Projeto Aproximando Pessoas - Correios 350 anos
Depoimento de Elisaveta Ventsislavova Mitina
Entrevistado por Karen Worcman
São Paulo, 19/07/2013
Realização Museu da Pessoa
HVC_044_Elisaveta Ventsislavova Mitina
Transcrito por Karina Medici Barrella
MW Transcrições
História de vida
P/1 ...Continuar leitura
Projeto Aproximando Pessoas - Correios 350 anos
Depoimento de Elisaveta Ventsislavova Mitina
Entrevistado por Karen Worcman
São Paulo, 19/07/2013
Realização Museu da Pessoa
HVC_044_Elisaveta Ventsislavova Mitina
Transcrito por Karina Medici Barrella
MW Transcrições
História de vida
P/1 – Elisaveta, vamos começar tudo de novo. Você vai me falar o seu nome completo, o lugar, a data do seu nascimento.
R –
Meu nome é Elisaveta Ventsislavova Mitina, nasci em Cherven Bryag, em 10 de agosto de 1988. Tenho 24 anos.
P/1 – E conta pra mim o nome dos seus pais.
R – Meu pai se chama Ventsislav Kostov Mitina, minha mãe se chama Genstoianova Mitina.
P/1 – E conta um pouco pra gente onde é essa cidade que você nasceu? Como é o nome da cidade que você nasceu?
R – Cherven Bryag
P/1 – E onde que fica?
R – Fica perto de Pleven, uma outra cidade maior. Uma cidade tranquila, pequena.
P/1 – A sua cidade é uma cidade tranquila?
R – Onde nasci, a cidade da minha mãe.
P/1 – Fica onde? Fica na Bulgária?
R – Sim, na Bulgária.
P/1 – Conta um pouco como que é essa casa que você nasceu?
R – Nasci muito bem. Minha família é bem tranquila.
P/1 – Você tem quantos irmãos?
R – Tenho quatro irmãos.
P/1 – Homens?
R – Não, somos três meninas e um menino.
P/1 – E você é a mais velha, a mais nova?
R – Eu sou a mais velha das meninas. Meu irmão é do outro pai, que é mais velho que nós.
P/1 – E os seus pais? O que o seu pai faz?
R – Meu pai tem firma de construções.
P/1 – Ele constrói o quê?
R – Não sei, como agora está fazendo aqui, construindo alguma coisa, quebrou alguma casa, ele é chamado, tem firma e ele vai lá e faz.
P/1 – E a sua mãe?
R – A minha mãe não trabalha, a minha mãe nunca trabalhou, meu pai sempre sustentou minha mãe.
P/1 – E como foi o casamento dos seus pais? Você conhece a história como eles se conheceram?
R –
Não sei muito bem como se conheceram, porque minha mãe morava longe de onde meu pai morava. Eu sei que eles se conheceram e fugiram juntos.
P/1 – Fugiram?!
R – Fugiram, como crianças. Aí casaram.
P/1 – Fugiram por quê?
R – Porque meu pai era casado, se separou da mulher dele.
P/1 – Ele largou a mulher dele pra ficar com a sua mãe?
R – Ele se casou com a minha mãe.
P/1 – Então, conta essa história, eles já falaram pra você?
R – Eu não sei, nem estava nascida, mas eu sei que separaram.
P/1 – E você conheceu a outra família do seu pai?
R – Sim, eu conheço. Conheço muito bem, a gente conversa. A gente senta junto, tem jantares, alguma coisa, junta todo mundo junto, não tem problemas.
P/1 – No fim ficou tudo bem?
R – Tudo bem, tranquilo.
P/1 – E como era sua casa? Conta pra mim, descreve a casa.
R – A casa do meu pai onde eu morava?
P/1 – É
R – Tem três andares, tem cinco quartos com dois banheiros, casa bem grande.
P/1 – Bonita?
R – Bonita.
P/1 – Você dormia no quarto com quem?
R – Com minha irmã menor.
P/1 – E no outro quarto, quem dormia?
R – A minha irmã.
P/1 – Outra irmã?
R – Sim.
P/1 – E aí, o outro quarto?
R – O outro meu irmão en o outro meu pai e minha mãe.
P/1 – E só vocês moravam nessa casa?
R – Sim.
P/1 – E que mais? Tem empregada lá?
R – Tinha empregados.
P/1 – Muitos empregados?
R – Tinha bastante mas depois, com o tempo diminuiu. Na minha casa tinha mais funcionários que trabalhavam porque meu pai tinha, como se chama? Como uma fazendinha do lado, tinha muitas galinhas, era um pessoal que cuidava da...
P/1 – Ah, era um sítio?
R – Sim. Tinha pessoas que cuidavam de lá e tinha pessoas que cuidavam de nós, da casa. Que cozinhava, que trabalhava.
P/1 – E como é a sua primeira lembrança dessa casa? Do que você lembra?
R – Eu lembro uma casa muito linda, sempre com festas.
P/1 – Ah, era alegre?
R – Alegre, todo mundo feliz.
P/1 – E como que é o temperamento da sua mãe e do seu pai?
R – A minha mãe é muito tranquila, não gosta de brigas, de problemas, sempre na dela.
P/1 – E o seu pai?
R – Meu pai é mais agitado, gosta mais de festas, de convidar pessoas na casa. Ele é mais agitado do que ela .
P/1 – E me conta assim, quando você era pequenininha, quando você começou a ir pra escola?
R – Desde os sete anos.
P/1 – Como era a escola?
R – Era boa.
P/1 – O que acontecia? Tinha muita gente na sala, professora?
R – Sim, tinha professor, professoras. Eu estudava bastante.
P/1 – Você era boa aluna?
R – Era, mas eu era mais, como se diz? Porque meu pai era mais rico, eu era sempre mais, como se chama quando você é criada bem demais?
P/1 – Mimada?
R – É, sempre mimada. Mas eu estudava também, estudava porque meu pai gostava da gente estudar pra gente não fazer coisas erradas, pra não entrar no caminho errado. Mas com o tempo a gente cresce e faz besteiras.
P/1 – Mas vamos voltar antes das besteiras, lá atrás. Na sua cidade você era a menina mais rica?
R – Sim, na cidade onde morava meu pai eram duas ou três famílias que eram mais ricas.
