ganha dinheiro, você compra a casa da sua mãe, com dois meses você já me pagou e ainda sobrou o dinheiro pra você". Eu falei: "Tudo Bem, então está bom, vamos embora". Eu fui. O caminho que ela fez foi São Paulo, Zurique; de Zurique pegava um voo intercalando pra França; na França eu descia, pegava um táxi; no táxi eu descia na estação de trem e pegava um trem pra Espanha, onde tinha uma pessoa me esperando. Eu acho que eu viajei uns três dias, mas cheguei no local. Aí cheguei lá com os 1000 euros que ela me emprestou, foi os 1000 euros que eu já devolvi pra ela, depositei de volta. Aí fui, comecei a pagar o restante que ela me cobrou, que eram euros. Fiquei um ano inteiro pra pagar essa mulher...
P/1 – E não comprou casa pra sua mãe?
R
– Não comprei nada. Entrei em depressão lá, queria me matar, porque lá, você vive bem com dez euros por semana, você compra bastante coisa no mercado, porque, é tudo muito em conta, mas ela me dava só dez euros por semana pra eu comer. Tudo que eu pegava ela comia e ia abatendo lá. Quando eu terminei de pagá-la, eu cortei meu cabelo toquinho assim, bem toquinho, de tanta revolta que eu estava. Aí fui pra França. Aí eu tinha comprado uma peruquinha, falei, bom, qualquer coisa eu ponho uma peruca, e está ótimo. Fui pra França, outro mafioso.
P/1 –
Você ficou um ano na Espanha. Como foi viver lá um ano?
R
– Ah, eu gostei, é que você tem que viajar muito. Você acaba conhecendo mais a Europa do que o Brasil, porque, tem que ficar 15 dias ou um mês, no máximo, em uma cidade.
P/1 – Que cidades você ficou?
R – Valladolid, Valência, Zaragoza, Madrid, Barcelona, Bilbao, fui pra um monte de cidades, fui viajando. Porque os clientes são viciados em sexo, então se você é nova na cidade você ganha naqueles primeiros 15 dias no máximo 20 daí você tem que ir pra outra cidade, porque está chegando outras meninas de outras cidades, e eles querem rotatividade, querem conhecer outras meninas. Eles são viciados em sexo sem camisinha e muita droga, e eu nunca gostei nada disso. Me pagam bem por isso. Muitas meninas se perdem, ou ficam drogadas acabadas, ou vêm doentes de lá pra cá, porque elas vão devendo, não têm cabeça, e ficam pensando: "Poxa, eu tenho que pagar, senão ela vai fazer isso comigo, vai fazer aquilo comigo", as cafetinas. E aí, enfim, ia pra várias cidades, passei um mês só em Portugal, que é igual o Brasil, só pra descansar, igual o Brasil, assim, o que você ganha pra sobreviver, assim.
P/1 – Mas nesse um ano que você ficou na Espanha você pagou a cafetina?
R
– Paguei.
P/1 – Aí ela te liberou?
R – Liberou.
P/1 – Aí você fez o quê?
R – Fui pra Portugal descansar. Fui, fui trabalhar, mas foi mais tranquilo porque eu fui descansar, assim, minha cabeça de cafetina, de problemas. Eu trabalhei pra mim.
P/1 – E como foi esse um mês lá?
R – Foi ótimo. Eu adorei. Só que quando eu estava voltando pra Espanha me desceram do ônibus e falaram: "Ó, você tem um mês" - me deram uma carta - "Tem um mês pra você voltar pro Brasil," - já estava ilegal, né - "pra você sair de Portugal e ir direto pro Brasil". Eu falei: "Ah, tudo bem". Aí, quando, assinei bonitinho, saí da delegacia, aí vi um negócio de caminhoneiro, fui pra lá. Era um estacionamento, tinha um monte de caminhoneiro. Aí cheguei, falei com um caminhoneiro e falei: "Poxa, eu tenho que ir pra Espanha, não quero ficar aqui, eles querem que eu vá embora de Portugal, não deixa eu ir pra Espanha, querem que eu vá pro Brasil, eu não tenho dinheiro, tem como alguém me ajudar a ir pra Espanha?!". Aí teve um caminhoneiro. Me levou na boleia. Lógico que eu fui fazendo amor com ele até lá! Mas fui pra Espanha na boleia do caminhão, me sentindo a Sula Miranda! E cheguei lá, peguei um táxi, desci na onde eu tinha que descer. E fiquei na Espanha mais um tempo; depois eu fui pra França; era muita neve, menos sete graus abaixo de zero, muito frio, dói os ossos! Mas eu gostava. E lá eu sofri mais uma máfia também, que era amigo da...
