Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Arildo de Sousa Costa
Entrevistada por Tereza Ruiz
Santos 10/12/2014
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_37
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Então primeiro,...Continuar leitura
Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Arildo de Sousa Costa
Entrevistada por Tereza Ruiz
Santos 10/12/2014
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_37
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Então primeiro, Arildo, qual é seu nome completo, data e local de nascimento?
R – Meu nome completo é Arildo de Sousa Costa, data de nascimento é 23 de agosto de 1940. Quer o local que eu nasci? Eu sei, é na Rua Constituição, número 600. Ali era Encruzilhada. Bairro da Encruzilhada.
P/1 – E a cidade?
R – De Santos.
P/1 – Agora o nome completo do seu pai e da sua mãe, se o senhor souber também o local de nascimento dos dois.
R – Não, tudo bem. É Virgílio Jorge da Costa, meu pai, minha mãe é Georgina de Sousa Costa.
P/1 – E o senhor sabe onde eles nasceram?
R – Sei. Nasceram em São Sebastião, litoral de São Paulo.
P/1 – E a data de nascimento deles ou de aniversário?
R – Eu não tenho, filha. Eu tenho até uma fotografia da minha mãe, mas vai passando o tempo, a gente vai perdendo. Mas eu a tenho até hoje aqui dentro. E a perdi com 13 anos de idade.
P/1 – O que seus pais faziam profissionalmente?
R – Eu na vida? Profissão?
P/1 – Os seus pais. Os seus pais.
R – Meu pai era estivador. E eu abracei a profissão dele na época, porque era um tempo meio conturbado quando... O cais naquela situação terrível, 58, mais ou menos. Eu fui trabalhar no cais com 18 anos, no Porto de Santos, e fiquei lá até hoje.
P/1 – E a sua mãe?
R – A minha mãe era doméstica. Era semianalfabeta, não sabia ler, nem escrever, mas era inteligente. E eu a perdi com 13 anos, com cinco irmãos menores do que eu. Eu era o mais velho.
P/1 – Quantos irmãos o senhor tem? Esses cinco irmãos?
R – Não, eu tenho da segunda mulher, meu pai casou a segunda vez, gosto muito da minha madrasta, não tem nem dúvida, tem três filhas com ela, com a minha madrasta. Vivem em Santos, nasceram tudo aqui em Santos. E eu convivo com a minha família também. Eu vim casar em 1974, casei e vivemos quase 50 anos. Ia fazer 50 anos de casamento, minha mulher veio a falecer, um problema de doença mesmo.
P/1 – Eu vou voltar um pouquinho na sua infância, Arildo, mas a gente vai conversar depois...
R – É porque eu estou saltando no tempo (risos).
P/1 – É (risos). Mas a gente vai conversar sobre o seu casamento, tudo isso. Queria saber um pouco como seus pais eram como pessoas. Pra quem não conheceu, como o senhor descreveria os dois?
R – Sim. Meu pai como pessoa era um homem que desde pequenininho eu o conheci sempre trabalhando, lutando pela família. Ele quase embarca pra Itália no tempo da Segunda Guerra Mundial, então ele batalhou muito pra criar os filhos. Era uma vida meio dura, eu lembro que às vezes eu ia longe buscar um quilo de pão, algum pão, antigamente chamava de bengala. A carne, a gente pegava... Pra comer era muito dificultoso. A mistura, vamos dizer assim, eu vinha buscar no entreposto do Exército que ficava na Praça Iguatemi Martins, e lá a gente tinha por família um quilo por semana também. Era um quilo por semana pra levar pra casa pra fazer a mistura. Meu pai nunca deixou os filhos assim numa situação crítica, vamos dizer, mesmo com todo problema que havia naquela época.
P/1 – E a sua mãe, como ela era?
R – A minha mãe era prendada de casa, cuidava dos filhos. Ela foi uma mulher muito ativa até quando conheci. Ela teve um problema de câncer e veio a falecer. Eu tinha 13 anos nessa época, meus irmãos pequenininhos, mas eu já saía também um pouquinho pra ajudar o meu pai, engraxava sapato, vendia pipoca no cinema, tinha muito cinema aqui em Santos, e a gente ajudava do jeito que podia, os meus irmãos, e naquela época só tinha uma irmã menina, o resto era tudo homem.
P/1 – E você sabe qual a origem da sua família, Arildo? De onde seus antepassados vieram?
R – A origem da minha família, pelo que eu conheci meu avô, o nome dele era Manuel de Sousa Costa, meus avós. E do meu pai, eu conheço muito pouco, conheço mais da minha mãe. Porque meu pai, a diferença do meu pai pra minha mãe era quase 12 anos. E ela casou com 13 ou 14 anos, a diferença de mim pra minha mãe era mais ou menos 14 anos, ou 15 anos, não lembro bem. Mas eu lembro que até quando eu ganhei o diploma de primário, eu lembro que ela me deu. Entende? Porque meu pai era moreno, era Cabo Verde, e ela era portuguesa, filha de português, do Manuel de Sousa Costa, que era meu avô materno. E ele casou com ela, naquele tempo a moça, sei lá, casava cedo, e a diferença do meu pai pra minha mãe era uns 20 anos quase. Mas ele sempre tratou bem a minha mãe, sempre foi um homem correto, batalhador, trabalhador. Conheci meu pai como uma pessoa... Eu já me entrosava com ele desde pequenininho, e ele cuidando dos meus irmãos, tudo, não era como hoje, que a gente tem tudo na mão e não sabe que o que tem, ao mesmo tempo. Mas ele lutou muito. Meu pai foi um lutador. Meus irmãos cresceram, eu e meus irmãos. Eu já perdi quatro irmãos. Eu sendo mais velho já perdi quatro irmãos, e isso dói um pouquinho, porque a gente chega numa idade que a gente sente a falta dessas pessoas. Eu sinto muito a falta dos meus irmãos, às vezes me vejo chorando sozinho, porque existia realmente um elo muito forte na família. Um elo muito forte mesmo, meus avós, meus tios. Era gostoso viver naquele tempo. Muito bom. E até hoje, porque se a gente se respeita, a gente consegue respeitar as pessoas.
P/1 – Arildo, você sabe por que você se chama Arildo? Quem escolheu o seu nome? Por que escolheu esse nome?
R – Não, o meu pai, ele tinha... Quando eu vim saber, ele tinha uma coisa assim, Arildo, Airton, Antônio, tudo com A, porque ele dizia sempre: “A letra A é sempre a primeira”. Filosofia do meu pai, né? E eu lembro perfeitamente quando eu estava pra entrar na estiva, que eu fui trabalhar, e a estiva era um trabalho naquela época aqui em Santos que todo mundo queria. Ninguém queria ir pra um banco. Não, não, todo mundo queria a estiva. Conheci muitas pessoas, até político naquela época que trabalhou na estiva, e eu como mestre o levando. Porque eu aprendi muito com o meu pai na profissão dele. Então a origem do nome era esse, era tudo letra A. Tanto é que quando eu ingressei no quadro da estiva em 1964, eu ingressei na estiva, mas eu trabalhei desde 58 como matriculado. Era um modo de a pessoa ir ganhando, se aperfeiçoando no serviço pra depois entrar com a... Chamava carteirinha preta. Antes era carteira branca, depois veio pra pretinha. E eu fui um dos primeiros a ser chamado, porque a cronometragem pra chamar as pessoas pra trabalhar começava pela letra A. E meu pai tinha razão. Fui eu, meu irmão Davi, era Airton Davi, e o Aldo Davi de Sousa Costa. O único que tem só Sousa Costa sou eu, o resto tinha Davi, não sei, em homenagem ao meu pai. Acho que era meu bisavô. O resto dos meus irmãos tinha. Airton Davi de Sousa Costa, Aldo Davi de Sousa Costa, Antônio Davi de Sousa Costa. Então eu fui um dos primeiros a ser chamado. Uma leva de mil e 70 homens naquela época entrou na estiva, foi uma reforma que o governo fez e a Capitania dos Portos aqui, nós éramos matriculados e nós estávamos lutando pra entrar e não conseguíamos. No tempo da Revolução de 64, 63, teve um movimento muito grande aqui em Santos, e eu consegui entrar graças a Deus. E o que meu pai me ensinou me serviu muito, porque eu peguei uma dureza assim, era um trabalho bruto, meio raçudo, tinha que ter raça pra trabalhar. E eu comecei a fazer cursos técnicos dentro da estiva: guincheiro, operador de máquina e tudo mais, aí era mais molezinha.
P/1 – Deixe-me só te interromper pra voltar um pouquinho, Arildo, que a gente vai pra infância primeiro, até chegar no momento que você entra pra...
R – Era mais molezinha pra mim do que... Eu comecei a trabalhar em convés de navio, fiz curso na capitania de guincho, guindaste, ponte rolante. Não aproveitei quase, porque quase não fiz na minha profissão. Tive um acidente e isso me deixou um pouco abalado na Cosipa. Trabalhando no navio me acidentei, levei uma pancada aqui, uma chapa de aço me pegou aqui.
P/1 – Desculpa, Arildo, só interrompendo... Seu Arildo, como era a casa em que você passou a infância?
R – Quando eu...
P/1 – Era criança, como era a sua casa?
R – Era um cortição. Era tipo um cortiço. Naquela época era ali na Constituição, que dava fundo pra Rua Luís de Camões. Tinha o sobrado dos donos da casa, e o resto moravam a “familiagem” toda. Era um cortição. Meu pai criou a mim, meus irmãos, tudo ali naquele cortição até uma idade mais ou menos de 12 anos... Não, dez anos mais ou menos, foi que nós mudamos pra outra casa na Rua Luís Gama. Meu pai sempre viveu de aluguel. Teve problema de moradia assim, naquele tempo era...
P/1 – E como era o bairro onde vocês moravam?
R – O bairro onde eu morava, por incrível que pareça, naquela época já passava um pichado, não era asfalto. Era a única rua pichada que tinha ali e vinha morrer ali perto da Conselheiro Nébias, então era a única rua que tinha um asfalto, vamos dizer assim, naquele tempo pichado era asfalto. Era bom. Praça, a molecada jogava bola na praça, corria daqueles caras que tomavam conta da praça tudo. Era levado, não era muito quietinho, não. Gostava de jogar bola.
P/1 – Do que você brincava e com quem você brincava?
R – Com o pessoal do... Naqueles cortições sempre tinha criançada. E nós brincávamos, jogávamos bola, brincávamos de pega-pega, era uma porção de brincadeira.
P/1 – Você gostava de futebol? De jogar futebol?
