P/1 – L., eu vou começar a entrevista com você desde da origem, perguntando de novo seu nome completo, data e lugar que você nasceu.
R – L. de L. Nasci aqui em São Paulo, no bairro Diadema, São Bernardo, não, São Bernardo não, desculpa. Ai, deu um branco.
P/1 – Vai, vamos com calma.
R – Diadema, Taboão da Serra.
P/1 – E você é a única filha?
R – Não. Minha mãe teve mais seis.
P/1 – Seis filhos?
R – É.
P/1 – E você nasceu em que data?
R – Eu nasci 25 de fevereiro de 1978.
P/1 – Você é a primeira, segunda, terceira ou como é que...
R – Eu sou a quinta.
P/1 – Ah, você é a quinta.
R – A quinta de frente, do começo para o fim, porque eu sou a segunda caçula da minha mãe.
P/1 – Ah, você foi a penúltima?
R – Isto.
P/1 – Então me conta um pouquinho dos seus pais. O que é que o seu pai fazia? Você conviveu com ele?
R – Convivi.
P/1 – E o que é que ele fazia?
R – Ah, o meu pai trabalhava na Ford, não lembro muito bem do que era, mas ele trabalhou muitos anos na Ford e a minha mãe também, de doméstica. Dentro da Ford ela era faxina.
P/1 – Aí depois ela foi na Ford?
R – Aí minha mãe trabalhou anos. Acho que ela trabalhou uns 20 e poucos anos na Ford. Aí o produto deu problema no pé dela. Aí ela teve que operar um dedinho, aí ficou parada. Aí aconteceu uma parada de problemas. Ela ficou doente, meu pai começou a beber, desgovernou tudo.
P/1 – Isso quando? Vamos voltar antes. Qual é a sua primeira lembrança da sua vida? Vê se você lembra.
R – A minha primeira lembrança? De quando a gente mudou para este lugar. Porque depois que a gente mudou, a gente era uma família normal.
P/1 – Vocês moravam aonde?
R – Lá no Jardim das Nações.
P/1 – Em Diadema?
R – Em Diadema.
P/1 – Aí vocês mudaram.
R – É. Aí nós mudamos para o Cooperativa.
P/1 – O que é que uma Cooperativa?
R – É um bairro que chama Cooperativa São Bernardo. Aí era uma vila bem pequena, aí meu pai comprou um terreno lá. Quando a gente chegou lá era bem pouco, assim, a comunidade era bem pouquinha. Hoje são 50, 60 moradores, mas nada, nada tinha 10, 12 famílias. Então lá meu pai começou a beber.
P/1 – E você tinha quantos anos?
R – Eu tinha 14.
P/1 – Mas assim, a sua primeira lembrança? Antes disso o que é que você lembra? Na sua outra casa, em Diadema?
R – Ah, tanta coisa boa.
P/1 – Então vamos lembrar das coisas boas primeiro? Como é que era essa casa? Explica para mim.
R – Era três cômodos, quarto e sala e cozinha, um porão no fundo, um belo de um quintal entrando e mais um espaço no fundo. Minha mãe trabalhava, meu pai trabalhava, a gente adorava ficar na calçada cantando a música da Xuxa, estudávamos.
P/1 – E quem ficava com vocês já que a sua mãe trabalhava, seu pai trabalhava? Como é?
R – A minha irmã mais velha.
P/1 – Ah, a irmã mais velha de vocês cuidava de vocês? E como que era assim, você começou a ir para escola com que idade?
R – Com sete.
P/1 – E aí nessa época os seus pais já trabalhavam?
R – Já.
P/1 – Me conta como que era um pouco o seu pai e a sua mãe. Quem era mais carinhoso? Quem era mais bravo. Como é que era?
R – A minha mãe era mais carinhosa. Papai sempre foi – paraibano, sempre foi brabo.
P/1 – Ele é paraibano?
R – Era, que hoje Deus o tenha. Então ele sempre foi aquele lado machista, mais frio. A gente faltava um dia na escola ele já dava uma surra.
P/1 – Ele batia em vocês?
R – Batia.
P/1 – Em todos?
R – Não. Quem apanhava muito era eu, a minha irmã que faleceu e a neném, a menor.
P/1 – Por quê?
R – Ah, porque ele era bruto, ele achava que a gente tinha que estudar e nessa época os pais eram bem rude. Só que batia de chicote. Ele corrigia. Ou estudava ou o couro comia, entendeu?
P/1 – Você tinha muito medo dele?
R – Muito. Ele corria atrás da gente, ele catava mesmo. Minha mãe falava: “Vocês aprontam!”, falava: “Mas mãe!”. Mas não tinha como. Meu pai sempre foi... como o modo de dizer, o galo do terreno, não tem jeito. Por mais que a gente tivesse um irmão homem, ele mandava até no meu irmão.
P/1 – Seu irmão tinha quantos anos mais velho que você?
R – Meu irmão, se hoje ele estivesse conosco, que também mais uma perca, ele estaria com acho que 45 anos, quase 50.
P/1 – Ele era mais velho que você então?
R – É, o mais velho.
P/1 – Era o mais velho?
R – É.
P/1 – E era vocês duas que apanhavam mais?
R – É.
P/1 – Mas porque vocês aprontavam ou porque ele cismou com vocês?
R – Ah, porque aquele ditado, assim, a gente nova a gente quer sair e a gente quer brincar, a gente quer ficar com a amiguinha. Então a gente saía muito, ia para casa de uma vizinha, ficava lá com as amiguinhas. Então se ele chamasse uma vez e a gente não viesse, na segunda ele já estava no portão. Aí era na época do Croc, era essa época que ele corrigia muito a gente. Aí ele já esperava com a mão para trás. Já era uma cintada, dona Karen.
P/1 – Já ganhava cintada?
R – Já, meu pai era muito bruto, muito frio.
P/1 – E ele não fazia carinho em vocês? Ele não conversava?
R – Não. Ele dizia para nós muito, que amava muito a mais velha, a L..
P/1 – Ele dizia sempre?
R – A vida inteira ele disse.
P/1 – Que gostava mais dela?
R – Foi. Eu me lembro como se fosse hoje, ele falava: “Meu xodó para mim é a L.” Eu vou querer chorar.
P/1 – Aí você ficava triste?
R – Muito. Muito porque...
P/1 – Por que é que você acha que a Luzia era o xodó dele?
R – Não sei dona Karen. Eu acho que por ela ser a mais velha.
P/1 – E a sua mãe, em contrapartida, qual que é a diferença?
R – Ah, minha mãe brigava com ele porque ele não tinha que viver batendo na gente.
P/1 – Ela era mais carinhosa com vocês?
R – Mais. Ela chegava e sentava com a gente. Ela conversava: “Porque não é assim, é assado”. Minha velha foi uma guerreira.
P/1 – E ela era daonde? Ela nasceu em São Paulo?
R – Do Rio.
P/1 – Ah, era do Rio.
R – Carioca.
P/1 – Você sabe como foi que eles se conheceram?