P/1 –
Como é que você se virava com o idioma?
R
– Ah, eu aprendi! Assim, sou uma pessoa curiosa, na verdade. Eu pegava, esse lencinho por exemplo, eu falava assim: "Como se chama isso?! Como se chama?!". Aí eles falavam, eu escrevia da forma que se falava, que ele pronunciava, que não era a forma certa de se escrever, mas eu sabia que era a forma certa de falar. Colocava "lenço", isso; "copo", isso. E aí eu ia anotando. Então, o espanhol é bem mais fácil de aprender do que francês, francês eu fiquei duas semanas, só aprendi a falar "jus d'orange, l'eau", (risos) suco de laranja, água. Eu não tinha muita coisa que falar, porque eu fiquei duas semanas lá, era uma máfia danada, que o menino que me acolheu na França era amigo dessa cafetina. Então, aí ele já queria comer meu dinheiro: "A, você vai ficar na minha casa, você tem que pagar o anúncio, você tem que pagar metade do seu programa pra mim, tem que pagar as diárias, porque eu atendo seu telefone, e você vai ficar num hotel. E ainda tem que pagar sua alimentação". Quer dizer, que é que eu vou ganhar? Nada! Fiquei duas semanas lá, fiquei irritada com ele, muita neve, falei: "Eu vô embora. Eu vô embora agora, senão vou te matar". Aí eu catei, peguei minha mala e saí andando no meio da neve, sem saber pra onde ir, sem saber falar nada. Perdida, só sabia chorar e falar assim: "Aeroport! Aeroport, aeroport!" Onde era o aeroporto? E o pessoal não entendia, que francês, eles não dão audiência se você não fala francês, inglês mesmo eles já não dão muita audiência. Eu sei que eu fui, consegui chegar no tal do aeroporto. No aeroporto eu dormi dois dias.
P/1 – Você tinha passagem? Você não tinha passagem?
R – Não tinha passagem nenhuma, não tinha dinheiro nenhum. O outro me extorquiu.
P/1 – Você dormiu dois dias no aeroporto?
R – Aí o que, eu sobrevivia de algum brasileiro que passava, me via ali, e pagava um pãozinho, um café, alguma coisa. Aí eu fui na, na loja da TAM. Aí falei assim: "Alguém fala português aqui?". Aí lá eles falavam português. Liguei pro Brasil, pra uns amigos meus, consegui que eles fizessem uma ligação pra cá, falei o que estava acontecendo. Eu queria que eles me deportassem, ninguém queria me deportar, eu vivia o aeroporto a vida inteira lá, mendiga. Aí, meus amigos juntaram dinheiro, compraram a minha passagem aqui, eu retirei lá. E vim embora. Quando eu cheguei no Brasil, eu chorava.
P/1 – Quanto tempo você morou no aeroporto?
R – Não, só três dias!
P/1 – Três dias
R – Mais era morte! Três dias já parecia uma eternidade, no frio! Porque não tinha, só tinha eu e o casaco, porque quando cheguei aqui parecia que era uma pessoa que vivia no iglu. E aqui estava um calor desgraçado. O pessoal olhava pra minha cara na hora que eu desci, que saí no aeroporto e falava: "Nossa, que louca. Aqui maior calor e ele encapuzada". Não é, é que lá estava muito gelado, ninguém me entendia. Aí eu comecei a tirar aquele bando de roupa, porque tinha um taxista que sempre me pegava, e, me levava e trazia, então ele foi me buscar. Pra eu pagar depois (risos). Paguei.
P/1 – Daí você foi pra onde quando você chegou aqui?
R – Eu fui pra uma chácara duma travesti amiga minha, que era pai de santo. Aí fiquei lá umas duas semanas, voltei pra pensão,
P/1 – Como que essa travesti pai de santo, sua amiga?
R – Ah, ela é loura, tem um corpão, está velha mas tem um corpão, e é mãe de santo, ela cuida do santo do pessoal, faz ebó, faz trabalho, faz um monte de coisa.