R – Gostava. Eu gostava. Já os meus irmãos não eram muito chegados. Eu já gostava de jogar um pouco de bola. Mas não era pra ser profissional, não, era pra brincar mesmo.
P/1 – E onde vocês jogavam?
R – Ah, tinha vários campos. Tinha muito campo aqui em Santos. Ali tinha o campo do Cunha, o campo do XV, era tudo nas imediações. Santos tinha uma infinidade de campo de futebol. Hoje em dia você vê os prédios ali da ponta da praia, tudo, você passa, ali era tudo campo de futebol. Atrás da Santa Casa também tinha vários campos de futebol. A Vila Belmiro é nova. Eu cheguei a jogar na Vila Belmiro, mas era fim de Campeonato Varzeano, que a gente jogava muito na Várzea. Eu joguei pelo Paulistano e teve mais um clube que eu joguei até me machucar, aí eu parei mesmo porque não teve jeito, e fui trabalhar também.
P/1 – E você torcia pra algum time?
R – Sempre para o Santos, não tem jeito. Não tem jeito mesmo.
P/1 – E você lembra quando você se tornou santista? Se teve algum jogo, algum momento assim especial?
R – Não. Não. Tinha três irmãos que eram corintianos, meu pai era corintiano, eu queria ser diferente, torcia pelo Santos. Era mais ou menos isso. Não tinha briga, a rivalidade era na hora que estavam jogando os times, a gente torcia, mas essa rivalidade que tem hoje não tinha, não.
P/1 – E como eram as refeições na sua casa?
R – Como?
P/1 – As refeições, a hora da comida? O que vocês comiam?
R – A minha mãe dividia. Só tinha um problema, que a gente trabalhava desde criança, desde cedo eu fui trabalhar numa pensão, depois numa floricultura, depois no correios e telégrafos de cabo submarino, então eu nunca deixei de trabalhar. Fui trabalhar na feira. E a minha mãe dividia a comida. Se tivesse três ovos, tinha que ser metade pra cada um, que nós éramos seis. Só tinha um problema aí, que aquele que tava trabalhando, a comida era servida a hora que ele chegasse. Agora, se eu tivesse sem fazer nada, jogando bola, se não aparecesse pra comer na hora, ela não... Fazia, mas ela guardava, ela nunca foi de... Ela sabia como fazer, como levar a vida. E foi assim a minha mocidade.
P/1 – Qual foi o primeiro trabalho? O seu primeiro trabalho?
R – O meu primeiro trabalho foi numa floricultura. Cortar o talinho das flores pra elas durarem mais tempo na água, entende? Foi meu primeiro trabalho que eu lembro.
P/1 – Que idade você tinha?
R – Ah, eu tinha o quê? Uns dez anos. Acho que nem isso, estava fazendo o terceiro ano primário.
P/1 – E você ganhava um dinheiro por esse tra...
R – Ganhava. Nós tínhamos carteira assinada com meio salário mínimo. A minha primeira carteira profissional foi numa pensão que eu fui trabalhar, lembro até o nome da dona, dona Matusalena. Foi o meu primeiro contato com cozinha. Eu gostava de cozinhar. Gostava não, gosto de cozinhar. Eu só não posso convidar a senhora pra vir um dia aqui comer uma batata recheada porque a gente aqui tem uma norma, então... Mas eu faço. Às vezes a dona Valéria mesmo pede: “Faz um prato diferente, uma feijoada, uma rabada”. Eu faço.
P/1 – E nessa pensão você cozinhava? Era isso? Qual era seu trabalho na pensão?
R – Não, eu fui lá pra ajudar ir à feira com o dono, mas carga d’água faltou lá a dona Luzinete, acho que era Luzinete, não veio e ela falou: “Dá pra descascar batata, isso aquilo?”. Eu comecei assim. Ela falou: “Não, vai ficar na cozinha”. E eu fiquei. Trabalhei lá até fechar. Depois que fizeram um cinema ali e...
P/1 – Quanto tempo você trabalhou lá?
R – Trabalhei quase um ano e... Quase dois anos eu trabalhei ali. Quase dois anos.
P/1 – Que idade você tinha, mais ou menos?
R – Quando eu trabalhei?
P/1 – Na pensão. É.
R – Eu tinha mais ou menos uns 12, 13 anos quando eu comecei a trabalhar lá. Porque na floricultura eu trabalhei bem pouquinho.
P/1 – E você lembra o que você fez com seu primeiro salário seu Arildo?
R – Esse salário, eu lembro que eu trazia pra casa. O primeiro salário que eu ganhei como matriculado de estiva, que não era estivador, eu depositei na Nossa Caixa, que era na esquina da... Hoje não existe mais, na Senador Dantas com a Conselheiro Rodrigues Alves. Era mais na Senador Dantas, quase esquina, foi o meu primeiro salário. E depois de uns dez anos eu tive uma surpresa, que hoje eu não tenho mais, me chamaram lá porque eu tinha não sei quantos reais, reais não, era cruzeiro novo ainda, que eu não movimentava a conta e fui chamado. Eu fiquei surpreso, que tinha um resíduo da poupança que eu coloquei. Hoje não tem mais (risos).
P/1 – Mas desse depósito que foi o primeiro depósito que você fez?
R – É. Depois de algum tempo. Aí eu me tornei estivador profissional então já... Aí procurei, veio a ideia casa, casa, casa. Casei (risos). Mas tudo bem, vivi bem até.
P/1 – Qual foi a primeira coisa que você comprou com o seu salário? Que o senhor lembra de ter comprado com o seu salário?
R – Não lembro. Eu dizer com o meu salário de estivador?
P/1 – O primeiro salário que você usou pra comprar uma coisa pra você.
R – É. O real.
P/1 – É. Pra você.
R – Acho que tomei foi uma cerveja, se eu não me engano. Porque a turma entrou tudo junto na estiva, e aquilo foi uma vitória muito grande. Lembro-me do capitão dos portos, Dantas Torres, ele que ordenou a entrada desse pessoal. Ia ficar sendo matriculado, naquela época o governo queria trazer gente de fora pra por no nosso lugar, não sei por que, não sei o motivo, não quero entrar em política, pelo amor de Deus. Então esse capitão dos portos deu o ultimato: “Não, se eles são trabalhadores em Santos, natural de Santos, e tem a carteira da DTM, que chama Carteira Delegacia dos... DTM, Departamento Marinho da Marinha, eles têm direito a entrar”. Então foram 1907 homens. Primeiro entrou uma leva de 700, depois 300 e pouco, que entrou nessa época, 64, 63, 64.
P/1 – E eu queria saber, voltando um pouquinho agora, de novo, pra sua infância, com quantos anos o senhor entrou na escola?
R – Com sete anos.
P/1 – E quais são as primeiras lembranças que você tem da escola?
R – Primeira lembrança? Eu fui meio doente. Eu tive um problema, fiz a primeira operação da apendicite. Nós estávamos cantando, aula moral e cívica, éramos obrigados a cantar o hino nacional, o hino da bandeira. Eu estava cantando, me deu uma dor muito grande, eu caí. E eu lembro que foi a primeira operação que eu fiz. Isso me marcou muito no colégio, na escola. Estudei num colégio com doutrina espírita, ainda é até hoje, Ismênia de Jesus, era o que meu pai conseguiu arrumar pra mim e para o outro meu irmão, entramos juntos, ele mais novo do que eu um aninho. Nesse colégio nós aprendemos o bê-á-bá. Eu nunca repeti de ano, tive surpresa de ser sorteado pra estudar no José Bonifácio, na Conselheiro, fazer admissão ao ginásio. Eu fiz até a segunda série, mas a minha mãe veio a falecer, meu pai trabalhando, tinha meus irmãos, então eu já me achava assim que eu devia ser responsável, pelo menos da casa. Não tenho vergonha de dizer que o último irmão meu, que hoje mora em São Sebastião e não mora aqui, é o único que não mora aqui, na hora que ele ia nascer, que eu vi a minha mãe com dores de parto, tudo, eu não entendia direito, mas eu corri chamar a parteira. Corri. Eram mais ou menos umas quatro quadras da minha casa da Constituição, eu ainda morava ali. Eu corri até a Senador Feijó e chamei a tia Maria, avó Maria. E nós chegamos lá, a minha mãe estava dando a luz do Airon, foi o último do meu pai com a minha mãe. Eu a chamei: “A mamãe está ruim”. Ela veio comigo, era parteira. Todos os irmãos da parte da minha mãe nasceram em casa. Nenhum nasceu no hospital, foi tudo parto dentro de casa. E essa senhora era parteira da minha mãe naturalmente, que atendia a minha mãe. E não tinha ninguém, ela estava também desprevenida, porque não sei o que houve, ela pediu pra mim: “Tu vai ter que me ajudar”. E eu ajudei o parto da minha mãe.
P/1 – Como foi o parto?
R – Foi natural. Eu sei dizer que ela mandou esquentar uma água, aquilo tudo, era fogão a carvão ainda. Era carvão ainda, brincadeira (risos). E eu esquentei a água, e quando levei a chaleira pra ela, tal, ela falou: “Pode ficar lá sentadinho no seu quarto”. Porque a gente morava numa sala, um quarto, uma cozinhazinha pequenininha, morava esse batalhão todo. Aí quando eu escutei o berreiro lá do meu irmão quando nasceu. Já tinha nascido. Mas eu sempre fui assim, entendeu? Eu não sei como se fala, eu acho que a gente tem que ser benemérito desde criança, ou altruísta desde crianças. Eu sempre gostei dessas coisas.
P/1 – E, Arildo, na sua época de escola teve alguma professora marcante? Alguém em especial?
R – Teve. Hoje ela tem o nome de um colégio, a Zulmira Duarte. Tem um colégio aqui mesmo, na zona noroeste. A professora Zulmira foi a que mais me incentivou em tudo, sabe? Quando era pequeno, ela gostava muito de mim. E teve a professora Renira também, mas foi uma coisa que eu não quero nem lembrar, sinceramente.
P/1 – Não é uma lembrança boa?
R – Não é. Não é porque eu fiz, me esforcei, e ela falou uma coisa que me dói muito até hoje. Mas eu aprendi. A gente aprende mais com esses problemas do que tudo azul, tudo joia. Então essas coisas vêm pra... Eu lembro que ela falou pra mim, depois de eu fazer esforço, eu fiz um testezinho na Santa Casa de Santos, naquele tempo eu tinha 17 anos, estava já trabalhando, querendo ir com o meu pai, mas como apareceu uma oportunidade pra naquele tempo era profissão da dona Adriana, assistente social, ou assistente, sei lá. E eu fiz. E pra minha surpresa, eu fui o segundo colocado. Mas na hora que eu fui fazer o negócio, que eu pedi, aquilo tudo, essa professora me deu a maior desilusão, ela falou pra mim: “Com essa aparência, não adiantava nada tu fazer esse...”. Eu sei que hoje os negócios são outros, graças a Deus. Foi um bullying direto, chapado mesmo. Essa lembrança me faz triste, mas ao mesmo tempo me dá um reforço tremendo, que eu devo tratar as pessoas do jeito que eu quero ser tratado.