R – Eu lembro que uma vez a gente estava conversando, eu falei: “Mãe, onde a senhora conheceu o pai?, ela falou: “Lá no Rio de Janeiro”. Parece que ele foi passear. Mais ou menos assim. Aí os dois se conheceram, começaram a se gostar, aí ele trouxe minha mãe para São Paulo. Aí ela virou e falou assim: “Mas foi o meu fim, a partir do momento que seu pai me trouxe para São Paulo.”
P/1 – Ah, ela não era feliz?
R – Não. Não porque meu pai era aqueles homem da época da caverna, porque minha mãe ia trabalhar ele dizia que ela tinha outro e batia nela.
P/1 – Ele era muito ciumento?
R – Muito.
P/1 – Ele batia nela?
R – Batia na minha mãe.
P/1 – Batia na frente de vocês?
R – Batia.
P/1 – Me conta uma situação dessas que você lembra, de você pequena.
R – Com oito, nove anos, eu tinha. O meu pai chegou em casa com a cara cheia.
P/1 – Ele já bebia?
R – Já. Aí começou a xingar ela de nomes, falando que ela estava traindo ele e tudo o mais. Minha mãe: “Você está louco, não sei o que”. Aí eu me lembro, não esqueço nunca mais, que ele pegou um espeto de carne. Aí ele foi para furar minha mãe, aí ela pôs a mão, aí furou a mão dela. Aí correu, ela enrolou um pano, aí eu comecei a chorar muito, ela passou a mão em mim e na outra e fomos dormir no quintal da vizinha, debaixo do tanque a minha mãe ficou. Muito, nunca mais esqueci.
P/1 – Mas vocês dormiram debaixo do tanque?
R – Ficamos lá até de manhã. Até ele acalmar.
P/1 – E ela nunca ninguém de vocês ou das vizinhas falavam: “Vamos falar com alguém”, ou separar?
R – A minha mãe não sei, acho que era porque ela tinha muito filho. Minha mãe era aquela mulher assim, tipo assim, apanha, mas está ali, sabe? Ela não deixava falta nada para nós.
P/1 – Então como era essa parte concreta da vida? Quem trazia comida? O que é que vocês comiam? Conta para mim.
R – Meu pai, metade do dinheiro dele ficava na rua, de verdade.
P/1 – Por quê? O que que ele fazia na rua?
R – Gostava muito de arrumar mulher. Ele já chegou a tirar roupa da minha mãe, do varal, para levar para mulher. Ele tirava comida de casa para dar para as outras mulheres.
P/1 – Mas ele tinha uma ou várias?
R – Ai, dona Karen, eu acredito que uma, duas. Olha, baseando hoje em dia, eu acho que ele tem uma filha da minha idade quase.
P/1 – Com outra mulher?
R – Com outra mulher.
P/1 – Que era do bairro de vocês.
R – Era do bairro. A gente morava na rua de cima. Ela morava na rua de baixo. Aí meu pai tinha um barzinho. Nesse bar ele aprontava. Minha mãe não vivia lá no bar, ela sempre foi de casa. Era do trampo para casa. A gente que ia lá e falava: “Pai, a mãe quer isso, aquilo outro”, e era coisa mais rara.
P/1 – Então ele vivia no bar?
R – Vivia no bar.
P/1 – Ele ia trabalhar, voltava. Me conta esse cotidiano.
R – Então, ele vinha para casa, tirava a roupa do serviço que era calça social, a camiseta social, colocava uma bermuda. Aí ele sempre gostou de ter uma Variante ou uma Brasília, então ele descia. Sempre gostou de ter um comércio, um barzinho. Então dali começa a vender daqui a pouco já está...
P/1 – Ah, ele era o dono do barzinho?
R – Ele era o dono. Aí daqui a pouco já estava bebendo. Então desse bebedeiro ele já fechava o bar e já sumia.
P/1 – Subia ou sumia?
R – Sumia.
P/1 – Ah, sumia.
R – Sumia. Mas era difícil meu pai dormir cedo. Era difícil. Teve um dia, de tanto que ele bateu na minha mãe, chegou um dia que a minha mãe teve que reagir.
P/1 – E aí?
R – A gente crescendo, mocinha: “Mãe, o pai vai viver batendo na senhora?”, ela teve que revidar, dona Karen. Lá deu uma surra no meu pai nesse dia. A gente parou assim, ela: “Não se assusta não, meninas”. Mas foi uma surra. Só assim para ele parar.
P/1 – E como foi a surra?
R – Ah, ela bateu nele de mão, de panela.
P/1 – E ele?
R – Ah, ele não podia reagir, que nós já estava moça já. Então ele estava bêbado. “Está doido, Maria?”, eu lembro que ele gritava assim: “Eu sou seu afã, sou seu afã.”
P/1 – O que é que é “seu afã”?
R – Fã. É que estava bêbado, não saiu direito a palavra.
P/1 – E ela encheu ele de...
R – Encheu ele de tapa. Aí a dentadura dele caiu debaixo da cama e ela foi batendo. Aí ele sossegou. Aí ele ficou uns dia comportado. Com o passar do tempo, toda essa paz assim que a gente estava, nossa família reunida, foi acabando porque ele comprou o terreno – nós morava de aluguel.
P/1 – Nessa primeira casa era um aluguel?
R – Nessa primeira casa. Aí ele comprou um terreno. E nesse meio de terreno, a gente foi para esse lugar que lá a família foi acabando.
P/1 – O que é que aconteceu de diferente nesse lugar?
R – Muitas perca.
P/1 – É? Me conta um pouco dessas...
R – A gente mudou para lá, a minha irmã adoeceu.
P/1 – A sua irmã mais próxima?
R – Isso.
P/1 – O que é que houve com ela?
R – Ela deu problema de rins.
P/1 – Que tipo? Me explica o que que aconteceu em seguida?
R – Ela deu uma infecção no rim, só que quando o médico foi descobrir, já estava passando para o outro, e a gente tinha que fazer um transplante. Aí eu era novinha, não podia. A minha irmã Ciara tinha o mesmo sangue que o dela, mas assim, na dela assim, ela fala assim que não fez porque não podia, que já estava grávida. Mas eu acho que no modo de pensar da minha mãe, da minha irmã que se faleceu, eu acho que ela não quis.
P/1 – Ela estava com quantos anos?
R – Ela tinha 17 anos. Eu tinha 16.
P/1 – E ela ficou no hospital esperando esse rim?
R – Não, ela ia, fazia hemodiálise e voltava para casa duas vezes por semana. Três vezes, segunda, quarta e sexta. Eu ia com ela. Ela chegou a pesar 30 quilos. Aí o médico falou que ela tinha que fazer um transplante urgente. Aí eu, doente por ela, aquela irmã lado a lado, eu pedi para ele. Aí ele falou que não podia correr o risco de uma das duas ficar na mesa. Tinha que ser a mais velha. Aí a minha irmã Ciara estava grávida. Aí não deu tempo. De um lado ela passou. Aí ela fez hemodiálise se eu não me engano, um ano. Um ano e mais um pouquinho e aí ela veio a falecer. Passou mal, o vizinho tentou socorrer, mas ela faleceu. Aí de lá para cá foi guerra. Aí minha mãe nunca mais esqueceu a perca da filha.
P/1 – Ficou muito abalada?
R – Ficou muito abalada. Eu nunca mais fui a mesma.
P/1 – E seu pai?