P/1 – Você é dessa religião?
R – Sim, sou espírita.
P/1 – Desde quando?
R – A vida inteira, a vida inteira.
P/1 –
Quando você morava, sua mãe era? Seu pai?
R – Minha família era toda macumbeira. Minha mãe hoje é evangélica, meu pai continua macumbeiro, está todo mundo macumbeiro ainda. Só tem dois ou três da família que é evangélico. Mas, minha mãe é evangélica fumante, fala palavrão... é na dela. E aí fiquei na casa dessa minha amiga umas duas semanas; depois voltei lá na pensão, onde eu morava, consegui outro quartinho pra mim, e como uma boa pagadora, eu sem dinheiro, falei: "Ó, estou sem dinheiro, vim da Europa, aconteceu isso, isso, isso". O dono deixou eu entrar sem pagar nada. Alugou um quarto pra mim sem eu dar um real, na confiança que sabia que eu pagava. Aí fiquei, no segundo mês eu já paguei ele, os dois meses de aluguel, aí comecei a pagar o dinheiro do pessoal que mandou minha passagem, e já tinha saído da casa da menina. E voltei à vida, do zero.
P/1 – Que ano que foi isso?
R – Tem onze anos. Nós estamos em? Dois mil e catorze? Acho que em... Não sei fazer as contas, estou fora.
P/1 –
E alguma vez você usou droga?
R – Não, lá fora, na Europa, eu usei sim. Eu usei nos últimos dois meses apareceu um cliente, que saiu comigo acho que umas duas vezes, que tinha que ficar dias com ele lá dentro. Tinha que cheirar com ele, ele pagava por hora. E, nessa de por hora, ele pagava bem pra usar droga com ele e - eu estava na casa dessa cafetina que eu devia - ela enfiava a faca já, ela enganava ele. Dava tipo meia hora e ela falava que deu uma hora e batia na porta: "Já deu a hora! Vai ficar mais hora?" E nisso fiquei com ele uns dois, três dias. Aí quando saí de lá tomei muito leite, estava turva, torta. Eu odeio droga (risos), na verdade eu odeio droga. Mas, por pagar, eu já estava já satisfeita. Tomei um monte de leite. E depois paguei ela e: "Tá aqui, ó, não te devo mais nada, nada!". Sabe, a sensação de liberdade é a
melhor coisa no mundo, entendeu? E foi assim. E de lá pra cá eu estou aqui. Mas eu tenho vontade de voltar pra Europa. Só que por mim mesma. Eu tenho meu carrinho que financiei, eu quero ver se eu vendo pelo menos por uns 10 mil, e vou embora. Sem cafetina, sem dever ninguém. Por mim mesma. Se não der certo lá eu volto. Volto e começo do zero, isso pra mim é o de menos. Mas agora prioridade é construir meu barraquinho... e continuar sobrevivendo.
P/1 – Alguma vez você foi presa?
R – Não fui presa. Eu tive uma fase da minha vida que a minha amiga colocou silicone nela mesma, e ela... chegou a falecer. Chegou a falecer, só que eu socorri, e aí eu sofri um processo que eu tinha...
P/1 –
Como assim, colocar silicone?
R - Se auto aplicar. É, eu também me apliquei silicone no corpo, tudo. Mas isso acontece porque a gente não tem condições de pagar uma cirurgia, entendeu? Outro dia eu tomei uma crítica dum cara que é médico, falou: "A sua boca está mal feita. É silicone, de estriar? Ah, você é louca, devia ter esperado, feito, fazendo com um produto mais caro, num médico, do que fazer assim. Tem duas bolas na sua boca, está horrível." Eu me senti deformada, mas ele é médico. Pra ele é essa visão, ele estudou pra isso. E pra gente que é travesti, a gente não tem condições no começo da vida, é difícil. Então a gente faz o que está mais próximo, é silicone mesmo, é o mais barato, é o que vai dá resultado na hora, depois de três semanas a gente está bem... E foi o que eu fiz. E essa minha amiga foi, se auto aplicou, começou a passar mal, socorri, e no hospital ela piorou, induziram ao coma e ela não voltou. Depois de muito tempo descobri que ela tinha HIV, que complicou, e tudo mais, a imunidade dela estava baixa, um monte de coisa. Mas eu respondi o processo como se eu tivesse matado a menina.
P/1 – Por quê?