P/1 – E conta um pouco, porque eu não conheço nada sobre a Bulgária, como é que funciona uma cidade? Se as pessoas são pobres, são ricas?
R – Tem pobres, tem ricos, tem mais ou menos.
P/1 – Mas nessa sua cidade tem mais pobres que ricos?
R – Agora acho que a crise é muito grande, tem crise na Europa, é um pouco mais difícil. Mas antes era muito melhor. Agora que tem mais crise, que não tem dinheiro, não tem trabalho, é mais difícil.
P/1 – Mas nessa época que você era criança?
R – Era muito bom. Meu pai tinha bastante dinheiro, trabalhava bastante, não tinha nada de errado.
P/1 – E o que vocês faziam pra se divertir? Além de você ir à escola?
R – Pra se divertir meu pai levava nós cada semana num restaurante fora da nossa cidade.
P/1 – Em que cidades vocês iam?
R – Ai, ia pra Polski Trumbesh, uma cidade onde mora meus parentes. Íamos no restaurante pra gente jantar, e ele levava nós pra baladinhas.
P/1 – Ah, é?!
R – De pequenininhas.
P/1 – E aí vocês jantavam em restaurantes búlgaros?
R – Búlgaros.
P/1 – Qual era a sua comida predileta?
R – Ai, eu gosto muito de batata frita com uma carne de porco bem enfeitada, uma salada.
P/1 – Você gostava disso?
R – Sim. Não tem arroz e feijão na minha casa (risos)
P/1 – Não tem arroz e feijão?
R – Não (risos)
P/1 – Qual é a comida mais usual do dia a dia lá?
R – Como falei, não tem arroz, nem feijão, essas coisas. Todo dia você cozinha alguma coisa, ou você frita alguma carne, faz algo diferente.
P/1 – Mas qual é a comida mais típica?
R – É sempre carne, tem carne na mesa. E salada.
P/1 – Sempre isso? E você tinha alguns amigos? Você tem alguma melhor amiga, alguém que foi importante pra você desde essa época?
R – Acho que não, não ficou ninguém. Porque eu saí da cidade do meu pai tinha 16 anos. Fui morar com a minha tia no capital. E já perdi contatos com meus amigos.
P/1 – E por que você saiu?
R – Porque eu não queria mais morar com meu pai. Eu tinha 11 anos quando minha mãe e meu pai se separaram.
P/1 – Ai eles se separaram.
R – Eles se separaram e eu preferi sair da casa porque eu não gostei de viver com meu pai.
P/1 – Porque eles se separaram e você ficou com seu pai?
R – É. Eu queria ficar com minha mãe, ele não deixava. E eu fugi, fui pra casa da minha tia pra morar, fiquei lá.
P/1 – E eles se separaram quando você tinha?
R – 11 anos.
P/1 – E você sabe o motivo?
R – Pra falar a verdade não.
P/1 – E a sua mãe foi pra onde?
R – Pra cidade de agora, Cherven Bryag, onde eu nasci. Mora com minha avó.
P/1 – Ela foi sozinha? Ficaram todos os filhos com seu pai?
R – Sim, todos.
P/1 – Ela não ficou porque ela ficou sem dinheiro? Me explica melhor essa história, Elisaveta, não estou entendendo, não.
R – Ai! Como explicar melhor? Meu pai não deixou nada pra ela, meus pais se separaram, mas ele não deixou nada pra ela. Ela foi pra casa da minha avó e começou a vida sozinha, não queria heranças, não queria nada do meu pai.
P/1 – Ela que saiu?
R – Ela saiu. Não queria mais nada. E meu pai preferiu que nós, os filhos, ficássemos com ele, para sermos melhor criados. E assim.
P/1 – E isso foi ruim pra você?
R – Acho que de um lado sim.
P/1 – Por quê?
R – Porque eu gostava de morar com minha mãe, de viver com ela, mas ele não deixava. Como ele era o homem da casa, ele que mandava. E a gente ficou assim.
P/1 – E todos, a sua irmã também queria ter ido ficar com a sua mãe?
R – Sim, todas. Agora minha irmã mora com a minha mãe.
P/1 – E como é que ficou a relação de vocês com seu pai, uma vez que sua mãe saiu?
R – Hum, pra falar a verdade, muito mal.
P/1 – Por quê? Como é que foi?
R – A gente não conversa muito. Ele ficou muito bravo com nós porque cada uma começou a deixar ele sozinho e ir morar com a mãe, porque mãe é a mais importante em qualquer situação. Ele ficou bravo e é difícil para ele entender que somos meninas e queremos morar com mãe. É assim.
P/1 – E ele brigou com vocês, rejeitou?
R – Não, brigou que brigou, o pai ficou nervoso, estressado porque as filhas iriam deixar ele. Mas, com o tempo ele vai aprender, está aprendendo. A gente saiu. Eu saí primeiro, depois minha irmã.
P/1 – E você saiu, mas não pra casa da sua mãe?
R – Não, eu fui na casa da minha tia porque eu fui uma vez pra casa da minha mãe e meu pai mandou e me levou de lá; ele não deixava eu morar com a minha mãe, me levou. Eu saí de lá.
P/1 – Aí você foi pra casa da sua tia? Irmã dele ou irmã da sua mãe?
R – Irmã da minha mãe.
P/1 – E aí ele não foi te buscar?
R – Não, porque ele não sabia onde eu estava.
P/1 – Ah, você fugiu mesmo!
R – Eu fugi mesmo do meu pai (risos)
P/1 – Ele não fala com a sua mãe?
R – Não, não se falam. Falam em alguma situações só.
P/1 – Por que ficou tão ruim isso? O que aconteceu?
R – Não sei. Pra falar a verdade, até hoje eu não estou sabendo de verdade o que aconteceu na minha casa, porque aconteceu tudo isso. Porque a gente era uma família muito feliz, era muito bom.
P/1 – E foi de um dia pro outro? O que aconteceu?
R – Acho que sim. Eu era pequena, não lembro com detalhes, mas era assim, de um dia pro outro que eles se separaram, minha mãe preferiu sair da casa, deixou ele, deixou nós. E assim.
P/1 – E aí você foi morar com sua tia. Onde foi, em que cidade ela morava?
R – Na capital, Sofia.
P/1 – Sofia?
R – Sim.
P/1 – E a vida mudou muito?