R – Meu pai ficou aquele assim no ar. Ele bebia, mas não demonstrava, sabe? Guardava para ele. Se ele sentia falta dela, ele guardava para ele. Assim, mas a minha mãe sofreu muito. Aí não demorou muito, com a minha irmã falecendo, a C., que ia doar o rim, a barriga cresceu, ela teve um menino. Aí o menino, com sete anos, foi atropelado.
P/1 – Lá?
R – É, lá. Tudo isso. Aí ele foi correr atrás de uma pipa, aqueles carro Besta, pequeninho. A van pequena. Veio, bateu, quebrou o pescoço. Aí ela perdeu esse menino. Aí minha mãe foi aturando tudo isso. Era o neto dela, primeiro neto homem. Aí minha mãe foi aturando. Aí com o tempo minha mãe adoeceu. Ela criou um tumor no útero, depois de dez anos.
P/1 – Dez anos ela criou o tumor? Ficou dez anos com o tumor?
R – Não, dez anos estava ali, ninguém sabia. Aí ela foi num ginecologista porque toda vez que ela ficava naqueles dias vinha muito. Então o ginecologista descobriu. Mas ela sempre, todo mês ela estava no GO, sabe? Sempre se cuidando. Acho que ele estava ali quietinho, nunca ia se revelar. Aí descobriu. Depois que descobriu, minha mãe foi entrando em depressão, foi ficando de cama. Ela caiu e quebrou a bacia, aí já foi mais um problema. Aí a gente cuidava dela. Aí meu pai fazia muita raiva. Meu pai criou um caso com a...
P/1 – Com quem?
R – Com uma mulher que minha mãe levou para casa, para cuidar dela e dos filhos. Aí...
P/1 – E o seu pai não gostou disso?
R – Não, meu pai no começo achou ruim, mas ele se envolveu com ela.
P/1 – Ah, ele teve um caso com essa mulher?
R – É, meu pai saía. Preferia sair com ela do que pegar um carro e levar minha mãe num posto de saúde para tomar uma injeção.
P/1 – Então eu não entendi. Sua mãe levou a mulher para cuidar dela...
R – E dos filhos.
P/1 – E seu pai teve um caso com essa mesma mulher?
R – Isso.
P/1 – E vocês sabiam disso?
R – Não, a gente foi descobrir no dia que ele sumiu e a mulher também. Aí minha mãe falou: “Cadê seu pai?”, falei: “Eu não sei”, ela: “Vai ver se ele está no bar”, falei: “Não está”. Aí ela falou: “Vou esperar”, aí chegou a T. primeiro.
P/1 – A T. é a mulher?
R – É.
P/1 – E aí?
R – Depois chegou o meu pai. Aí ela montou o quebra cabeça. Estavam os dois juntos.
P/1 – E aí, o que aconteceu?
R – Aí minha mãe desceu, deu uma surra nela.
P/1 – Ela era brava sua mãe também!
R – Muito, muito. Era mulher até o último. Ela era uma ótima mulher, uma guerreira de verdade. Só que acho que o que dava força a ela era nós, os filhos. Porque senão ela já tinha feito bagaceira com o meu pai já. Aí deu uma surra na mulher, subiu para casa, deu uma surra no meu pai. Aí minha mãe não quis mais nada com meu pai, nunca mais.
P/1 – Mas botou ele para fora de casa?
R – Ah, botou várias vezes, mas meu pai não saía. O bicho era sem vergonha. Ela dormia numa cama, ele na outra. E foi isso que ela... Ela foi passando essa raiva, foi ficando doente, aí ficou de cama, foi piorando, aí a gente levava ela nas Clínicas fazer tratamento. Aí tinha que operar, não deu para operar porque já estava avançado. Cuidamos dela o que pôde. Aí até que chegou o dia que é mais temido. Perdemos ela. Eu me lembro que eu levei ela para o hospital, ela falou: “Fia, a sua mãe vai embora”, eu falava: “Não mãe, não me deixa não”. Ela falou: “Vai para casa, toma um banho, que a mãe vai ficar bem.”. Mas ela disse para mim: “Se cuida, que se depender das suas irmãs e da sua família, ninguém vai cuidar”. Aí fui para casa tomar um banho, acordei, acordei braba, falei: “Pai, dá dinheiro para mim ir no hospital ver a mãe”, ele: “Que dinheiro?”. Não me deu. Aí eu fui de carona. Cheguei lá minha mãe já tinha acabado de falecer. Aí o médico falou: “A sua mãe está lá na UTI”, mas eu cheguei lá ela não estava mais viva. Aí daí para lá, tudo mudou.
P/1 – Aí você tinha quantos anos nessa época?
R – Vinte e dois. Aí é aquela coisa, é um passo diferente que a gente tem que dar. Sem mãe já não é mais a mesma coisa. Luta pelo respeito, porque senão… sempre alguém querendo atropelar ou bater ou judiar. Aí logo na sequência meu pai ficou doente, de cama. Aí faleceu também.
P/1 – Ele faleceu de quê?
R – Também de câncer. Deu no estômago.
P/1 – E ele mudou depois que ficou doente?
R – Ah, ele ficou mais calmo. Estava doente, não podia fazer mais nada. Dependia da gente. Aí ele foi morar com essa mulher.
P/1 – Quando ficou doente?
R – Mas ela não ligava para ele. Ela dava comida ali, um café, porque tinha que fazer o papel. Ia para o bar, bebia, largava ele lá. E assim ela foi vivendo.
P/1 – E o dinheiro? Nessa época vinha da onde?
R – Ah, meu pai tinha muitos porcos. Ele tinha muitos leitões, porco, ele criava muito. Então ele negociava, vendia. Ele trabalhou muitos anos de pedreiro.
P/1 – Ele já tinha saído da Ford?
R – Já.
P/1 – E por que é que ele saiu da Ford? Você sabe?
R – Acho que foi muita bebida. Foi a bebida.
P/1 – E aí ele saiu da Ford e ficou trabalhando com esses porcos, de pedreiro.
R –É, foi fazendo biquinho aqui, outro aqui, outro acolá.
P/1 – Você lembra de falta, a questão do dinheiro, se você, se faltava coisa em casa? Se vocês precisavam de dinheiro ou não era uma questão?
R – Não tinha como assim. Da parte dele faltou muitas vezes, mas a minha mãe, ela levantava, ela ia trabalhar, ela podia está doente. Antes dela ficar mesmo de cama, ela se esforçava por nós. Meu pai já aprontou tanto assim sabe, que ele já chegou a ficar bem dizer morto na cama, que a minha mãe dava comida para ele de canudinho e ele não reconheceu o que a minha mãe fez. Ela nunca deixou faltar roupa para nós, um sapato, uma comida. O que ela comprava para um ,ela comprava para todo mundo. Depois as maiores foi crescendo, arrumou marido. Aí ela ficou comigo, a Luciana e a Neném. Ela sempre dava igual para não ter diferença.
P/1 – E o seu irmão mais velho, qual era o papel dele?