R – Porque eu socorri, e eu aplicava silicone também.
P/1 – Mas por que, quem que desconfiou? Você estava junto na hora, como é que foi?
R
– Não, eu tava junto! Ela era minha amiga! Eu liguei pra família dela, falei o que estava acontecendo. Eu nunca corri dos problemas, nunca.
P/1 –
Mas você morava com ela?
R
– Não! A gente estava na praia. Todo mundo na praia, na casa de uma amiga da gente que deixou a gente se hospedar lá pra poder por silicone. Que a família sabia que ia por, mas não queria que ela fizesse na casa deles. Então ela foi fazer na praia, na casa da mulher. Deu um rolo... Deu uns dez anos de processo enrolando. Foi onde eu conheci a Karen... E, porque eu não tinha mais dinheiro pra pagar. Foi quando, logo quando eu cheguei da Europa, isso. Eu não tinha dinheiro pra pagar advogado, não tinha nada, fui na ONG, falei assim: "Gente, eu preciso de um advogado, está acontecendo isso, isso, isso." Ela achou o meu processo - o meu caso, no caso - um caso que seria um desafio pra ela, pegar, enfrentar, e ela pegou com toda garra e foi junto até o final. Ela, o Berry, a gente pegou amizade ali. A gente conseguiu vencer esse caso, provou minha liberdade, que eu sou, minha inocência, então eu tive minha liberdade, embora, o nome fica sujo pro resto da vida. Se a polícia para, fica, a polícia para, ela fala assim: "Que é que você está respondendo? O que você respondeu? Que artigo você respo..."
P/1 –
Mas por quê que desconfiaram de você e não das outras pessoas que estavam na casa?
R
– Porque eu aplicava silicone. Eu aprendi a
aplicar silicone, entendeu? E eu comecei a ganhar dinheiro com isso. Mas nessa menina eu acabei não fazendo, porque eu estava morrendo de sono, estava cansada, não queria fazer. E ela auto aplicou, entendeu? Só que fazer o quê? Foi triste. É uma situação que também não desejo pra ninguém. Vê uma pessoa ir pro hospital, que é amiga sua, no hospital ela falece e você recebe uma culpa que não é sua. Eu assumi, eu falei: "Eu ponho silicone sim! Eu não nego, eu não tenho medo de falar que eu ponho silicone, mas, não fui eu que apliquei nela." Se eu tivesse aplicado eu falava: "Ó, fui eu que apliquei nela, pode me prender. Pode me prender." Eu não tenho medo de ser presa também, estou aqui pra isso, porque a vida foi me oferecer, por isso que o que está acontecendo hoje na minha vida é o que a vida está me oferecendo. Ninguém vai passar por mim o que eu tiver que passar. Se você tiver que tropeçar amanhã, numa pedra, cai, bater a testa, é você que vai tropeçar, não vai ser eu que vou fazer isso por você, então não adianta.
P/1 –
É, você teve namorado?
R
– Eu tive vários (risada).
P/1 –
Qual foi sua primeira paixão? Seu primeiro namorado?
R – A, minha primeira paixão... Foi o menino que tirou meu cabaço, minha virgindade. Era da mesma rua. Eu tinha acho que 15 anos, ele tinha 17. Sangrou muito, doeu muito e eu queria casar com ele, mas hoje ele é gay, casado com outro cara, e eu sou um Pokémon (risos). Estou quase virando uma pokebola já, de tão gorda que eu estou ficando. E depois vieram outros namorados, outras paixões...
P/1 – Qual foi o que você mais se apaixonou?
R – Ai, teve vários. Uns são bons na cama, outros são bons na cozinha, outros são bons como amigos e amantes. Ai, tudo, tem vários tipos, eu nunca achei um namorado perfeito. Tanto que até hoje eu saio com vários, porque eu não consigo achar o homem perfeito. Eu monto ele na minha cabeça: um faz bem sexo, outro fala bem, outro não fala bem, outro se veste bem, outro cheira bem, outro cheira mal. Então você vai montando um homem na sua cabeça, porque não vai existir o perfeito. Então eu não namoro mais.
P/1 – E eles ficam com ciúmes de você se prostituir?