R – Sim. Eu mudei também, comecei crescer. Nunca trabalhei, quem me sustentou foi sempre minha tia, meu irmão maior; sempre tive apoio, não precisei trabalhar, não trabalhei lá. Não estudei também.
P/1 – O que você fazia o dia todo?
R – Ah, ficava no computador, assistia televisão, ficava na casa, saía, passeava.
P/1 – Mas ninguém mandou você estudar? Ou trabalhar?
R – Me mandavam, mas eu não queria mais estudar. Porque eu achei que a vida seria sempre assim fácil, que eu teria sempre tudo o que eu queria, como tinha sempre na minha mão. Achei que continuaria a ser sempre aquela menina que tem tudo, que nunca precisaria trabalhar, estudar e fazer nada. Achei que esse luxo nunca iria terminar.
P/1 – E aí, o que aconteceu? Isso nos seus 16?
R – 16, já fiquei 18 anos.
P/1 – Assim, nessa vida lá?
R – Sim, por dois anos morei com minha tia, depois namorei com um menino.
P/1 – E?
R – A gente começou a viver mais ou menos junto, só que eu vivia no meu apartamento, ele vivia na casa dele.
P/1 – Você vivia com sua tia?
R – Não, eu saí da casa da minha tia quando eu fiz 18 anos. Ele começou a pagar pra mim casa, um apartamento, eu morava sozinha, depois peguei minha irmã pra viver comigo. Ele morava lá, eu na minha casa, quando a gente queria se juntava.
P/1 – Ele te pagava a casa?
R – Ele pagava tudo pra mim.
P/1 – Por quê? O que ele fazia? Ele era mais velho?
R – Ele tem uma cafeteria, tem um posto de gasolina, tem uma firma de metais que trabalha. Tem bastante dinheiro, trabalha bastante, trabalhador.
P/1 – Ele era mais velho do que você?
R – Era. Tinha 28 anos, eu tinha 18.
P/1 – Então você ficou morando nesse apartamento, mas vocês não casaram.
R – Não. Eu não queria casar porque no meu país não se casa assim, jovem, a gente depois de 25, 26 anos. Primeiro, quero viver minha vida, ver bastante coisas e depois casar e ter uma família.
P/1 – Mas nessa época o que passava na sua cabeça? Você não estava estudando, não estava trabalhando?
R – Nada, eu sempre achei que a vida ia ser aquela boa. Comecei a ir nas baladas, aprendi a ir nas baladas. Comecei a ter uma vida mais luxuosa porque na capital é muito maior pra se viver, você está aprendendo muito mais coisas do que numa cidade pequena. E assim, no dia a dia virou que eu virei uma menina muito animada.
P/1 – Você ia muito à festa?
R – Queria só ir pra baladas, dançar, curtir a vida.
P/1 – E como eram as baladas? Elas são onde?
R – Na capital tem discoteca, que é como se chama no meu país, aqui não sei como se chama. Tem cantores que cantam, você pode pegar mesa VIP, eu sempre pegava coisas boas pra me divertir e me divertia. Gostava de me divertir sempre.
P/1 – E você ia com seu namorado?
R – Sim. Ia com meu namorado, quando ele trabalhava e queria dormir, aí ele me dava o dinheiro e eu ia com as minhas amigas.
P/1 – E durante o dia o que você fazia?
R – Dormia (risos). Durante o dia dormia, à noite ia dançar, beber, me divertir.
P/1 – E aí, o que foi acontecendo? Você estava então lá vivendo nesse apartamento, ia na balada
R – Sim. Ele tinha 28 como eu falei, eu tinha 18. A gente se dava muito bem, mas o problema dele é que ele era muito trabalhador e como eu era muito jovem, eu queria sair, me divertir, ver mais coisas. E como ele era mais tranquilo, ele chegava do trabalho, tomava uma cerveja, alguma coisa e ia deitar, dormir. E eu era mais animada, eu queria ver, eu queria mais, cada dia aprendendo mais as coisas, vendo as coisas. Ele me deixava, não tinha ciúmes graças a Deus (risos), ele me deixava ter minha vida, nunca me proibiu de nada. Mas com o tempo eu comecei beber demais, sair demais, ia para as festas.
P/1 – E aí?
R – Aí que um dia a gente separou.
P/1 – Ele começou a ficar chateado com essa vida que você estava levando?
R – Começou a ficar chateado, aí falava para eu parar, mas eu não queria parar. “Eu continuo, eu gosto de beber hoje, eu vou sair hoje. Você quer dormir, dorme.” Ele ficou chateado comigo. Eu falei: “Se você não quer ficar comigo, vamos nos separar”. A gente se separou. Depois fiquei sozinha.
P/1 – E aí, como você se virou no apartamento se era ele que pagava?
R – Comecei a pegar ajuda do meu irmão, mas ao mesmo tempo ele fazia assim. Quando eu peguei minha irmã pra morar comigo
P/1 – Você levou sua irmã pra morar com você e você começou a pegar ajuda do seu irmão.
R – Sim, peguei minha irmã pra morar comigo. Ele tinha gasolina, pegou minha irmã pra trabalhar lá na gasolina dele. Ela trabalhava lá e ela continuava todo dia trazendo dinheiro na minha carteira. Ele dava o dinheiro e ela colocava na minha carteira, eu levantava e o dinheiro estava na minha carteira, pra mim era bem bom (risos). Pegava e saía, fazia meu cabelo, me arrumava e ia à noite de novo, na balada.
P/1 – Todo dia você fazia isso?
R – Fazia todos os dias com as minhas amigas, com todo mundo. Tinha bastante amigos. Por causa da cafeteria que ele tinha, eu comecei a ter bastante amizade. Você frequentando um lugar todo dia, você já tá se apegando às pessoas, tem uma amizade, e assim eu peguei muitos amigos e comecei a beber, dançar. A gente acha que só isso vai ser a vida. Nunca pensei que fosse ser difícil. Depois ele continuava dando, até um dia que eu bebi, no meu aniversário, não lembro, eu bebi muito. E tava na minha casa quando ele ligou pra minha irmã descer pra pegar o dinheiro. Quando ela desceu eu perguntei quem era, ela falou: “Trouxe o dinheiro”. Eu falei: “Por quê? Eu não quero o dinheiro dele”. Peguei o dinheiro, fui e rasguei na cara dele (risos)
P/1 – Na cara dele?