R – O meu irmão mais velho, ele casou, ele trabalhava na Secretaria do Governo Estadual, de montar móveis, marceneiro. Aí lá onde ele trabalhava era no Jabaquara. Aí lá ele conheceu uma mulher. Lá ele ficou morando com esta mulher. Aí ficou uns seis meses, um ano, minha mãe sem ver ele um bom tempo. Aí a minha mãe foi atrás. Descobriu o endereço e foi atrás. Quando chegou lá o meu irmão estava só o fio da rabiola. Estava morando com a mulher e com a mulher vivia bebendo.
P/1 – Ele? Ou a mulher?
R – Com a mulher. Aí tinha uma criança, tinha minha sobrinha, a T. Aí ela estava cheia de piolho, Aí minha mãe falou: “Vou levar minha neta embora”. Levou embora e eles depois foram atrás. Aí ela terminou de criar a T. T. já grande, a L. apareceu e falou: “Não, a minha filha vai ficar embaixo da minha asa”. Aí ficou morando lá. Só que ao passar de um tempo, aí construiu um barraquinho para ele, para a mulher. Com o passar do tempo ele atingiu uma doença nele, no pulmão.
P/1 – E ele não trabalhava nem nada?
R – Não. Aí ele começou a trabalhar na firma do lado, na Itamarati, mas sempre bebendo, sempre bebendo. Trabalhando e sempre bebendo. Aí até que adoeceu mesmo. Largou o trampo de vez. Aí foi sumindo, sumindo, com o passar do tempo caiu, quebrou uma espinha, aí levei ele para o hospital, descobriu que ele estava com tuberculose, no pulmão. Levei ele num dia, no outro ele faleceu. Foi aí o último dia que eu estive com ele, no hospital. Aí a gente riu, ele até pediu uma pinga, que sabia que ia morrer. Falei: “Então nós vai tomar junto”. Eu falei: “Mas você não vai morrer”, ele falou: ”Vou, vou morrer em casa”, e faleceu mesmo, no outro dia.
P/1 – E aí a sua mãe ficou abalada também com isso?
R – A minha mãe já tinha morrido.
P/1 – Ah, ela já tinha morrido?
R – Depois que a gente mudou para lá eu perdi a Luciana, meu sobrinho, minha mãe, meu pai e meu irmão.
P/1 – Foi onde...
R – Foi, foi um baque em cima do outro.
P/1 – E você, então vamos voltar agora para você. Então essa sua vida. Você está me contando a sua vida mais ou menos você chegou lá com 14, começou a acontecer tudo isso, e aí você estava lá. Fora essa situação na casa, que outras coisas você fazia? Você ia para escola? Isto te interessava? Como que era sua vida?
R – Ah, eu ia para escola. Com 17 anos eu arrumei meu primeiro serviço.
P/1 – Você foi fazer o que?
R – Eu fui trabalhar de faxineira numa firma.
P/1 – E estudar também ou não?
R – Estudava à noite. Acho que foi aprendendo a juventude. Aí arrumei um namorado, aí fui morar com ele. Aí minha mãe falou: “Cuida bem”, nessa fase assim, minha mãe falou: “Se cuida, se não der certo vem embora, não deixa homem te judiar”, falei: “Está bom”. Foi o que aconteceu. Primeiro berro que ele deu a gente separou e ele foi para o Norte e eu voltei para minha mãe. Aí ela falou: “Minha filha, o que você vai fazer agora da vida?”, falei: “Ah mãe, vou ter que me virar. Eu sou uma mulher”. Aí construí o primeiro barraco.
P/1 – Você?
R – É.
P/1 – Como que foi isso? Para você sem namorado nem nada?
R – É, foi sozinha.
P/1 – Quanto anos?
R – Dezessete, dezoito anos eu tinha. Aí eu mesma arrumei umas madeirite. Fui no tal do bota fora. Sempre tem alguém que ajuda numa madeira, num sarrafo. E fui trazendo aos pouco, de carrinho e levantei um barraco para mim. Aí construí, coloquei os sarrafos de pé, tudo direitinho, o telhado. Aí eu trabalhava de manhã e estudava a noite.
P/1 – Você que fazia? Com a mão?
R – É, eu. Aí minha mãe dizia: “Nossa, mas você vai morar sozinha?”, falei: “Vou, ué. Não tem marido, não tem namorado, vou ter que me virar”. Aí eu chegava do serviço com 30 reais nessa época, foi em 2008. É, 2007 para 2008, aí 30 reais ali dava para gente comprar bastante coisa. Aí eu comprei um bujão, meu fogão, uma cama.
P/1 – Cada vez que você ia no serviço você ganhava 30 reais?
R – É.
P/1 – Aí você ia comprando essas coisas?
R – É, eu ia comprando. Aí fui comprando as minhas coisinhas. Aí montei bonitinho. Aí chegou uma hora, aí eu peguei o serviço, aí de noite ia para escola, final de semana eu ia para um baile, mas sempre ali, sempre na tranquilidade. Fazendo uma amizade, sempre, sabe? Uma distração. Aí depois que minha mãe faleceu, aí já mudou. Aí eu já arrumei um namorado, já virou de novo a vida.
P/1 – Como é que foi? Me explica melhor. Eu só estou com uma dúvida antes de você me explicar isso. Você falou que estudou até a quarta série.
R – Isso.
P/1 – Então você está me contando você está mais ou menos com 18 anos, 19.
R – Eu tenho 34.
P/1 – Não, mas lá, nessa época, 18 anos?
R – É, 18 anos.
P/1 – Mas por que é que você só estava na quarta série com 18 anos?
R – Porque a gente mudou para lá, para Cooperativa. Aí lá em São Bernardo, eu fiquei fazendo supletivo até que vinha o certificado da outra escola, mas até hoje que nunca chegou, para onde a gente mudou. E quem andava muito lá no Nações era o meu pai, mas o meu pai ia para lá para beber e vim embora. Então ficou assim, aí lá aonde a gente, onde eu morava, a gente ficou estudando supletivo.
P/1 – Que é a quarta série.
R – É.
P/1 – Entendi.
R – Mas aí nem terminei porque a vida nos traz tanta coisa, sei lá. Aí arrumei um namorado.
P/1 – Então me conta a história desse namorado.
R – Então, aí eu arrumei um namorado. Eu gostava muito dele. Só que ele virou uma obsessão.
P/1 – Para você?
R – É, ele virou uma obsessão, assim dele, eu virei uma obsessão dele. Aí chegava um amigo, uma amiga, ele achava que eu não tinha que conversar. Aí ele me tacou uma vez um Dreher, bebida Dreher, com o copo na cara.
P/1 – De ciúmes?
R – É. Falei: “Isso não vai ficar assim. Nós não vai ficar mais junto”. Aí ali eu já não tinha mais ninguém. Eu tinha que me defender. Aí ele, belo de um dia chegou lá na porta do barraco, falou para minha cunhada: “A Nena está aí?”, aí ela falou assim: “Não”, ele falou: “Está sim”. Aí eu estava de pé no sofá me arrumando. Aí ele me deu, pegou um revólver e me deu uma coronhada. Aí quando ele me deu aquela coronhada fiquei cega. Sentei de volta no sofá, fiquei tonta, aí tinha uma concha quadrada de ferro, mas bem antiga, mas que é boa, em inox. Aí devolvi também. Aí eu devolvi, ele saiu correndo, aí fui para o hospital, levei uns pontinhos, voltei, aí eu não queria mais ver ele e ele continuava a insistir. Falei: “Bom, aí a vida já está começando a me abrir o olho. Se ele quiser me matar já tenho que ficar diferente.” Aí dei queixa dele nessa época, mas aí não deu nada. Aí ele sumiu, com o tempo ele voltou, aí a gente, no meio dessa briga, ele me deu uma mordida na bochecha, ficou alta.