P/1 – A sua família era espírita, Arildo?
R – Minhas irmãs todinhas são, e meus irmãos também. Meu pai também foi espírita.
P/1 – Desde pequeno então?
R – Desde pequeno. Pra mim é gratificante eu aprender às vezes com os meus erros. Eu não tento aprender com os erros dos outros, eu aprendo com os meus próprios erros.
P/1 – E quando você terminou essa... Você saiu da escola, foi até o segundo ano ginasial, né?
R – É.
P/1 – E você estava trabalhando com quê nessa época? Não, primeiro eu vou te perguntar foi no momento em que sua mãe morreu, né?
R – É. Então, eu estava trabalhando. Eu trabalhava sim. Eu engraxava sapato na rua, fazia esses bicos. Hoje chamam de virtual, trabalho virtual, pega aqui, pega ali. Vendia pipoca na frente do cinema, às vezes tinha companheirinho nosso que pegava lata de pipoca, uma lata de bolacha, que antigamente vendia tudo em lata, não era em pacotinho como hoje. Então a gente ia ao Juca Pato, pegava as pipocas, aí você vendia pra depois... Era tipo de um consignado: eu pego aqui, vendo pra depois comprar outra hora. Mas tinha companheirinho que vendia, não aparecia mais (risos). Eu ficava meio assim, mas eu nunca fiz, porque não é meu porte de ser.
P/1 – E em que cinemas você vendia pipoca aqui de Santos?
R – Ah, no São José, tinha o São José, tinha o Dom Pedro II, tinha o Dom Pedro I, tinha o Marapé. Saía de um e ia para o outro. Porque aqui em Santos, ali na Campos Melo, até perto da casa da dona Adriana, tinha dois cinemas: era o São José e o Dom Pedro II. Mais um pouquinho pra cá tinha o Cacique, que era na Rodrigues Alves, quase esquina de Rua Borges. Então a gente se virava assim, a molecada. Porque antigamente, com pouca idade a gente já procurava ajudar nossos pais, porque era uma época dura, era uma época muito dura. Mas também era uma época em que a mulher tinha muitos filhos. Hoje são dois, no máximo três. Antigamente não queria saber, punha tudo no mundo aí, vai pondo.
P/1 – E você ia ao cinema?
R – Eu ia de vez em quando. Eu ganhava até entrada grátis. Às vezes o cara que a gente vendia pipoca, ele dizia: “Agora pode ir para o cinema”. No intervalo, no segundo tempo a gente entrava de graça, porque aí não vendia mais, porque o pessoal saía do cinema e ia embora pra casa. Era assim. A vida de criança era assim, na idadezinha dessas assim a gente já...
P/1 – E como era o cinema na época? As salas de cinema?
R – O cinema hoje tem tanto tipo de cinema, que antigamente a gente via preto e branco e via o Carlito fazendo só mímica, porque não tinha quase... Depois que veio falado, legenda, aí modificou bastante. Mas na época, os primeiros cinemas que eu vi mesmo, a gente tinha que adivinhar, fazer a história na nossa cabeça, porque não era falado, não era legendado, então a gente fazia um pouco a história na nossa cabeça. Mas foi divertido. Foi muito bom.
P/1 – O que você assistia no cinema na época? Você se lembra de alguma coisa?
R – Não entendi.
P/1 – O que você assistia no cinema na época?
R – A gente assistia muito filme futurológico. Como é? De futuro. Que era Flash Gordon, aqueles filmes planetários, já sonhava muito com isso. Já sonhava com isso, porque os brinquedos mesmo éramos nós que fazíamos. Era difícil a gente ganhar um brinquedo de Papai Noel como hoje em dia. Ou eu fazia o meu brinquedo, ou não tinha com quê brincar. Um pião, a gente fazia de galho de goiabeira. Bola era bola de meia mesmo. Era assim a vida da minha infância.
P/1 – E, Arildo, quando a sua mãe morreu, com 13 anos, você tinha 13 anos, como foi isso? Do que ela faleceu? Como foi?
R – Ela faleceu de câncer no útero. Foi assim, ela sentiu mal mais ou menos uns 15 dias antes de falecer. Logo levou embora. Quando veio o sintoma, veio aquilo tudo, o médico já falou que não tinha jeito, e nós nos preparamos pra viver o resto da vida sem a minha mãe, principalmente meus irmãos menores. Que a menina, que é a única mulher da parte da minha mãe, faleceu também, de... Antigamente chamavam de araganho. Araganho era vontade de comer alguma coisa e não conseguir, não conseguia. E não tinha, porque ela era pequenininha, não falava direito, não tinha como adivinhar. Essa foi a minha irmã mais... Agora, as outras três são da segunda mulher.
P/1 – E quando a sua mãe faleceu, como foi pra sua família assim? Como vocês se organizaram? Como vocês tocaram a vida?
R – Olha, pra mim, pra mim e para os meus irmãos... Eu senti, mas meus irmãos menores não tinham acesso de ver o corpo, nada disso. Pra mim foi a maior falta que me fez até hoje, a minha mãe. Porque eu aprendi muito, muito, muito com ela. Não posso falar pra você aquilo que eu não posso... Visualizar eu posso, mas não entra aqui, porque vivi esses anos todos sem ela, mas ela me deu uma experiência muito grande no pouco tempo que esteve comigo.
P/1 – E quem passou a cuidar dos seus irmãos menores?
R – A minha tia, que veio a casar com o meu pai, por incrível que pareça, irmã dela, da minha mãe. Ela também era viúva, também tinha um menino, então o meu pai foi ficando ali, cuidando da gente, foi ficando, meu pai achou melhor casar com ela, porque ela sentia um amparo melhor. E esse irmão é como se fosse irmão meu, de sangue mesmo. E é, né? Porque é meu primo, primo direto. Mora lá no Japui, não mora aqui. Ele mora no Japui, um pouco mais longe daqui. Também todos eles casaram, minhas irmãs todas casadas também.
P/1 – E você comentou que trabalhou também, depois de trabalhar na pensão, trabalhou nos Correios, foi isso?
R – No correio, mas era cabo submarino, filha.
P/1 – Que trabalho era isso?
R – Trabalhei na Italcable e na Western. Cabo submarino. Logo depois acabou. Ali eu conheci até um cantor, que tem fama hoje em dia, o Luiz Américo, ele era telegrafista. Ele tinha um vozeirão, então dia de domingo ele ficava lá, a gente ficava à toa na vida lá, ele ficava cantando lá, que chamava até o pessoal que passava na Rua 15, na Rua do Comércio, escutavam e iam pra lá pra Italcable. Iam escutá-lo cantar, porque era pouco trabalho. Naquele tempo, domingo era meio morto. Então quem era escalado pra ficar o domingo era menor de idade, e já era um trabalho de responsabilidade muito grande, era entrega de correio, tal. E eu sempre dei sorte, graças a Deus. Que eu fiquei lá... O seu Caldas, ele era alemão, a descendência dele era alemã, a empresa era a Italcable, era cabo submarino, mas era italiana. E nós ganhávamos o salário da Itália na época, não ganhava o salário brasileiro. Todos os mensageiros, todos os funcionários ganhavam o salário italiano. E era um pouquinho mais alto o nacional, não era muita coisa, não. Então esse seu Caldas, eu comecei lá entregando telegrama aqui, ali, mas pra aqueles reis dos cafezais lá. Entregava em todas aquelas empresas. E eu entrei lá como mensageiro, a chapa 37, mas tinha uma hierarquia, de um a dez pulava.
P/1 – Como assim pulava?
R – Eu estava lá, aí de repente me chamaram: “Olha, você vai ser o segundo mensageiro”. Eu: “Pô, mas tinha tanta gente na minha frente” “Não, não, você vai ser o segundo, você só vai entregar telegramas especiais, tal, telegrama pra uma elite mais alta”. Então eu ia muito ao Parque Balneário entregar pra aqueles figurões todos na época. Era Parque Balneário, o Atlantic Hotel e o Hotel Washington, que era na Praça da República. Então só iam esses mensageiros, era eu e mais dez. O segundo, eu, e mais dez. O primeiro e mais dez. Só nós que entregávamos esse tipo de telegrama, porque havia muito companheiro nosso que abria telegrama, lia, depois ficava comentando, isso é ruim. Fiquei ali um ano e pouco, começaram a fechar o correio e telégrafo. Como era o nome daquele lá? Daquele aparelho que já fazia comunicação, os primeiros que apareceram antes do computador aqui direto? Esqueço o nome agora, filha. Então na minha vida de trabalho graças a Deus sempre foi assim.
P/1 – Tinha rádio na sua casa?
R – Tinha.
P/1 – Vocês escutavam? A sua família tinha o hábito de escutar rádio?
R – Tinha. Tinha. Nós escutávamos muito A Voz do Brasil, porque o que estava acontecendo no Brasil e no mundo não era fácil.
P/1 – O que era na época que vocês escutavam na A Voz do Brasil?
R – Ah, 1950 e pouco, era um rádio, ele dava mais estática do que falava, mas a gente conseguia entender. Mas era bom, a gente sabia as notícias. Aliás, era um rádio, como se diz? Pra um grupo, às vezes, de moradores. A primeira televisão que apareceu lá, quem comprou foi o seu Ildegar, ele trabalhava no mercado, ele mandava peixe para o exterior, pra São Paulo, entende? Para o interior de São Paulo. Ele comprou uma televisão, colocou lá no meio do terreiro, todo mundo assistia. Mas era muito ruim. Às vezes preferia ir jogar bola, correr atrás de balão.
P/1 – Por que era ruim?
R – Porque a gente não entendia nada. Era muito ruim o som, a imagem, era terrível. Em 58, quando o Brasil foi campeão do mundo, apareceu uma televisão. Virgem, mas era horrível. Em 60 já melhorou. Mas era horrível, não tinha a ver, não tinha como. Passavam cinco minutos imagem, cinco minutos era tudo temporal.
P/1 – E em 58, você se lembra da comemoração do título?
R – Lembro. Pô, eu tava com 20 anos, né, filha?
P/1 – Como foi?