R – E depois falei que não queria mais dinheiro dele, queria dinheiro da minha família.
P/1 – E ele, o que ele fez?
R – Nada, ele ficou muito chateado, pegou o carro, foi embora, e eu fiquei. Eu falei: “Não quero mais”.
P/1 – E aí você ficou?
R – A gente se separou totalmente e eu fiquei sozinha.
P/1 – E aí o seu irmão ficou te dando dinheiro? Seu pai não?
R – Eu não queria mais o dinheiro do irmão, não. Fiquei nervosa, muito mal. Acho que a bebida estava mexendo muito comigo.
P/1 – O que você bebia?
R – Whisky.
P/1 – Toda noite você bebia whisky?
R – Sim.
P/1 – Qual whisky?
R – Johnny Walker. E assim, bebia bastante, acho que a bebida, não sei, pra falar o que me deixava assim. Eu sou muito ansiosa, muito nervosa. O que eu queria tinha que ter, o que eu quero fazer tem que fazer, não gosto de escutar ninguém. Desde pequena eu fui ensinada assim, pra não escutar e não saber nada de ninguém. E por isso aconteceu tudo isso comigo. A gente terminou, eu fiquei sozinha, não queria o dinheiro do meu irmão. No mesmo dia chegou uma amiga da minha irmã que me falou desse trabalho.
P/1 – Qual era o trabalho?
R – Que eu posso chegar até aqui.
P/1 – Brasil?
R – Brasil.
P/1 – Uma amiga da sua irmã que veio falar pra você?
R – Não é amiga, uma conhecida que ela conheceu lá no posto onde minha irmã trabalhava. Essa mulher ia todo dia tomar café lá e no dia a dia elas viraram amiguinhas.
E minha irmã convidou ela pra tomar café na minha casa. E no mesmo dia eu tava tão bêbada, como eu falei, ela me convidou pra esse trabalho, chegar até aqui o Brasil
e eu aceitei.
P/1 – O que ela falou?
R – Ah, falou: “Você aceita ir dez dias no Brasil pegar uma mala e chegar até aqui?” Não vai ter problema.
P/1 – Mas você sabia o que tinha que fazer?
R – Falou que vai ser tráfico. “Você vai pegar mala, vai ser pronta, você leva”.
P/1 – Você tinha que levar ou buscar?
R – Ir buscar, vir até aqui buscar.
P/1 – E o que tinha na mala?
R – Só que não me pegaram na mala, fui pega aqui no corpo. E eu aceitei o trabalho.
P/1 – Elisaveta, vamos lá. Então, você estava na casa com a sua irmã, tinha bebido muito.
R – Sim, tinha bebido muito.
P/1 – Ela te contou.
R – Ela convidou essa amiga dela pra tomar café na minha casa e a gente conversou um pouquinho. Ela viu a cena que eu fiz na cara do meu namorado.
P/1 – Ah, foi no dia da cena do seu namorado?
R – Sim, ela viu tudo isso que aconteceu, que eu falei que não queria o dinheiro do meu irmão nem de ninguém, mas que eu ia me virar sozinha. Mesmo assim eu nunca tinha trabalhado, eu não sabia como me virar. E essa menina falou: “Eu posso te ajudar. Você pode ir até o Brasil, tem um trabalho muito fácil, você vai pegar um pacote e você volta”. Como estava muito bêbada, falei: “Tá bom, pode ser, eu vou”.
P/1 – E aí ela te ofereceu. E era muito dinheiro?
R – Não. Esse dinheiro que eu gastava, não dava nem pra gastar em uma semana.
P/1 – Ah, ela te ofereceu pouco, não era muito?
R – Sabe quando parece que alguém apagou sua memória, sua mente, e que você não dá pra pensar, você não pensa em nada? Você só quer se vingar e fazer isso só de raiva?
P/1 – De quem você estava com raiva, Elisaveta?
R – Não sei, acho que da minha própria vida porque nem eu sabia o que eu queria da minha vida. Pra mim era todo dia balada, balada, balada, dançando, bebendo.
P/1 – Mas nesse momento, onde é que tava seu pai?
R – Meu pai tava na cidade dele.
P/1 – Vocês se falavam?
R – Não.
P/1 – Você tinha raiva dele?
R – Tinha.
P/1 – Muita raiva?
R – Tinha, bastante raiva.
P/1 – E por que tanta raiva?
R – Porque ele não queria deixar eu morar com minha mãe. Eu queria muito morar com a minha mãe, só que ele não me deixou. Quando eu ia na casa da minha mãe ele mandava as pessoas me buscarem para eu não ficar com minha mãe. Porque ele queria magoar minha mãe de um jeito, tirar os filhos, pra não deixar os filhos com ela. E como minha mãe não tinha aquele poder pra ir na frente ela ficou quieta e meu pai fazia o que ele queria.
P/1 – E nesse momento, por exemplo, você falava com sua mãe também, ou também não falava?
R – Com minha mãe falava bastante. Mas, como se chama quando você não é criada pela mãe ou pelo pai? Você é criada pelos empregados?
P/1 – Ah, era assim? Você foi mais criada pelos empregados, pelas babás?
R – Pelos empregados, pelas babás, meus avós que cuidavam mais de mim. Meu pai estava sempre trabalhando, minha mãe sempre deitada ou assistindo alguma novela, algum filme, era assim. Fomos criados mais pelos empregados.
P/1 – Então, na verdade, na verdade, você também não tinha tanta referência?
R – Tanta diferença não tinha entre minha mãe e meu pai.
P/1 – Tinha alguém que era muito importante pra você nessa época?
R – Meus avós.
P/1 – E onde eles estavam?
R – Eles moravam na casa do meu tio, só que depois de anos eles mudaram pra casa do meu pai, minha avó e meu avô.
P/1 – E eles é que foram as pessoas que mais te criaram?
R – Sim.
P/1 – Então, antes da gente chegar nessa sua viagem, me conte sobre eles. Como eles se chamam?
R – Meu avô se chama Kostov, minha avó se chama Elisaveta, o meu nome.
P/1 – Eles eram pais do seu pai?
R – Sim, pais do meu pai.
P/1 – E como eles eram?
R – Como vou falar? Ai, não sei como explicar.
P/1 – Eles eram carinhosos com você?
R – Sim, bastante carinhosos, bastante atenciosos, davam atenção pra mim.