P/1 – Nessa briga?
R – Nessa briga.
P/1 – Nessa mesma briga da coronhada?
R – É.
P/1 – E aí?
R – Aí fiquei com febre, de cama uma semana. Aí ele ficou comprando meus remédios, mas por mim ele não comprava. Só que minha cunhada dava minhas receitas escondidas para ele. Mas mesmo assim eu não consegui mais voltar para ele. Aí nós se separou de vez mesmo. Aí eu fui embora de lá, da favela. Eu fui para Diadema, fiquei morando com uma amiga, aí ela casou.
P/1 – E você fazendo o quê?
R – Ah, sempre gostei de fazer assim uma faxina numa firma, cuidar de uma criança, ser uma diarista, sempre. Nada de roubar aqui, roubar ali, sabe? Aí a vida nos oferece tantas coisas boas. Às vezes no meio de ruins, vem umas boas. E no meio de tudo isso, de um lado assim, no meio de toda essa vida bagunçada, eu parei numa boate e lá eu conheci uma mulher muito boa. Ela falava: “L., aqui você não faz nada que você não quiser”. Eu chorava muito, assustada. Ela: “Não, aqui você não precisa fazer nada que você não quiser. Se você quiser ficar sentada aí, bebendo, o rapaz te bancando, beleza”. Foram meus primeiros passos de vida. Aí lá fiquei o quê? Três meses.
P/1 – Trabalhando nessa boate?
R – É.
P/1 – E seu trabalho era...
R – Ou eu ficava ali no balcão ou, de verdade, eu fazia programa.
P/1 – Você fazia programa?
R – Fazia. Fiz muitas vezes.
P/1 – Aí você tinha que pagar à boate uma...?
R – Não. Aí o rapaz pagava lá no caixa primeiro e ele já tirava a porcentagem dele. Nessa época era 50 reais. Vinte da casa e 30 meu.
P/1 – Então o programa custava 50 reais, e aí sobrava para você 30 reais?
R – É. Aí eu fiquei lá uns três meses, aí quando eu saí já saí mais mulher, mais atenta.
P/1 – O que é que você achou dessa época, desses três meses de programa? Era bom ou era ruim?
R – De verdade Karen? É uma experiência que, vamos dizer assim para você, uma experiência que você se descobre o que realmente você quer para você. Se você quer ser uma vida inteira uma mulher de programa, ou se você quer para você um casamento para o resto da vida. Porque ali é um lugar que é assim, para você que não quer amar, para você que não ama, para você que só quer se sentir, você sente usada. É aquele momento e acabou. Não tem beijo na boca, nada disso. Então é mais para quem gosta de dinheiro, só quer saber do dinheiro, não se dá valor. Aí saí de lá e vi que não era para mim.
P/1 – Você estava ficando triste?
R – Estava porque você tinha o dinheiro, mas não tinha felicidade. É uma parte que é muito ruim.
P/1 – Você se sentia mal com o programa, assim?
R – É, porque tem umas pessoas que você ainda encontra bem, ela fala: “Não, tudo bem. Você não quer, nós não vai fazer”, senta, conversa. Mas tem outras que por ela pagar ela se sente na obrigação. É onde acontece tudo isso que está acontecendo hoje em dia no mundo. Leva a mulher ali porque conheceu, mata, estrupa, faz o que quer. Vamos dizer que é quase isso aí. Tem caras que maltrata a gente, muito.
P/1 – O cara se sente dono de você? É isso?
R – Eles te dominam: “Eu paguei, você vai fazer”. É uma parte muito ruim. Eu não gosto.
P/1 – Em nenhum momento aquilo te deu prazer? Esse tipo de relação, esse tipo de...
R – Não, não dá prazer Karen, porque você está ali tipo um trabalho, está recebendo para aquilo. Então não dá prazer. Mas numa parte eu levei ele como uma aprendizagem da vida. Hoje em dia eu ando para tudo quanto é lugar. Se eu vejo que está muito aquele cara sinistro eu já saio fora. Procuro fazer uma amizade mais tranquila, não gosto de inimizade, entende? Mas cada dia que passa é uma lição que a gente vai, aprendendo a si dar com ela. Não esquecemos o passado, mas também procuramos não esquecer dele porque ele vai servir mais tarde. E a vida passou e fiquei sozinha. Voltei para favela. Aí eu brigava muito com as minhas irmãs, porque elas todas era casadas e eu sempre fui solteira. Aí arrumei um rapaz aí. Aí gostei muito dele, de verdade. Eu aprendi a usar o crack.
P/1 – Com ele.
R – Não, uns dias antes de eu conhecer ele.
P/1 – Aonde você aprendeu a usar o crack?
R – Numa quadra.
P/1 – Perto da sua casa?
R – É.
P/1 – E como é que foi? Você lembra dessa primeira vez?
R – Lembro.
P/1 – Me conta como que foi.
R – Lembro. Uma menina estava fumando.
P/1 – Você estava andando por ali, a menina...
R – É eu estava andando. Então a gente andando para lá e para cá, termina se aproximando, sem querer: “Oi, e aí? Eu te vejo sempre”, eu digo nada. Aí ela foi, colocou aquela pedra no cachimbo e acendeu. E eu estava meio desgovernada do mundo. Falei: “Ah, deixa eu dar um trago”. Ela falou: “Não, jamais eu vou te dar isso”, falei: “Eu quero um trago disso”, aí ela falou: “Não, você nunca vai experimentar isso, pelo amor de Deus”, falei: “Ah, eu quero”. Fiquei ali. Ela falou: “Não quero nem ver, heim”, aí eu dei um trago. Achei que era que nem cigarro. Achei gostoso.
P/1 – Você gostou?
R – Naquela hora eu gostei. Eu achei uma sensação que nem o cigarro, você acende e solta uma fumaça. Não via diferença. Porque ela é assim, ela distrai a gente, quando a fumaça já está aprofundada. Daqui a pouco, de um nada, depois de umas, duas horas, estava no chão catando não sei o quê.
P/1 – Catando o quê?
R – Era a nóia do crack. Achava que tinha caído no chão. É o efeito que ela dá. Aí conheci aquilo, saí pelo meio do mundo, falei: “Nossa, nunca mais.” Essa daí eu e afastei dela. Mas assim, com o passar do tempo, eu trombava outras meninas usando, mas assim, não de eu ficar usando na rua, suja, largada, não. Eu gostava de ir num motel, tomar um banho. Sempre na cautela. Tipo um “esportição”. Aí fui para favela de volta. Aí minha irmã vivia me xingando, me esculachando. Aí aprendi a fumar o mela.
P/1 – O que é que é o mela?