R – De 20 não, 18 anos. Eu estava com 18. Ah, foi muito boa, nós estávamos no Gonzaga, o Brasil perdeu o primeiro jogo, tudo manda de volta, empatou o segundo, depois foi só vitória. Contra a Suécia começou perdendo, Suécia um, Brasil zero. Todo mundo já virou as costas, não queria saber de mais nada. Aí o Pelé, sei lá, pumba, fez um gol, empatou. A Suécia pimba, dois. Aí o Brasil 2 a 2, 3 a 2, 4 a 2, aí foi só festa, 5 a 2. Só festa. Lembro parte... Dessa seleção, lembro alguns que jogaram. O Gilmar morava na Afonso Pena, em Santos, quando foi campeão do mundo, era o famoso Girafa. E nós fomos levar uma camisa pra ele do Brasil naquele tempo. Fizemos e fomos levar. Porque eu morava ali perto, morava na Rua Luís Gama, 215, meu pai já tinha mudado pra ali. Então nós fomos levar, porque nós jogávamos bola pelo Paulistano. Aí juntaram aquelas moças, rapazes, fomos levar o... Recebi o Gilmar depois de três dias que eles vieram. Aí conheci o Gilmar, o Djalma Santos, essa turma boa de bola mesmo. Boa mesmo.
P/1 – E como foi quando vocês chegaram ao Gilmar? Vocês foram até a casa dele?
R – Fomos. Fomos até a casa do Gilmar, levamos uma camisa pra ele. Fomos bem recebidos naquele tempo, era tudo festa. Era tudo festa. Então eu digo que eu, entre os prós e os contras, eu sou um campeão. Eu assisti todas as Copas do Mundo em que o Brasil foi campeão do mundo. Já em 50 foi meio decepcionante, eu tinha dez anos.
P/1 – Você lembra como foi a Copa de 50?
R – Lembro. A maior tristeza. Eu já torcia pelo Santos, tudo, foi a maior tristeza. E pouca, a comunicação também era pouca. Já em 58, já...
P/1 – Mas a de 50, você acompanhou pelo rádio?
R – Acompanhamos. Chamavam de Rádio Galena, sei lá como era o nome, mas era muito estática, não tinha como. Era mais pelo jornal mesmo, mas jornal era depois de dois dias que saía a Tribuna... Era sempre atrasado que saía a reportagem. Hoje não, jogou, já está jogando...
P/1 – E deixe-me te perguntar uma coisa, você era bem pequenininho, mas você tem alguma lembrança do final da Segunda Guerra? No rádio assim, de escutar a notícia onde você tava?
R – Eu tinha sete anos quando estourou a bomba de Hiroshima, Nagasaki, aqui parece que abafou. A gente via tristeza em todo mundo, mesmo a guerra lá longe, mas parece que o mundo estava parado, sei lá, uma coisa esquisita. Eu não sei precisar pra senhora como. Mas quem tinha um pouco de... Não é vivência. Que eu tinha sete anos, não tinha como. Sentiu o embargo. Sentiu. Foi em agosto, o mês que eu nasci, eu lembro que nós estávamos ali perto do Pastifício Brasil, que ficava na Rua Constituição, perto da casa da dona Adriana também, bem pertinho, ali tinha o Pastifício Brasil. Foi uma tristeza só, parece que todo mundo ficou meio... Sei lá, não posso precisar, mas que foi triste, foi.
P/1 – E a notícia do fim da guerra?
R – A gente custava a acreditar. Eu era muito pequeno, eu não lembro, mas eu acho que foi... Tinha o GMAC ali na Constituição com a Rua Luís Gama, ali tinha um quartel, o GMAC, em Santos, e nós ficávamos apreensivos, porque tinha muito soldado lá que chegava na Praça Padre Champagnat, atrás da Gota de Leite, eles ficavam acampados ali, tristes, porque acho que tinham que embarcar pra guerra. Isso eu lembro. O tempo que eles ficavam acampados ali, a maior tristeza. Soldados que estavam servindo na época. Então a gente sentiu isso, porque... Mas são lembranças que às vezes a gente quer tirar, mas não tira, porque é uma lição muito grande, viu, filha? É uma lição muito grande mesmo. Só quem vivenciou é que sabe.
P/1 – Arildo, o senhor falou do final da empresa de correios que o senhor trabalhava, é do telégrafo que o senhor tava falando?
R – Era.
P/1 – Quando chegou o telégrafo, é isso?
R – Não, já tinha o telégrafo, o cabo submarino. Tava terminando, entende? Um ano e pouco eu trabalhei lá e acabou.
P/1 – E logo em seguida o senhor foi trabalhar com quê?
R – Aí eu comecei a pensar ir pra estiva. Foi quando eu já estava com 16, 17 anos mais ou menos, falei: “Não, vou trabalhar no cais”. Gozado, eu fiz três opções de emprego: Companhia Docas, Cosipa, refinaria e estiva. Mas como eu já estava trabalhando na estiva... Porque lá era o seguinte, não era todo dia que se trabalhava. E até hoje é assim. Então eu pensei, fiz o meu currículo, que não era currículo, deixei meu nome pra essas empresas. Pra minha surpresa, a estiva me chamou, fui pra estiva. Pra minha surpresa, uns três meses depois, chamou a refinaria, chamou as Docas, chamou todo mundo, mas eu já estava na estiva. E como eu gostava, que era o emprego do meu pai, do meu tio, meu pai faleceu, meu tio faleceu na estiva, e o meu irmão também, um deles, faleceu num acidente da estiva, então eu fiquei por ali mesmo. E era um trabalho que você não tinha a responsabilidade de marcar ponto, chegar, entendeu? Era um trabalho o seguinte, se você não queria trabalhar, só via que o negócio não era pra ter, a gente mandava outro no lugar. Era assim, era um trabalho avulso, mas a gente tinha um vínculo através da Capitania dos Portos.
P/1 – Mas vocês eram o quê? Contratados ou registrados pela Capitania dos Portos?
R – Nós éramos registrados na Capitania dos Portos. Mas, agora, quem contratava naquela época tinha 43 patrões, 43 empresas. Então quando chegava um navio era uma empresa, outro navio era outra empresa. A gente naquele dia estava vinculado a essa empresa. Então eles faziam a gente... Eles tinham um modo de fazer quanto você ganhou, quanto não ganhou, mas quem fazia pagamento, tudo isso, éramos nós mesmos. Que às vezes ia, por exemplo, ia de mestre, ou geral, então tomava conta de turma de trabalhadores, tomava conta do encarregado de distribuir o pagamento. Então a estiva era interessante, não tinha banco, não pagava em banco. Chegava ao botequim, vinha o pagador com aquele monte de dinheiro, jogava na mesa: “Quem é o mestre tal? Quem é o fulano tal?”. Entregava na mão do cidadão, o cidadão fazia o pagamento daquele pessoal todo. Na rua, num botequim, todo mundo tomando cerveja. Não tinha hoje... Hoje não dá mais. Hoje se tu tirar dois reais na cidade, já era.
P/1 – Como as empresas ficavam sabendo de vocês? Pelo registro?
R – Porque nós elaborávamos um ponto de presença dos trabalhadores e mandávamos pra agência. Por exemplo, o navio atracava, nós tínhamos o nosso escritório, chegava lá, anotava nome por nome, ou número da Capitania dos Portos, que era o número chapa, que o meu era 2402, hoje eu posso falar. Era 2402. Eu entrei com 3844, mas no fim eu já tava com o 2402. Então eles chegavam: “Quem é o 2402?”. Eu dizia: “Sou eu”. Às vezes não precisava nem mostrar documento, porque ele às vezes conhecia a gente já, o pagador da agência. Aí ele entregava o montante com o nome todinho, porque a gente mandava um dia antes, eram 24 horas pra pagar, aí dali eu ia chamando o meu pessoal que trabalhou comigo. E os outros mestres faziam a mesma coisa. Então esse vínculo... E a capitania, ela ministrava só os encargos, que eram férias, 13º, fundo de garantia, tudo direitinho. Esse sim, esse ia para o bando direto, não vinha ali. A agência separava só o salário líquido, mas eles mandavam num pacote só, a gente até que tinha que adivinhar.
P/1 – A capitania pagava um fixo por mês assim, ou não?
R – Não. A capitania não pagava. Quem pagava eram as agências de navegação.
P/1 – A capitania só redistribuía esses direitos que o senhor listou.
R – É. Só fazia a supervisão de quanto foi, quando não foi, pra não ter... Entendeu? E chegava ao fim do ano, era correto, eram férias, 13º, vinha tudo certinho. Aí sim, aí ia buscar no banco. Mas pagamento era na mesa do botequim (risos).
P/1 – E o que eram essas agências que você falou? A agência o quê? Organizava os estivadores?
R – Navegação. É. Era agência de navegação, os cargueiros, que vinham com carga e também mandavam carga para o Brasil. Então todo esse trabalho era feito por estivadores avulsos.
P/1 – Mas vocês ficavam nos portos, e quando chegava, ofereciam o trabalho? Como era isso?
R – Não, o trabalho sempre foi assim, um dia antes a gente já estava sabendo o navio que ia atracar, o tipo de carga, descarga, então as agências equipavam, porque tem muito trabalho que tinha que ter coisa de segurança, vestimenta, macacões, enfim. Então a agência mandava esse dinheiro pra uma central, que era a Capitania dos Portos. E o sindicato também ajudava, é que fazia a contabilidade do quanto ganhou, do quanto não ganhou, pra chegar ao fim do ano, estar tudo certinho. O sindicato fazia a contabilidade também, que essas folhas de pagamento iam tudo para o sindicato. Mas quem fazia o pagamento não era o banco, era o estivador mesmo.
P/1 – E qual é o trabalho do estivador assim? Como era o seu trabalho?
R – O meu trabalho era pegar no pesado, filha, açúcar, café, o que vinha, moía. Nós gostávamos. Eu fazia com prazer o meu trabalho. Mas depois que eu fui aprender a ser monotécnico, então o corpo já descansou um pouquinho mais.
P/1 – Como é isso, ser monotécnico?
R – É.
P/1 – O que é ser monotécnico?
R – É o que trabalha com guincho, guindaste. Eu não sei se a palavra certa é monotécnico, mas o estivador, ele trabalha com ponte rolante, guincho, alguns são credenciados pela capitania, eu sou credenciado pela capitania, ou era, porque me aposentei. Então esse trabalho era feito por estivador mesmo. A tripulação no navio quando chegava aqui era entregue na mão do estivador. Toda a marinhagem, tudo, arrumar os paus de carga pra trabalhar era o estivador que fazia, por isso que se chama monotécnico. Era muito bom o trabalho. Eu não lembro muita coisa, filha. Eu gostaria de ter a cabeça que eu tinha há uns 30 anos.