R
– Sim, tinha sim. Eu tinha um namorado chamado Felipe, que Felipe era o nome dele de garoto de programa, na verdade o nome dele é Rodrigo. E ele é garoto de programa, namorando comigo não queria que eu fizesse programa, queria que eu ficasse em casa; não me sustentava nem nada, mas ele queria que eu ficasse em casa, arrumando a casa pra quando ele chegasse, a gente fazia sexo, enquanto ele fazia a fuleragem dele toda pela rua, saia com as outras travestis, mulheres, clientes, tudo mais. E eu queria ganhar o meu dinheiro também, direitos iguais. Mas ele não quis assim, então o ciúme era grande. Acabou que eu fiquei com ciúme dele por raiva, porque descobri que ele estava me traindo com um monte de pessoas, enquanto eu estava lá, besta, em casa? Grudei ele - (risos) grudar é o termo que eu uso pra bater, bati nele, da minha forma - bati nele, a gente se agrediu e aí acabou o relacionamento. Mas eu amo ele até hoje. Agora eu sei de tudo que ele faz, se ele voltar pra mim você acredita que eu fico com ele? Porque eu já sei o que ele faz, o que ele é, na verdade. Porque eu não gosto de mentira. Se você fala pra mim assim: "Olha, eu fumo crack" e eu tiver apaixonada por você, eu vou ficar com você sabendo que você fuma crack. Mas, é, pela sua pessoa, não pelo seu vício. Agora, se você mentir pra mim que você fuma crack ou que você me trai, é pior do que você falar a verdade, então eu prefiro que a pessoa fale a verdade pra mim, por mais que me doa, entendeu, porque aí eu vou ter uma forma de saber lidar com isso. Que é difícil, né?
P/1 –
Voltando lá atrás, como foi seu contato com espiritismo?
R
– A família me levou. É de família já. Eles começavam antes com… que é budismo que o pessoal reza isso daí. E... Depois foi pro mundo espiritual, do espiritismo, macumba, essas coisas assim que o pessoal acha que é assim, e eu ia, frequentava, Umbanda, o pessoal me levava, sempre ia desenvolver, e eu ia lá assistir, depois comecei a sentir uns negócios no meu corpo, estranho; aí tinha que desenvolver também, era o espírito que começou a entrar no meu corpo. É uma coisa estranha que acontece com a gente que é, que você fica meio em transe. Tem gente que fala que é coisa da mente, mas não é não. Não acho que seja coisa da mente, que você vai fechar o olho e achar que está com espírito. Não, porque eu nunca quis receber espírito, não gosto, vem alguma coisa no meu corpo, não sei o que é que é, se é diabo, se é Deus, se é anjo, se é capeta, não sei te dizer. Mas, eu não gosto, hoje em dia eu não frequento, não frequento, não fico enfiada. Hoje em dia eu procuro ir nos africanos, que veio de lá da África, religião espírita, e fazer tipo de uma limpeza de corpo, pra tirar as coisas ruins da minha vida, do meu caminho, do meu corpo, e vim as coisas boas. Só isso que eu procuro na minha vida. Só um resultado pra coisa boa pra mim. Nada de ficar frequentando, vendo gente se chacoalhar, vendo matar galinha, essas coisa eu não gosto. Eu prefiro ficar eu mesma, no meu cantinho, vou lá, pago, faço tudo que tem que fazer, e volto pra minha casa, acabou.
P/1 – Você passeia em São Paulo? Quais são seus locais de passeio?