R – Mela é o tal da maconha com crack. Aí acho que aquilo sei lá, acho que a mente da gente amadurece. Tem umas partes que você é obrigado passar por aquela para você saber qual o resultado. Meu resultado foi: fiquei sozinha. Aí esse namorado que eu arrumei ele me deu um beijo, falou: “Vou ali, já volto”, nunca mais voltou, morreu.
P/1 – Morreu?
R – Morreu.
P/1 – De...
R – Tiro. Ele saiu com um rapaz, o cara matou ele na trairagem, com um tiro na nuca.
P/1 – Mas ele era do tráfico?
R – Não. Ele era um Zé povinho que não sabia nem aonde ele estava andando, pela redondeza. Aí mataram. Aí chapei mais um pouco, me afastei de todo mundo. Aí caí para o mundo. Eu fui morar com uma amiga lá no Eldorado. Aí ela casou, falei: “Mais uma vez eu vou voltar”. Aí apareceu o Careca, um rapaz que ia lá, que arrumava carro pelas pistas. Aí ele falou: “Legal, vamos cuidar das minhas crianças lá em casa. Eu trabalho, de tarde eu chego, você vem embora, pá”. Falei: “Está bom”. Ele tinha separado da mulher, aí eu virei a babá dele. Aí lá eu dormia, final de semana eu ia para casa. Aí ele chegou um dia que ele mudou, ele falou: “Ó, vou mudar, aqui é de aluguel. Por que você não fica? Pá.., falei: “É mesmo, verdade”. Aí ele: “Tem dois meses pago”, aí eu fiquei. Aí ele me deixou uma geladeira, um fogão e uma cama. Só que ele tinha que levar o colchão. Falei: “Beleza” Nesse dia eu sentei, olhei para um lado e para o outro, falei: “Ah, vou me virar”. Aí fui para um salão em São Bernardo, conheci um rapaz. Aí o rapaz , bebendo, conversa vai, conversa vem, ele: “Ah, eu gostei de você, vou te ajudar”. Aí no outro sábado ele já me deu cem real.
P/1 – Aí você começou a fazer programa com ele?
R – Isso. Aí já arrumei o cem real. Aí fui para casa, comprei um bujão. Fui no mercado, comprei uma cestinha básica. Já foi meu bom começo. Aí quando foi no outro sábado, ele já apareceu lá. Dei o endereço, ele foi lá. Chegou lá, comprou um monte de carne, fomos no mercado, fizemos uma compra. Aí ele virou aquele meu namoradinho assim, que a gente trombava. Ele não precisava ir em casa, eu ia no salão, trombava ele. E dia de domingo às vezes ele ia para lá, nós fazia um almoço. Aí com o passar do tempo, acho que tudo enjoa, Karen.
P/1 – Me conta melhor essa parte. O dinheiro que você tinha para viver vinha dele?
R – Vinha dele.
P/1 – Você não estava nem trabalhando, nada?
R – Não, no momento não estava.
P/1 – Aí ele que te dava dinheiro para comer?
R – É, ele que me ajudava. Aí com o passar do tempo eu vi que não era aquilo. Por quê? Porque o negócio dele era o salão. Beber e salão, beber e salão.
P/1 – Salão é salão de dança?
R – É, salão de dança. Falei: “Bom acho que aí já não é meu rumo.” Aí separei dele. Aí fiquei nessa casa. O que aconteceu nessa época? É, foi aonde eu conheci a reciclagem. A firma do Evandro. Aí comecei a trabalhar na firma do Evandro. Aí lá a gente separa muitas peças de plástico. Uma pet, peças de tanquinho, televisão, tudo isso assim, PVC PP. Aí fiquei lá, fiquei trabalhando um ano e pouco.
P/1 – Separando reciclagem?
R – Separando. Aí fui me mantendo, tive que... Aí fui para favela. No dia que eu voltei lá não tinha mais nada. Roubaram tudo. Aí falei: “Não dá para confiar nos próprios vizinhos”. Não voltei mais para lá. Aí fiquei lá mesmo na favela. Ali eu trabalhava, ali eu ia para casa.
P/1 – Isso aonde? Em Diadema?
R – É, São Bernardo. Aí ali eu fiquei. Aí fui para um baile num lugar chamado Serraria. Aí conheci uma menina lá que usava muito crack. Aí ela ficou grávida. Aí ela engravidou e ela não tinha como manter essa menina. O que aconteceu? Ela foi para favela, ganhou a neném lá. Com um mês ela saiu, foi pedir cinco real para menina do bar, saiu e largou a menina lá, bebê. E eu conheci um coroa. Depois assim, que você ler toda essa reportagem, essa parte eu preferia que você depois isolasse. Aí eu conheci um rapaz.
P/1 – O rapaz, o coroa?
R – O coroa.
P/1 – O cara mais velho.
R – Aí fui morar com ele. Aí morando com ele eu fui lá na vila ver as minhas irmãs.
P/1 – E a menina?
R – Estava lá a bebê.
P/1 – Com as suas irmãs?
R – Não, estava com a C., do bar. Então ninguém queria, porque todo mundo tinha filhos. Então ali eu já estava mais madura, já não era mais aquela vida. Aí chega lá numa sexta feira 13. Aí a C. falou: “Você viu?”, falei: “Cadê a neném da P.?”, ela falou: “Está lá embaixo com a C.. Está com três dias que essa foi comprar uma pedra e nunca mais voltou”. Falei: “Cadê ela?”, ela falou: ”Está lá”. Falei: “Vou lá agora”. Cheguei e falei: “E aí C.?”, ela falou: “Aí o que a P. deixou aí”. Aí ela tem os cílios bem loirinho. Isso aqui dela estava cortado, sangrando, que ela usou muito crack. Então conforme a neném crescendo, aquela droga ia saindo para fora, rejeitando. A orelha daquele jeito, cortada, parecia que ia cair.
P/1 – Da neném, você esta falando?
R – Da neném. O bumbum em carne viva.
P/1 – O que em carne viva?
R – O bumbum da neném. Falei: “Vou levar ela para mim agora”. A minha irmã falou: “Você vai levar?”, eu falei: “Eu vou. Eu vou cuidar dela.” Ela: “Mas e a P.?”, falei: “Quando ela aparecer é nóis”. Aí levei ela. Levei ela, passei a mão num saco de roupa desse tamanho, mofada, podre, levei para casa. Aí tirei as que davam para aproveitar, lavei bonitinho, passei e as que não estava joguei metade fora, para mais da metade. No outro dia já fui numa lojinha, já comprei mamadeira, comprei leite, fralda. Ah, fui estocando ela. Ao passar um ano – não, ao passar dois meses ela apareceu. Aí a neném já estava quatro meses. Aí ela apareceu, falou que ia morar com um rapaz, que o rapaz ia ajudar ela, ia cuidar da menina, não sei o que. Foi embora.
P/1 – Levou a menina?
R – Levou a menina. Não deu um mês ela voltou. No passar de um mês ela voltou. Aí a bebê estava só assim, não tinha roupa, ela não tinha onde morar. Falei: “Vou cuidar dessa menina”, levei de novo. Aí a K. deu um ano e dois meses. Ficou aquela coisa mais linda, aquela boneca. E eu trabalhando, viu Karen?
P/1 – Trabalhava com quê?