P/1 – Não, mas você está se lembrando de bastante coisa, sim.
R – É, estou lembrando um pouco, né, filha?
P/1 – O senhor falou que tem um mestre, né? Tem uma hierarquia assim? Como que se torna mestre?
R – Ah, tem. Você tem que passar... Naquele tempo passava pelo bagrinho, que era o matriculado, aquele que, por exemplo, o cara está desempregado, vai lá à estiva, ele faz uma fezinha, o mestre pega a carteira dele, então ele vai trabalhar, dali ele começava, hoje eu já não sei como está. Ele começava. Hoje já tem a tal de... Quem faz ensino, não sei o nome que dá. Então ali o mestre vai ensinando pra ele como trabalha, como não trabalha. Os outros companheiros, que é mesclado, os outros companheiros que têm mais experiência, vão com ele. Eu mesmo, quando fui ao meu primeiro dia de trabalho na estiva foi um horror. Meu pai me jogou logo na descarga de lingote de chumbo. Eu pegava os lingotes... Eu não tinha condições. Só que o meu pai, como ele era conhecido já no cais, era Sebinho o nome dele, e eu também continuei com o apelido dele, Sebinho, os companheiros punham 15, 14 lingotes, eu punha três, quatro, porque eu não podia. Primeiro dia, primeiro trabalho. Mas os companheiros respeitavam o meu pai: “Não, põe aí o que tu puder, o que tu ganhar, eu vou ganhar também”. Então era assim, a gente levava essa manha. Tinha gente bruta na estiva antigamente, mas não sei se existia mais respeito. Quando tinha qualquer confusão era na mão mesmo, hoje é diferente. Hoje, sei lá. Aqueles homens brutos naquele tempo, um olhava para o outro: “Olha, tu faz, ou tu concorda comigo ou não concorda. Não concorda?”. Então cada um virava, ia cada um pra um lado. Hoje tá meio difícil.
P/1 – Você foi mestre?
R – Fui. Diversas vezes. Porque tinha um período. A gente mandava de mestre... Porque era um rodízio, passava por todos os estivadores que eram credenciados ou que tinha a carteira preta. Então às vezes levava um ano pra ser mestre. Às vezes passava esse período. Mas quando você ia de mestre, o mestre ganhava uma cota e meia do trabalhador comum. Tinha dia que ele ia de contramestre geral, aí eram três cotas dentro do trabalhador comum. Naquele tempo, estiva dava pra ganhar um dinheirinho. Só que eu fui muito estragado. Eu gostei de farra, sempre gostei de baile. Uma vez eu ganhei um bom dinheiro, fui com a mulher, com a minha patroa pra Bahia, quando voltei, voltei duro, era assim, eu aproveitava mesmo. Mas a vida em si foi boa.
P/1 – Qual era o trabalho do mestre e do contramestre?
R – Era supervisionar o serviço. Que às vezes vinha serviço perigoso, então ele já tinha uma experiência maior. Hoje em dia tem aula, tem tudo, tem a ordem que dava aula também. Antigamente a gente fazia aula de marinhagem, aula de estivagem. A maioria não queria fazer, achava que: “Não, que vou fazer aula”. Não fazia. Mas eu tenho até os diplomazinhos, estão aqui na Proeco, seu eu não me engano. Estão aqui na Proeco, eu posso até mostrar pra senhora depois. Então era uma beleza, a gente gostava do trabalho.
P/1 – E o que era carteira preta?
R – A carteira preta era quando ele passou por um período de... Chamam matriculada. Um período de experiência. Então ele vai ganhando hora. Também tem isso, tem que acumular hora pra entrar na estiva. Ele vai acumulando hora de trabalho, vai acumulando, até pegar a carteira preta. Hoje não existe mais, filha, eu estou falando do meu tempo, que eu me aposentei vai fazer 20 e poucos anos.
P/1 – E quando você pegou a carteira preta? Você.
R – Aquilo ali valia ouro. Era uma carteira que valia ouro. Tanto é que você chegava a uma loja: “O que você é?” “Eu sou estivador” “Mas é estivador o quê?”. Aí mostrava a carteirinha preta, ele: “Leva a loja, está tudo bom”. Está entendendo? Era assim. No modo grosso de falar, que não era. Mas era um trabalho que rendia, dava pra ganhar dinheiro.
P/1 – E quando você pegou a sua carteira preta, Arildo? Você lembra?
R – Eu peguei em 1960, e entrei em 63. Aliás, peguei a pretinha em 63.
P/1 – E como foi pra você quando você pegou?
R – Virgem Maria, foi emocionante demais, porque já vinha trabalhando cinco anos de matriculado. O ponto que eu ganhei, entende, era assim. E meu pai era estivador, mas mesmo ele sendo estivador, eu tinha que trabalhar de matriculado até chegar o meu. Mas meu pai me ensinou muita coisa, me ensinou como funcionava um guincho, como eu tinha que estivar uma carga, entende? Tinha muito disso. Tinha muita gente também que estivava de qualquer jeito, e era perigo. Naquele tempo era um perigo. Uma carga mal estivada poderia haver um... Uma sacaria, por exemplo, de café, ela vai alta, se ela for mal estivada, qualquer coisa com o navio, um balanço, qualquer coisa, pode matar os companheiros tudo, um trabalho errado pode matar. Naquele tempo era assim.
P/1 – Você viveu uma história marcante assim como estivador? Uma coisa que você se lembre, um episódio que tenha...
R – Própria. Eu peguei um trabalho na Cosipa, entrei, e nós estávamos engatando umas placas de aço, descarga. E a empilhadeira vinha, levantava um plugin, nós passávamos os cabos de aço pra essa carga sai fora. E eu fui passar o cabo de aço, era muito peso, escapou a patola da empilhadeira e me pegou aqui. Não sei se dá pra ver aqui uma cicatriz. E me bateu aqui, isso aqui foi tudo pra cima. Os dentes de cima entraram tudo nos ossos. Os dentes de cima, com a pancada entraram nos ossos. E isso aqui levantou tudo. A pele aqui cortou, levantou. Então quando o paramédico chegou, que lá na Cosipa tem paramédico ali na hora, eu queria falar, não podia. Estava tudo bom, não sentia dor, não sentia nada, incrível. Eu olhava assim, fiquei de bobeira, aí eu só via os paramédicos mexerem a cabeça, largaram um negócio gelado aqui, acho que era soro fisiológico. Aí eu só lembro que eu escutei aquilo: vup, vup, vup, vup, era o helicóptero me pegando, trazendo pra Santa Casa direto. Sobrevivi, filha (risos). Estou aqui. Então eu fiquei lá internado, não sentia quase... Comecei a sentir dor depois que eu voltei a mim, aquela dor aqui horrível. Minha mulher chorando do lado, o filho do outro lado chorando, que eu só tenho um filho. Aí eu nem sabia o que estava acontecendo. Eu sei dizer que quando eu acordei no dia seguinte, eu já tinha sido operado, eu fiz uma operação plástica aqui. Esse doutor era quase de frente ao hospital da estiva, que nós tivemos um hospital que já era, já foi. Então ele fez uma operação plástica, mas aqui ficou uma presilha segurando a boca toda, travou. Travou a boca toda. Eu sei dizer que eu fiquei internado quase um mês. Depois fiquei em tratamento quase 90 dias. Aqui tem um parafuso de platina, e até hoje em dia às vezes eu estou almoçando, qualquer coisa, ela trava, e dói, aí dói, e não consigo mastigar. Eu peguei um seguro de 20%, olha só, naquela época, do acidente, mas eu já estava contando o tempo pra me aposentar. Eu sei dizer, filha, que eu me recuperei, mas o problema, eu não tenho os dentes debaixo, os de cima todinho eu não tenho. Porque naquela época era muito difícil como tem a odontologia hoje em dia, talvez salvasse algum, ou implantasse, sei lá, mas eu não me queixo disso, eu estou contente porque eu estou vivo.
P/1 – Quando foi isso? Que ano foi esse acidente?
R – Foi em 88? Foi mais ou menos em 85.
P/1 – E o seu pai e o seu tio faleceram de acidente na estiva?
R – Quem?
P/1 – O seu pai e o seu tio?
R – Não, só um irmão meu. A empilhadeira veio, esmagou as pernas dele, não teve jeito. O meu pai já era aposentado por invalidez também, que ele teve um derrame, então o aposentaram por invalidez. Mas eu, quando me acidentei, faltava um ano e pouco pra eu ter tempo de serviço. Então quando eu voltei a mim, que eu estava pronto, o médico me deu alta, me deram 20%, me dão alta logo. Eu voltei a trabalhar no porto, mas só trabalhava como... Arrumei como câmbio livre. Câmbio livre é o cidadão que está pra se aposentar, então ele vai de câmbio livre, ele escolhe um trabalho sem precisar enfrentar aparelho, nada disso. Fiquei de câmbio livre, fui de fiscal, fui de mestre e fui de geral. Acumulei um ganho pra eu me aposentar. Eu me aposentei, depois de algum tempo me chamaram no INPS, incorporaram esse 20... Tive que por advogado pra incorporar esses 20% no meu salário. Tanto é que hoje em dia eu posso até trabalhar em qualquer lugar, contribuir, porque eu me aposentei por tempo de serviço. E eles incorporaram esses 20% porque o médico queria me aposentar por invalidez, e eu não aceitei porque eu já tinha tempo, já estava com o meu tempo de serviço. Que ali eram 25 anos na época. Vinte e cinco anos e um dia já tinha direito a se aposentar. Era um trabalho perigoso, um trabalho insalubre, eu peguei e me aposentei. Naquela época dava, mas agora está meio triste. Eu vou levando. Também falta pouco tempo pra mim, não tem problema, não.
P/1 – Ô, Arildo, você falou que gostava de baile, né? Eu queria que você me contasse um pouco como eram os bailes que você frequentava.
R – Ah, os bailes aqui eram o seguinte, aqui em Santos eu sempre tive vida noturna. Aí eu trabalhava no cais, era obrigado também a vida noturna, quer queira ou não queira. Então como na época também tinha perigo você ficar na rua, tudo, então o estivador, a maioria, não a minoria, a maioria entrava numa boate, assistia a um show, tal, e pedia um guaraná, ficava ali esquentando o guaraná, pra não ficar zanzando na periferia da beira de cais, tudo, que nós sabíamos que era problema. Então eu ia pra baile, eu gostava, comecei a gostar de baile. Minha patroa sabia que eu gostava. Eu já desde pequeno dançava também, gostava de dançar.