R – Olha, eu só gosto, eu não gosto de sair mais. O psiquiatra disse que eu estava em depressão, porque eu me tornei antissocial. É, a verdade é que, você acaba vendo tanta coisa no decorrer da sua vida que você acaba se distanciando, né? Na cidade eu vejo muito nóia, muito crackeiro, muita gente drogada, muita gente mentirosa, muita gente, mentirosa de verdade, que eles ostentam uma coisa que eles não são, falam, mentem muito, pra dizer que são, entendeu? Fazem seus amigos pra poder tirar o que você tem do bolso, o que você, qualquer tipo de proveito que eles conseguirem tirar de você ele vêm, está ali pra te sugar, sua energia, tudo. As pessoas pedindo dinheiro, os outros roubando os outros, aquela prostituição, aquele bando de lixo mexido no centro da cidade, nos lugares que você vai. Porque eu frequento o centro da cidade, não tem como você frequentar outro lugar gay porque o lugar gay é ali. Então se você vai procurar outro lugar gay pra frequentar, não tem. Então nesse lugar gay onde existe o vício, tudo mais fácil, tudo do jeito que o povo quer, é um lugar horrível. Então eu acabei pegando um nojo, uma forma de "não quero mais ir pra aquilo, não quero mais sair, quero ficar na minha cama, quero ficar na minha casa. Eu, meus gatos, minha TV, meus cachorros, não quero mais", sabe? Aí o médico disse que eu estava em depressão, porque eu estava antissocial. Mas na verdade eu não sinto vontade de sair. O lugar que eu gosto de frequentar, se eu fosse ir sempre, seria uma sauna gay, que eu gosto de ver homem pelado, eu adoro homem, vou morrer gostando de homem, não adianta; e shows, né? Balada eu não vou, porque o som é muito alto, o povo é muito drogado em balada, qualquer coisa que está tocando eles estão gostando, e pra quem está normal aquilo tudo estressa, dói o ouvido, atrapalha a vida, eu também não vou. Então eu gosto só de frequentar a sauna, ou às vezes saio pra ir no cinema assistir um filme, ou pego desses do Paraguai mesmo, fico em casa assistindo, não saio muito. Não saio mais pra lugar nenhum. Só pra trabalhar, algum show que eu tenha que fazer.
P/1 – Dos programas que você fez, qual foi o mais curioso ou que mais te, que foi marcante pra você?
R
– Ah, existem vários.
P/1 –
Ah, fala uns.
R
– É, você quer o que, um hilário? Teve um hilário, que o cliente (risadas), tem vários tipos de (risos), programa. Vou contar um hilário. O hilário foi o seguinte, o cliente falou assim: "Olha, vamos pra um hotel, mas você vai fazer que eu te atropelei, que você caiu, machucou e você tem que.. e me seduzindo enquanto você está caída, e eu vô descobrir que você é uma travesti, eu não sabia", não sei o que. Eu falei: "Tá bom, vamos." Lá no quarto do hotel.
(risos) Tem que ser artista pra isso. Aí ele vem, "aaaaaa", aí bate em mim, ela cai, "Ai, ai! Me machucou! Ai, que está acontecendo? Moço, está doendo aqui, ajuda, socorro!". Aí lá vem ele: "Ah, eu te machuquei?", "Foi", "Onde?", "Aqui na perna moço, tá roxo! Nossa, ai moço, aqui também está!". Aí fui mexendo, mostrando as partes pra ele, "Ai moço! Aqui está inchado!", aí abri a perna, "olha aqui moço!", aí tirei a calcinha, ele "Nossa, como está inchado!". "Olha moço, faz massagem, está doendo!", essa palhaçada toda. Aí ele foi pegando, "Ai moço, tem que dar beijinho, pra fazer carinho pra ele melhorar" (risadas), ai gente, estou contando essas coisas em público. E aí foi que aconteceu, ele foi fazendo sexo oral, tal, aí a gente foi pra cama, fez um sexo, tal, aí ele falou: "Pronto, Agora a gente vai fazer que você tá no ônibus e eu te encoxo", "Ah, tá bom", (risadas). Aí estou lá, em pé. Aí ele vem, me encoxa, eu faço "Ah! Que é que está acontecendo? Moço, você tá com a piroca dura atrás de mim? Isso é perigoso, não pode ficar assim." Ele: "Ai, desculpa." Aí começou a outra cena, outra encenação. Na verdade as fantasias que o pessoal têm que eu não sei de onde vem, mas têm. E eu achei ótimo ter que encenar com ele, eu me senti num teatro, porque você desenvolve algumas coisas. Aí tá, teve um outro mais nojentinho que veio e falou assim - passou esse daí né: "Ah, eu, eu quero que fazer, quero que você faça cocô em cima de mim." Eu falei: "A é? Então quanto você me paga?", "Ah, eu pago bem", tá bom, fui lá. Forcei, não deu nada, caiu uma bolinha, ressecada. E essa bolinha ele fez eu rolar pra lá e pra cá, mas a bolinha não desmanchou, parecia uma cabrita. Eu sei que depois disso não saio mais com esse homem, falei: "Moço, quer saber? Quer realizar a fantasia? Eu vou atrás pra você das pessoas na rua e eu trago pra você e você me paga o valor, tudo bem?", "Ah não, tudo bem". Então eu comecei a pegar as pessoas e leva pra ele. Eu ganhava 50 reais pra levar as pessoas pra ele e ele fazia o que queria com o pessoal. Eu não tava mais com paciência. Eu sei que passei muita coisa divertida, engraçada na questão de programa, tem muita coisa legal assim, de cliente querer usar minha peruca, querer usar minha calcinha, minha bota. Às vezes não cabia, mas a gente tinha que fazer caber, porque você precisa do dinheiro, entendeu? Aí colocava, e falava: "Vamos lá vai, vamos fazer." (risos). E era legal. Umas histórias que você guarda pro resto da vida.
