Ponto de Cultura
Depoimento de Edileine Fonseca
Entrevistado por Marco (P/2) e Márcia Trezza (P/1)
São Paulo, 18/05/2007.
Realização Instituto Museu da Pessoa.Net
PC_MA_HV009
Transcrito por Michelle de Oliveira Alencar
Revisado por Gustavo Kazuo
P/1 – Edi, você fala o seu nome completo, on...Continuar leitura
Ponto de Cultura
Depoimento de Edileine Fonseca
Entrevistado por Marco (P/2) e Márcia Trezza (P/1)
São Paulo, 18/05/2007.
Realização Instituto Museu da Pessoa.Net
PC_MA_HV009
Transcrito por Michelle de Oliveira Alencar
Revisado por Gustavo Kazuo
P/1 – Edi, você fala o seu nome completo, onde você nasceu e a data?
R – Meu nome é Edileine Fonseca, eu nasci no dia 29 de dezembro de 1967, em São Paulo.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Mário Fonseca e Álida Dellatorre Fonseca.
P/1 – E dos seus avós?
R – Bem, dos meus avós maternos é Lidubina garavelli Dellatorre , Wardes Demócrito Dellatorre. E dos meus avós paternos: Francisco Fonseca e Miquelina Perrotti.
P/1 – E a atividade deles você conhece, você sabe?
R – Dos meus avós? A minha avó materna era do lar, a minha outra avó tinha uma vida um tanto quanto mais sofrida e assim, também trabalhava em casa mas lavava roupa pra fora, né, tinha essa outra atividade, além de cuidar da própria casa, cuidava de outras coisas. E o avô materno era barbeiro, mas o meu avô materno, a família dele era de pessoas de gostavam muito de cantar, um dos irmãos dele mais velho, o Aramis, era um ator de teatro no Bom Retiro e por conta disso ele tinha essas atividades, ele fazia teatro com os irmãos quando era mais jovem, gostava muito de cantar, mas a profissão dele mesmo era barbeiro. E do meu outro avô (risos) é engraçado! Eu tô rindo porque eu estou imaginando os meus outros parentes assistindo esse depoimento. (risos) Eu não sei se ele, ele trabalhava acho que em fundição, alguma coisa ligada à fundição, mas ele era um português que na verdade não gostava muito de trabalhar. (risos) Que as pessoas, os parentes que vão assistir vão falar: “Na verdade, na verdade”.
P/1 – Ele trabalhava.
R – Ele tinha muitos filhos e botava os filhos para trabalhar, entendeu?
P/1 – Ah tá. Ele tinha uma profissão, mas...
R – É, mas ele desenvolvia sim, trabalhava também na fundição, mas tinha esse lado “meio vagal”. (risos)
P/1 – E ele tinha outra atividade além dessa?
R – Não, que eu saiba não.
P/1 – E seus pais, Edi?
R – Então, a minha mãe ela é do lar também, né, a minha mãe ainda é viva e, mas assim, ela sempre foi muito ligada a uma instituição social e religiosa que é uma Casa Espírita Kardecista da qual ela faz parte há muitos anos e sempre desenvolveu muitos trabalhos por lá. Então, trabalhando com as crianças, trabalhando com crianças carentes, com famílias e até hoje ela desenvolve esse trabalho que ocupa uma boa parte assim do tempo dela. Hoje menos, né, mas teve uma fase que ocupou bastante esse tempo.
P/1 – Desde quando você era criança, assim, que ela faz esse trabalho?
R – É. A família da minha mãe, a minha mãe logo acho que de mocinha, de menina, ela já, eles já eram espíritas kardecistas, quando ela casou, nem casou na igreja, nós não fomos batizados, nenhum dos filhos dela, então faz muito tempo já, né? Que na verdade um tio dela, tio por parte da mãe dela, né, meu tio-avô Mário que fundou o centro, esse centro espírita, aí toda a família, essa grande família que até depois eu posso falar mais, foi trabalhar nessa instituição da qual ela faz parte até hoje.
P/1 – Mas fala dessa grande família...
P/2 -
Mas quanto tempo... desculpa.
P/1 – Não, não, fala.
P/2 – Faz quanto tempo que vocês fundaram essa instituição.
R – Ai meu Deus, que feio eu não saber isso, mas sei lá, uns 40 anos mais ou menos.
P/2 – Foi um dos primeiros, muito pioneiro, né?
R – É. Eu acho que, eu acho que teve um trabalho muito importante, foi lá na região da Casa Verde, na Vila Baruel, existe esse centro até hoje e ele serviu de modelo pra outras instituições, então foi inovador. Eu acho que hoje nem tanto, existem outras instituições espíritas kardecistas que estão mais a frente assim, não sei. Mas, e até hoje ela existe e atende às famílias e faz um trabalho assistencial, social.
P/1 – E assim pra você, Edi, como era a relação sua com esse trabalho que você diz da família e tudo?
R – Putz, eu adorava! Tem uma história assim porque é isso: esse avô, esse tio da minha mãe, irmão da minha avó materna, né, ele fundou esse centro e aí todos os outros irmãos, muitos, colaboraram e os sobrinhos. E a família da minha avó no total são nove filhos e todos ajudavam uns mais, outros mais próximos, outros menos, né, mas todos muito envolvidos. E naquela época também outras pessoas que não eram da família trabalhavam e eu tenho ótimas lembranças desse período porque era um momento que a gente ia num lugar, num grupo que chamava: Evangelização Infantil, e aí as crianças iam lá para ter aulas, né, que falavam de cristianismo, dos espiritismo e tal e a gente tinha muitas atividades artísticas. E eu acho que foi lá, assim, que desde criança eu pude fazer muitas coisas ligadas ao teatro, a cantar música. Então eu tenho ótimas recordações e tenho amigos até hoje, né, desse grupo do qual participei e fiquei muitos anos, desde acho que dos meus seis anos de idade até os meus 14 nessa faixa das crianças e depois eu passei pra mocidade espírita que era um grupo de jovens e fiquei dos 14 até os 24. E assim: desse grupo eu fui uma das presidentes depois. A gente tinha um grupo de teatro no meio espírita que se apresentava em outras instituições. Então foi muito marcante, né? Foi muito marcante assim, e acho que foi marcante para várias pessoas que participaram desse grupo, por vários motivos: porque a gente tinha que dar aulas, então quando você é adolescente com 14 anos você ter que dar aula pra um grupo de outros adolescentes, às vezes pessoas até mais velhas do que você, então você tem 15, 14 anos e tinha um cara de 24 lá assistindo. Então você tinha que se expor, você tinha que fazer trabalhos em grupo, trabalhos sociais, organizar aulas pras crianças carentes, né, fazer parte desse grupo de teatro, então tinha ensaio todo domingo. Tinha uma série de responsabilidades que ficavam pra esse pessoal da mocidade, então eu acho que foi muito marcante isso, assim. E no grupo de teatro tinham pessoas muito tímidas e depois hoje a gente encontra com essas pessoas que trabalham em empresas, que estão com cargos importantes que falam: “Nossa, como o grupo de teatro ajudou porque eu pude aprender a me soltar mais, a falar mais em público, a ter uma certa liderança”. Então eu acho que foi muito importante.
P/1 – E aí, Edi, você disse que trabalhou até mais ou menos uns vinte...
R – 24 lá.
P/1 – 24.
R – Mas era um trabalho voluntário a participação desse grupo.
P/1 – Sim sim, mas aí depois você continuou mantendo uma relação com o Centro ou até com essa religião, alguma coisa assim?
R – Então. Eu tive até pouco tempo uma tentativa de reaproximação, mas acontece que assim: o meu trabalho como educadora, felizmente me possibilitou um outro olhar pra esse trabalho com as pessoas menos favorecidas economicamente, e eu passei a desacreditar no trabalho assistencialista pra acreditar em outras coisas, né, no investimento da cultura dessas pessoas, da ampliação desse universo cultural, das oportunidades. E aí não batia mais essa forma de pensar que até eu cheguei a comentar isso, a tentar a levar essas outras ideias, mas eu percebo que o grupo tem um pouco essa forma, como na sua origem, né, de pensar e que é um pouco difícil essa mudança e que eu respeito muito, porém não me serve mais assim, não. Mas é uma pena, é uma coisa que eu também nessa fase da vida me pergunto um pouco assim se não haveria uma forma de eu contribuir, mas enfim.
P/1 – E assim, quando você era criança tinha essa participação, esse envolvimento, você tem irmãos?
R – Eu tenho.
P/1 – Quantos?
R – Dois, o Alexandre e a Gláucia, eles são mais novos do que...
P/1 – Mais novos.
R – O meu irmão é quatro anos mais novo e a minha irmã é dez anos mais nova do que eu.
P/1 – E como era assim, Edi, o cotidiano da sua casa, se você puder contar um pouco? O dia-a-dia assim.
R – Bom, como a minha mãe, quando eu nasci eu morava num apartamento no bairro do Bom Retiro, na Rua Barra do Tibagi. E o bairro do Bom Retiro é um bairro comercial, é um bairro, né, todo mundo conhece um pouco as lojas do Bom Retiro que antes eram dos judeus e agora mais dos coreanos e tal. Então era um bairro muito comercial e a gente brincava pouco na rua. Meu pai tinha essa de muito receio e tal, então a gente passava muito tempo dentro de casa e era um apartamento pequeno, de um dormitório. Eu me lembro muito bem disso e a minha mãe sempre muito presente, porque como ela ficava em casa com a gente, ela acompanhava muito a nossa rotina, acompanhava muito as coisas que a gente fazia. E o meu pai saía pra trabalhar, ele também trabalhava no Bom Retiro, trabalhava, ia a pé pro trabalho, vinha almoçar em casa todos os dias, chegava por volta das 18 horas, aí também a gente jantava juntos, né? E assim, eu ia no período da manhã pra escola, sempre estudei no período da manhã, acho que no ginásio eu estudei a tarde, mas quando criança eu estudava no período da manhã, depois chegava em casa, ajudava a minha mãe a fazer alguma coisa, a enxugar uma louça, fazer alguma coisa. Fazia lição, brincava, às vezes no final de semana a gente brincava na casa de alguns amigos judeus que moravam perto, próximos. Então a gente, era uma delícia porque eles tinham uma casa enorme, pelo menos pra mim enorme. Há pouco tempo eu falei com um deles pela internet, no Orkut, e ele falou: “Ah, se você quiser, eu te levo nessa casa novamente porque eu sou amigo do atual dono”, eu falei: “Eu tenho vontade de entrar pra saber se ela era grande mesmo, se ela é grande mesmo que na minha memória ela era enorme assim”. Tinha um salão que a gente podia brincar lá nos finais de semana.
P/1 – Lá na própria rua que você morava?
R – É na, não me lembro se era Neves de Carvalho, eu não me lembro o nome da rua.
P/1 – Mas era próximo?
R – General Flores, era Rua General Flores, próximo a Rua Barra do Tibagi.
P/1 – E assim, a rua, você morava na Rua...?
R – Barra do Tibagi.
P/1 – Barra do Tibagi e era uma rua movimentada assim?
R – Era uma rua movimentada, que tinha um certo comércio, algumas indústrias assim.
P/1 – E aí não tinha como brincar na rua?
R – Não, a gente não brincava na rua.
P/1 – E do que vocês brincavam assim?
R – A gente ficava em casa.
P/1 – Isso, é.
R – E depois que eu fazia lição e tudo, eu ficava brincando, às vezes eu ficava brincando sozinha, eu me lembro de muitas brincadeiras solitárias assim, desenhava muito, brincava com brincadeiras de faz de conta com pequenos bonecos, com bichos, né? E às vezes brincava com meu irmão, então às vezes tinha umas brincadeiras de escolinha, então ele era meu aluno. (risos) Sabe essas coisas? Chutar bola junto com ele, fazer umas cabanas com panos, com escada, com sofá dentro de casa.
P/1 – Dentro de casa. Ai que legal!
R – E depois de muito tempo veio a minha irmã, então a gente ficava, ela era meio a nossa boneca que a gente ficava ensinando coisas pra ela: pra cantar tal coisa, pra imitar tal coisa. Então era essa. E era muito bom porque aí meu pai chegava em casa, e aí a gente ficava juntos e a gente sempre tinha umas histórias pra ouvir que ele contava, ou a gente assistia televisão, mas a gente tava sempre muito junto, meu pai tinha um pouco dessa coisa: ou vai todo mundo ou não vai ninguém, sabe? Ficamos unidos. (risos)
P/1 – E assim depois do jantar, vocês jantavam juntos e depois, como era?
R – E então, tinha essa coisa de assistir programas de televisão, o meu pai tinha essa coisa de assistir, de jogar muito com a gente, então jogar ludo, jogar dama, né? Falava, muitas vezes ele contava coisas da infância dele, da vida dele.
P/1 – O quê que ele contava assim?
R – Era muito de dar conselhos. Era esse momento, acho que ele não tinha tanto essa correria do, na hora do almoço ele tinha um horário pra cumprir, que ele falava de coisas que são marcantes pra mim até hoje, assim, né? Que falava da infância dele, falava sobre gostar do trabalho.
P/1 – Ah, fala um pouco, Edi, essas coisas que ele falava...
R – Que ele era gráfico, você tinha me perguntado o quê que ele fazia...
P/1 – É, eu ia chegar lá, que você acabou não falando.
R – Ele era gráfico, ele trabalhava com fotolito antes, e ele adorava o que ele fazia e ele sempre falava isso pra gente, que era muito importante gostar, o importante era gostar do que você faz, mesmo que seja uma coisa simples, né, às vezes não tão valorizada pelas pessoas, mas que você goste muito, você precisa amar o que você faz. Isso pra mim ficou marcante. Uma coisa que ele falava pra gente também, a gente ser honesto e falar a verdade, e eu lembro que ele falava assim: “Você tem que falar a verdade porque quando você está dizendo a verdade, mesmo que as outras pessoas te contestem, que não acreditem em você, se você tiver certo do que você está falando você vai na frente do Presidente da República e você vai manter a sua palavra porque você está falando a verdade”. E aquilo quando você é criança e o seu pai falando isso tem um peso, né, muito forte.
P/1 – Lógico!
R – Você fala: “Puxa, na frente do presidente você vai lá e fala: não, eu acredito em tal coisa porque é muito importante, né?” (risos) Então era nessa hora que ele contava essas coisas. Ele teve uma infância muito sofrida.
P/1 – Fala um pouco.
R – Teve que trabalhar aos oito anos de idade, ele tinha uma irmã que trabalhava aos sete anos de idade como empregada doméstica, né?
P/1 – E ele trabalhou em que com essa idade?
R – Ele ajudou, parece que um sapateiro, ele entregava a roupa que a minha avó lavava, né? Então ele contava muito essas coisas de valorizar muitas coisas que ele não teve, que não podia ter brinquedo no Natal, não podia ir à escola, quando ia à escola. Ele contava histórias muito tristes que era isso, que eu acho que por isso são tão marcantes, porque quando você é pequeno, né, ficava, você se põe muito no lugar, você toma a sua história como comparação com a outra. E aí ele falava muito dessa dificuldade, então às vezes a professora dava o lanche dela pra ele comer porque ele não tinha. Uniforme. Porque tinham os alunos que eram da caixa, do caixa da escola e aí recebiam ajuda da escola e ele era uma dessas crianças, e eu me lembro que na época que ele me contou isso eu tinha uma amiga que pertencia a esse grupo, e eu achava que era muito humilhante porque eles faziam de um jeito assim: “Fulano!” Falava o nome da criança, né, e a criança tinha que ficar de pé e aí você sabia quem era daquele grupo que não tinha condições de comprar porque estudava numa escola pública, né, numa escola do estado, então você sabia quais eram as crianças que não podiam comprar uniforme, que não podiam comprar material, e aí eles chamavam aquelas crianças e entregavam assim na nossa frente e eu ficava com pena dela, né, dessa menina. Eu me lembro, não me lembro o nome mas me lembro da fisionomia. E quando ele me contou isso eu ficava pensando que ele devia também se sentir humilhado, né? Então, eram histórias assim.
