Acordei cedo naquele dia. Sete anos. Nem pensei como seria minha vida dali pra frente. Olhei para os lados. Não vi ninguém. “Não entendi!” Se já houvesse telefone naquela época, talvez tivesse a ideia de ligar para saber onde todos se meteram. Mas não tinha e pra dizer a verdade, nem fazia...Continuar leitura
Acordei cedo naquele dia. Sete anos. Nem pensei como seria minha vida dali pra frente. Olhei para os lados. Não vi ninguém. “Não entendi!” Se já houvesse telefone naquela época, talvez tivesse a ideia de ligar para saber onde todos se meteram. Mas não tinha e pra dizer a verdade, nem fazia falta.
Coador de café sobre a boca do bule, já com o pó dentro. Sobre a mesa de tronco de madeira não trabalhado, a água na chaleira “empretecida” pelo fogão à lenha coberta com uma tampa com um areado desproporcional.
Coloquei a chaleira sobre a boca do fogão onde saía mais fogo. Parecia ter pressa. Pressa pra quê? Talvez para ir à escola. Mas não. Estava de férias. Aliás, esta sempre foi uma frustração. Fazer aniversário no período de férias. Talvez quisesse comemorar com
meus amigos. Acho que não. Não tinha muitos devido à distância de onde morava.
Da casa de farinha, lá no alto do morro, ouvi um assobio. Aquele era o tradicional aviso que o biju havia acabado de ficar pronto. Assobiei de volta avisando que já havia acordada.
Em dez minutos meu tio chegava com duas solas de coco e alguns beijus fresquinhos dentro da cesta de carinho que trazia nas mãos. Disse-me: “Hoje é um dia especial e o café também vai ser especial.”
Tia Alcídia (minha tia avó) já vinha chegando com uma rosa branca na mão. “Que ocê tenha muita saúde e paz e realize seus sonho, minha fia.” Viajei em suas palavras. (Que pena ter ido embora
de minha vida tão cedo!).
Minha avó, que até então eu chamava de mãe, e meu avô, que até hoje chamo de pai, chegaram em seguida com um bolo de mandioca. Que delícia! Nunca comi outro igual. Parecia com sabor de carinho, misturado com amor e doçura. A vida era mais difícil e mais fácil.
Depois do café, fui para o quarto ler um pouco do livro “A Formiguinha”, que ganhei na formatura da alfabetização (Ainda era assim que dizia naquele tempo). Minha avó preparava o almoço junto com tia Alcídia, tio Val e meu avô foram pra roça, enquanto minha tia ainda dormia (Nunca foi de acordar cedo.)
Na hora do almoço, minha mãe, que trabalhava numa loja na cidade, como fazia em todos os meus aniversários veio me ver. Ela sempre saía muito cedo para trabalhar, eu ainda estava dormindo. Às vezes, quando chegava eu já havia dormido, não aguentava esperá-la. Era difícil vir a casa almoçar.
Quando vinha, tinha que voltar em quarenta minutos, tempo que o ônibus levava para ir ao ponto final e voltar. Eram somente três horários por dia.
Antes de comer, tiramos duas fotos. Mamãe trouxera da cidade um fotógrafo para registrar aquele momento especial. Arrumou-me com uma jardineira jeans e uma blusa branca.
Comemos no sofá da sala, investimento feito por mamãe comprometendo muitos meses de seu baixo salário.
Dada a hora, mamãe e o fotógrafo voltaram para a cidade. Hoje não ajudei na louça do almoço. Era o meu dia. Adorava fazer aniversário. Tinha sempre um gosto de liberdade e motivação.
À tarde fiquei no quarto escrevendo algumas palavras enquanto vovô foi à vendinha, perto de casa, comprar gás para o lampião, só usado em ocasiões especiais. À noite, enquanto esperávamos pela chegada de mamãe, vovó, vovô e tia Alcídia ficaram contando histórias à luz da lamparina e do lampião.
Em meio à luz fornecida pela lua, pude ver um vulto no terreiro. Era mamãe chegando. Trazia em uma das mãos uma sacola e na outra um pequeno bolo confeitado. O momento da chegada de mamãe, quando não vencido pelo sono, era a hora mais esperada do dia pra mim, mas quando se tratava de meu dia de aniversário, era mais esperado ainda. Mamãe me beijou, deu a sacola com um presente. “Espero que goste!” Era uma linda boneca. A mais bonita e amada. Se comparada a outras, poderia dizer que foi a única. Um bebê da estrela. Durou muitos e muitos anos.
Mamãe botou o bolo no tronco da cozinha, que nos servia de mesa, e todos nos dirigimos para lá. Cantamos parabéns, vovô reclamando do gasto do gás do lampião. Vovó dizendo que era só por uma noite, enquanto tia Alcídia só balançava a cabeça. Pelo despropósito da atitude e o olhar de felicidade, parecia adivinhar que este seria o último aniversário que comemoraria comigo. Tia Sandra, gordinha, querendo logo seu pedaço de bolo. Minha mãe mais feliz que todos, observando meu olhar de felicidade.
Fomos dormir. Sonhei! (Acho que foi sonho! Não lembro direito.) Com um mundo tão puro, com pessoas que dialogavam, com a existência do amor pela família, com a valorização do pouco, por se ter tão menos. Não! Acho que não foi sonho. Acho que realmente as coisas eram assim.
Michele Maria de Souza – Memórias LiteráriasRecolher