P/1 – Quem? Sua vó ou seu avô?
R – Os dois. E eu passeava com eles, sempre esta junto com eles.
P/1 – Eles já não trabalhavam.
R – Não.
P/1 – Nenhum dos dois.
R – Não, eles já eram, como se chama quando você...
P/1 – Aposentado.
R – Aposentados.
P/1 – E eles cuidavam de você e de mais alguma das suas irmãs?
R – Sim, das minhas irmãs também. Mas elas eram menores, eu era a maior das irmãs.
P/1 – E quando você saiu da casa do seu pai eles não ficaram chateados? Não falaram pra você morar com eles, como é que foi?
R – Como vou explicar? Meu pai, como eu falei e vou repetir, era muito poderoso e não deixava meus avós falarem a opinião deles. Era o que ele falava, Então, como eles moravam lá não dava pra eles darem opinião, ou eles pegarem uma casa e eu morar com eles. E assim, eu preferi sair, fugir da casa pra ver a cara do meu pai.
P/1 – Então agora vamos voltar lá. Você está no apartamento, e ela fala. E aí, como é que foi? Como você se preparou pra vir?
R – Como eu me preparei? Ela contou que eu poderia fazer essa viagem, que seria muito rápida, tãtãtã, e eu cheguei. No outro dia já tava a passagem comprada, tudo pronto.
P/1 – Você tinha passaporte?
R – Tinha sim. Porque eu gostava de viajar.
P/1 – Pra onde você ia?
R – Eu fui na Espanha uma vez, acho que fiquei um ano e meio, dois anos na Espanha, eu vivi lá.
P/1 – Com que idade?
R – Depois dos 18 anos, fiquei um pouquinho lá, eu com as minhas tias.
P/1 – Conheceu o namorado?
R – Pra falar a verdade tinha, mas não é namorado, namorado, porque eu tinha meu namorado.
P/1 – Ah, você foi, mas você arrumou outro lá na Espanha?
R – É. Pode ser.
P/1 – E aí você ficava morando na casa de quem?
R – Eu estava numa casa alugava que pagava.
P/1 – Quem pagava?
R – Eu.
P/1 – Ah, você pagava, com esse dinheiro do seu namorado?
R – Ele dava tudo, mandava dinheiro.
P/1 – Então, você habla castellano?
R – Quase (risos).
P/1 – Em que pedaço da Espanha você ficou morando?
R – Alicante. Lá fiquei bastante tempo. Depois voltei pra Bulgária. Eu gosto muito de praias; eu gostava de ir na Grécia também, que tem praias muito lindas, eu gosto de praia. Porque na Bulgária as praias não são tão tão tão bonitas. Eu gosto de coisas mais bonitas, mais lindas.
P/1 – Aí você ia pra Grécia, pra Espanha?
R – Ia, viajava sempre no verão, ia viajar pra descansar um pouquinho, eu com minhas amigas.
P/1 – E aí você pegou o voo em quantos dias?
R – No outro dia eu peguei o voo, cheguei aqui. Fiquei na Grécia acho que dez dias. Não, é, mais ou menos dez dias. Depois disso me compraram passagem e vim direto pro Brasil.
P/1 – E aí? Como que foi, o que aconteceu?
R – Nada, cheguei aqui, tinha o hotel onde tinha que ficar, foi tudo pago. Eu ficava no hotel esperando, ficava com meu notebook conversando com meus amigos, com minhas amigas.
P/1 – Aqui em São Paulo?
R – Não, não tenho amigos aqui em São Paulo, todas minha amigas estão na Bulgária.
P/1 – Eu sei, mas o hotel era em São Paulo?
R – Sim, fiquei aqui em São Paulo.
P/1 – Que hotel que foi?
R – Ah, não lembro, era no centro.
P/1 – No centro.
R – Passou bastante tempo, né? Três anos.
P/1 – Aí você ficava ali no centro, também não saía muito?
R – Saía só para almoçar ou jantar alguma coisa, ia no Mc Donald’s que eu como só isso, não gostava da comida que tinha aqui todo dia, as mesmas coisas. Ia no Mc Donald’s, comia, voltava. E ficava lá com meu notebook, bebia, continuando bebendo no hotel sozinha, e conversando com meus amigos. Esperei até o grande dia, né, pra voltar pra Bulgária, quando fui pega no aeroporto.
P/1 – Você estava com a droga, você tinha na mala?
R – Estava a droga colocada, como se chama, aqui?
P/1 – Na cintura.
R – Na cintura. E fui pega.
P/1 – Como é que foi?
R – Ai. Chegou um Federal e pediu o passaporte, eu dei. Olhou, viu que eu sou búlgara, me chamou, pediu revista, olhou minha mala, todas minhas coisas, não achou nada. Quando pediu pra tirar meu casaco, eu sabia já o que ia dar isso. Ele perguntou se eu tinha droga, eu fiz, sim, que tinha. E assim. Ele me pegou. Fui dar depoimentos falando o que aconteceu, porque eu fiz isso.
P/1 – E você nesse momento? O que você pensava?
R – Nossa, acho nesse momento (suspiro), acho que minha família vai me matar aqui, eu vou morrer aqui na cadeia. Eu acabei com minha vida. Porque quando perguntei quantos anos podia dar, me falaram que de cinco até 15 anos. Eu fiquei muito chocada. Fiquei três dias na Federal em Guarulhos, depois eu voltei, me trouxeram pra cá.
P/1 – Direto pra esse presídio aqui?
R – Direto pra esse presídio.
P/1 – E aí? Você chegou aqui, o que aconteceu?
R – Passei pelas revistas, por tudo o que tem que passar, pegar roupa, entrar no uniforme, pegar o colchão e entrar pra dentro. Era um dia muito chocante, muito estressante, foi muito pior. Achei que não fosse aguentar.
P/1 – Você olhou aquilo e o que te deu?
R – Uma sensação que isso não é meu mundo, onde eu vivia, que isso não é pra mim, eu não vou aguentar tudo isso.
P/1 – E passou o primeiro dia, o que aconteceu?
R – Passou o primeiro dia, passou o segundo.
P/1 – Você foi dormir num quarto?
R – Fui. Com uma brasileira.
P/1 – E você não falava nada?