P/1 – Edi, eles nasceram também em São Paulo, seu pai e sua mãe?
R – Nasceram os dois, nasceram. Eu acho que os dois nasceram no Bom Retiro...
P/1 – Qual a origem deles?
R – Eu acho que depois que o meu pai foi pra Casa Verde, mas eu acho que os dois nasceram no Bom Retiro.
P/1 – Qual a origem deles?
R – O meu pai é filho de filhos, a minha avó, a mãe dele, né, a mãe dele era filha de italianos. E o pai era filho de portugueses. A minha mãe, os dois, né, eram filhos de italianos.
P/1 – Os pais dela.
R – Da minha mãe.
P/1 – Filhos de...
R – Os dois eram filhos de italianos.
P/1 – Tá. E aí você morou nessa casa lá no Bom Retiro, nesse apartamento, até que idade?
R – Até uns 11 anos de idade.
P/1 – Aí depois?
R – Aí veio uma fase maravilhosa que era assim: durante dois anos da nossa vida nós moramos num bairro chamado Vila Ester, lá perto do Imirim e era o oposto do que era o Bom Retiro pra gente porque era uma casa térrea, tinha dois dormitórios. (risos) Tinha uma rua cheia de crianças pra brincar, então foram dois anos assim, nossa, que a gente amou. Porque os meninos soltavam pipa, brincavam de futebol, a gente jogava vôlei, punha a rede no meio da rua, os carros queriam passar, a gente tinha que levantar a rede, caía a bola no vizinho que era meio que uma chácara, ele pegava o facão, furava a bola e jogava pro lado de fora de novo. Então era uma fase, assim, que aconteciam muitas coisas, sempre tinha aniversário de alguém, a noite todo mundo ficava sentado na rua conversando, e aí o meu pai deixava, né, porque ele se sentia mais tranquilo. Então foi super marcante...
P/1 – E ele continua trabalhando como gráfico mesmo nessa época?
R – Sim, sim.
P/1 – E aí você falou que foram dois anos e depois?
R – E depois a gente voltou pra Barra Funda, que é um bairro próximo do Bom Retiro e aí foi dos meus 13, 14 anos até os meus 28 quando eu saí da minha casa que a gente morou lá. A minha mãe saiu no ano passado dessa casa, desse apartamento na Barra Funda pra morar no Alto da Lapa.
P/1 – E era um apartamento de novo?
R – Era um apartamento de novo.
P/1 – E aí, como foi voltar para o apartamento?
R – Ai foi bom!
P/1 – É?
R – Foi bom e foi triste assim. Porque o meu pai comprou esse apartamento que era uma casa um pouco melhor e aí um ano depois ele morreu, então ele ficou muito pouco tempo com a gente e aí foi uma fase difícil pra gente, né?
P/1 – Você tinha uns 14 anos?
R – Eu tinha 14 anos, o meu irmão tinha 10, a minha irmã tinha 4 e a minha mãe tinha 36. Então foi uma coisa assim, de perder um pouco o chão, sabe assim: e agora, né?
P/1 – E ele que trabalhava?
R – Ele era o provedor da família.
P/1 – O provedor. E aí como foi, Edi?
R – É, então foi, eu acho que tem isso, tem um divisor de águas aí, né, o antes com o pai e o depois sem o pai pra todos nós, né? Aí a minha mãe foi fazer alguns pequenos trabalhos, o meu irmão eu lembro que quando ele fez 14 anos ele já tava trabalhando de boy interno no Banco do Brasil e eu também fui. Eu lembro que quando eu tinha uns 16 anos eu pensei assim: “Bom, entre fazer um colegial normal básico, né, eu vou fazer magistério porque daí eu tenho uma profissão e vou trabalhar”. E foi realmente o que eu fiz. Eu fiz o curso de magistério e daí eu passei a dar aula meio período. E quando eu terminei o magistério eu queria muito fazer teatro, desde os meus 12 anos eu sabia que eu queria ser atriz, né, eu falava: “Eu quero fazer teatro”.
P/1 – Mas, desculpa, mas assim por que você marcou esse “desde os 12 anos”?
R – Porque eu me lembro que teve um programa na televisão que eles fizeram um concurso que as meninas que tivessem de 12 anos pra cima, ou até 12 anos, era alguma coisa assim, podiam se inscrever nesse concurso porque ia ter um programa na televisão e eles precisavam de uma menina. E eu lembro que eu vi isso na revista e falei: “Eu quero fazer esse teste”. E eu fui falar pro meu pai que eu queria fazer e ele falou: “Olha, se você fizer teatro na sua vida, se você for atriz na sua vida vai ser o maior desgosto que você pode me dar!” E aí aquilo foi, eu falei: “Putz, e agora? Mas é o que eu quero ser, né?” E foi, e acho que foi a Narjara Turetta que foi uma menina que desapareceu e apareceu o ano passado numa novela que foi escolhida pra fazer esse programa que eu nem me lembro qual era, mas eu lembro que...
P/1 – Você não se inscreveu?
R – Não me inscrevi. E por isso que foi marcante, eu lembro que foi aos 12 anos.
P/1 – E você lembra do que você respondeu pra ele?
R – Ah, não respondi, né? Meu pai era um sujeito maravilhoso, mas ele era muito bravo assim, ele tinha um olhar bravo. Então se ele disse não, era uma lei, ninguém tinha muita chance de contestar, né? Mas... Então e aí eu sabia que queria fazer o teatro, mas com a morte dele, que daí vocês podem pensar: “Puxa, então, né, ele tinha morrido, agora você podia fazer!” Aí tinha duas questões: uma de você continuar seguindo a palavra daquilo que o pai te pediu lá atrás, mesmo depois de morto, né? E outra que eu acho que tinha uma, por ser a filha mais velha de querer ajudar a família, e aí eu falava assim: “Puxa vida, como eu vou fazer a escola de teatro?” Porque era período integral, tinha umas aulas de manhã, umas aulas à tarde, eu não podia trabalhar e eu precisava ajudar, né? E aí eu fui fazer filosofia, detestei o curso e aí eu mudei pra Pedagogia que era uma área que eu já atuava e gostei muito do curso e só depois com 32 anos eu fui fazer a escola de teatro.
P/1 – Essa escola de teatro que você falou que tinha de manhã, a tarde era que escola, você lembra?
R – Era a escola, não era a graduação da USP [Universidade de São Paulo] mesmo, né? Era a faculdade.
P/1 – Ah, a graduação.
R – Era a ECA [Escola de Comunicações e Artes].
P/1 – E a Filosofia você estava fazendo na ECA... Na USP também?
R – Na USP também. E a Pedagogia também eu fiz na USP. Então a Filosofia eu só fiz um ano e larguei. (risos) Tem uma história ótima que era assim: pra você passar, transferir os seus créditos da Filosofia da Pedagogia você tinha que ter um ano completo, mas foi um ano que a USP, pra variar, entrou em greve, uma greve interminável assim, mas a mulher falou: “Ah, você pra transferir você tem que terminar os créditos de um ano.” E eu não aguentava mais ouvir falar de Maquiavel, eu falei: “Não, eu vou prestar vestibular de novo!” Prestei e passei e desisti de transferir os créditos. (risos)
P/1 – Edi, mas vamos voltar, de novo voltando. Você diz do seu pai, né, que era essa figura forte assim. E na convivência com a sua mãe, a sua mãe nessa família assim, com você, com os filhos?
R – A minha mãe é aquela figura calma, a figura equilibrada, ponderada, a pessoa que sempre ajudava a botar panos quentes nas situações, sabe? Uma figura doce, que tinha muita paciência com o meu pai porque ele era muito, ele explodia com qualquer coisa, tava tudo bem, né, tava tudo ótimo, daqui cinco minutos podia estar um inferno assim, porque daí ele gritava, brigava, falava alto, punha de castigo. E aí daqui a pouco tava tudo bem de novo, “Me desculpa, sou assim mesmo”. Então ela era essa pessoa que ajudava a botar uma água na fogueira, sabe? Eu tenho muito essa lembrança. E eu tenho também uma lembrança da, apesar disso, dessa, parece que uma balança meio desequilibrada, eu tenho uma sensação harmoniosa, uma lembrança harmoniosa da casa, eu acho que eles conseguiam isso, muito.
P/1 – E teus irmãos, eu sei que você falou da diferença com a sua irmã, e depois as brincadeiras, mas algumas lembranças assim, mesmo mais quando eles eram mais velhos?
R – Ah, os meus irmãos, ai nossa! É difícil falar de irmãos porque eu adoro os meus irmãos, eles são ótimos, são maravilhosos e eu sempre falo que eu quero morrer antes deles porque eu não quero ver nenhum irmão morrer, que eu não vou aguentar. Então eu acho que a gente viveu muito junto, e acho que essa questão da morte do meu pai nos fez ficar muito unidos e nos ajudar sempre bastante. Eu lembro assim, da minha irmã, eu cuidei da minha irmã porque eu tinha dez anos, ela tinha acabado de nascer então eu ajudava a botar pra dormir, eu dava banho na minha irmã. Eu lembro como se fosse hoje o meu pai e a minha mãe eles precisavam sair um pouquinho e falaram assim: “A Gláucia tá dormindo, cuida dela, você fica de olho e a gente já volta.” Mas nesse já volta sabe quando o pai fecha a porta e a criança acorda. E eu com dez anos de idade tirei a criança do carrinho, aí ela teve fome, eu dei mamadeira, mas ela fez cocô, fez muito cocô, muito cocô de sair assim na fralda, aí eu falei: “E agora?” Não tive dúvidas, botei no carrinho de novo, enchi uma banheira d’água, olha só o perigo! Pus a banheira em cima da cama, igualzinho a minha mãe fazia, tirei a roupa da nenê, dei banho. Fiquei lá, eu suava tanto porque era um nenê, era um bebê de sei lá, uns seis meses, já se mexia muito, as perninhas assim, e eu botando aquela fralda e suando, suando. Quando os meus pais chegaram eu contei, né, o meu pai ficou feliz, mas tinha uma cara de feliz e de assustado porque se podia ter afogado a menina, derrubado no chão, sei lá. Mas então eu tenho essa lembrança assim. E o meu irmão de aprontar, de fazer coisas. Não que nós éramos muito arteiros, mas de ser muito companheiro, de ir pra escola junto, fazer o trajeto, porque a minha mãe não levava a gente até a escola, né, então a gente ia a pé.
P/1 – Vocês iam sempre sozinhos assim pra escola, voltava?
R – É. Quando a gente voltou pra Barra Funda nós continuávamos estudando no Bom Retiro, mesmo quando a gente morou no Imirim a gente ia...
P/1 – Na mesma escola sempre?
R - ... pra Marechal Deodoro, sempre a mesma escola. O meu irmão ia de ônibus sozinho com nove, oito anos de idade, sozinho do Imirim até o Bom Retiro.
P/1 – E você?
R – Eu não me lembro, eu acho que eu voltava, eu ia de ônibus voltava de carro com meu pai, alguma coisa assim.
P/1 – Ah tá.
R – Então depois quando a gente voltou pra Barra Funda, a gente ia, nós íamos tranquilamente sozinhos a pé. Então tem essa coisa de ser parceiro assim.
P/1 – Desde muito cedo assim vocês já iam sozinhos pra escola?
R – Sim.
P/1 – E primeiro era perto, ia a pé?
R – Era, era super perto. Depois ficou um trajeto razoável assim, sei lá.
P/1 – E Edi, vocês sempre estudaram na mesma escola?
R – Sempre estudamos na mesma escola, na Marechal Deodoro que era uma delícia assim. Também era uma escola que eu adorava, eu adorava ir pra escola, eu sempre. Eu lembro do meu primeiro dia de aula que foi no prézinho eu tinha um uniforme xadrez, era branquinho, um xadrez bem miudinho azul e branco, tinha umas manguinhas bufantes. As meninas assim, um shortinho fofinho também com elástico assim nas pernas e tinha uma sacolinha igual. E a mãe tinha que mandar fazer, sabia que era xadrez azul e branco e tinha que mandar fazer. Ia com a lancheira e tal. Aí primeiro dia de aula, “Oba! Vamos lá na porta, lanchinho e tal”. Não tinha aula, escola pública. “Não, não tem, a professora ainda não está, não foi chamada”. Aí volta pra casa, “Então volta daqui dois dias”. Voltava: “Ah, ainda não tem, a professora...” Voltava. Eu fiquei muito frustrada e eu lembro que tinha uma amiga que chorava e tinha uma grade assim na sala de aula e o avô, o pai, sei lá, ficava do lado de fora e ela dentro agarrada naquela grade, chorando: “Me tira daqui! Me tira daqui!” (risos) E eu falava: “Nossa, mas é tão legal, porque que ela tá gritando tanto, eu queria tanto ir pra escola!”
P/1 – Nisso você já dentro da escola?
R – Já dentro da escola. E aí eu lembro que a sala de aula tinha assim uma parede enorme, pintados vários... era uma cena, assim da Disney: a Dama e o Vagabundo, os passarinhos. Eu achava aquilo lindo. (risos)
P/1 – Ai que legal!
R – Achava maravilhosa aquela sala. A única coisa que eu achava esquisita era que o nosso recreio era separado do resto das outras crianças da primeira, segunda, terceira. Quando você ia pro ensino fundamental.
P/1 – Você era o pré assim?
R – Era o prézinho. A gente fazia lanche antes, mas às vezes o nosso intervalo, a gente... Era assim: a gente saía da sala de aula, botava todas as cadeirinhas num quadrado e tomava lanche ali, mas às vezes batia o sinal do recreio das outras crianças, a gente tava ainda terminando, então eles ficavam brincando ao redor da gente como se a gente fosse, tivesse num engradado assim. E eu ficava pensando: “Ai que vontade de correr com eles, né?” E eu me lembro, depois teve esse chance, aí eu olhava pros pequenos e falava: “Ah, agora eu não sou mais como vocês!” (risos)
P/1 – E você sente assim um cheiro, você tem alguma lembrança assim?
R – Nossa, eu tenho várias lembranças. Essa do lanche, por exemplo, que não tinha todas essas coisas assim, né, Danoninho e etc. Talvez se tivesse a minha mãe não podia comprar, né? Então eu lembro que eles compravam na padaria lá do Bom Retiro que é essa que ficava na rua onde a gente morava e que existe ainda, que tinha umas bisnaguinhas e ela passava manteiga nessa bisnaguinha, embrulhava num guardanapo de pano, porque também não era nada de pote de plástico, nem papel descartável e tinha a garrafinha com limonada, muitas vezes, ou laranjada. E eu lembro muito disso e eu tenho maior saudades desse lanche, eu adoro isso.
P/1 – Muito bom!