P/1 –
E que tipo de homem?
R
– Ah, muitos senhores, casados, outros solteiros, com fantasia; outros queriam sair com duas, três; outros queriam sair com mulher e com homem; outros queriam sair com travesti; casais também queriam sair com travesti, comigo. Eu saí com um casal só, mas eu não toquei na mulher, porque eu não sinto, eu sinto nojo, não sei, é de mim isso! Não, eu não sinto vontade de tocar, porque começa a dar ânsia de vômito, e isso é sentir nojo, não é verdade? (risos). Eu sei que a mulher ficava lá beijando o homem, apertando o peito dele, eu fazendo glub nele; aí depois ele foi, transou com ela, e eu ficava fazendo carinho nele. E aí pronto, acabou, por final do sexo ele pagou e eu fui embora. Mas aí eu não sinto vontade de sair com casais. Outro dia apareceu uma mulher linda assim pra mim com um cara, um velho, mas um carrão, e falo: "Você sai com casal?" Eu falei: "Olha, ela é lida, perfeita, maravilhosa, mas não. Muito obrigada, você tem que sair com travesti que gosta de sair com mulher", eu já não gosto. Porque existem travestis que gostam de namorar mulher, assim como existem lésbicas que gostam de namorar travesti. Então existe travesti que gosta de namorar travesti. Eu ainda estou na fase mais antiga, travesti que gosta de sair com menino, mas tem tudo isso, travesti que gosta de sair com mulher...
P/1 –
Você já foi convidada pra fazer filme pornô?
R – Fiz, já fiz um monte de filme, quando eu comecei a fazer programa na minha vida eu tive que colocar fotos em site, pra poder render mais um dinheiro. E naquela época surgiram os filmes. E eu fiz um monte. Fiz com travesti, fiz com homem, fiz com mulher; fiz com um monte de homem, fiz com um monte de travesti, tem tudo quanto é tipo de filme. Só não fiz com animal, aí foi o último tipo de filme que vieram me oferecer pra eu fazer, era com animal, eu falei "Não", aí eu parei de fazer filme.
P/1 – E esses filmes vão pra internet?
R – Vão pra tudo quanto é lugar do mundo. Você faz um filme de 500 reais, uma cena de uma hora que você grava em duas, e eles vendem por 500 milhões de dólares; você só ganha 500 reais. Olha que legal, né? Então eu podia ser produtora de filme. Mas, não me arrependo, porque tudo que eu tive vontade de fazer na minha vida eu fiz. Eu queria fazer filme, eu fiz; eu queria fazer show, eu fiz; eu queria aprender a maquiar, eu maquiei; eu queria ir na televisão, eu fui; eu queria ir pra Europa, eu fui. Passando tudo que eu passei de ruim eu ainda não me arrependo. Porque tudo que eu queria na minha vida era fazer tudo que eu fiz. E se eu pudesse eu faria tudo de novo. Porque você viver e não ter realizado nem um terço dos seus sonhos e fantasias, não vale a pena você viver, porque o que você vai constituir de história de vida? Nada! Então eu prefiro viver e fazer tudo que eu tenho vontade. Hoje eu tenho vontade construir minha casa, estou sofrendo, mas eu vou construir. Depois eu vou conseguir vender meu carro, vou pra Europa e vou tentar tudo de novo! É, a vida é um giro, a gente não pode parar.
P/1 – Deixa eu te perguntar, como que é seu nome? Quando que você mudou pra Penélope Jolie e qual que é seu nome, de batismo?
R – (risos) Meu nome é Penélope Jolie, que eu mudei no batismo também, bobinha (risos). Eu mudei todos os documen...
P/1 – Mas qual que era o de batismo?