R – Na reciclagem. Eu trabalhava, a menina do mesmo quintal e deixava ela com a vizinha e ia para o serviço, ou então descia com ela para favela, deixava com a L.. A L. é a vida dela, viu? Não é à toa que está lá até hoje. E deixava com ela e ia para firma. Meio dia dava um beijinho nela e voltava, que era bem pertinho. Dava só a volta assim na rua. Aí ficamos nessa. Quando um ano e dois meses a P. apareceu, a mãe da menina: “Deixa eu ver a bebê?”, falei: “Não. Você tem que ver se ela quer te ver”. Aí ela foi em casa, chorou, chorou. Quando a bebê viu ela, sabe o que ela fez? , ela: “Ô mãe, ô mãe ói o bicho”. Parece que não sei, sabe? Agarrou nas minha coxas, aí eu chorei junto com ela, porque a lágrima dela caiu. Ela: “Nossa, minha filha nem me conhece”, falei: “O que você escolheu para você, Paulinha”. Aí fiquei com essa bebê. Aí ela nunca mais apareceu. Aí ela: “Deixa eu levar para o japonês?”, falei: “Não, eu vou junto”, ela: “Não, só a bebê”. Mentira, ela queria levar de novo minha filha embora. Aquilo ali foi o que me reviveu para vida. O que me acordou de todo aquele pesadelo. Aí eu saí fora do cachimbo, aí não quis mais me prostituir. Eu quis viver para ela. Eu não vou dizer para você assim Karen, que eu fiquei bem séria, que eu não olhava para o lado e não olhava um doido que estava pagando de madeira e tivesse o bolso cheio, que eu estou mentindo. Se o cara falasse: “Vai lá no...”, se eu encontrasse um cara que trabalhasse no Extra, ou num mercado, e falasse: “Vai lá depois, tal hora”, eu ia, com a minha filha debaixo do braço.
P/1 – Ia para...
R – Fazer compras e ó, não quero nem te enganar.
P/1 – Você ia fazer programa ou ia fumar crack?
R – Não, eu ia lá buscar o dinheiro e fazer uma compra.
P/1 – Ah, está.
R – Quando eu fosse fazer uma coisa assim diferente eu pagava para minha irmã para olhar ela. Falava: “Vou em 20 minutos e volto”.
P/1 – Mas você continuava usando o crack e fazendo programa?
R – Não, parei com os crack. Fui parando. Ela foi me renovando. Sabe, já não era aquele programa. Era aquele 171, o famoso 171. Fica só de conversa.
P/1 – Sei.
R – Aí eu fiquei assim. Aí no meio de tudo isso, desse intervalo, K. com dois anos e dez meses, ela ia completar três anos. Aí eu quis fazer um aniversário para ela. Aí eu não tive o dinheiro. Aí me apareceu uma oportunidade de eu carregar uma droga, que até hoje acho que ficou na memória, porque nunca mais eu voltei para ela. Aí fui carregar a droga e vim presa.
P/1 – Você foi carregar a droga para onde?
R – Foi Bolívia.
P/1 – Você me conta melhor? Alguém te falou que você ia arrumar uma grana? Como é que foi?
R – Ah Karen, uma parte que é tão delicada que eu nem gostaria de falar, mas eu vou falar para você. Apareceu a oportunidade de eu ganhar seiscentos reais. Seiscentos reais dava para mim comprar um bolinho, fazer uma festinha, e eu acatei. Olhei para ela e falei: “Vou dar uma festinha para minha filha” Aí peguei e fui. Só que chegar eu não cheguei, porque quando chegou na entrada de São Paulo...
P/1 – Quer dizer, você foi pegar a droga na Bolívia e você tinha que trazer de volta?
R – É.
P/1 – Você veio de ônibus? Por Corumbá? Qual é a...
R – Acho que era Corumbá. Aí quando chegou na entrada de São Paulo eu vim presa.
P/1 – Por quê? Teve revista no ônibus?
R – Teve revista. Eu acho que eles já sabiam. Aí eu fui para o DP. Aí começou as cadeias da vida.
P/1 – De lá você foi presa? O que é que te passou na cabeça?
R – Naquele momento? “Acabou tudo, perdi a única coisa que me restava, a minha filha”. Aí chorei, chorei, chorei, fiquei presa seis meses. Aí eu consegui me evadir de lá, saí. Aí não tem como, polícia nunca deixa em paz. Quando você deve não tem como.
P/1 – A polícia foi atrás de você?
R – Aí fiquei um bom, uns dois meses assim longe da K. Aí com uns três meses que eu estava na rua, aí peguei ela de volta. Cheguei perto, fiquei com ela um pouquinho. Com quatro meses eu vim presa.
P/1 – A polícia te achou? E ela ficou com quem?
R – Com a minha irmã.
P/1 – Aí você veio para cá?
R – Aí eu fui para São Bernardo, numa comarca, de lá vim para cá. E hoje aqui estou.
P/1 – E agora vamos falar dessa sua vida aqui. O que é que, como é o seu dia a dia? O que que mudou na sua vida? Como foi ser presa? Você chegou e aí, o que é que aconteceu?
R – Ah, é uma sensação assim, é uma sensação de que você vai entrar e não sabe se você vai sair. Porque quando você entra você assusta, vê pessoas diferentes. Você vê de todos os tipos de mulheres, vários crimes, sabe, vários artigos. Então você não sabe com quem você convive. É um... Como é que se diz? É um medo que não te deixa andar em paz. Você tem que dormir com um olho aberto, outro fechado. É um lugar que você não consegue pensar em mais nada a não ser se arrepender daquilo que você fez, sabe? Faz a gente refletir muito, os erros, de verdade. E o que nos dá força aqui, acho que é a esperança de você novamente sair, mas tipo assim, um pulso firme. Porque para te falar a verdade, tem dia que não dá vontade de você fazer nada.
P/1 – Mas por quê? O que é que é tão ruim no dia a dia?
R – A saudade. A saudade. Aqui dentro nós não vive, nós vegeta. Porque aqui é um lugar que você tem que isolar o mundo para viver o aqui. Você é obrigada a fazer isso porque senão você não consegue viver.
P/1 – Te dá saudade de quê?
R – Ah, me dá saudade da minha pequena, da liberdade. Lá fora você anda, você fala: “Eu vou aqui”, não precisa você ter que ter uma autorização para ir ali ou cá, ver alguém. Na prisão é diferente. É permitido a tudo. Se você vai ali, “Ah, não”, trânsito tem hora. Você... É regras, tem regras. Tem regras e o principal, disciplina. Porque cada erro nosso é uma consequência. Então você, o que a gente erra na rua, você ainda tenta consertar. Aqui se você errar aqui, um castigo, não tem outro jeito.
P/1 – E o que é que é um castigo?
R – É um quarto fechado, é uma cela.
P/1 – Aí você fica lá dependendo...?
R – De tudo.
P/1 – Isolada?