R – A minha mãe também tinha o hábito de toda tarde servir um café, era leite, café, pão e manteiga ou essa bisnaguinha toda tarde. Então ela parava mais ou menos umas três horas e falava: “Vamos tomar ‘latim’?” Ela falava. Então eu tenho saudade desse gosto de bisnaguinha, tanto que eu compro pra minha filha hoje que eu acho que é o melhor lanche que pode se servir é bisnaguinha com manteiga. (risos)
P/1 – Ela falava: “Vamos tomar latim”?
R – “Vamos tomar ‘latim’?” Ela não falava “Vamos tomar leite” ela falava: “Vamos tomar ‘latim’?”
P/1 – Ai que legal!
R – Em vez de leitinho, sei lá, era latim. “Vamos tomar latim?”
P/1 – E como era a escola assim, além, né? Como era a professora, enfim.
R – Olha, o meu avô, os meus avós maternos estudaram nessa escola, os meus pais estudaram nessa escola, os meus irmãos estudaram nessa escola e eu. Era um grupo escolar que eles chamavam antigamente, grande, muito grande, bonito assim, sabe? Tinha um laboratório de ciências que nunca era usado por nós. Essas coisas que acontecem assim em escola pública. Mas eu adorava e a gente pegou uma fase muito boa, com uns professores muito comprometidos. Então eu tenho professores, eu me lembro do nome de todas as minhas professoras do primário e eu lembro que assim, uma professora que foi muito marcante pra mim foi a Dona Doraci. Dona Doraci Onório Milito o nome dela, da terceira série porque ela era uma professora primária e ela era professora de artes, com especialização em música, então ela que nos ensinava música, sabe? Ela uma vez montou um coral e eu fui fazer parte desse coral e a gente foi participar de um concurso e nós ganhamos em segundo lugar. E ela fazia peça de teatro, montava peça de teatro com a gente. Uma vez teve um festival de peças de teatro e a gente ensaiava sozinho. Então, eu como fazia parte desse grupo do centro espírita, né, que a gente montava teatro, levei umas peças pra montar lá com eles e a gente montou uma peça que era do “Doutor Bons Modos” chamava, era uma peça infantil. E era muito legal, eu adorava. Tinha a fanfarra da qual eu tinha a maior vontade de fazer parte, não sei por que eu não me inscrevia na fanfarra, mas me lembro muito assim.
P/1 – Mas tinha meninas na fanfarra?
R – Tinha meninas, e tinha umas meninas que tocavam caixinhas assim, repicavam “trrraaammm”. Eu achava aquilo maravilhoso! E tinha o maior orgulho da fanfarra da minha escola, sabe? Nossa, eu achava aquilo o máximo, o máximo! E quando tinha ensaio eu chegava às vezes mais cedo pra poder assistir o ensaio deles porque era um pouco antes de começar as nossas aulas, né?
P/1 – E aí você não participou e aí você, por quê? Você falou por que será?
R – É, eu não sei por que que eu não ia.
P/1 – E esporte, tinhas essas coisas na escola?
R – Ah tinha, mas eu detestava. Ah essa era a parte. Eu nunca fui boa em educação física, eu nunca quis fazer, eu arranjei atestado falsificado que eu tinha problema na coluna. Eu detestava aula de educação física. Eu tinha uma professora, que bom que eu não lembro o nome dela porque assim eu não deixo no depoimento, mas ela era péssima assim. Ela não, ela só incentivava os alunos que eram bons e eu não era, eu não tinha, não era boa pra jogar vôlei, jogar basquete. Então ela só chamava as minhas amigas que eram boas e eu ficava, me sentia tão mal com aquilo então eu fui desgostando, né?
P/2 – E a sua relação com o avô que você disse que era barbeiro, cantor, ator?
R – Ah então. Eu fui descobrir essas coisas mesmo, Marco, quando ele morreu. O meu avô a gente teve alguns problemas na família porque ele era alcoólatra um pouco, né, assim ele... Um pouco não existe ou ele é alcoólatra ou não é. E assim dava, ele era muito engraçado porque ele não vivia alcoolizado, ele trabalhava, tinha a sua tarefa de manhã, era um ótimo pai de família, uma pessoa honesta, presente. Porém, quando ele saía do trabalho, isso muitos homens daquela época, daquela região faziam: iam pro bar. E aí ele não tinha muito a medida disso. Daí chegava tarde em casa, minha avó esperando pra jantar, sabe aquela coisa meio Amélia? Minha avó tinha muito esse perfil assim. E aí a gente, muitas pessoas da família se afastaram e tinha sempre essa coisa de que ele incomodava com isso. E eu ouvia isso da família de que ele incomodava, de que ele incomodava, o meu pai ficava muito nervoso com ele porque o meu pai também teve um pai alcoólatra, daí ele teve o sogro que vivia isso, deixava ele muito nervoso. Então essa informação era mais forte. E depois, assim mais moça e tudo, eu ouvi todas essas outras histórias, né? E tem um fato que é tão legal assim que o ano passado eu fiquei em cartaz com a minha primeira peça num teatro profissional, né, no grupo, no Teatro dos Satyros. E a gente, eu fiquei em cartaz e com o Orkut eu entrei em contato com a comunidade da família Dellatorre, que é a família desse meu avô. E lá eu falei várias, contei várias histórias, a gente conversou com várias da família e foi uma filha do irmão mais velho do meu avô ela foi me assistir, nós nem nos conhecíamos, ela me levou um ramalhete de flores, me escreveu um cartão e foi me assistir no teatro com uma filha dela e com o genro. Então, naquele dia eu não dormi direito, eu fiquei tão feliz assim com essa história porque era um outro lado da história que nunca ninguém tinha me contado, né? Sempre tinham me contado esse lado, que acho que todos nós temos, que é um lado negativo, um lado dos defeitos, dos deslizes. Mas tinha esse lado da família dele que era linda, que assim a minha mãe depois disso veio me falar que eles eram muitos também, muitos irmãos e tem uma história engraçada, depois eu vou contar pra vocês, que eles têm os nomes dos três mosqueteiros, a família, do livro dos três mosqueteiros. E quando eles se reuniam eles cantavam e tinha uma irmã dele lá, acho que a tia Cecília, que a minha mãe fala, que tinha uma voz maravilhosa, e a minha filha se chama Cecília e eu nem sabia disso, né? Que tinha uma voz maravilhosa e que eles tocavam, que eles gostavam muito de festas, que eles eram muito alegres. Então essas informações vieram depois, né? Sabia assim: “Ah ele era do teatro, ele era do teatro”, mas parecia até que era visto como uma coisa negativa isso, “Ah, esse pessoal do teatro que gosta da madrugada, que gosta de beber”, sabe? Então era meio, não sei, não sei nem se era de fato, mas o que me passava, essa impressão da infância era essa. Mas ele dançava muito bem. E muito bacana essa história. Eu hoje, né, faz dez anos que eu trabalho com contação de história e hoje eu descobrir que esse irmão dele, esse Aramis, que era ator de teatro mesmo. Eu até tenho foto dele com outros atores conhecidos, né? Ele era contador de histórias na Rádio Bandeirantes, ele lia histórias em capítulos, ele fazia novela de rádio. E isso quem me contou, assim há uns sete anos atrás, sei lá, foi um amigo do meu pai que falou assim: “Eu trabalhava, naquela época não tinha, na época que eu era menino não tinha televisão, eu trabalhava e vinha correndo do trabalho pra ouvir novela de rádio, que inclusive o seu tio-avô era um dos atores da novela de rádio.” E eu falei: “Ah, é verdade?” “É, ele era um contador de histórias”, eu falei: “Olha, isso tem tudo a ver com a minha história e eu não sabia, né?”
P/1 – Porque vocês não conviviam tanto, na verdade, com a família, com os avós?
R – Não, a gente convivia mais com a família da minha avó, convive até hoje, com essa família que é do Centro e tal. E com a família do meu avô a gente conviveu super pouco.
P/1 – Ah tá! E essa avó, esses dois da parte da sua mãe?
R – Da minha mãe.
P/1 – Ah tá.
R – Porque os meus avós por parte do meu pai morreram muito cedo, eu era criança, a minha avó eu nem conheci e o meu avô ele morreu eu ainda era muito menina então eu não tenho muitas lembranças deles.
P/1 – Agora você disse que ia contar uma história engraçada.
R – Ah do meu avô Wardes que, na verdade, a família inteira tem o nome do livro dos Três Mosqueteiros.
P/1 – Ah então!
R – O pai dele botou Athos, Porthos, Aramis, D’Artagnan, Richelieu.
P/1 – Olha que máximo!
R – E ele era do Conde de Wardes, mas todo mundo chamava ele de “Vardes”: “Vardes!” No Bom Retiro, cheio de italiano, chama de Vardes. (risos) E é muito engraçado porque quando a gente entrou nessa comunidade do Orkut pra identificar se era a mesma família Dellatorre a gente diz assim: “Eu sou dos Três Mosqueteiros!” Aí todo mundo “Eu também, eu sou do Athos, sou do”, entendeu? Todo mundo se identificou por conta disso. Mal sabia o meu bisavô que isso seria super útil no futuro. (risos) Que ia ter uma comunidade e as pessoas iam se encontrar sabendo que pertenciam a família dos Três Mosqueteiros.
P/1 – Edi, é muita história, né? Coisas muito bonitas.
R – E tem uma outra coisa que eu queria falar: que o meu pai. Então o meu pai apesar de falar essa coisa de que: “Ah, você vai me dar muito desgosto”. Ele quando criança ele cantava no circo, tinha o circo nos bairros e ele se apresentava porque ele tinha uma voz muito bonita, né? Tanto que quando ele morreu, já eu lembro dele adulto cantando músicas do Nelson Gonçalves, ele cantava super bonito assim e imitando Nelson Gonçalves. E ele cantava muito bem desde criança e ele ia, fazia, participou de concurso de rádio, concurso do circo. Então eu tenho a sensação de que ele achava que aquilo era mundo muito assim de trambique, só alguns favorecidos, então ele não queria que a gente chegasse perto disso, entendeu?
P/1 – E tinha a ver porque era mulher, não, não era por aí?
R – Acho que também porque era mulher, tinha uma proteção mais. Mas ele era, cantava. Então tem uma coisa assim meio artística correndo no sangue da família. (risos)
P/1 – Vamos trocar?
(Troca de CD)
P/1 – Você ia dizendo do Clube.
R – É que quando a gente era criança nós íamos pro Clube do Corinthians, né, que eu sou corinthiana, o meu pai era corintiano, os meus filhos não tiveram escolha, tinham que ser corintianos (risos), não teve essa abertura. (risos) E aí a gente ia pro clube e passava o dia lá, mas a gente não tinha dinheiro para comer hambúrguer, era muito caro e ia a família inteira comer hambúrguer era muita coisa. Então a minha mãe levava um lanche que era pão com sardinha em lata, sabe a sardinha em lata, com rodelas de tomate. Ela temperava aquela sardinha com cebolinha, com cebola e rodelas de tomate e punha em cima do pão. Olha, eu nunca mais tive coragem de comer isso porque é engraçado assim, é como se eu quisesse guardar. E porque eu acho que se eu comesse eu ia cair num choro profundo porque assim, era maravilhoso esse momento assim de a gente brincar o dia inteiro na piscina e aí tocava uma sirene, porque eles fechavam a piscina béééé. Aí era hora de sair, “Vamos embora, vamos sair e tal”. Aí a gente ia pra um parque, era um parquinho de diversões, tinha balança, escorregador e tal, aí lá a gente estendia umas esteiras, ia uma tia irmã do meu pai, ia junto também com a minha prima e tal, a gente tirava esses lanches e o meu pai ele comprava refrigerante caçulinha assim, né, as garrafinhas de vidro e dava pra gente, a gente ficava às vezes até encostado no outro comendo e tal, e pra mim era uma plena satisfação assim porque era um momento que nós estávamos juntos, pra mim era isso sabe? O meu pai estava lá se divertindo com a gente, porque ele estava sempre trabalhando, né, então “Ai que bom hoje é domingo ele tá aqui, a minha mãe”. Então, pra mim, é uma lembrança formidável e assim às vezes eu falo “Ah, acho que vou fazer pão com sardinha!” Aí eu falo: “Ah, não vou fazer pão com sardinha”, entendeu? Por esses dois motivos: porque eu quero guardar, né? Tem coisa que você come e depois você fala: “Ah, não era assim!” (risos) É pra guardar na lembrança de outro jeito.
P/1 – Edi, e conforme você... Teve uma hora que você falou assim: “Aí com 12 anos eu falei eu quero ser atriz”. E aí? Você continua estudando naquela história, né?
R – É, aí eu fui fazer o magistério, né, eu te falei. Depois eu fui fazer por conta de precisar trabalhar, eu fui fazer um ano de Filosofia e aí eu desisti e fui fazer Pedagogia. Mas sempre continuei na área de educação. Aí assim, a minha vida, sabe: “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”? É um pouco disso, claro que tem escolhas, mas assim eu fui muito, eu tive muitas oportunidades boas assim. Eu lembro que quando eu acabei o magistério eu comecei a dar aula nessa, tinha essas escolinhas de fundo de quintal que a gente chama, sabe? “Escolinha da Vovó”, “Baldinho de Letras”, não sei o que, não sei o que lá? Então, lembra que eu fui numa escolinha na Casa Verde e fiquei tão deprimida com aquilo, com aquele atendimento com as crianças, era uma coisa tão, eu falei: “Putz, mas é isso, foi isso que eu escolhi pra minha vida?” Aí uma amiga da minha mãe ligou e falou assim: “Olha, você acabou o magistério? Vai ter um concurso” ela não sabia nada de nada das informações, “Tem um concurso pra escola do Metrô”. Peguei uma ficha, fui na papelaria, olha só, comprei uma ficha daquelas de currículo, né, que antigamente vendia. Preenchi aquilo a mão e mandei, aí eu fui chamada. Daí tinha a primeira fase, segunda fase, terceira fase, quarta fase. E eu, era na verdade eram creches da Secretaria do Menor e eram, tinha parceria com o Metrô, com as estatais, com as empresas estatais. Então eu antes tinha trabalhado numa escola pequenininha lá na Barra Funda mesmo e tinha saído dessa escolinha pra começar o meu cursinho. Aí eu falei: “Ah, bem agora que eu vou fazer o cursinho, que eu tinha conseguido me”, sabe? Me desvencilhar dessa coisa que eu tenho que trabalhar, vou me dedicar, a minha mãe tinha topado, tudo tinha dado certo. Tinha conseguido bolsa no cursinho universitário, desconto, eu falei: “Ai que bom!” Aí veio essa coisa do trabalho, aí tinha a primeira fase e eu ficava torcendo: “Ai, tomara que não passe, tomara que não passe!” Aí passava. E na época eu tinha um namorado que falava assim: “Não, vai, de repente vai ser bom, vai lá” e eu ficava: “Ai meu Deus, essa fase vai ser difícil agora eles não vão me aceitar!” E aí ia lá, fazia entrevista e aceitava. Aí era a creche da Secretaria do Menor onde eu conheci muitas pessoas com as quais eu trabalho até hoje: a Sonia London, a Gisele Ortiz, a Denise Naline, a Silvana Augusto, várias dessas pessoas. E foi maravilhoso! Foi pra mim uma grande escola...
P/1 – Você foi trabalhar como educa...
R – O curso de Pedagogia pra mim foi uma fichinha perto disso, perto dessa creche. Eu trabalhava no Tatuapé, morava na Barra Funda, acordava super cedo porque a gente entrava 15 pras sete.