R – Não falava nada de português, não sabia nenhum palavrinha. No dia a dia comecei ver que tem que aprender a língua, que sem língua, sem o português não dá pra você aprender nada. Te chamam pra algum atendimento, alguma coisa, você não sabe falar, você não sabe fazer nada sem falar. E assim comecei a aprender o português.
P/1 – Com quem? Com essa sua companheira?
R – Sim, pegava colher, alguma coisa, o que estava na minha mão e perguntava, fazia assim e ela falava, ‘cobertor’, ‘colher’. E eu repetia, repetia, repetia. Pegava um caderninho e escrevia até aprender um pouco, no dia a dia, aprendi rapidinho.
P/1 – E aí, você conseguiu avisar sua família lá que você tinha sido presa?
R – Sim.
P/1 – Como você fez?
R – Minha família eu avisei no aeroporto.
P/1 – No aeroporto? Fui presa.
R – Avisei minha mãe. Acho que era de madrugada quando liguei na minha casa, quando liguei pra minha mãe. Minha mãe não tinha voz pra me responder porque ela sabia que eu estava aqui pra descansar, pra fazer uma viagem, descansando pra curtir uma praia, fazer algo, e que ia voltar. Ninguém sabia que eu vinha aqui buscar droga. Quando eu falei que eu estava presa, ela só perguntou por quê, eu falei: “Droga”. Minha mãe não acreditou, ficou sem voz e deu o telefone pra minha irmã.
P/1 – E aí?
R – E eu falei que eu tava presa, que eu estava presa em São Paulo. Eles me acharam depois, acho que quando eu entrei aqui, passou pouco tempo e eles ligaram aqui na frente. Antigamente a família podia ligar aqui na frente, a gente conversou e a família inteira conversou comigo, minha irmã ligou, todo mundo. Me deram apoio, não posso julgar isso, me deram bastante apoio, não me julgaram. Perguntaram só por que fiz isso. Falei que eu não posso ter o tempo de volta, se eu pudesse voltar tudo isso atrás, eu faria, mas eu não posso mudar o que eu fiz, tenho que pagar.
P/1 – Mesmo o seu pai, você falou com ele ou não?
R – Com meu pai, minha mãe falou pra ele. Meu pai falou que a filha dele era morta pra ele, que a filha dele não existia mais, morreu. Até hoje eu não tenho nenhuma notícia do meu pai. Eu pergunto, escrevi duas ou três vezes cartas pra ele. Achei que se ele escutasse da minha boca seria melhor do que escutar de uma outra pessoa, que seria ser pior. Eu escrevi uma carta que eu estou presa por isso, por isso, que eu errei, que ele me perdoasse, mas ele não me respondeu nenhuma carta. Ele não me respondeu nunca, mas eu escrevi.
P/1 – Você escreveu uma só?
R – Três ou quatro cartas escrevi pra ele.
P/1 – E ele nunca te respondeu?
R – Nunca me respondeu.
P/1 – E aí você escreve carta pra quem?
R – Mais pra minha mãe, pra minha irmã.
P/1 – E eles te escrevem?
R – Sim, escrevem. Quem mais escreve é a minha mãe. No começo todo mundo escrevia, mas agora como todo mundo trabalha, tem a vida deles, continuam vivendo, não vão sentar cada semana para escrever pra mim. Mas elas escrevem.
P/1 – E sua mãe?
R – Minha mãe, cada mês tem que mandar uma cartinha pra ela.
P/1 – Então quantas vezes vocês se conversam por carta? Uma vez por mês?
R – Eu que escrevo mais pra minha mãe, porque eu gosto de deixar ela mais tranquila.
P/1 – E o que você escreve nas suas cartas?
R – Que eu estou bem, que eu estou trabalhando, que tudo tá indo bem, que eu to me entendendo com todo mundo, que eu não tenho problemas com ninguém. São coisas boas, que eu estou comendo, que eu estou muito bem, que eu não choro, que eu não fico triste, que bate só a saudade. Não gosto de atrapalhar.
P/1 – E ela escreve o que pra você?
R – Agora, pra falar a verdade, a minha mãe, depois que eu fui presa, a gente, como se chama quando a gente se apega mais? Eu já ganhei minha mãe aqui na cadeia, agora sim posso falar que tenho uma mãe verdadeira! Porque minha mãe escreve, que nunca falou te amo, tenho saudades de você, pra me chamar de ‘minha princesa, eu estou te esperando, você é muito linda’. Quando eu mando as fotos pra ela, pra ela ver. Ela gosta muito disso agora, ela me dá muita atenção pelas cartas, podem ser poucas palavras, mas nossa, minha mãe agora, escreve coisas muito boas, muito lindas.
P/1 – E isso é importante pra você?
R – Fala que está me esperando. Isso é muito importante pra mim, acho que é isso que está me dando força pra aguentar tudo. Meu irmão também, minha irmã. Mas mais importante é a minha mãe, que eu ganhei. Eu tinha aquela ligação com meus irmãos, mas não tinha com minha mãe. Agora com minha mãe, agora é muito importante pra mim, uma coisa muito linda.
P/1 – Tem alguma carta, especialmente, que foi muito importante pra você?
R – Ah, todas são importantes. Cada uma é mais linda que a outra. Cada uma palavrinha de falar uma coisa boa, de você ler uma palavra de carinho. Isso é muito importante pra gente. Todas as cartas são importantes, da minha mãe.
P/1 – É a de quem você mais espera?
R – Que eu mais espero. Acho que é a primeira carta que, quando recebi, que era muito importante de verdade.
P/1 – Deixa eu ver qual é a primeira.
R – Eu não peguei ela.
P/1 – O que ela disse na primeira carta?
R – Que ela está comigo, que ela vai me apoiar, que ela nunca vai me deixar, que ela vai me esperar até o final. Me deu apoio de verdade, de mãe, que ela me ama, que ela não vai me deixar, que está me esperando pra voltar. Se eu preciso de ajuda, se eu quero advogado. Mas eu não queria ajuda, não queria nada. Porque me deram sentença muito baixa, muito pequena. Eu não queria apoio de ninguém porque eu sabia que vou embora logo.
P/1 – Qual foi a sua sentença?
R – Primeira sentença foi dois anos e 11 meses
P/1 – Mas você já está aqui há quanto tempo?
R – Três anos e sete meses.
P/1 – Mas como? Por quê?
R – Porque o promotor apelou. O promotor apelou, não gostou de dois anos e 11 meses e subiu pra quatro anos, dez meses e dez dias.