P/1 – O que você dançava?
R – Tudo (risos). Tudo. Até a dona Valéria que podia explicar aqui. Às vezes eu tiro sarro aqui na Proeco quando tem festinha, tudo, de criança, eu gosto de dançar, pego uma, pego outra, danço, brinco.
Eu pro...
P/1 – E como é... Desculpa, pode falar.
R – Eu procuro viver a vida, não importa a idade que eu estou, nem como eu me sinto.
P/1 – E como eram esses bailes que o senhor frequentava? Conta um pouco assim o que tocava, com eram esses bailes, o que o senhor dançava.
R – Não, era muito gostoso, eu dançava tudo. Eu gostava de dançar samba, samba canção, bolero, foxtrote, swing, rock and roll. Dançava tudo. Tango às vezes, quando a moça dava, dançava um tangozinho. Eu gostava. Gostava mesmo de baile.
P/1 – E onde eram esses bailes aqui? Qual era o nome?
R – Tinha o Samba Dança aqui, que era muito frequentado, tinha o Chave de Ouro, tinha o Coliseu, que era o Nacional, tinha Humanitária, tinha o CMTC, tinha o Show de Estrela. Quer que eu vá? Hi-fi no Gonzaga, era mais sofisticado lá, tal. Eram esses bailes. Eu frequentava todos eles. Às vezes, dia de sábado e domingo, quando eu era solteiro, eu gostava de ir para os meus bailes. Hoje não. Hoje eu não estou dançando muito, porque não dá pra dançar na garrafinha, esses negócios, não dá mais. Não gosto muito de... Gostava de gafieira na época, mas era diferente de hoje. Como é o nome que dão? Forró zoando, né? Não gosto muito. Eu prefiro...
P/1 – E de ouvir música, você gostava?
R – Até hoje.
P/1 – E o que você gostava de ouvir, gosta de ouvir?
R – Até hoje eu gosto de ouvir Beethoven, Frank, gosto de música clássica. Quando posso, quando tenho tempo, vou ver um concerto clássico, eu gosto de ver. De ouvir, aliás. Ver não, ouvir. Gosto muito. Muita gente fica meio assim: “Pô, mas tu gosta de samba e gosta...” “Gosto. Gosto de...”.
P/1 – E de samba, o que você gosta?
R – Samba? Todos eles, porque samba é bem brasileira. Mas a música clássica eu gosto porque descansa um pouco, sei lá, gosto muito. Tanto é que meus CDs lá em casa, muita gente olha assim, diz: “Ah, não vou ouvir isso”. Tem um bocado de CD lá, tudo música clássica. Valsa vienense, tinha um tal de... Como era o nome? Aqui dão outro nome, mas é uma música... É meio alemã ela. Não é vienense. Caramba, não dá pra eu distinguir agora, que a minha cabeça está meio... Mas eu gosto de tudo. Só dou uma chave assim, tudo nesse mundo é bom, só que a gente não sabe distinguir, mas tem que viver com alegria, com tudo, sem rancor, sem raiva. Se me fizer alguma coisa aqui agora, se passar dali, me der um abraço como amigo, está tudo bom, está tudo joia. É assim que eu levo.
P/1 – E, Arildo, como você conheceu a sua esposa? Como vocês se conheceram?
R – Ah, ela estava cuidando do meu pai, ela era enfermeira na Santa Casa. E ficava um dia eu e um dia o Davi com o meu pai, que ele estava muito doente, entrou em coma, tal. E esse coma dele, se eu disser muita gente não acredita, foram oito meses em coma. O dia que ele acordou, ele falou assim: “Como é, vagabundo, tu não vai trabalhar, não?”. Era o jeito dele. Ele me chamava de bicudo: “Ô, bicudo, tu não vai trabalhar, não?”. Uma noite dormia eu, uma noite dormia meu irmão. Nós revezávamos. E eu conheci Delfina ali no hospital cuidando do meu pai, tratando do meu pai. Um dia eu a convidei pra comer pizza no Cascarama, ela foi, aí começamos a conversar, tal. E casei com ela.
P/1 – Quanto tempo vocês namoraram?
R – Namoramos? Ah, mais ou menos um ano e pouco. Um ano e pouco.
P/1 – E como foi o namoro? Como era o namoro?
R – Tranquilo. Tranquilo. A gente namorava, ia à festinha. Ela não gostava de baile, era diferente de mim (risos). Mas a gente ia como um casal comum. Eu precisava... Não tinha mãe, não tinha nada, já estava meio baleado assim de... Aí a convidei. Casei com 24 anos, filha. Casei novo também. Ela é mais velha que eu seis anos, minha patroa.
P/1 – E como foi que você a pediu em casamento? Quando foi? Como foi o pedido?
R – Agora que está difícil (risos). Eu lembro que nós estávamos perto do Carnaval. Ainda existia bonde. É, nós tínhamos pegado um bonde 6, pra ir da Praça Mauá até o Canal Três. Como estava cheio, eu vim no estribo, era bonde aberto. E falei pra ela assim: “Escuta, Delfina, por que a gente não casa logo, e aí essa brincadeira...”. Ela: “Ah, vamos logo casar”. E acabou. Assim, foi uma coisa... Mas durou 50 anos, né, filha? Eu ia fazer 50 anos de casamento quando ela faleceu.
P/1 – Como foi o casamento de vocês, o dia do casamento mesmo?
R – O dia do casamento meu, como não tinha mãe, não tinha ninguém, casamos aqui nessa igreja mesmo.
P/1 – Qual igreja?
R – Aqui. Não tem no Canal aqui uma igrejinha? Casei ali. Já morava aqui. Aí a pedi em casamento, fomos eu e ela sozinhos para o altar, o meu irmão apareceu pra ser padrinho. Foi bem simples. Bem simples mesmo. O vestidinho branco que ela vestiu, poucos convidados, porque eu estava começando a vida naquela época. Foi assim. O casamento foi simples, simples, simples.
P/1 – E onde vocês foram morar?
R – Eu fui morar de aluguel aqui na zona noroeste, aqui na Francisco Sá, número 131, era 131, aí fiquei pouco tempo ali. Aí eu comprei um carrinho, um fusquinha, na época, pra eu trabalhar, pra nós sairmos, tal. E seis meses depois eu vim pra casa, não achei o fusca, estava cheio d’água. A água subia pela janela, perdi tudo, os móveis tudo. Então peguei essa casinha, já era minha. Já era minha, eu tinha comprado, dado uma entradinha, mas era um lugar mais acessível pra comprar uma casa. Tive que vender a casa menos do que eu comprei pra poder comprar móvel novo, tudo novo. Mas venci também. Nós fomos morar nessa casa que eu estou até hoje, feita pelo governo, é casa do BNH. Está quitada direitinho, hoje pegou um valor extraordinário. Não tem aqueles prédios altos que você vê daqui? Então, é ali atrás. Pegaram um valor incrível as casas ali. Comprei essa casinha, arrumei, tal. Veio meio bagunçada. O governo pra entregar as coisas é jogo duro, então tive que fazer alguma modificaçãozinha, mas moro ali há 50 anos.
P/1 – E quando veio o seu filho? Quando vocês descobriram que ela estava grávida?
R – Está vendo com a minha... Tem que voltar. Ela já tinha essa criança. Eu assumi a criança. Legitimei. No dia do casamento legitimei também a criança. Hoje ele é delegado. Ele trabalha aqui na Primeira Delegacia de São Vicente. É Edimilson Sena Amorim de Sousa Costa.
P/1 – Quantos anos ele tinha quando vocês começaram a namorar?
R – Ele estava com seis aninhos. Eu assumi essa criança. Porque gostava dele e dela, eu estava à toa na vida, falei: “Vamos casar”.
P/1 – E como foi ser pai?
R – Não entendi.
P/1 – Como foi ser pai, pra você? Como era ser pai assim? Porque você se casou e se tornou pai também ao mesmo tempo.
R – Ah, sim. Não, numa boa. Eu gostava muito do menino, gosto até hoje. Hoje ele está casado também, já me deu neto, tudo. Já tenho neto casado já também. O outro está solteiro, mas está com ideia de casar também. O problema é dele, né? Deixa casar (risos). A vida é pra frente.
P/1 – Quantos netos você tem?
R – Dois.
P/1 – Como eles chamam?
R – São bons meninos, eles estudaram, estudavam aqui no... Estava fazendo vestibular agora pra... Quer ser tratador de animal, como é?
P/1 – Veterinário?
R – Veterinário.
P/1 – Qual o nome deles? O nome?
R – Do neto?
P/1 – Dos dois netos.
R – É Bruno Vieira da Costa, o outro é Felipe Vieira da Costa.
P/1 – E como é ser Avô, Arildo? O que você achou de ser avô?
R – É uma personalidade a mais, viu? Mas a gente tem que formar essa personalidade. Eu gosto muito deles, eles gostam de mim, eles têm a vida deles, não me meto muito assim na vida deles, cada um tem uma ideia. Mas são bons meninos, estão fazendo o que é certo, então está tudo bem. Eu não troco muito ideia assim porque às vezes pode embananar, então eu prefiro assim. Então eles vão a minha casa, eu vou a casa deles. O pai é tudo pra esses meninos. O Edimilson até hoje me chama de pai onde estiver. Quando eu vou à delegacia, eu já vou entrando direto, ninguém fala nada (risos). É assim. Minha vida é essa, filha.
P/1 – E, Arildo... Podemos voltar aqui? Recomeçar? Arildo, eu queria saber o que o senhor foi fazer depois que se aposentou. Você aposentou e aí como ficou o seu cotidiano?
R – Fiquei dois anos sem fazer nada. Tentei trabalhar, ir para o cais, não deu certo. Porque a gente tem o direito, mas como eu vi uma coisa muito triste e uma modificação muito grande já estava havendo, eu falei: “Ah, não, é melhor ficar sem fazer nada”. Aí fiquei um período sem fazer nada, não lembro o período. Aí um dia...
P/1 – Então se quiser retomar, seu Arildo, o que... O senhor falou que ficou dois anos parado depois que se aposentou.
R – Foi.
P/1 – E depois?