P/1 – Nossa!
R – Então acordava só... No inverno era escuro assim, ia pro ponto de ônibus, pegava metrô. Todas, eu e minhas amigas, todas mais ou menos da mesma faixa etária, todo mundo encapotado e tal e trabalhava com as suas crianças que eram filhos de mães que precisavam trabalhar, muitas solteiras ou separadas, né, eram mães trabalhadoras. E eu trabalhei seis anos nessa creche e foi maravilhoso, maravilhoso!
P/1 – Você foi educadora da creche?
R – Educadora da creche. Sempre quis trabalhar com as crianças maiores de seis, cinco anos, com a fase de alfabetização e foi, nossa, foi delicioso! Era um atendimento de qualidade, as crianças tinham oportunidades bacanas, material bacana pra trabalhar, uma equipe que recebia uma formação, né, tinha reuniões.
P/1 – Era Secretaria Estadual ou Estadual do Menor?
R – É da Alda Marco Antônio, lembra, do Bem Estar Social?
P/1 – Sim, era do estado não era?
R – E do governo no Quércia. Eu lembro, era do estado.
P/1 – Aí você falou foi uma escola assim, por que Edi?
R – Por conta disso, porque eu tinha acabado de sair do magistério, tinha trabalhado nessas escolinhas ruins de fundo de quintal que você dá o deseinho mimiografado pra criança pintar na data comemorativa, né? Tinha feito um magistério numa escola de freira, que também era tudo assim dentro daquele programa super... E lá que eu tive o contato, né, com uma outra concepção de educação, uma outra concepção de criança. Foi lá que eu comecei a fazer esses cursos, né, como participante, né, não como formadora, naquela época participando dessa formação. E podendo refletir sobre essas coisas, né, sobre a criança construtora do seu conhecimento, com essa troca de informações que as crianças têm os seus saberes e precisam ser valorizados e respeitados. Essa questão da alfabetização, né, da psicogênese da língua escrita que, puxa, era tudo super novo, né, super novo. E foi lá que eu aprendi sobre essas coisas. Foi lá que eu aprendi como funciona a rotina de uma creche, que coisas são importantes, que não é só cuidar, né? Que tinha educador, como sempre, tem gente que vinha assim como eu e que achava que era, se desse comida, desse banho, tirasse piolho da cabeça e botasse pra dormir tava bom, né? Mas não era isso, cuidar não é só isso, né? E foi lá que eu aprendi todas essas questões de ler histórias, da importância do desenho. Então pra mim foi uma escola formidável, eu tenho amigos até hoje que trabalharam comigo nessa.
P/1 – E Edi, aí você fez cursinho, aí como foi depois? Porque ao mesmo tempo tinha o curso.
R – Eu fiz cursinho pra fazer teatro e quando, ah sei lá, né, coisas da cabeça. Um mês antes de ter o manual de inscrição da Fuvest [Vestibular da Fundação Universitária para o Vestibular] na minha mão eu falei: “Eu não vou mais fazer teatro!” A minha mãe: “Como você não vai fazer mais? Como não, você está estudando pra isso.” “Não, não vou fazer, não quero fazer, sabe não sei, me deu uma coisa, eu não vou fazer”. E aí tinha que ser humanas, eu não queria História, não queria Geografia, não queria isso, vou fazer Filosofia. Puxa, mas aí eu tinha 22 anos, sei lá, 20 anos, é 22 eu acho mais ou menos. E eu chorava pra ir pra faculdade, vocês acreditam? É coisa de criança, né, criança que chora: “Eu não vou pra escola!” Eu chorava porque eu não gostava do cheiro do prédio da Filosofia da USP, não gostava do cheiro daquele lugar, das pessoas, ninguém falava com ninguém, entrava na biblioteca se você fazia uma pergunta as pessoas te olhavam com ar de: “como você não sabe isso”, né? Eu falei: “Gente, o quê que é isso? Eu não quero esse lugar, eu não quero estudar aqui!” Os professores falavam, tinha uma mulher que tinha uma sala tipo anfiteatro, a mulher falava baixo, falava baixinho, se você quisesse ouvir você tinha que fazer um esforço pra ouvir aquela mulher falando. E até conceituar aquela mulher é... Mas eu falava: “Gente não, não é isso!” Sabe quando você não se encontra num lugar, não é isso. E aí eu me lembro que eu fui visitar o prédio... Eu falei: “Bom, eu tô trabalhando com educação” eu já tava na Secretaria do Menor “eu vou me especializar, eu vou fazer Pedagogia”. Aí eu fui no prédio da Pedagogia, vi todo mundo falando na biblioteca, conversando, um pessoal animado, eu falei: “É aqui que eu quero estudar”. E aí fiz quatro anos, foi ótimo também, foi bacana mas é isso, eu acho que onde eu aprendi mesmo foi, não posso dizer que não foi na universidade, a universidade contribui sem dúvida, mas onde me fez mais sentido essa aprendizagem, essa formação foi na creche e nos outros lugares seguintes.
P/1 – E Edi, mas assim, eu queria voltar só um pouquinho na tua adolescência, quando você era jovem, quer dizer você é, mas quando era mais jovem.
R – Sei.
P/1 – Porque você falou: “Ah, eu tinha um namorado”, mas antes assim, o começo dos namoros, como que era?
R – Eu comecei a namorar com 12 anos. (risos) Aí o meu pai pra dar uma de durão falava assim: “Você vai falar pro seu namorado que eu não sei que é pro cara não tomar muita liberdade”. Então eu mentia pra esse meu namorado, o Ari o nome dele.
P/1 – Você não mentia pro pai, mentia pro namorado.
R – Mentia pro namorado. “Olha, meu pai não sabe” e ele acreditava, ele tinha 16 anos na época, nossa respeitava super, “Olha, agora você tem que me deixar aqui porque o meu pai” e ele fazia tudo direitinho. Eu achava legal aquela encenação. (risos)
P/1 – Onde você conheceu ele, como é que foi?
R – Ele morava nessa Rua no Imirim que a gente foi, que tinha um monte de criança e um monte de jovenzinhos, a gente se reunia na casa dos amigos pra jogar pingue-pongue. E ele era mocinho já, 16 anos era mocinho pra uma menina de 12.
P/1 – Ele te pediu em namoro assim, como é que foi?
R – Putz, você sabe que eu não lembro? Mas eu acho que pediu sim.
P/1 – Como que era assim, nisso?
R – Mas assim, ele não sabia, o meu pai não sabia, mas ele ia namorar comigo no portão da minha casa, ele ficava horas sentado comigo lá conversando. Se o pai não soubesse, né, ia dar tudo. Como era o quê, o namoro?
P/1 – É o namoro, assim?
R – Era isso, né, ficava no portão de casa, ficava conversando um tempo, às vezes rolava um beijo. Eu me lembro a primeira vez que eu dei um beijo que a gente foi numa quermesse, numa escola lá na Zona Norte que era lá perto do Imirim, ou Meireles eu acho, e nossa foi super legal, a festa era super legal e tudo. E depois a gente foi pra um lugar mais escurinho assim e o primeiro beijo é uma coisa, são muitas coisas misturadas, né, são muitas sensações assim de emoção, de prazer mesmo e também de estranhamento, “O quê que é isso, isso é beijo?” Eu me lembro muito disso e foi uma fase muito legal. Mas não durou muito tempo, eu lembro que meu pai ficou meio decepcionado porque a minha mãe, o meu pai foi o único namorado da minha mãe, né, então ele achava que de repente esse era, seria o meu único namorado também. E aí ele falou: “Ah, não é ele?” Eu falei: “Não, não quero mais namorar com ele!”.
P/1 – Você que não quis?
R – Eu que não quis porque a gente ia mudar pra Barra Funda e meu pai falou: “Bom, agora a gente vai ter que dizer pro Ari que eu sei, né, por que como é que ele vai namorar com você lá na Barra Funda e eu não vou tá sabendo?” E eu falei “Mas eu não vou falar pro Ari porque eu não quero mais namorar com ele.” (risos) E aí...
P/1 – Que engraçado!
P/2 – E quanto tempo durou então? Quanto tempo foi isso?
R – Sei lá, sabe que eu... Foram alguns meses, eu acho, não foi, acho que quase um ano sei lá, alguma coisa assim. Não durou muito.
P/1 – E Edi, e você voltando, que aí tinha muita brincadeira de rua e tal, e depois assim você tinha grupo de amigos assim, como é que você se divertiam já mais adolescentes assim, jovens?
R – Ah então, na juventude teve esse grupo de teatro com quem a gente se encontrava todos os sábados, né, o grupo lá do centro espírita. Que a gente se encontrava todos os sábados, a gente tinha reuniões, nos domingos a gente fazia alguma tarefa, alguma atividade de manhã. Tinha ensaio quase todos os domingos. Depois a gente se apresentava, viajava pra outras cidades, pra Garça, pra Marília, ia pra outras instituições da mesma religião pra se apresentar. Então, nossa! E era uma turma assim de 25 pessoas e iam todos e era uma delícia, uma delícia! Claro que surgem os namoricos também desse grupo, né? Então isso durou muito tempo. E tinha essa questão de ir pro clube com o pai e tal, mas o meu pai, isso antes até do meu pai porque ele morreu eu tinha 14 anos, o meu pai não deixava eu fazer nada, não podia ir na matinê, não podia não sei o que, não podia, não podia. Então ele morreu, a minha mãe sempre foi mais liberal, ela deixava mais fazer essas coisas, mas eu também tinha essa coisa, a minha diversão era ir ao centro cultural, eu ia ao SESC [Serviço Social do Comércio] Pompéia...
P/1 – Com o grupo?
R – Eu não era muito de dançar. É, ia com uma turma, assistia a um filme, ia a uma exposição. Eu sempre fui mais light assim. Ia na casa dos amigos, era mais isso que eu fazia, não tinha... Gostava muito de ouvir música então às vezes a gente se encontrava na casa de alguém pra ouvir Lô Borges, Beto Guedes, Milton Nascimento, Chico Buarque, né, Elis Regina. Ficava ouvindo música, o bolachão ali de vinil.
P/2 – E como era vocês com os amigos da USP, universitários já depois?
R – Então isso foi muito legal porque tinha o centro acadêmico, né, e as festas do centro, eu estudava no período da tarde, eu trabalhava de manhã e estudava no período da tarde porque eu, putz, sempre até hoje eu durmo muito cedo, eu tenho muito sono, eu falava: “Nossa, estudar a noite pra acordar às cinco horas da manhã não vai dar”. Mas eu tinha uma reunião na creche numa tarde, então eu tinha que passar aquelas aulas, né, aquelas disciplinas da tarde pro curso da noite, então era uma vez na semana que eu tinha aula com o pessoal do noturno que eu adorava, que era um pessoal que trabalhava também, que tinha mais a ver comigo do que aquelas meninas do período da tarde. E foi lá que eu conheci o pessoal do centro acadêmico porque eles faziam festa, o pessoal da noite. As meninas da tarde não, elas ainda eram muito novinhas, iam embora pra casa e tal, muitos dos pais vinham buscar, né, tinha o primeiro carro, não sei o quê. E o pessoal da noite era um pessoal que já tava na estrada, trabalhando, com projeto disso, projeto daquilo e eu me identifiquei. E aí eles me chamavam pra ir nas festas do centro acadêmico e foi ótimo porque tinha um amigo nosso que tocava violão, assim, e as festas do centro acadêmico quase todas eram com músicas ao vivo que os próprios alunos cantavam e tocavam, né, e era maravilhoso! A gente fazia assim: comprava frutas no CEASA [Centro Estadual de Abastecimento] que é perto lá da USP, fazia aquela mesa de frutas, chamava um monte de gente e ficava esperando, porque assim, acabava a festa e não tinha como voltar, ninguém, um monte de gente não tinha carro, e aí ficava lá até às cinco da manhã pra pegar o primeiro ônibus, pra pegar o metrô e ir embora pra casa, né? Muitas vezes, muitas vezes, maravilhoso!
P/1 – Edi e assim, você teve esse primeiro namorado e depois teve outros e...
R – Ai eu tive, você não vai fazer eu falar de todos que é meio desagradável. (risos)
P/1 – Não, você só fala o que você quiser falar. (risos)
P/2 – (risos)
R – Meu marido vai ver esse depoimento, vai ficar com ciúmes. (risos)
P/1 – Então tá bom. (risos)
R – Não, eu tive depois um namorado, assim, que eu namorei durante muito tempo. Eu tive um outro casamento antes, né, do meu marido agora. E aí tem uma história que depois eu tenho que contar que eu conheci o meu marido pela internet, numa sala de bate-papo. (risos) Uau!
P/1 – Então voltando, vamos voltando porque essa história depois a gente vai ter que. Você falou: “Ah, eu já tinha casado uma outra vez”. Você quer falar disso assim como foi?
R – Foi um relacionamento super bacana, mas durou quatro anos e meio, eu não tive filhos nesse primeiro casamento, mas foi legal porque eu conheci esse cara, o Maurício, né, na USP, né? Ele era amigo do namorado de uma amiga minha, aí a gente se conheceu e foi muito bacana, foi uma época que eu frequentei pra caramba o CRUSP [Conjunto Residencial da USP], aí conheci uma outra realidade, então bem diferente, né?
P/1 – Ele morava lá no CRUSP?
R – Ele morava lá, ele morava no CRUSP.
P/2 – Que ano era isso?
R – 94, 95, nossa! E aí era isso: de dormir no CRUSP, de fazer comida com o pessoal na cozinha coletiva, né, era outra realidade. Eu que sempre morei com a minha mãe, então era uma outra coisa, uma outra vida assim, frequentar as festas e de tudo, né, gente doida pra caramba que ficava lá, sentia o cheiro da comida, aparecia na hora do rango “Oi, tudo bem?” Você sabia que a pessoa queria comer, ou mesmo miojo que você estava comendo. (risos) Mas foi muito legal!
P/1 – Edi, mas você casou assim, casou igreja essas coisas?
R – Não.
P/1 – Ou teve um casamento diferente?
R – Nenhuma das duas vezes no civil. Eu juntei. (risos) A gente resolveu morar juntos e aí montamos um espaço, um apartamento super gostoso e a gente foi morar junto. E nessa vez também agora com o Ricardo.
P/1 – Então conta, conta a história como você conheceu ele.