P/1 – Mas por que aumentou em vez de diminuir?
R – Porque não pode diminuir, uma cadeia é dois anos e 11 meses e o promotor não gostou da minha sentença, que é muito baixa, e ele apelou.
P/1 – Ah, o promotor! Não o defensor, desculpa. O promotor diz que não, queria que aumentasse.
R – Aumentasse. Ele apelou.
P/1 – Ele achou pouco?
R – Sim. Eu apelei, mas...
P/1 – Você tem uma advogada que te ajuda?
R – Tenho aqui da casa, prefiro ela.
P/1 – E ela te ajuda?
R – Sim, ela me ajuda bastante, sempre faz as coisas, minha remissão, tudo. Ela faz. É muito boa pessoa, sempre me atende quando preciso.
P/1 – E aí? Agora vamos voltar pra sua vida na cadeia. Você entrou, esse mundo não é meu. E aí? Como é que foi a mudança aqui?
R – É difícil. Eu chorava muito no começo. Era difícil para eu me acostumar nesse lugar, pra me acostumar com roupas, com costumes que você tem que passar na contagem, levantar a mão pra mexer, que você é viva, você não sabia de nada. Tudo é muito difícil, uma lição muito dura aqui, que eu aprendi. Mas no dia a dia eu comecei a pensar: “Não, eu não posso me entregar. Eu sou forte, tenho 21 anos, eu vou virar isso, eu vou embora logo. Sou jovem”. O dia a dia passou, comecei a aprender a língua, falava mais e mais; comecei a trabalhar, comecei a distrair a minha cabeça. O trabalho, foi muito difícil pra mim aprender a trabalhar, nossa!
P/1 – O que você começou a aprender de trabalho?
R – Era aqui numa firma fazendo peças, tem que colar as peças.
P/1 – Peças pra quê?
R – É, como se chama? Pra pegar sangue, pra colocar, não sei como se chama...
P/1 – De hospital?
R – De hospital, é. No começo, nossa, minhas mãos ficavam tudo assim, cheias de bolinha de água.
P/1 – Porque você nunca tinha feito nada.
R – Nunca tinha feito nada com a mão, unhas grandes, nunca tinha feito. Nossa, eu chorava, chorava. Falei pra minha mestrinha: “Eu não aguento, você pode me trocar?” Ela me trocou. Mas mesmo assim, ela me trocou num trabalho que tem que colocar pecinhas (risos). Que minha mão ficava toda doendo aqui (risos), não podia fazer nada. E eu chorava, chorava, chorava. Ela mudou uma terceira vez .Na quarta vez já deu um show, minha mestrinha: “Você se acha o quê? Que sua mão é de cristal?” (risos). Eu comecei a chorar na frente de todo mundo, mas ela gritou no ambiente inteiro, que as meninas escutaram, eu fiquei com vergonha. Falei: “Nossa, como pode ser isso?”. Falei: “Mas eu vou mostrar pra ela que eu posso, que eu vou conseguir aprender”. Acho que isso me deu força pra aprender, quando ela brigou comigo e falou: “Nossa, sua mão é de cristal, vai cair e quebrar”. E eu comecei me dar mais forças e tentar aguentar, aguentar. E aguentei. Comecei, aprendi a trabalhar. Trabalhei bastante, trabalhei nesse um ano. Depois de um mês eu aprendi a trabalhar muito bem. Ela, sozinha, veio e pediu pra me trocar do trabalho, um trabalho mais fácil, que era visão. Visão pra olhar as peças, se tem defeito, alguma coisa, pra encaixar dentro na caixa. E é assim.
P/1 – E agora você está nesse trabalho?
R – Agora não, agora eu estou aqui na frente, no almoxarifado
P/1 – O que você faz lá?
R – No almoxarifado eu faço limpeza. Almoxarifado é onde tem as camisetas, colchões, sabonetes, tudo que vem pra dentro da cadeia; tudo é arrumado nos quartos grandes que a gente tem que arrumar todas as coisas contadas. Eu arrumo, conto, faço faxina. É assim.
P/1 – E o que você aprendeu com o trabalho? Foi alguma coisa diferente?
R – Nossa, eu aprendi que com o trabalho é muito melhor do que ficar sentada e pensar só na balada, nas diversões. É outra coisa quando você trabalha, se diverte. Também esqueci dos problemas, você se sustenta do seu próprio dinheiro, não precisa pedir ajuda pra ninguém. Se você sabe que você trabalhou e esse mês você vai ganhar seu dinheiro, que você pode comprar suas coisinhas, que você pode deixar um pouco do dinheiro pra lado, é assim.
P/1 – Então no fundo você gostou de trabalhar?
R – Gostei. Agora posso falar que gostei. Aprendi a fazer café, chá (risos). Aprendi tudo, estou aprendendo, a cada dia aprendendo uma coisa aqui. É uma coisa muito boa.
P/1 – E você fez amigas aqui? Como é a relação sua com as outras pessoas?
R – Amigas, amigas, eu sou um pouco mais quieta, no meu canto. Gosto de ficar na minha, gosto de chegar do trabalho, tomar um banho, ficar na minha cela, subir na minha cama, deitar.
P/1 – E o que você faz com o tempo?
R – Fazer um cafezinho quente, tomar um café.
P/1 – Você tem a máquina de café na cela?
R – Não, temos água do chuveiro que pegamos.
P/1 – Água quente.
R – Mas tem Nescafé que a gente bate com açúcar e faz um cafezinho. E assim, tomo café, pego e escrevo alguma carta pra minha família, pra alguém.
P/1 – E o que mais você gosta de fazer? Você tem televisão?
R – Tem televisão sim, tem televisão nas celas. Assisto novela.
P/1 – E você lê? Que outras coisas?
R – Leio a Bíblia também. Sempre. Sem a Bíblia não deito. Aprendi a ler a Bíblia. Eu nunca tinha pegado na Bíblia, aprendi a ler em português, escrevendo em português, estou fazendo tudo em português agora!
P/1 – Você aprendeu sozinha?
R – Sim, tudo sozinha. Não sei, acho que eu sou inteligente, não sou tão burra. Eu estudei, tenho minha inteligência. Que fiz coisas erradas eu fiz, mas cada um tem um dom, eu aprendi, e isso é muito bom.