R – Aí tentei voltar, não dava certo, eu falei: “Vou ficar em casa”. Fiquei em casa o tempo todo. Um dia lá, não sei por que cargas d’água foi, eu passei perto da Proeco lá, ela ainda era na aqui na Engenheiro Elias Machado de Almeida, no Bom Retiro, e fui convidado pra pintar um muro. A dona Valéria chegou pra mim, falou assim: “Seu Arildo...”. Aliás, ela não me conhecia, conheci através da Maria. A Maria me levou lá, falou assim: “Eu estou com o muro aí, está tão feio, as crianças...”. Eu falei assim: “Ah, eu venho aí, pinto pra senhora”. Comecei a pintar o muro dela. Dois dias depois ela falou pra mim que morava na Praia Grande e tal, se eu poderia abrir a Proeco, porque às vezes tinha problema de vir, chegar na hora certa. “O senhor mora longe?” “Não. Moro aqui pertinho.” Aí ela me entregou a chave. Aquilo foi uma coisa instantânea assim, sabe? Eu falei: “Caramba!”. Fiquei meio assim. Falei: “Está bom, eu abro pra senhora”. Estou abrindo a porta vai fazer 12 anos, mais ou menos (risos). Mas foi bom demais, porque eu encontrei o que fazer. Eu já estava indo pra mesa de bar jogar sueca, dominó, já estava voltando àquilo que eu fui uma fase na vida. Beber não, não dá, não tenho condições mais, nem posso assim. Então eu aceitei, peguei a chave. Tinha dia que ela vinha mais cedo, dia que ela não vinha na hora, eu abria, as mães já traziam as crianças, deixavam lá, eu me apeguei a essa confiança. Aí veio a Maria, veio a dona Ivone, começamos a fazer artesanato, isso, aquilo, eu acompanhando. Ia pegar coisinhas na feira para as crianças, fazer o sopão das crianças, aquilo tudo. E a dona Valéria... Eu fui ficando, cativando o pessoal, o marido da dona Valéria também muito bacana comigo, o Helinho, pequenininho, pequeno, aí fui ficando. Aí fiquei de voluntário lá até hoje. Eu falei pra dona Valéria: “Dona Valéria, se for pra eu ter alguma... Eu quero ter a participação na Proeco até o fim assim do jeito que eu estou”. Que eu gosto. Lidamos com criança. Hoje não tem criança aqui, mas tem criança nos colégios, de vez em quando eu vou. Então comecei a pegar serviço de confiança aqui na Proeco. Tudo que é documentação, a dona Valéria entregava na minha mão, Helinho, o pai dele. Tornou-se uma família mesmo.
P/1 – Que ano foi que você conheceu a Proeco?
R – Aqui? Foi... Está com 11 anos. Em 97, mais ou menos. 97, 98, uma coisa assim. Então eu comecei a fazer o que eles me pediam, corria aqui, corria ali. Hoje eu conheço qualquer setor da prefeitura, peguei conhecimento na prefeitura, no Secult, tudo assim, Setcom, mas tudo conhecido já. Entro, tenho uma confiança que eu não posso macular nunca na minha vida, lidar até com valores às vezes da Proeco, tudo. Isso me satisfaz, me deixa vivo, vamos dizer assim. Muito vivo.
P/1 – O que você faz hoje? Quais são as atividades que você faz na Proeco?
R – Aqui na Proeco?
P/1 – É.
R – Eu faço atividade... Enquanto vocês estavam fazendo “coiso”, eu estava fazendo atividade. Fui levar um hall de criança do colégio que eles estão trabalhando, eu ajudo o Helinho no que eu puder. A confiança é tão grande que eu assino com vice-presidente, assino e é válido graças a Deus, que eu não tenho problema assim que me desabone a minha conduta perante a sociedade, essas coisas. Então eu fico grato por a dona Valéria ter dado essa confiança em mim. Ao marido dela também, falecido, seu Felipe.
P/1 – Desde quando você está como vice-presidente, Arildo?
R – Vai fazer um ano. Vai fazer quase dois anos. Não pedi pra ser presidente (risos), pra ser vice-presidente. De repente o Helinho chegou: “Olha, preciso de alguém pra preencher o cargo”. Aquilo tudo. Pediu. Eu falei... Quase eu digo não, mas eu falei: “Espera aí, mas se eu disser não, eu estou indo contra a minha própria... Olha, Helinho, eu não entendo nada disso, não entendo nada de cargo, mas eu vou aceitar por vocês”. Porque eu acei... Não tomar nenhum cargo desses. Então só aqui, fiz vários cursos aqui na Proeco, participei em São Paulo lá em... Onde tinha a corrida de automóvel, como é o nome? Pela Mesa Brasil. Aprendi a cozinhar pra criança. Teve época aqui que a dona Ivone não podia, ou estava doente, eu fazia o sopão das crianças, fazia a merenda das crianças. Aprendi tudo na Mesa Brasil. Hoje mesmo era pra fazer uma batata recheada pra você, ou um peixe, não sei se vocês gostam.
P/1 – Gosto.
R – Ainda pensei, vou fazer um cação de panela caprichado. Depois eu não tive tempo, correria. E eu fui avisado de repente. Está bom. É a minha vida aqui na Proeco, é essa.
P/1 – E esse tempo todo que você está na Proeco, você se lembra de alguma história que tenha sido importante pra você? Um momento com as crianças? Alguma coisa assim que tenha ficado marcada?
R – Ah, as crianças. O que me deixou marcado na Proeco foi a convivência com as crianças. Muito. Muito mesmo. E depois era criança lá do Dique, um lugar pobre, entende? E a gente, pô, era o maior prazer, a maior alegria estar convivendo com eles, muito bom mesmo.
P/1 – Você se lembra de alguma criança assim em especial, que tenha...
R – Eu adotei uma essa semana (risos). “Adotei” para o Natal. Eu pertenço ao Grupo Cáritas, é uma entidade espírita, então nós fizemos um sacolão individual, então eu adotei uma criança pra no Natal ele estar... Ele e a familiazinha dele, que ele tem uma família. Então fiz a sacolinha dele, levei ontem até. Eu gosto de estar em contato com criança, é muito gratificante mesmo. Muito, muito mesmo.
P/1 – E, Arildo, qual você acha que é a importância do trabalho da Proeco para as crianças? Você acha que é importante para as crianças? E por quê?
R – O cargo?
P/1 – O trabalho da Proeco para as crianças. O trabalho que vocês fazem aqui.
R – Eu acho que é muito bom. Eu acho que é bom, porque no meu tempo de criança não tinha disso. Eu lembro que nunca houve assim... Hoje se dá mais atenção às crianças. Eu creio que é uma evolução muito grande. Contar uma historinha pra você, aceita?
P/1 – Claro!
R – Eu peguei um ônibus na Conselheiro Nébias, quando eu passei em frente ao São José, que é uma escola de crianças pequenininhas, o ônibus chapou nessas crianças. Mas tinha senhores, senhoras também dentro do ônibus. Então essas crianças vinham conversando, falando, uma citando A, B, C, D, cantando. E tinha uma maiorzinha, mais velhinha também, via pela aparência, chupando chupeta. Chupando a chupetinha dela. E tinha uma senhora na minha frente, duas senhoras, uma conversando com a outra: “Pô, mas que coisa tão diferente, olha, as outras estão cantando, citando dois mais dois são quatro, e aquela ali que parece ser mais velhinha, acho que é bobinha, né?”. Estava chupando chupeta. Aí a outra não estava querendo muita conversa, uma das senhoras. Eu cheguei: “Olha, filha, posso falar uma coisa pra você? Eu estou ouvindo. Posso falar uma coisa? É que aquelas crianças que estão cantando, falando A, dois mais dois são quatro, quatro mais quatro são oito, são espíritos mais antigos. Aquela que está chupando chupetinha, acho que é a primeira vez que está aqui” (risos). Entendeu? E é o fato. As crianças hoje são superinteligentes, nascem inteligentes, mas ainda não saíram do casulinho dela espiritual. Assim que elas saírem do casulinho dela espiritual, aí vão dizer o que são realmente. Até certa idadezinha de sete, oito anos, ainda estão naquela fantasia delas. Por isso que eu vejo criança conversando assim, a filha da Adriana mesmo estava aqui ontem falando, conversando não sei com quem (risos), mas eu respeitei, porque ela está no ambiente naturalzinho dela. É esse ponto de vista que eu vejo nas crianças. E isso me deixa muito alegre, muito contente mesmo. Essa mudança que vai haver não é dos nossos governantes, não, é do nosso pessoal mesmo. O pessoal nosso que tem que mudar a toda hora, a todo instante.
P/1 – Arildo, eu queria saber o que você conhece do Criança Esperança. Quando você conheceu e o que você sabe do Criança Esperança?
R – Olha, pra começo de conversa assim, o Renato Aragão foi um dos meus heróis, não só ele, como a turma dele, Os Trapalhões, o Zacarias, o Mussum, eram heróis pra mim, embora eu já fosse rapaz, mas eu gostava porque é uma... Depois que veio o Criança Esperança, eu vi que, poxa vida, começou a aparecer aqueles negócios lá da Índia, lá da África, aqui do Brasil mesmo, no Nordeste, aqui em Santos, que eu vi a olho nu.
P/1 – O que você via? O que você via?
R – Eu via a necessidade de mudar essa situação. Chega a guerra, a Segunda Guerra Mundial, querem uma terceira pra quê, pelo amor de Deus? Então o Criança Esperança sempre foi um programa pra mim muito, muito bom mesmo, muito bacana. Não sei como descrever. Não sei mesmo, filha. Estou falando isso de coração. Eu coopero às vezes com o que eu posso, pelo telefone, pelo “coiso”, entende? Mas pode acreditar, olha, vocês têm um trabalho tão fabuloso que não é se tornar rico. A riqueza está naquilo que você faz, não naquilo que você tem. Então eu acho que é isso que...
P/1 – Vou retomar então, seu Arildo. Eu queria saber qual é a importância que você acha que tem o Criança Esperança?
R – A importância que tem?
P/1 – Do seu ponto de vista assim, como o senhor acha.
R – Ah, recomeçar de onde eu terminei (risos).
P/1 – É.
R – Então, a importância que eu acho, que quem lida com criança, quem gosta da vida e acha que o mundo pode melhorar, tem que começar pela criança, sem dúvida. E pelo mais velho também, porque ele tem muita lição, tem muita experiência pra poder saber o porquê dessa importância sobre a criança. Eu acho uma coisa muito maravilhosa. Sei lá. Eu não sei descrever, filha. Eu não sei mesmo.
P/1 – Não, mas está ótimo assim. São com as suas palavras mesmo. São com as suas palavras. Está ótimo.
R – Então eu acho que se existe esperança de mudança tanto espiritual, como física, nesse mundo, eu acho que tem que vir através da criança e também da cooperação das pessoas idosas, ou meia idade, ou pai e mãe, irmão mais velho, os irmãos mais velhos. Eu não sei trocar as palavras. Não sei colocar mais palavras. Mas eu acho que se tem alguma esperança no mundo, essa esperança é a criança mesmo, não tem outro...