R – Então, eu me separei do Maurício e aí já tinha, sei lá, 30 e tralalá, 30 e poucos anos. E aí, meu, hoje em dia ninguém mais paquera, é uma coisa meio difícil, meio difícil. Você sai, as pessoas ficam lá conversando naquele bar. Eu lembro que quando eu era mais jovem, que eu ia no barzinho tinha coisa de mandar bilhete pelo garçom, né, o cara chegava pra falar com você. Mas depois de uma época eu achei que isso ficou meio difícil, eu tinha um pouco de bode também, sabe? Sair de casa, eu sabia que eu queria namorar, que eu queria ter uma outra pessoa perto de mim, e trabalhava tudo. Os meus amigos do teatro eram bem mais jovens do que eu, eu nessa época fazia escola de teatro, os meus amigos do teatro tinham 18, 20, eu já tinha 34. E aí eu falei, “Ai”. E era uma coisa de morar sozinha também, eu não gosto muito disso da solidão, eu acho que é meio deprê, eu detesto, não gostava de fazer comida pra sentar sozinha e comer, então eu abria a geladeira, pegava pedaço de queijo, sabe? E às vezes ia pra frente da internet e achava um absurdo internet, lembro que uma vez teve uma amiga que falou: “Ah, eu vou num casamento de uma amiga minha que conheceu o cara pela internet”, eu falei: “Gente, que absurdo, né, as pessoas podendo se relacionar pessoalmente, ao vivo, fico aí pela internet”. Meti a língua, caiu bem na minha cabeça tudo que eu falei. Aí eu meio cansada, sabe, chegava do teatro eu falava: “Bom, vou entrar na internet”. Aí de tanto as pessoas falaram de sala de bate-papo eu entrei numa sala de bate-papo por idade e tal, e aí tem de tudo, né, tem das baixarias até pessoas que querem conversar, que também são solitários, também querem conhecer outras pessoas. E aí eu lembro que tinha um jeito assim que eu brincava e porque tinham pessoas que faziam uns convites meio indecentes (risos) na sala de bate-papo, então pra cortar isso eu entrava brincando assim: “Ah, eu quero um namorado, bonito, inteligente...” Colocava um monte de qualidades e as pessoas: “ii, você acredita em Papai Noel também!” não sei o que. E aí sempre tinha alguém que percebia que eu tava afim de conversar e se aproximava e a gente ficava falando um tempão, aí eu queria saber como era a pessoa, né, se a pessoa escrevia direito, já eram as pistas, português correto, se gostava de cinema, em quem votava, né? Sempre perguntava: “Em quem você vota” (risos) dependendo do que respondesse você falava: “Muito prazer, foi ótimo!” E aí numa dessas, eu conheci o Ricardo e a gente começou a conversar, e foi uma conversa super legal. E aí ele saiu da sala de bate-papo dizendo assim: “Desculpa, eu preciso ir embora que a minha avó caiu no shopping e quebrou a perna”, ele falou: “Eu sei que parece uma desculpa, mas é verdade!” E é verdade mesmo, hoje eu conheço a avó Olga, bisavó da minha filha que quebrou a perna, caiu no shopping e se machucou. E aí ele falou “Eu preciso porque eu recebi essa notícia agora e eu vou visitá-la no hospital, mas eu vou deixar o meu número de telefone”. E a gente se falou algumas vezes e um dia ele me convidou pra sair, a gente marcou num lugar público, num Fran’s Café.
P/1 – Você tinha visto foto dele?
R – Não.
P/1 – Não?
R – Não, nem ele de mim. E aí ele falou: “Olha, eu vou estar de terno, tenho uma agenda, vou deixar em cima da mesa a agenda, tal”. Eu falei: “Bom, antes de chegar lá, no Fran’s Café eu vou ligar pra saber como é a cara do sujeito, né? Vamos ver.” Aí eu estava chegando no Fran’s Café, liguei assim, falei: “Olha, eu tô aqui, presa no transito tal” ele falou: “Puxa, que pena você quer que eu vá encontrar com você em algum lugar?” Eu falei: “Ah, é aquela lá, gostei!” Aí eu falei: “Não, já estou chegando aí”. Desliguei o celular e ele falou: “Puxa, você é espertinha, queria ver a minha fachada antes?” Eu falei: “É”. (risos) Aí a gente conversou, foi muito legal e depois ele me. E a senha era um pouco assim: se for um mala a gente fala: “Olha, foi ótimo o café, muito obrigada!” Eu falei e aí quem sabe ele me convida pra jantar e nada, ele ficou falando horas e nada de me convidar pra gente, então eu falei: “Bom, eu vou indo” ele falou: “Não, você não quer jantar?” (risos) Aí a gente começou a namorar.
P/1 – E aí casaram logo?
R – Super rápido assim. A gente se conheceu em julho, eu acho que em outubro ele já tava morando na minha casa. Eu brinco com ele que eu falo: “Você tava fazendo assim no meu guarda-roupa, enfiando as camisas” eu falei “Foi você que veio trazendo as camisas pra minha casa”, ele fala: “Pô, desse jeito parece que...” Foi entrando na minha vida, que eu tenho uma história que fala isso, né, a mulher fala: “E aí ele foi entrando na minha vida”. É isso. E pouco depois a gente comprou um apartamento porque eu morava na Penha sozinha nessa época. Aí a gente comprou um apartamento na Barra Funda, e viva o Bom Retiro e Barra Funda. E aí é um apartamento grande, antigo, tem 50 anos esse apartamento e eu adoro as coisas antigas, né? E aí eu, a gente comprou esse apartamento e logo eu já... Ele tinha muita vontade de ter um filho, e sempre soube disso e eu não. Eu achava que o mundo era muito difícil, acho que com essa história toda, eu sempre achei o mundo difícil, a vida, ai muito sofrimento botar um filho no mundo e isso e aquilo e: “Eu não sei, Ricardo, eu não sei”. Um dia ele virou pra mim e falou: “Você eu não sei, mas eu vou ter um filho com ou sem você!” Aí eu falei: “Opa!” Na hora eu me decidi, aí eu achei que na verdade ele só descobriu uma coisa que eu queria muito, né? Acho que isso eu trabalhei um pouco na análise assim. Mas acho que tinha toda essa vontade, todas essas histórias, todas essas coisas, eu tinha tudo já guardadinho e prontinho e que quando a Cecília ficou no forno essas histórias estavam todas lá guardadas junto porque foi ótimo, foi uma grande coisa.
P/1 – Você trouxe uma coisa?
R – Então. E aí eu fiz esse álbum porque é isso: eu contei um pouco da história dos meus avós, coisas que eu descobri depois e que sempre eu pensei que é muito triste a gente não saber a história das pessoas assim. E eu não gostaria que um dia eu morresse e falasse assim: “Quem foi a Edi?” “Quem foi a sua bisavó, fulana?” E falar: “Ah, não sei, parece que ela contava umas histórias, que ela era professora”. Eu não queria que ficasse só isso, sabe? E aí eu fiquei pensando que eu queria fazer um livro pra ela, né? E que hoje em dia tem aqueles álbuns prontos, né, que você compra, eu falei: “Não, eu vou fazer um”. Aí eu fui numa papelaria, escolhi um caderno bem bonito assim e a gente, eu meu marido juntos a gente foi escrevendo a história desde quando a gente descobriu. Porque foi assim: eu fiquei tentando já ficar grávida no mês de outubro e quando foi em março eu descobri que estava grávida foi num exame porque eu sempre tive problemas assim, questões de saúde, né, problemas ginecológicos e tal, então em alguns momentos na minha adolescência eu não menstruava. E eu quando fiz um tratamento, já adulta, com a homeopatia isso resolveu, mas às vezes eu parava de tomar o remédio homeopático e esse sintoma aparecia novamente, eu deixava de menstruar. E aí eu parei de tomar o remédio e parei de menstruar falei: “Ah, caramba, acho que vou ter que fazer um tratamento pra engravidar mesmo, né?” E fui no médico. Ele ficou me examinando assim, olhava e falava: “Você já tá com cara de mamãe, acho que você já é mamãe”. Eu falava: “É nada, eu vou ter que fazer tratamento” ele falou: “Vou te dar uns exames”. E aí eu fui ao laboratório, fiz o exame de sangue de manhã e a tarde eu fui fazer uma ultra-sonografia e assim que o médico olhou pra mim ele falou assim: “Ah, a senhora está grávida”. E aí era assim: eram quatro semanas, era uma coisa absurda, eu nunca vou esquecer essa imagem, era uma imagem assim na tela grande que eles botam, uma bolinha com um pontinho no meio e ele falou assim: “Esse daqui é o material embrionário”, ou seja, era uma coisa que ia formar o embrião, o material embrionário. E aí foi uma coisa que eu pensei, naquele momento eu pensei: “Agora é pra sempre, né, é pra sempre. Começou uma história que vai durar pra sempre pra mim”. Uma história maravilhosa assim. E eu falei: “Eu tenho que escrever essa história, quero deixar registrado, eu quero que a Cecília tenha essa história pra ela, né?” Que foi ótimo, foi maravilhoso e aí a gente escreveu tudo: como arrumamos o quarto, como contamos pra família, por que ela se chama Cecília.
P/1 – Por que ela se chama Cecília?
R – Por conta da música do Chico, né?
P/1 – Qual?
R – Aquela música que fala: “Escuta Cecília, mas eu te chamava em silêncio, na tua presença palavras são duras, pode ser que entreabertos os meus lábios de leve tremessem por ti. Mas nem as sutis melodias merecem, Cecília, teu nome espalhar por aí. Como tantos poetas, tantos cantores, tantas Cecílias por mil refletores. Eu que não sinto, mas ardo de desejo, te olho, te guardo, te vejo, te sinto... Te olho, te guardo, te sigo, te vejo dormir.”
P/1 – Lindo, né?
R – E aí quando eu ouvi essa música pela primeira vez eu falei “nossa!” E eu tenho uma prima, sobrinha do meu pai, que se chama Maria Cecília, ela é linda, essa minha prima é linda, nossa ela sempre foi maravilhosa. Hoje ela deve ter uns 50 anos e ela deve continuar bonitona, que faz tempo que eu não a vejo. E mas eu nunca, sabe esse nome, Maria Cecília, Maria Cecília, mas no dia que eu ouvi essa música eu falei: “Nossa, que nome lindo, que música linda, se eu tiver uma filha vai se chamar Cecília”. E aí vocês vão achar muito engraçado, se fosse um menino ia se chamar Francisco que é o nome do pai do meu pai.
P/1 – Ah tá.
R – E que apesar de tudo, dessa história difícil que ele teve com o pai, muito difícil, histórias muito tristes que ele contava, eu não sei. Engraçado eu ter escolhido esse nome, né, assim? Eu acho bonito esse nome, Francisco, eu adoro o apelido, Chico, Chicó, Chiquinho, eu adoro! Acho que é bacana, né, eu ficava imaginando um filho, de cabelo enroladinho, igual ao meu assim. (risos) E o pessoal falando: “E aí Chico?” “E aí Chicó?” Ah eu ficava feliz, “Ah, eu vou ter um filhão lindão”. Eu ficava imaginando isso. E agora, por que Francisco? Porque as lembranças não são assim boas, mas talvez fosse uma vontade também de que fosse uma outra história, né, com Francisco.
P/1 – Uma outra história, né?
R – E não deixaria de ser uma homenagem também pro meu pai, né, que era uma pessoa tão marcante, tão importante na minha vida, mas no final veio uma menina, veio a Cecília.
P/2 – E virou Ciça?
R – Virou Ceci.
P/1 e P/2 – Ceci!
R – Ceci.
P/1 – Mas mostra um pouco o álbum.
R – “Pra ver Peri beija Ceci paraaatimbum”. A gente canta pra ela. Então, aqui no álbum tem esse exame que eu falei pra vocês que ó...
P/1 – Mostra mais alto um pouquinho.
R – Que é uma bolinha e um pontinho no meio.
P/1 – Olha!
R – E ela só tinha quatro milímetros de tamanho quando a gente descobriu. Tem aqui todo o resultado do exame. Aí tem coisas muito bonitas. Ah, eu fiz uma surpresa pro meu marido nesse dia, eu não contei, nem contei pra ele nada. Cheguei, fui numa floricultura, comprei flores.
P/1 – Ah, você não contou nada.
R – Não, eu comprei flores e comprei um bichinho assim de pano que era uma centopéia toda colorida e coloquei no quarto e falava pra ele: “Vem pra casa, porque você não pode vir pra casa antes e tal?” Eu não via a hora de contar. Aí eu escrevi pra ele: “Há momento em que um homem merece flores. Parabéns, Papai, amamos você, Edi e Nenê.”
P/1 – Nossa!
R – Quando ele abriu ele ficou branco assim, branco. “Você tá brincando? Você tá brincando!” Ele falava, ele ficou muito feliz. E aí eu chamei a minha mãe, a minha sogra, né, meu padrasto, o meu sogro. E a gente já tinha contado que a gente estava com vontade de ser papai e mamãe, né? Aí a gente já tinha comprado dois livros vocês veem o registro, pra ver a vontade que eu tenho de registrado. Que era diário, lembranças de avó, diário da vovó, é uma coisa assim que vai fazendo perguntas pra avó, escrevi tudo sobre a infância dela, adolescência, a vida adulta, como se casou, quantos filhos teve. A gente já tinha comprado pro Natal, aí eu falei pro meu marido: “Vamos dar de presente de Natal?” Ele falou: “Ah, mas que coisa mais sem graça, você vai dar isso sem tá grávida?” Eu falei: “Ah, verdade!” Então tava guardado, então nesse dia eu peguei, aí eles estavam todos na sala e eu entreguei um na mão da minha sogra, um na mão da minha mãe. A minha mãe, aquela sujeita, que tudo é tranquilo, olhou o álbum da vovó: “Ai, que bonito!” Sem entender nada. E a minha sogra que é toda elétrica assim olhou e fez: “Ahm, você vai ser mamãe?!” Me abraçou correndo, né? Foi muito legal. Aqui tem esse dia, os dois. Olha que cara de mãe que eu já tava! Parece que quando a gente descobre a gente estufa, eu nunca fui magrinha, mas. (risos) E aí tem todas as outras coisas, os presentes que ela ganhou. A escolha do seu nome, olha, Cecília, Francisco. Aqui tem poesia do Ricardo Azevedo que fala sobre a escolha do nome.
P/1 – As roupinhas.
R – Quando nós arrumamos o quarto. Cartas que às vezes o meu primo escrevia, desenhos que as crianças faziam. Quando descobrimos que foi menina.
P/1 – Ah.
R – Porque na verdade nós fizemos um teste de sexagem fetal, era uma pesquisa que o... Como que chama o, ai meu Deus. Fala esse nome do, um hospital bambambam de pesquisa. Meu Deus, não vou lembrar agora.
P/1 – Aqui em São Paulo?
R – Aqui. Ai meu Deus eu não... Estou procurando o nome do hospital aqui e não estou conseguindo achar.
P/1 – Maternidade mesmo?
R – Não.
P/1 – Ah, então não sei.
R – Meu Deus, eu vou lembrar. Bom, a minha sogra é a primeira neta, a Cecília, única neta na verdade. E muito ansiosa queria saber toda hora: “Ai, quando vai dar pra saber?” E ela tem dois meninos e ela queria, né, uma menina. Aí ela descobriu que uma vizinha tinha feito esse teste de sexagem fetal. Que ele é assim: eles tiram um pouco de sangue da mãe e no sangue da mãe eles vão ver se tiver Y é porque é um menino, se só tiver X é porque é uma menina. Então se eles encontrarem esse Y era uma coisa...
P/1 – Super moderna, né?
R – Era um teste mesmo tanto que a gente não pagava nada e hoje você paga pra fazer isso. Você pode saber já bem cedo, você descobriu que tá grávida você já pode ir lá tirar esse sangue e saber qual é o sexo da criança. E aí o médico... De novo a internet na minha vida. Aí o médico, “Dúdila”, doutor José Eduardo Levi, que fez a pesquisa ele mandou por email pra gente, ele falou: “Olha, nós vamos mandar o resultado por email”. Aí eu combinei com o meu marido: “Você não vai olhar sem mim” e ele falou: “A mesma coisa vale pra você” “Tá bom”. Mas aí o meu marido tem mania de madrugada ficar na internet e viu. E aí não resistiu e abriu e viu que era uma menina e foi me chamar, eu dormindo e ele: “Edi, vem ver, vem ver!” E eu com medo falando assim: “Quem? Quem?” Eu achava que era um ladrão! (risos)
P/1 e P/2 – (risos)
R – Acordando assim e desnorteada, “O quê? O quê? Eu não quero!” Eu fazia. Ele ficou com dó de mim e falou: “Não, vem ver, é uma menina, é uma menina!” Ele gritava. Aí a gente foi pra frente da tela do computador e os dois só choravam, choravam assim. Aí eu liguei pra todo mundo de madrugada, pra mim, pra minha sogra pra falar que era uma menina, né?