R – O antigo,
dois anos atrás, era João Silva de Oliveira, porque eu nasci dia de São João. Mês que vem, né? Dia 24 de junho. E agora é Penélope Jolie Silva de Oliveira, porque desde que eu comecei a fazer show eu falei: "Meu nome é Penélope". O Jolie veio depois que eu comecei a fazer as aplicações de silicone no rosto, boca, tudo, ficou parecido, lembra lá de longe, de prima distante, da Angelina, distante, da Angelina Jolie, então aí eu coloquei Jolie e ficou. E ficou.
P/1 – E por que Penélope?
R – Penélope por causa da história da Penélope Charmosa, do desenho. Ela vivia em perigo, que era o meu caso, vivia em apuros e sempre vinha uma pessoa ou outra pra poder ajudar.
P/2 –
Como você fez a mudança de nome?
R – Eu fiz a mudança do nome através da advogada Karen, ela já estava me advogando no caso da minha amiga que faleceu, e depois surgiu a mudança do nome. Eu achei que eu não ia poder fazer a mudança do nome porque eu estava respondendo processo por eu ter matado uma pessoa que eu não matei, e falei assim: "Poxa, eu vou mudar o nome e eles vão pensar que eu estou mudando o nome pra fugir do processo. Então não vai dar certo." Mas justamente, pra você ver como as coisas acontecem quando têm que acontecer com a gente: quando acabou o meu processo, que deu minha inocência, foi quando saiu a troca do meu nome. Eu já tinha dado entrada no processo de entrada de troca de nome. Tudo no mesmo dia. Acabou um processo eu já ganhei o outro. E pra mim foi uma glória muito grande. E a advogada Karen pra mim ela não é só uma advogada, ela é minha amiga, assim como o Barry, eles fazem parte da minha vida, acompanham minha vida desde muito tempo, e eu acho que é, a gente não se vê muito porque eles trabalham mais do que eu (risadas), têm muito mais o que fazer, mas, é, a gente de vez em quando se vê por aí, pelo mundo.
P/1 –
Quais são seus maiores sonhos hoje?
R
– Hoje ainda é ter a casa da minha mãe, continuo sonhando.
P/1 –
Você fala com ela? Como é que é a relação?
R – Eu falo! Minha mãe chegou a morar comigo e tudo, mas ela mora com meu irmão agora, porque ela acha que tem que morar com meu irmão porque ele adquiriu HIV. Ele vivia falando pra mim que: "Ai, toma cuidado, você faz programa, você faz filme, vai pegar uma doença, não sei que, não sei que..." E, por fim, ele arrumou um namorado, confiou no indivíduo - meu irmão não é de sair com ninguém - e o indivíduo passou pra ele. Mas hoje ele está bem, ele se cuida, está muito bem, nem parece que tem nada. Está muito bem, acho que está quase indetectável.
P/1 – E pra sua mãe, ela superou isso?
R – Minha mãe não aceita, na cabeça dela ela ainda sofre, né? Ela sofre com a perda do meu pai, ela sofre porque eu me assumi, porque eu não sinto nada por família. Eu não sinto nada, é como se fosse uma parede pra mim. Eu não sinto carinho, não sinto afeto, não sinto saudade, eu não sinto nada! É como se fosse gente estranha. Você vive tanto tempo longe de família, que você perde tudo isso, você perde tudo que é de valores, em questão de família. Eu não tenho nada disso, pra mim é só amizade. É como uma pessoa estranha. Eu não sinto nada, eu sinto um vazio aqui dentro. Não sinto nada, nada por eles. É mais fácil eu sentir alguma coisa por um gato ou cachorro ou um estranho, do que por eles. E ela está lá com ele. Ela vive com ele, no apartamentinho dele, ele está bem, e ela vive com ele agora. O que mais? (risadas).
P/1 – O que você achou de contar a sua história aqui pro Museu da Pessoa?
R – Eu acho que é válido contar a minha história pro Museu da Pessoa, porque todo mundo tem que ter uma história na vida, e eu acho que a minha história um dia pode servir de exemplo pra alguém no amanhã, pra que ela possa, se ela tiver algum tipo de
problema parecido com o meu, ter um discernimento de sair daquele problema e seguir em frente, não ficar parada ali. Então, um pouco da minha história de vida pode servir pra história de vida de alguma outra pessoa. É isso.
P/1 – Obrigada, eu queria agradecer.
R – Por nada.
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