P/1 – Mas está ótimo, não se preocupe. O senhor falou muito bem, está ótimo.
R – Não tem outro. Eu aprendi com o meu médico, que eu até faço um exame de próstata, tudo isso, e ele há uns cinco, seis anos, ele falou: “Seu Arildo, viva com saúde”. Eu estranhei, pô. Viver com saúde, pô, se eu estou com problema. Mas graças a Deus não é uma problema grave. Pensei que estava com problema. Mas eu entendi o que ele quis dizer: faça tudo aquilo que você quer, mas nunca põe rancor, nem ódio, nem, como se diz, feche a janela, deixe sempre aberta, mas que esses elementos sejam influenciados pelo amor, pela caridade, desculpe-me falar assim. É o que vale. Eu entendi o meu médico. Acho que foi o melhor médico que eu fui até hoje.
P/1 – Arildo, eu queria que você falasse um pouco agora pra gente da sua esposa, dessa que faleceu recentemente, né? Ela adoeceu? Como foi isso para o senhor?
R – A minha mulher, ela tinha um problema, ela fumava demais. Ela foi proibida de fumar pelo médico, tudo. Então ela teve um glaucoma. E o médico falou pra ela: “Você deixando de fumar, talvez volte até a enxergar melhor”. Ela ficou quase cega antes de morrer. Então ele pediu tudo isso a ela, entende? Mas ela era muito teimosa. Não sei se eu tenho culpa, mas eu... Eu acho que não, porque eu fazia todo o possível pra que ela... Não posso dizer pra ela: “Ah, larga o vício de fumar”. Não posso. Todo mundo tem que ter capacidade de aprender por si só. Então eu não me meti muito. Mas ela foi uma mulher que trabalhou no hospital da Santa Casa, trabalhou no Salete, na Bahia, no Hospital Salete. E veio pra Santos com esse menino, porque parece que ela encontrou muitos problemas na Bahia. Como ela cuidava do meu pai e eu sabia da personalidade, sabia não. A personalidade dela e o seu modo de tratar, eu vi que não era “coiso”. A primeira oportunidade que eu tive de conversar com ela, eu vi o caráter como mulher, como mãe. E aquilo foi crescendo e cheguei a pedi-la em casamento. Uns dizem: “Ah, porque ela cuidou do pai”. Eu falo assim: “Não, não é isso, Regina. Não é porque ela cuidou do pai, é pelo caráter dela, pela hombridade dela como mãe”. Agora, teve um problemazinho que... Eu conheci o pai dele, eu vim a conhecer, só que ele não veio pra ver alguma coisa com o menino, foi onde teve um atritozinho, ele veio buscar a criança, e era advogado. Ele é advogado na Bahia. Então quando ele chegou, eu falei pra ele: “Não, se você veio pra finalidade de cativar o...”. Que ele falou de cara assim: “Eu sou o pai dele, não sei o quê”. Eu falei pra ele: “O senhor está enganado, o senhor não vai conseguir nada, porque essa criança é legitimada desde o dia que eu casei com a dona Delfina”. Ele recuou, deu um passo atrás, que ele viu que estava errado. Está legitimado, não tem como. E ele como advogado, entendeu? Então ele saiu gesticulando alguma coisa, tal, e voltou pra Bahia. Como ele descobriu onde ela trabalhava, é muito fácil, sabe pra onde veio? Mas ele não conseguiu nada. Mas ela começou a ficar doente, doente, depois desse problema. Tinha muita crise emocional, começou uma depressão muito grande, o médico falou pra mim. Eu não pude. Teve hora que eu não podia fazer mais nada. Mas não abandonei, fiquei do lado ali. E o caso dessa senhora de 104 anos tem essa ligação, porque ela tinha uma irmã paralítica na Bahia, então ela falava tanto dessa irmã que eu fui ver a irmã dela. Morava num lugar horrível, dona Tereza. Horrível mesmo. Pra senhora ter uma ideia, o lugar onde ela morava na Bahia era um tal de Pau Miúdo, Ladeira do Pau Miúdo. O lugar é um pouco distante da capital de Salvador ali. Dentro de Salvador, mas longe de onde nós estávamos. E cheguei lá, fiquei com pena de ver aquela situação. E essa senhora tomava conta da irmã dela. Fui ao médico, conversei com ele, falou assim: “Vocês vão levá-la pra Santos, tudo bem, mas ela não vai ficar muito tempo, porque já está numa situação crítica”. Falei: “Mesmo assim eu vou levar. Se morrer, morre perto da irmã, tal”. E eu vim da Bahia com essa moça, era a mais nova. Com essa moça e a dona Ana, que tomava conta dela, enfermeira também, trabalhou no hospital... Era da Bahia, eu esqueço o nome que ela me deu agora, o nome do hospital. Então eu trouxe. Essa senhora estava com 60 e poucos anos, que tomava conta dela. A irmã dela veio a falecer do problema já que veio da Bahia, aí ficou muito pesado lá em casa, entende? Aí que a minha patroa entrou em depressão mesmo, porque essa senhora, já com 90 e poucos anos, 99, 98, caiu e fraturou a bacia, também ficou numa cama. Aí a depressão foi maior pra minha mulher. Eu saía, ia pra Proeco. Tu vê como a criança tem importância na minha vida. Eu ia pra Proeco, passava o dia todo lá, não porque eu queria, porque se eu entro em depressão também não ia ter jeito de cuidar, e também estava fazendo tratamento já, depressivo, essas coisas. Um dia minha patroa morreu, dia 1º de agosto de 2012, minha patroa morreu, 2012. Eu fui, essa senhora ficou comigo numa casa, 102 anos, eu não tinha condições de cuidar, eu quase entro em parafuso, fiquei doido. Não tinha. Fui à casa evangélica, me pediram quase três mil reais. Fui a uma entidade que tem lá pra ver se ficavam com a senhora, de freiras, também disse que não ficava, porque só pegava quem tivesse na rua. Quer dizer, eu tinha que jogar a velha na rua pra poder depois... É um desagravo muito grande. E eu cuidando dela. Aí coloquei uma funcionária, uma moça, pediu 400 reais, falei: “Bom, já alivia, dá pra eu pagar, não tem problema”. No segundo mês pediu 800, no terceiro mês queria mil. Aí eu entrei em parafuso: “O que eu vou fazer?”. Vim à dona Adriana, contei pra ela, com uma assistente social, fomos ao Creas lá da Vila Matias, fomos ao Creas, tudo, mexi daqui, mexi dali. E essa velhinha ganhava, mas a procuradora dela na Bahia, vai fazer seis anos que não manda dinheiro pra ela. Não sei o que aconteceu. Então me constitui como procurador, então fui procurar isso aí. Fui a uma procuradoria do Estado, a dona Adriana me encaminhou para Creas, falei com uma assistente social, revirou, revirou, revirou, consegui esse asilo pra ela pela prefeitura de Santos, e pela coisa do idoso, pelo Estatuto do Idoso. E eles estão correndo atrás do dinheiro também e não acham, por incrível que pareça, dinheiro dela, que eu não quero nem saber, sabe? Aí eu consegui interná-la. Então eu estou mais um pouquinho sossegado, estou mais tranquilo, porque eu sei que ela está num lugar que está sendo tratada. E eu não podia tratar de uma senhora da idade dela, com perdão, falar sincero pra vocês, virgem, não tem ninguém no mundo. Tinha uma irmã, também nunca mais soube dela. Eu dou graças a Deus que arrumei esse lugar. Vou vê-la. Toda semana eu lá vê-la, não tem como deixar de ver. Está bem magrinha, está bem acabada, já foram pessoas que têm acho que uma visão ou atrás, ou na frente minha, não sei, então eu não sei especificar, filha, que já estiveram lá: “Ah, mas ela está tão magrinha, não estão maltratando-a? Não estão fazendo isso?”. Eu digo: “Ela tem 104 anos”. Será que a pessoa não... Essas pessoas, quando eu vejo que tem a maldade, eu já isolo, deixo me perder, eu não gosto disso, até chegar à razão dela. Então graças a Deus ela está lá, está sendo tratada, que eu tenho certeza, e a Prefeitura está auxiliando no que pode. Só que esse dinheirinho que ela recebe, faz seis anos que não vem. O promotor, o doutor Roberto aqui do fórum de Santos, já falou pra mim: “Não, seu Arildo, é que a sua procuração foi feita depois de ela estar internada”. Então a procuradora dela na Bahia era... Eu sabia o nome. Ana Maria. Ana Maria Sena Amorim, o nome de quem pegava o dinheiro dela. Eu falei: “Eu vou fazer o quê? Eu não sei onde ela mora, não sei quem é”. Então estou esperando. Ela está aguardando, o asilo, está aguardando, que sabe que essas entidades têm necessidade de ter uma ajuda. Tem a necessidade.
P/1 – Está certo.
R – Não é só o dinheirinho da prefeitura que vai resolver.
P/1 – Claro.
R – Muitos problemas.
P/1 – Está certo, seu Arildo. Eu vou encaminhar para o final então da nossa entrevista. Vou fazer duas perguntas pra encerrar com o senhor. Então a nossa penúltima pergunta é: quais são seus sonhos?
R – Como?
P/1 – Seus sonhos?
R – Meu sonho? Rápido e rasteiro? É viver bem com todo mundo. Principalmente com as crianças, que é o principal item de vocês.
P/1 – E como foi contar a sua história, seu Arildo? O que o senhor achou de dar entrevista pra gente? Como foi contar a sua história?
R – Ah, é maravilhoso. É legal. É a primeira vez, vai me desculpar, não sei nem o que posso falar. A primeira vez que eu dou uma entrevista assim. Eu gostaria de por a minha vida aqui num negócio desse aí que guarda tudo. Como eu estava falando, hoje criança lembra o passado dela ela se movendo, falando, gesticulando. E o meu tempo não tinha nada disso. Então é difícil a gente voltar pra trás. Hoje não, lá quer saber da... Como é o nome daquele negocinho que tu mandou comprar? “Precave”, né?
R/2 – Pen drive.
R – Eu boto ali, conta a vida dela todinha. Eu não tenho essa condição, né, filha?
P/1 – Mas foi ótimo. Obrigada, viu, seu Arildo?
R – Foi nada, Tereza. Esteja à vontade.
P/1 – A gente encerra aqui então. Eu agradeço muito. Depois o senhor vai receber uma cópia.
FINAL DA ENTREVISTARecolher