P/1 – E ele super feliz também que era uma menina, né?
R – E aí olha, eu fiz... Super feliz. Aí a gente fez fotos assim dos parentes mais próximos, avós, até caiu aqui do meu sogro, eu preciso colar, ele vai ficar triste se ele não encontrar. E fiz uma coisa, cadê? Ai meu Deus, meu Deus.
P/1 – Ai que bonitinha, ela tá aí já.
R – Ah já tá, aqui já tem foto dela. Aqui! Mas aqui bem pequena, agora ela já tem três anos já.
P/1 – Que linda! Olha essa daqui!
R – A Cecília. Olha a primeira festa junina da Cecília. (risos) Olha aqui que gorducha.
P/1 – Ai que delícia.
R – Eu vou procurar e depois a gente pode dar uma.
P/1 – É, depois a gente vai...
R – Dizem que antigamente as pessoas guardavam as latas de leite, vocês sabem dessa história?
P/1 – Não.
R – Tem uma amiga que tem a mesma idade que eu e ela falou que a mãe guardava as latas de Ninho até completar não sei quanto tempo, aí tirava foto do bebê com as latas de Ninho atrás. Eu falei: “Eu não vou guardar todas as latas de Ninho consumidas pela Cecília, então vou guardar só o rótulo pra saber que ela mamou muito leite Ninho.” O que eu queria mostrar que a gente fez, eu vou pedir... Aqui: uma árvore genealógica que é que eu sei um pouco da minha família, eu falei: “Ai, a Cecília vai ter”.
P/1 – Ai que bacana, muito legal. E mais os dois livros...
R – A Cecília, eu, o Ricardo.
P/1 - ... de uma avó e de outra.
R – A Álida, o Mário, os pais. Aí agora eu preciso perguntar. Tá vendo, eu nem sequer sei o nome dos meus bisavós, não está tão distante, né? Por parte do meu pai, por parte da minha mãe eu sei, olha. Por parte da minha mãe a Lidubina e o Wardes e a gente sabe o nome dos outros.
P/1 – Mas você conseguiu, né, Edi, recuperar bastante história dos avós.
R – É, um pouco, eu queria saber mais assim, eu acho que é uma pena não saber.
P/1 – Mas mesmo assim, eu acho que você trouxe bastante história deles. E deixa eu te perguntar, Edi, quando nasceu a nenê assim?
R – Aí é outro divisor de águas: antes da nenê, depois da nenê. (risos) São esses dois grandes marcos eu acho, assim, que mudam muito a vida da gente. E que todo mundo...
P/1 – Você falou dois, e qual o primeiro?
R – Eu tinha dito da morte do meu pai, né?
P/1 – Ah tá!
R – Que é antes do pai e depois do pai, que te faz assim: “Cresce sujeita!”. De qualquer jeito e tem essa coisa do filho, porque primeiro que eu tive a Cecília eu já tinha 36 anos, eu não era uma mocinha novinha, tinha trabalhado já com tantas crianças, tinha observado tantos pais, tinha acompanhado tantas relações, né? E aí foi uma coisa maravilhosa a gestação porque era uma retomada da história da minha mãe, da história da minha avó. Era impressionante como isso veio à tona pra mim durante a gestação da Cecília.
P/1 – Mas como assim, Edi?
R – Assim, de você se pôr um pouco no lugar do outro, sabe? Quando você tá grávida e pensar que a sua mãe teve você de parto normal, que não teve anestesia. Que a sua avó tinha filho no quarto, né, com a parteira, sabe? Você vai recuperando assim, é como se você fosse. É mesmo a continuidade, né, mesmo.
P/1 – Com certeza.
R – É uma linhagem, né, assim. Em tão pouco tempo como as coisas mudam, mudam muito. A minha mãe falava assim: “Eu fazia o pré-natal e cada vez era um médico que me atendia e na hora do parto era aquele que tivesse lá”. Eu não, né? Fiz todo o acompanhamento com o mesmo médico, cresceu um vínculo. Chega lá: “Doutor, eu tô sentindo as dores!” Então vai pro hospital, o cara já tá lá te esperando. A Cecília nasceu com parto normal, mas eu tive todo o acompanhamento dele, a anestesia local. Então é outra história. E aí você, não tem jeito de você não pensar no que aconteceu antes de você, né?
P/1 – Com certeza.
R – Eu pensava assim: quando eu tava morrendo de dor de parto eu falava assim: “A minha avó conseguiu sem anestesia, eu vou conseguir!” (risos) E eu acho que é isso, é essa retomada dos valores, de coisas muito simples, muito. A retomada da infância, você segurando a criança assim e pensar: “O meu pai já teve 27 anos e me segurou e também ficou comigo acordado, e também teve que ficar comigo com febre”, não é assim? São coisas que não tem jeito, a gente, você retoma. E por isso que eu acho que os antigos falam: “Você só vai ver mesmo quando você tiver um filho” e você fala: “Ai, que bobagem, que bobagem!” E você entende a essência disso, eu acho que é quando você tem de verdade que você olha pra aquela criatura e você fala assim: “Como pode caber tanto amor? Como pode? Como eu posso amar alguém assim? Como eu posso querer tanto bem pra essa pessoa, né? Como eu posso querer passar tanta coisa pra ela?” Eu tenho vontade, eu acho que é por isso que eu registro também. O meu pai morreu quando ele tinha 41 anos, né, e eu vou fazer 40 esse ano. E eu acho que eu tenho uma coisa de querer registrar de querer, né, porque eu acho que é assim: guarda, guarda isso porque você é a minha continuação. E o meu marido é ateu, né, e o espiritismo acredita na reencarnação, na vida após a morte, na outra vida.
P/1 – Você acredita nisso, Edi?
R – Aí, pra mim é uma incógnita.
P/1 – Incógnita, né?
R – Durante tanto tempo eu acreditei piamente sem dúvida nenhuma, sem dúvida nenhuma. Aí eu hoje eu fico pensando: “Será? Será?” E ele é ateu, aí ele fala: “Edi, pra mim é isso, a vida após a morte é isso aqui ó, é a nossa filha, ela é a nossa continuação, ela é...” E eu fico pensando, é mesmo, né? Essas histórias que eu conto desse Aramis que eu nunca vi, ele continua vivo, a história dele porque eu conto, porque alguém conta, né?
P/1 – Sim, com certeza.
R – Então por isso que eu acho essa vontade tanto de...
P/1 – E como ela...
(Troca de CD)
P/2 - ... falar do fluxo mesmo disso, dessa história, de a história que você reúne e que você já reúne pra sua filha, o quê que é isso assim de contar história pra você, é uma coisa, parece que é uma coisa muito importante como que uma parte da vida mesmo assim.
R – É. A contação de histórias pra mim surgiu também, como eu disse: “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar!” Eu dava aula na Logos que também foi logo depois da creche da Secretaria do Menor. Eu trabalhei pouco tempo no Centro de Convivência Infantil do Metrô que atendia filhos de funcionários e aí eu fui pra Logos que era uma escola que ficava na Rebouças que não existe mais, infelizmente, que também foi uma outra escola maravilhosa assim que eu aprendi outras tantas coisas, que eu conheci pessoas lindas que são meus amigos até hoje. E aí eu conheci a Adriana Klisys que hoje é minha sócia na Caleidoscópio, e a Adriana Klisys sabia da minha paixão pelo teatro, e sabia de como eu gostava de ler histórias para as crianças, que a gente tem a roda de leitura todos os dias na educação infantil, né? Eu fazia essa roda de leitura para as crianças e eu viajava, fazia aquela roda de leitura, viajava com eles, com a reação deles, com aquele olhar encantado. E um dia ela falou: “Por que você não conta histórias profissionalmente?” Eu falei: “Ah imagina, Adriana, não, né?” “Você não gosta do teatro, você tem essa facilidade pra se apresentar e tal, porque você não faz isso?” E ela era coordenadora de uma escola, da Escola Criarte, na época. Ela falou: “Bom, faz o seguinte, vai ter a semana do livro e você vai preparar quatro histórias e você vai se apresentar lá”. E aí eu fiz, comprei essa mala...
P/1 – Na escola dela?
R – Na escola dela, que ela era coordenadora. Comprei essa malinha lá no Brás, coloquei algumas coisas, escolhi um repertório de histórias e fui e contei as histórias pras crianças. No início eu falei assim: “Olha, não deixa pai entrar, pelo amor de Deus, não quero nenhum adulto nessa sala!” Então só das crianças muito pequenininhas que estavam no colo que os pais entraram, depois os outros não. E as pessoas gostaram muito. Os pais que assistiram gostaram, as crianças gostaram e aí eu não parei mais de contar histórias. Então hoje eu me apresento, e essa é a parte linda e eu quero falar disso, hoje eu me apresento em livrarias, em festas de aniversário, festas de pré-casamento, pessoa que faz 50 anos, 70 anos...
P/1 – Ai que bonito!
R – E eu adoro! Chá de bebê, já me apresentei em festas, assim né, chá de bebê que as pessoas se reúnem, pais às vezes do casal, os avós, todo mundo canta música de ninar pro bebê que tá na barriga, eu conto as histórias e é uma coisa deliciosa! Eu acho que essa, quando eu vou em bufê eu gosto menos, vou ser super sincera assim, bufê em festa de criança é meio, uma coisa meio enlouquecedora, você nunca sabe se está no lugar certo. Você fala: “O quê que é isso, né? Será que eu devia ter vindo mesmo?” Mas tem alguns lugares que eu me apresento que tem uma proposta mais tranquila, né, que tem um lugar reservado, que é super gostoso. Agora, é muito bacana quando as pessoas abrem a porta da casa delas pra você contar história porque elas te chamam, muitas vezes é indicado “Ah, chama a Edi que é muito legal, tal”. Eu vou lá, a pessoa nunca me viu, ela abre a porta da casa dela pra me apresentar pros convidados dela, né, pra contar história pro filho que é alguém, né, que você quer que dê tudo certo, que seja legal. E aí você é recebido, aquelas pessoas cantam junto com você, ouvem as histórias, ficam super agradecidas, emocionadas. Eu acho aquilo tão legal! Eu falo, às vezes eu saio da casa da pessoa e eu falo: “Quantas casas eu já não fui”, em quantas casas, né, de bairros diferentes, pessoas tão diferentes, tem mãe que é super afobada, que fala: “Ai!” Te liga três vezes na semana pra saber se vai dar tudo certo, se a história escolhida é aquela mesmo. E tem mãe que é super tranquila, mãe, pai. E é muito bacana assim. E o que eu percebo é que os adultos e as crianças, todo mundo gosta de ouvir histórias, né?
P/1 – Com certeza.
R – Todo mundo se encanta, todo mundo entra naquela magia, ou gosta de dar risada, ou ver uma coisa muito engraçada, uma história muito engraçada. E o que eu acho bonito da contação de histórias é isso, é da cultura que fica de uma época, de uma região, de um povo e que é transmitido oralmente, né, é uma coisa que existe há tanto tempo e que as pessoas continuam se reunindo, se encontrando pra contar histórias uma pras outras, histórias da sua vida pessoal, como o meu pai fazia comigo, né? Como eu tenho um tio, na verdade tio-avô, tio da minha mãe, o tio Zeca que é um contador de histórias do passado, ele fala tudo, ele sabe o número do bonde, ele sabe o primeiro jogo no Pacaembu, ele sabe tudo! Como era o Bom Retiro antigamente, o carnaval de rua e eu adoro ouvir, acho aquilo encantador porque te arremessa, te transporta pra um outro lugar que não é este, né, não é este. É pra um outro lugar, você entra em contato com outras pessoas, com outros personagens. E é por isso, meu marido fala assim pra mim: “Você tem saudades de um tempo que você não viveu!” Eu tenho mesmo, eu tenho saudade de um Bom Retiro que eu não conheci porque eu ouvi aquelas histórias com tanta sede daquilo, gostava tanto de ouvir eles falando: “Ah, antigamente”, o meu pai falava, “a gente não era assim, a gente punha as cadeiras na calçada e todo mundo se conhecia no Bom Retiro”. Tinha o baile onde ele conheceu a minha mãe, né, num clube lá do bairro e aí iam as mães, tem até uma foto da minha avó, iam as mães, as moças ficavam todas sentadas assim, parecia um monte de sargentão assim, sentadona assim e as filhas podiam dançar com aquele, com aquele outro, né? Se tinha namorado só dançava com os amigos e com o namorado, os irmãos. Eu falo “Nossa!” Eu ficava encantada com essas histórias e acho que é isso, essa palavra que é um ritual assim, é uma evocação, né, você evoca aquelas pessoas, aquele período, aquele lugar pra você falar de novo, pedir permissão. Eu canto, toda vez que eu abro uma roda de histórias a gente canta uma música...
P/1 – Canta pra gente.
R – E quando a gente, quando eu canto essa música a sensação que eu tenho é isso: a gente precisa preparar esse ambiente porque outras pessoas, outras entidades vão chegar.
P/2 – Vem uma voz aí, né?
R – É outra voz que não é a minha, né?
P/1 – Edi, tem uma música que é sempre a mesma?
R – Então, às vezes tem uma música que eu abro a roda que é: “Abre a roda tindolelê, abre a roda tindolalá, abre a roda tindolelê que a história vai começar”. E tem aquela: “Destranca, destranca, baú de Salamanca, queremos uma história de dentro dessa tampa!”. E normalmente o baú está fechado e está coberto com um lenço que a minha avó me deu, esse xale, a minha avó Lidubina, minha avó materna que quando ela estava viva, uma mulher muito humilde a minha vózinha, ela tinha um cabelinho assim todo pra trás assim, lisinho. Ela tinha uma carteirinha que ela punha embaixo do braço assim ó e ela era humilde, tadinha da minha avó. E ela olhava pra esse lenço e falava assim: “Quando eu morrer esse lenço é seu!” Mas era um lenço que era uma fazenda! Uma fazenda, uma fazenda, um terreno, uma herança aquele, esse lenço, né? Esse e um crucifixo de brilhante que ela ganhou, acho, da madrinha dela quando ela casou. E a gente nem era católico, nem usava crucifixo, mas ela falava: “Aquele é teu!” Mas falava de um jeito que pra mim. E quando. E aí ela me deu esse lenço e é ele que cobre a minha mala...
P/1 – É essa a mala, Edi?
R – Olha que engraçado! Agora que eu estou me dando conta desse significado!
P/1 – É essa mala?
R – É essa mala. Ele cobre e eu vou cantando: “Destranca, destranca, baú de Salamanca, queremos uma história de dentro dessa tampa!” Aí eu tiro o lenço e abro a mala: “Óóó!” Olho pra dentro das coisas como se tivesse: “Nossa!” Eu tô vendo tanta coisa assim, que as crianças ficam assim, se elas pudessem entrar na mala naquela hora! Então é isso, aí canto essas músicas, é esse o momento, esse ritual que se faz.
P/1 – Mas o que tem? A gente também quer entrar na mala!