P/1 – E você descobriu que dom tem você, nessa situação toda?
R – Ah, eu melhorei muito. Mudei, melhorei, virei uma pessoa mais tranquila, mais paciente. Eu nunca tinha paciência, agora posso aguentar tudo. Se você brigar comigo eu vou entrar no meu quarto, vou chorar a noite inteira, mas que eu não vou fazer uma briga, eu não vou fazer. Eu fico mais na minha, prefiro tirar toda a raiva dentro de mim do que em cima de alguém. Se eu estou triste eu gosto de ficar na minha cama, escutando, coloco meu rádio, escuto música. Não gosto de chorar na frente dos outros porque depois gozam da sua cara, vão falar: “Chorona!”
P/1 – Mas você fez alguém especial aqui, que foi importante pra você? Na cadeia?
R – Não.
P/1 – Ninguém foi muito importante.
R – Especial, especial, assim, não. Tem companheiras que a gente se apega, a gente conversa, a gente toma café junto. Jogamos vôlei aí embaixo no pátio.
P/1 – Tem outras meninas da Bulgária?
R – Tem. Nove meninas, somos da Bulgária.
P/1 – Nove. E vocês ficaram mais próximas ou não necessariamente?
R – Eu moro com uma búlgara, agora eu moro com mais uma, que chegou mais uma nova, tem 20 dias que chegou. Mas, acho que eu sou mais no meu canto.
P/1 – Mesmo elas sendo búlgaras?
R – Mesmo assim, eu falo português, mais do que na minha língua.
P/1 – Com elas?
R – Com elas também. Elas não sabem muito português. Uma é nova, acabou de chegar, ela não sabe nada, agora estou ensinando ela a falar. A outra, acho que tem um ano e pouco aqui, mas a gente se fala pouco.
P/1 – Vocês não ficaram amigas?
R – Eu sou difícil de fazer amizade, principalmente com mulher. Porque na rua sempre meus amigos eram homens, só tenho duas amigas mulheres de verdade, até hoje, que elas me escrevem, mandam as cartas.
P/1 – Ah, elas te escrevem, essas amigas?
R – Sim, até hoje. Mas meus amigos... Aqui amigas não tenho, assim, amigas, amigas de verdade. Companheiras posso falar que sim, pra tomar café, pra conversar, pra ir jogar um vôlei, pra fazer algo pra divertir o nosso dia. Mas assim, muito especial acho que ainda não achei. São um pouco falsas as pessoas aqui, com o tempo você descobre muitas coisas, e eu prefiro não me machucar ou magoar com alguém.
P/1 – Ah, você descobre que as pessoas são falsas?
R – Sim.
P/1 – As brasileiras são muito diferentes das búlgaras?
R – Acho que não, né?
P/1 – Não? Você não viu assim, grande...
R – Não, eu gosto mais das brasileiras do que das estrangeiras, não sei porquê. O convívio, acho que dá mais pra conversar ou perguntar alguma coisa, te explicar alguma coisa, melhor do que uma outra menina.
P/1 – Quando você vai sair?
R – Vou sair ano que vem, acho que até o final de janeiro eu estou indo embora.
P/1 – E qual é o seu plano pra sair? O que você quer?
R – Eu quero voltar pra minha casa.
P/1 – Você quer voltar?
R – Sim, eu vou voltar. Mas primeiro, se pudesse, eu gostaria de ficar aqui dez, 15 dias.
P/1 – Aqui no Brasil?
R – Em uma praia. Pra conhecer algo bonito no Brasil, ir em uma praia, comer algo bonito, me divertir um pouquinho e voltar na minha casa.
P/1 – E como você pretende fazer isso? A sua mãe vai te ajudar a voltar, como é que é?
R – Sim, meu irmão vai me ajudar pra voltar. E minha família vai me ajudar. Só está esperando o dia para eu falar que estou com pé na rua pra eles comprarem a passagem.
P/1 – Nesse tempo todo nunca teve a ideia deles virem pra cá, nenhum deles?
R – Não, meu irmão queria, pediu para mandar advogado da Bulgária e eu não quis porque eu peguei a sentença baixa. Falaram que aqui os advogados mais pegam o dinheiro do que fazem um trabalho. Eu preferi não atrapalhar minha família. Falei, se eu tenho que pagar, eu vou pagar o que eu fiz. Preferi tirar dor, tudo, em cima de mim, mas eu aguentei.
P/1 – E agora quando você chegar lá, o que você pensa fazer?
R – Eu vou começar a trabalhar. Meu irmão agora já abriu uma empresa de lavagem de carros, já está fazendo um salão de beleza e eu vou trabalhar. Minha irmã trabalha como secretária pra ele, meu irmão tem firma de metal, compra e depois vende nas outras firmas maiores, não sei como se chama aqui no Brasil.
P/1 – É distribuidora, né?
R – É, você compra um carro quebrado, um monte de coisa, sabe assim? Eles vendem, meu irmão compra, tem na base dele que é muito grande e depois vende pras outras pessoas.
P/1 – E você vai morar com quem?
R – Vou morar com minha irmã, com minha mãe também, que ela fica agora lá. Está todo mundo junto, minha irmã e...
P/1 – Ah, é?!
R – Sim! Agora todo mundo fica junto
P/1 – E você tem expectativa de encontrar seu pai?
R – Eu tenho, pelo menos pra pedir perdão pra ele por algumas coisas que eu fiz quando criança, falei coisas que não devia. Coisas que uma criança fala quando briga com o pai. Mas eu acho que ele vai me perdoar quando me ver porque meu pai sempre foi muito ligado comigo quando eu era pequenininha. Mas agora vamos ver. Eu já tenho 24 anos, vamos ver o que vai dar.
P/1 – Você tem algum sonho, Elisaveta?
R – Sonho? Sonho não tenho, sonho tenho de ficar junto com a minha família, ganhar minha família essa vez e não perder essa família que é a coisa mais importante que eu tenho nesse mundo. Ficar perto da minha mãe, cuidar da minha mãe, que agora quem precisa de cuidado é ela, não eu. Mas vamos, eu vou trabalhar, vou começar a trabalhar porque agora eu gosto de trabalhar, tenho vontade de trabalhar. Não gosto de ser sustentada por mais ninguém (risos). Já aprendi a lição.
P/1 – Obrigada, querida
R – De nada
FINAL DA ENTREVISTARecolher