R – Então, pera aí que tem uma coisa...
P/1 – Essas coisas que você leva na mala, Edi, na hora de contar histórias?
R – Então eu levo... Tem essas e tem outras histórias porque tem objetos que eu uso sempre, por exemplo, esse lenço, e tem outros que eu uso para algumas histórias e pra outras não. Este é um outro lenço que eu ganhei de uma amiga, e eu achava super legal de ter uma caixa dentro de outra, né, que você tira uma caixa e as pessoas: “E agora, o que vai sair?” E é um lenço que na história do Ivan e do Pássaro de Fogo é o vestido de noiva da Princesa Vasilisa.
P/1 – Ah, olha!
R – E pra ela se casar com o Czar ela só pode se casar com esse vestido de noiva dela que ficou lá nos confins do mundo, debaixo de uma pedra dentro do profundo mar azul. E é esse o vestido que o Ivan vai buscar e traz pra ela. Essa minha amiga me deu esse lenço de presente num aniversário meu e eu uso sempre, eu acho ele lindo.
P/1 – Nossa! Imagino pra quem ouve, né, com esse brilho, com essas coisas, né?
R – E engraçado porque isso é lenço não é um vestido de noiva, mas nunca, nunca ninguém disse assim: “Ah, não é um vestido de noiva!” Não teve nenhuma criança que falou isso porque todo mundo...
P/1 – Claro!
R – Ah, é tão brilhante, é tão lindo, né?
P/1 – Colorido, né? Muito lindo.
R – E tem uma coisa, uma outra história que chama-se: “Fábula sobre a Fábula” que é muito bonita também e que a Verdade ela se disfarça pra falar com o Sultão, e no final a Verdade se disfarça, né, ela veste vários tecidos, várias coisas, passa no corpo água de rosas, enfeita com pulseiras de ouro, do mais fino ouro, brincos, colares e esconde o rosto com um véu e aí ela vai para o palácio, pras portas do palácio de Bagdá, se apresenta e o guarda diz: “Quem é você?” E ela fala: “Meu nome”, e é a Verdade que está disfarçada, ela fala: “Meu nome é Fábula”.
P/1 – Olha!
R – E ela fala: “E eu quero conversar com o grande sultão desse palácio, Rarumah Rashidi”. E aí o guarda vai lá falar para o grão-vizir: “Senhor, senhor lá fora uma mulher ela é tão linda, tão linda que mais parece uma rainha”. E ele fala: “E como é nome dela?” Ele fala: “Se me lembro bem, Senhor, é Fábula” e ele fala: “Que maravilha! A Fábula quer entrar em nosso palácio! Chame todos os nossos escravos, que fiquem enfileirados com flores, dança, música, perfume. Ela será recebida como merece!” E aí ela consegue entrar, porque como Verdade ela não consegue entrar no palácio.
P/1 – Olha!
R – Como acusação ela não consegue entrar no palácio, ela só consegue entrar vestida de Fábula.
P/1 – Olha que lindo!
R – É linda essa historinha, né? Ela se disfarça com esse lenço também, por isso que eu gosto tanto dele. Esse é um outro... Posso ir mostrando?
P/1 – Claro!
R – Esse é um outro que eu ganhei da minha sócia, da Adriana, deixa eu ver então, estou mexendo pelo lugar errado. É um sapo da cultura dos índios Tikuna, eles fazem isso em madeira, olha: (som em madeira imitando um sapo).
P/1 – Olha o som!
R – E às vezes eu não falo nada só fico fazendo o barulho desse sapo e olhando pras pessoas... E todo mundo fica. Porque é isso, e que eu acho que é legal na contação de histórias é que, quando eu faço os cursos de contação de histórias pras pessoas, né, oficinas de contação de histórias eu digo isso. A palavra é o foco da narrativa, da contação naquele momento, né? Tem muita gente que não gosta dessa palavra, “Ah, contação é muito feio!” Tá, da narrativa oral. É o foco a palavra falada, né, é o grande foco, não precisa... Por isso que se diferencia do teatro, que no teatro você é aquele personagem, você encena, você assume a ação daquele personagem e na narrativa você narra o que: “E aí ele disse com uma voz muito grave, ficou furioso!” E no teatro você fica furioso, né, você mostra. Então, e o que eu acho encantador é porque assim, você começa a falar e todo mundo fica te ouvindo, e você faz uma pausa e todo mundo te olha, e te aguarda com a mesma curiosidade de quando você está falando, porque faz parte da narrativa a pausa, o suspense, o que vem agora, e um final. O meu irmão fala: “Às vezes você conta umas histórias que não tem fim”, eu falo: “Mas não precisa ter mesmo, né? Nem sempre, às vezes o final fica em aberto e você não sabe que aquilo aconteceu. Aquela história parece que fica suspensa, fica no ar”.
P/1 – Claro!
R – E aí é isso, às vezes você mexe em alguma coisa e pessoa fica ali encantada: “Como?” E eu me sinto assim em alguns momentos, você fala, você fica mexendo naquilo e as pessoas ficam te olhando e você fala: “Nossa, olha, parece uma fada madrinha com um condão, né?”.
P/1 – (risos).
R – É muito legal! Tem um outro que eu gosto muito, que eu sempre convido as pessoas pra cantarem que é, eu gosto dos brinquedos...
P/1 – Ai que lindo!
R – Eu trouxe um deles, que aí a gente canta juntos: “Se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes, para o meu, para o meu amor passar.” E todo mundo canta junto, e todo mundo fica vendo esse carrossel girando, girando, girando (risos). E eu acho lindo, adoro! E daí eu falo pras pessoas que fazem oficinas comigo: “Ai, se tiver que escolher um objeto escolham um brinquedo que tenha movimento, né?”.
P/1 – Ah sim.
R – Que gire, que possa voar, que tenha um movimento que se repita.
P/1 – E com certeza as pessoas viajam, né?
R – Isso. Esses pios de pássaros que eu gosto muito, tem uma história que eu conto do Ricardo Azevedo que fala da bruxa, e antes de começar eu uso esses pios de pássaros: (Som imitando pássaros) “Um homem morava na boca do mato...” E aí começa a história.
P/1 – Ai que máximo!
R – Todo mundo fica esperando, né? Ou este quando eu falo assim: “Que o Ivan chegou lá na praia pra conseguir o vestido da princesa Vasilisa e ele encontra um caranguejo gigante, o caranguejo gigante chega perto das águas do mar, diz umas palavras e depois acontece uma coisa incrível, milhares e milhares de caranguejinhos saem de dentro das águas do mar. Ele diz umas outras palavras estranhas e esses caranguejinhos voltam e uma hora depois...” Aí vem o vestido da princesa Vasilisa naquela caixa que eu mostrei pra vocês. (risos)
P/1 – Ai que máximo! (risos)
R – Então são essas as coisas que eu uso.
P/1 – E esse dourado?
R – Esse dourado é a tenda, é a tenda que o Ivan monta nas areias brancas da praia quando ele avista a princesa, ele não tem dúvida, ela é tão linda, ela está numa canoa de prata, com remos de ouro, ela tem cabelos longos, ela tem um vestido transparente esvoaçante, ela é deslumbrante. Ele fala: “Ah, eu não tenho dúvidas, é ela a princesa Vasilisa”. Então ele desce do seu cavalo e monta uma tenda dourada nas areias brilhantes, nas areias brancas, e fica lá esperando. E ela fala: “Ué, essa tenda não estava ali”. Aí ela vai se aproximando, se aproximando, e quando ela chega bem na entrada, na tenda o Ivan aparece e diz: “Majestade, gostaria de experimentar as iguarias e os acepipes que trago de um lugar tão distante?” Ela diz: “Ah, eu adoraria!” “Por favor”.
P/1 e P/2 – Ai que máximo. (risos)
R – (risos)
P/1 - Edi, essa história, por exemplo, é uma história que já existe?
R – É uma história que já existe. É uma história Russa...
P/1 – As histórias que você conta geralmente, ou sempre, são histórias que você diz que elas são passadas na tradição oral, ou você cria também histórias?
R – Algumas são passadas na tradição oral como, por exemplo, uma que a minha avó, essa senhorinha que me deu o lenço, que contava do macaco Simão, ela me contava quando eu era criança. Só que ela era muito, a minha vózinha, né, ela ficava tomando conta da gente, às vezes os meus pais saíam, iam às reuniões lá do centro e tudo, e ela ficava lá e contava, “Ah, conta uma história” e ela contava sempre as mesmas histórias e criança gosta de ouvir sempre as mesmas, do macaco. E aí tinha uma parte que a Véia pega o macaco e o macaco rouba todas as bananas dela. E um dia ela tem uma ideia, ela bota uma, ela fala: “Vou botar uma boneca de piche no meio do quintal!” E ele ficava grudado na bonequinha de piche. Eu não vou contar a história toda, mas tem uma parte que eu adorava imaginar que era assim: ela pegava, agarrava o macaquinho. (Barulho) Jesus! Vovó, não esteja aqui agora nesse momento, por favor!
(PAUSA)
R – Então, a minha avó...
P/1 – Pode começar?
R – Aí o macaquinho ficava, ela prendia o macaquinho a Véia, né, e levava pra dentro de casa. E a parte que eu gostava é que ela falava assim: “Aí a Véia pegava uma faca e falava assim: “Agora, macaco Simão eu vou cortar você!”. Aí ele gritava: “Corta devagarinho porque dói, dói, dói!”. “Agora, macaco Simão, eu vou picar você!”. “Pica devagarinho porque dói, dói, dói!”. “Agora, eu vou fritar você!”. “Frita devagarinho porque dói, dói, dói!”. “E vou mastigar você!”. “Mastiga devagarinho porque dói, dói, dói!”. “E vou engolir você!”. “Engole devagarinho porque dói, dói, dói!”. E aí a Véia tem dor de barriga, vai no banheiro, faz força e quando ela faz força o macaco sai na privada inteirinho e ela fala pra ele: “Macaco, eu cortei você, piquei, você, cozinhei, mastiguei, engoli e você tá aí inteiro, como é que você explica isso?” Ele fala: “Eu não sei Véia, mas eu sei uma coisa”, ela fala: “Diga logo, macaco!”. “Eu vi a bunda da Véia, assim, assim assado!”. (risos) E eu amava essa história, esse final que parecia desenho do Tom & Jerry que fatia o Tom, né, e ele cola tudo de novo, pra mim não tinha violência, né, tinha uma coisa de: “Ai, que legal vai cortar o macaquinho, vai fritar e depois ele sai inteiro de novo, né, no cocô da Velha!”. (risos) E eu conto essa história e é uma história que eu adoro. E todo mundo fala que você tem que contar a história de cor, né, e de cor significa de coração, saber de coração. E aí é isso, eu acho que essa história eu sei tanto de coração, de cor, que é uma das melhores histórias que eu conto, que as pessoas gostam, e eu normalmente peço pras pessoas me ajudarem nessa hora, né? O pessoal falou: “Eu vou cortar você!”. E combino com as pessoas que elas vão dizer: “Corta devagarinho porque dói, dói, dói!”. Aí eu faço de um jeito diferente da minha avó mas eu gosto muito dessa história.
P/1 – Edi, e o teatro?
R – Ah, o teatro. O teatro eu gosto do cheiro do teatro, de qualquer teatro.
P/1 – Que cheiro é esse de...
R – Eu lembro disso, eu lembro disso assim: eu era mocinha e ia vai, com amigas, com namorado no espetáculo, eu entrava no teatro e falava: “Como eu gosto desse cheiro!”. Assim como eu não gostava do cheiro da Faculdade de Filosofia (risos), eu falava: “Como eu gosto desse cheiro! Esse cheiro é um cheiro de coisa guardada, é um cheiro de coisa velha, né?” É isso. Aquelas cortinas pesadas sabe, escuras, eu gosto. Acho que os camarins são os lugares como, sei lá, uma coisa mágica, assim como um labirinto, uma coisa familiar...
P/1 – Evocam também.
R - ... Sabe?
P/1 – Evocam também.
R – É familiar, é bom.
P/2 – E assim, assim como quando você era mais nova, alguma coisa inexplicável assim segurou você e não deixou você ir pro teatro, o quê que foi que depois te jogou de volta?
R – Ah, eu acho que era, eu tinha medo de ficar muito triste por não ter me dado uma chance, né? Assim, “Puxa, por que eu não me dei uma chance se eu sabia que era uma coisa que eu queria fazer, se eu sabia que...” Porque muitas pessoas isso, muitas pessoas diziam: “Pôxa, você tem o maior jeito, nossa como você tem expressão!” Eu lembro que eu tava apresentando um trabalho já na Pedagogia, era na especialização, eu fiz especialização pra trabalhar com deficientes visuais, eu estava expondo um trabalho no meio da exposição, a professora me interrompeu, eu falei: “Ai, ela vai me perguntar alguma coisa!” Ela falou assim: “Você faz teatro? Você deveria fazer”. Assim. Várias pessoas sempre me falavam, me paravam e perguntavam, diziam e incentivavam e aí eu falei: “Puxa, por quê? Por que eu não me dou uma chance de fazer?” E aí eu fui, já era adulta, já tinha as questões, já morava sozinha, né, tinha essas questões resolvidas.
P/1 – Você estava trabalhando na Logos? E foi fazer...
R – Não, eu já estava no Avisa Lá.
P/1 – Ah, aí que você foi fazer curso de teatro, como que foi?
R – É, eu já tinha 32 anos quando eu fui fazer curso de teatro.
P/1 – Olha que legal!
R – Foram quatro semestres, dois anos maravilhosos.
P/1 – Onde?
R – Na escola Everton de Castro que já fechou, ficava lá no bairro da Santa Cecília na Rua das Palmeiras, delicioso o lugar. Foi uma época ótima também, ótima! Eu lembro que quando eu fazia o curso de teatro eu trabalhava em Jundiaí, num centro de capacitação em Jundiaí dois dias da semana, segunda e terça. Então eu dava aula o dia inteiro pra quatro turmas, a mesma coisa, o mesmo conteúdo. E saía muito cedo e voltava e não tinha carro ainda, então eu voltava de carona, tava super apertado assim. Pegava, descia onde a carona me largava, pegava um táxi, ia até o teatro, até a escola correndo e tinha época dos ensaios que você não podia chegar atrasada e não podia faltar porque a época dos ensaios da escola valia mesmo como um trabalho, né, a apresentação teatral valia como um trabalho de final de curso, então você não podia faltar. Eu falava com o Everton: “Everton, entende que eu tenho que trabalhar!” “Tá bom, Edi, chega atrasada, mas fala pro professor.” Chegava atrasada, às vezes os meus amigos já estavam lá ensaiando, eu botava a roupa, não sei o que, não sei o que lá. Eu esquecia tudo que eu tinha que fazer, todas as outras coisas e assim, se eu pudesse ficar horas ensaiando, eu ficaria horas ensaiando. Eu tenho o maior prazer, se uma pessoa falar assim: “Faz de novo, faz outra vez. Agora faz sem mexer a mão, agora faz sem levantar a sobrancelha, agora faz falando mais baixo”. Eu faço. Assim, é uma coisa que eu adoro! E adoro atuar, não gosto de dirigir, assim. Não é o mesmo prazer.
P/1 – Então você fez dois anos da escola. E aí, Edi, depois você comentou no começo que você fez a primeira...
R – Aí tem alguma coisa que eu não sei, que eu tô sempre escapulindo, sabe, assim? Aí eu terminei a escola. Aí eu tinha acabado de me apaixonar pelo Ricardo, aí “Ai que chato, a escola toda. Imagina que eu vou largar o meu namorado pra fazer escola de teatro à noite”. E aí veio a Cecília, aí um filho pequeno exige, né, atenção. E sempre os meus amigos da escola falando: “Quando você vai voltar?” “Quando você vai voltar?” “Puxa vida, a gente quer montar coisas com você, quando você vai voltar?” E aí o ano passado foi que eu falei: “Ah, vou me dar essa chance, outra de novo” (risos). Aí o meu marido falou: “Vai, eu fico com a Cecília, vai lá ensaiar!” E a gente ensaiava, às vezes os ensaios eram na minha casa, porque pra ensaiar você tem que pagar teatro, né, quase que você tem que pagar pra fazer teatro, você paga o diretor, você paga o cenário, você paga... A não ser que você tenha uma lei que te ajude e tal. E aí os ensaios às vezes eram em casa e tudo, e a gente ficou em cartaz no Teatro Satyros e foi uma delícia, foi uma delícia, muito bom, muito bom!
P/1 – E foi a primeira vez, assim, Edi?
R – Foi a primeira vez.
P/1 – De apresentação profissional?
R – Foi.
P/1 – Você já tinha se apresentado antes?
R – E aí vinham todas as questões, todas as alegrias e tristezas, né? Você tem o dia da casa cheia e você tem o dia que você apresenta pra quatro pessoas. Assim, aquele frio do cão em julho, numa terça-feira à noite quatro pessoas, você vai lá e faz. Mas é legal.
P/1 – Mas como é, Edi? Eu sempre tive curiosidade de saber, você representar, apresentar todo dia ou vários dias seguidos o mesmo texto? Como é isso?
R – É, então. Eu ficava pensando isso...
P/1 – Como é isso?
R – Porque assim, eu vou falar uma coisa pra você: eu escolhi, eu hoje profissionalmente como educadora, formadora de professores eu vou pra lugares diferentes, né, eu vou um dia pra São Miguel Paulista, outro dia eu estou em Guarulhos, Guaratinguetá, outro dia, agora tem essa coisa de fazer formação a distancia. Então meu dia não tem uma rotina, entra às 8 num lugar e sai às 18 sempre fazendo a mesma coisa. E é ótimo porque eu me canso, eu me canso da rotina, eu acho chato, eu mudo de caminho. E eu pensava isso do teatro, “Ah, será?” Eu quis ficar em cartaz um tempo assim, porque eu ficava pensando, “Será que é uma coisa chata?” De repente eu crio toda essa ilusão de que o teatro, o teatro e aí quando tiver que apresentar toda terça e quarta, ou todo sábado e domingo eu vou falar: “Ai credo, né?” Tem uma parte que às vezes você fica mesmo: “Ai, que pena largar a minha filha, o meu marido aqui, né?” Mas quando você chega lá e você faz, tem uma questão que é assim: nunca é a mesma coisa. Um espetáculo não é igual ao outro, de forma nenhuma. E aí foi difícil assim, eu perceber isso, sabe, porque eu queria a reação do publico a mesma, quer dizer, se eu tinha ensaiado pra contar piada e o público ri, como é que não ri o outro dia? Como é que ri num outro lugar que eu não espero que vá, entendeu? Às vezes descobrir essas coisas, né, com a reação do público, isso também acontece na contação de histórias. Você faz uma coisa, um gesto que no ensaio nem o diretor, nem você, nem ninguém disse: “Ah, isso é engraçado!” Mas você faz na hora e o público ri no dia, aí você faz de novo e o público ri no outro dia, e aí você passa botar aquilo como uma deixa, você fala: “Ah, eu vou fazer isso porque fica legal!” Então nunca é igual, nunca!
P/1 – E não cansa, assim, a coisa de repetir, repetir?
R – Não, eu não tive esse cansaço, eu tive essa outra sensação que eu te disse, tem momentos que você fala: “Ai, que pena!” Mas eu gostei muito, achei que é muito legal.
P/1 – Você tem essa intenção, continua sendo uma vontade assim, “vou continuar um dia, um dia eu vou fazer”?
R – Continua, continua. E tenho a vontade agora de fazer uma peça de teatro com os contos para adultos, pensando em levar um pouco essa coisa da narrativa oral para o palco, né?
P/1 – É isso que eu ia perguntar, se dá pra levar a história desse jeito que você conta pro palco como se fosse uma apresentação de teatro assim?
R – É, eu acho que, eu não sei, eu não me considero uma especialista nisso porque as pessoas, tem gente que até não gosta dessa coisa de usar objetos na narrativa, “Não, a narrativa é só o contador e a sua voz e acabou, não, quem usa outras coisas isso não é contação de histórias, né?” Tem várias coisas que você ouve. Eu acho sim que quando você, porque a contação de histórias tem uma coisa que é próxima, né, e você conversa, você conta pro o outro e o outro reage, o outro fala: “Nossa que medo!” Você fala: “É isso mesmo, deu um medo danado!” Você fala o tempo inteiro com o outro, e no teatro não, no teatro o outro fala: “Nossa que medo!” Você não pára o espetáculo, a não ser que seja a proposta, né, do ator descer lá do palco e interagir com a platéia, mas normalmente a pessoa faz “Que susto!” Ele não fala: “É mesmo, deu...” Não, ele continua lá na ação dele. Então eu acho que são coisas muito diferentes.
P/1 – Entendi.
R – Mas acho que é possível você montar uma proposta onde existam narrativas, né, dentro de um espetáculo teatral.
P/1 – Edi, e da parte como educadora. Não sei se é parte porque também como educadora dá pra contar histórias, enfim. Mas como é que foi, assim, saiu da Logos e o Instituto Avisa Lá que é onde você trabalha hoje...
R – É. Saí da Logos eu fui pro Instituto Avisa Lá, eu trabalhei uns dois anos com deficientes visuais na Caetano de Campos mas não foi, não foi isso, sabe? Sabe quando é uma tentativa, uma curiosidade, mas... E do Instituto Avisa Lá eu montei a Caleidoscópio com a Adriana que me incentivou a ser contadora de histórias, ela com a parte dos brinquedos, dos jogos, esse mundo lúdico e eu com as narrativas. Agora eu fico pensando que como educadora assim a gente, tem gente que brinca, né, você realiza o sonho dos pais, né, um pouco. A minha mãe queria ser professora, a minha avó, a mãe dela, queria ser professora mas ela era, a minha avó ajudava muito a mãe dela e um dia, o pessoal daquela época, né, não sei, muito ignorante, coitada da minha bisavó. A minha avó foi pedir pra ela: “Eu quero ser professora, tal”, ela deu um tapa na minha avó e falou: “Imagina, que você vai ser professora, você tem que me ajudar aqui em casa”, né, porque era uma vida muito dura, né?
P/1 – Essa é a avó do xale?
R – É a avó do xale. Aí a minha mãe namorava escondido da minha avó muito mocinha, muito novinha. E aí o que aconteceu? A minha avó para, olha só! Pra punir a minha mãe não deixou a minha mãe ser professora. E aí teve essa vontade, né, esses sonhos de ser professora e eu fui lá realizar como boa filha eu fui realizar a vontade da mãe. Mas eu também tenho um outro lado que eu fico pensando que eu não seria a mesma pessoa se eu tivesse feito teatro antes de ter feito o meu caminho na educação. Eu acho que foi ótimo eu ter feito primeiro esse percurso na educação, e depois ter incluído o teatro com esse outro olhar, com essa coisa de pensar, sabe, na trajetória do indivíduo, na construção que ele tem.
P/1 – Ah tá, eu ia perguntar: mas por quê?
R – Do conhecimento. Desse olhar pra como você pode apresentar algo pro outro, né? Como pode ser encantador, como pode ser prazeroso. Então eu acho que foi tão bom, sabe? Eu acho mesmo que foi muito legal ter feito todo esse percurso. E assim, e como eu te disse, eu trabalhei em lugares tão especiais, eu conheci gente tão bacana, que fez todo o sentido, que ainda faz, né, tanto sentido que eu não posso achar que “Ai, que pena!” Não. Eu não penso isso.
P/1 – E você pensa em continuar...
R – Eu tenho vontade ainda de continuar com o teatro, de fazer outras coisas, mas eu não penso em abandonar os meus projetos de educação, de formação de professores e tal.
P/2 – O quê que é a criança na sua vida, assim? Que parece quando você conta histórias você tá falando com crianças e com a criança que tem nos adultos também, porque quando você traz, consegue fazer um adulto ter essa fantasia, essa vivência fantástica e também sendo educadora e tal.
R – Então, eu sempre falo pro meu marido e acho isso da minha vida que assim: a infância é uma fase determinante pro ser humano, eu acho, né? Fico pensando que assim: quando eu era pequena o meu pai botava. O meu pai era semi-analfabeto, vai, ele tinha a segunda série, né? E era um cara que ouvia muita música, gostava de música e ele botava um disco na época, né, e ficava falando, ficava conversando comigo, dizia: “Olha, esse som é do cavaquinho, esse som é do violão, olha a flauta que linda, isso aqui é um rock, isso aqui é um samba.” E eu ficava tão encantada olhando pra aquele meu pai que eu achava tão lindo, tão importante pra mim. E se era importante pra ele, era importante, né, era importante então eu tinha que aprender aquilo. E eu fico pensando o quanto eu gosto dessas coisas e o quanto o meu marido às vezes brinca: “Nossa, quanta letra de música você sabe!” Mas foi por conta dessa fase, eu não sei tanta letra de música de hoje, eu sei muita letra de música daquela época. E como é legal pra uma criança essa descoberta, e quando você tem bons parceiros que te apresentam esse mundo, não é? Porque é um mundo a se conhecer. Então é isso que me encanta: quando você pode apresentar pro outro algo que pode ser simples, né, como o pão, como a bisnaguinha e manteiga, mas é embrulhadinho num pano, num guardanapo de pano, ou uma música, ou uma história e eu acho que é isso porque é encantador, não é? De você descobrir o mundo, de você descobrir a diversidade das pessoas, quantas coisas existem, quantas coisas as pessoas descobrem e fazem. O conhecimento, você conseguir fazer um cálculo, você conseguir escrever isso é tão encantador e você de repente você pode mandar uma carta sozinho, você lê um texto sozinho, isso é tão encantador que eu acho que isso que é o legal. E você fazer parte desse universo, atuar com os professores que trabalham com as crianças pra mim isso é uma... Eu falo que eu sou uma afortunada, assim. E falo sempre pros professores, falo: “Gente, vocês podem reclamar que não ganham muito bem, mas que todo dia é um dia diferente, vocês tem turmas diferentes, cabeças diferentes, pessoas formidáveis diante, né, de vocês a gente tem”. Então eu acho que é um trabalho delicioso assim. É privilegiado, essa é a palavra que eu queria usar, eu acho que é um privilégio.
P/1 – Por mim eu pararia agora, eu gostaria de terminar assim, com essa fala, mas tem duas coisas ainda que a gente precisa perguntar.
R – Pergunta então.
P/1 – Que é assim: como é, quanto tempo tem?
Cameraman – A gente tem nessa fita ainda mais de seis minutos.
P/1 – Seis minutos. O Avisa Lá, gostaria que você falasse um pouco do Instituto Avisa Lá.
R – Então isso, essa daí foi a outra escola, grande escola que eu estou lá há 12 anos e é maravilhoso porque é um clima maravilhoso, as pessoas são ótimas, o investimento na gente, no estudo, nessa reflexão, nessa busca, sabe, pra entender cada vez mais, né, pra se aprofundar. Então eu acho que é delicioso e sempre com desafios, não dá, não é uma coisa assim: “Ah, então agora eu liguei no piloto automático e dou aquele mesmo curso, faço aquela mesma coisa”. Não, você tá sempre buscando, aprendendo coisas novas e é muito verdade isso assim, muito sincero isso que eu estou falando. E tem esse outro lado que eu queria também dizer aqui que é o trabalho em parceria com o Museu que é do Memória Oral com as crianças que daí junta tudo o que eu falei até agora, que eu amo: que é o registro da história das pessoas, que é a valorização da história do outro, que é o contato com as crianças, que é ensinar esses professores, que é ouvir histórias, né? Isso é muito emocionante, né, esse projeto da Memória Oral que me emociona muito, ouvir as histórias, descobrir coisas das pessoas, coisas que fazem parte de uma história individual e que na verdade faz parte de um coletivo. E que eu tenho um outro papel em alguns projetos que assim: eu ouço, a gente escuta as histórias das pessoas, as crianças registram essas histórias, depois eu leio essas histórias e conto pros próprios depoentes. Eu sou chamada pra contar as histórias dos próprios depoentes eles me ouvindo, eles ouvindo a sua própria história contada por uma outra pessoa. E isso é tão legal porque é isso assim: parece que ele não, é outra, né, é outra personagem agora, “Sou eu! Esse que você está falando sou eu, né? Podia ser o Tarzan, podia ser o Peter Pan, mas sou eu, Geraldo da Silva não sei das quantas!” Entendeu? “Você tá contando a minha história!” E foi isso que aconteceu num evento que teve um velhinho, 90 e poucos anos, foi lá em Campinas e eu contei uma história e tirei de dentro dessa caixa uma fada e foi assim uma coisa que me apareceu na hora, foi assim: eu cantei uma música com essa fada, a fadinha na minha mão assim aí eu entreguei, na hora me veio essa coisa, aí eu entreguei a fada na mão do depoente, aí eu falei: “E a gente vai ouvir a história, essa fadinha vai ficar aqui descansando na mão do ‘seu fulano’ e eu vou contar a história”. E ele pegou aquilo sem entender direito e quando eu comecei a falar o nome dele: “Eu vou contar a história do ‘seu fulano de tal’” ele mudou, a cara dele mudou e ele tipo: “Você está contando a minha história, você está falando de mim!” E aquilo, nossa! Maravilhoso, maravilhoso! Perpetuar isso que é essa vontade que eu falei, né? Que legal! Olha, o senhor pode ficar feliz que a sua história tá aí, a gente vai guardar com carinho, a fada vai guardar com carinho e outras pessoas vão ouvir. A sua vida após a morte vai continuar.
P/1 – Então a gente vai terminar aqui, tá bom? (risos)
R – (risos) Tá bom, obrigada.
P/1 – Você quer falar alguma coisa, Edi, esqueci?
R – Ah, eu acho que eu já falei tudo. Ah, eu queria dizer que esse foi um presente maravilhoso. Porque assim, a gente tem fases, né, e você sabe melhor isso do que eles, são muito mocinhos. Quando eu fiz 30 anos eu dei uma festa e eu fiquei muito feliz, eu tava me achando maravilhosa aos 30 anos e depois, logo em seguida eu fui fazer o meu curso de teatro, aprendi a dirigir, que eu fui aprender a dirigir super tarde e tal. E esse pra mim foi um presente, esse depoimento porque eu vou fazer 40 anos esse ano e é uma outra fase, assim. E eu fiquei tão emocionada. Eu fiquei pensando hoje quando eu estava me arrumando pra vir pra cá, eu falei: “Ai, eu não podia receber um presente melhor do que falar da minha história”.
P/1 – Ô Edi!
R – Muito obrigada!
P/1 – Então fala o seu nome todo e o que você faz.
R – Tudo de novo?
FIM DA ENTREVISTARecolher