R – Você sai ali para uma saúde, se for chamada. Se não você fica ali 12 por 48. Você toma um sol um pouquinho, de uma hora, duas horas, aí você fica de dez dias a 30. Depende do erro. Então é uma coisa que a gente acata assim, aprendizado, sabe? Você não sai pior, você sai melhor. Porque cada vez que você piorar, mais piora para nós. Mais dias você vai conviver nesse lugar. Então você vê muita coisa ruim. Você vê presa agredindo presa, você vê família saindo triste, você vê mãezinhas, velhinhas, senhoras já, trazendo sacolas para filha. Você vê a filha que está presa, xingar uma mãe por ela não poder vim. Sabe, eu fico olhando assim, falo: “Não gente, não é assim”. Acho que a partir do momento que a gente errou, nós temos que pagar o nosso erro, sabe Karen? Mas assim, pulso firme. Eu não posso cobrar da minha família aquilo que eu que errei. Muitas vezes eu choro. A R., ela tem crise quando ela está nervosa. Que as presa é muito atacante, sabe? Você anda do serviço para cela, da cela para o serviço, mas tem sempre uma para falar algo de você. Então eu evito o máximo, falo: “deixa falar”, não vindo na porta, a gente não vai acatar nem levar nada. Falar todas falam. Então ela quer sair, mas é agressiva. Ela quer sair, ela quer bater, ela quer matar. Eu falo: “Não filha, não é assim. É assim, assim, assado. Aqui nós entrou por ter errado, mas certa a gente vai sair daqui, cabeça erguida, sem errar. Nós não é obrigada a errar o tempo inteiro”. Então o nosso dia a dia fez com que a gente se aproximasse, ficasse tipo unidas.
P/1 – Nesse quarto que você vive?
R – Nesse quarto que a gente convivemos. Eu, ela, a S. e a M..
P/1 – E você assumiu um papel diferente?
R – É, porque ela é agitada. A M. é meia atrapalhada. A S. é marinheira de primeira viagem. Então eu tento mostrar para elas aquilo que eu acho que eu aprendi. Sabe, Karen, que não quer dizer que a gente está presa a gente tem que ser como um bicho.Que a gente tem que se manter sempre a vida inteira que nem um leão, não. Também não vamos ser valentes, mas também não boba demais, mas usar a cautela. Uma agrediu ali, beleza. Melhor hora, vamos conversar. Não precisa toda vez agressão. Aí eu falo para elas, eu falo: “Gente, não é assim. Você vai catar dessa maldade, você vai fazer dela uma bondade”, “Ah, mas como a menina...”, “Não, você vai esperar a melhor hora. Ela vai bater aqui, ela vai precisar de alguma coisa. Você vai negar? Não”, “Ai, eu vou negar porque...”, “Não, você vai fazer diferente. Você vai pegar a dar a ela. Porque a cada consciência, o seu guia”. Então aquilo faz com que aquelas inimigas que a gente tem e tinha, porque antes tinha mais, elas vem se aproximando. No que elas se aproximam, a gente vai preparando. Na melhor hora a gente fala: ”Mas por que você tomou aquela atitude aquele dia?”, aí é onde chegamos aonde queremos. “Ah, por causa disso que eu...”, “Não, mais aí foi errado. Você não veio até nós, você pensou... Entendeu?”. E assim hoje... A senhora acha que elas estariam sentadinha ali?
P/1 – Não? Ela era da pá virada?
R – Ela é daquelas que gosta de carregar um fuzil, esse meu bebê aí. Hoje ela olha assim, eu falo para ela, falo: “Filha, o que você vai fazer quando você sair?”. Ela fala: “Sinceramente, mãe? Não sei”, eu falo: “Eu sei. Você não pode ir para sua cidade. Eu também não quero mais viver essa vida louca. Você vai dar um jeito, nós vai dar um jeito de comprar uma casa, nós vai ter nossa casinha. Quando der saudade você vai buscar sua véia. Quando me der saudade eu vou buscar minha pequena. Nós vai levar uma vida razoável”. Montar uma barraca na rua e vender umas frutas não é vergonha Karen, porque eu já fiz isso. Se eu fiz essa burrada nessa época, acho que foi por empolgação. Parece que Deus me parou na hora certa, porque se isso desse certo, eu ia continuar. Eu não teria parado. Taria mais e mais, daqui uns dias eu taria com malas carregando. Não, me fez ver o contrário. Hoje eu deito na minha cama, falo: “Puxa eu sei que eu estou num lugar que não confio em ninguém, não devo confiar, não posso”, mas eu agradeço a Deus. Eu estou viva, a minha filha está grande. Graças a Deus está lá bem. Eu conheci maldades e maldades, conheci pessoas boas também.
P/1 – Aqui?
R – É. então eu vi que o mundo não gira em volta ao nosso umbigo, mas sim que a gente gira em volta do mundo, sabe? Que as pessoas ruins, nós não precisa ser ruim com elas também, fazemos delas o contrário. Mostramos a elas o que é ser bom.
P/1 – Agora conta para mim um pouco agora da sua conexão com o mundo lá fora. Se você recebe cartas, escreve cartas, se alguém te manda alguma coisa. Como é que é a sua vida com o mundo que ficou lá fora?
R – Não, Karen, para falar para você eu não tenho conexão lá fora. A única carta que eu tenho é de uma companheira que eu conheci ela aqui, ela é minha família. Ela virou o meu tudo.
P/1 – Uma companheira, o quê? Uma namorada você diz? Você arrumou uma namorada aqui?
R – É, ela virou minha família.
P/1 – Você se apaixonou aqui por ela?
R – Verdadeiramente.
P/1 – É diferente dos namorados que você tinha antes?
R – É, completamente.
P/1 – Me conta desse amor.
R – É um amor assim... Sabe uma amiga, companheira, leal, sincera, que te dá um conselho na hora certa, sabe? Que sabe estar ali no momento exato. Que se você não tem e ela puder te dar, ela vai te dar. Ela é assim.
P/1 – E aí você conheceu ela aqui dentro?
R – É. porque eu estava acabada. Eu estava numa época assim que estava desanimando da penitenciária. Já estava fechando para mim mesmo. Aí de um nada ela começou, falou: ”Me apaixonei por você”, eu falei: “Não, por mim não”, ela falou: “Por você. Você vai ser a minha mulher”, falei: “Vixe, está louca é? Comigo não”, ela falou: “Vai sim”. Ela falando, falando, quando deu de um nada, eu já estava envolvida com ela.
P/1 – Ela foi te...
R – Foi me conquistando. Ela me conquistou de um jeito tão especial, que hoje em dia a única carta que eu tenho é dela.
P/1 – Ela te manda? As cartas são essas? Posso?
R – Pode. É que eu coloquei elas assim e vou fazer um livro quando sair delas.
P/1 – Me conta um pouco. Todas são da sua...
R – Todas.
P/1 – Que ela te escreve, todo dia? Como é que é? Ela já saiu?
R – Não, ela está em São Miguel, no semiaberto. Até o final de ano ela está na rua.
P/1 – Ah, ela está em São Miguel, no semiaberto?
R – Isto.
P/1 – Ela foi transferida?
R – Foi.
P/1 – Vocês moravam na mesma cela?
R – Mesma cela.
P/1 – E como que foi essa separação? Faz quando tempo?
R – Tem sete meses.
P/1 – Você sofreu muito?
R – Muito. Às vezes no calada da noite eu choro ainda, porque a T. cobre um pouquinho desse vazio porque eu fiquei um tempo todo debaixo do braço dela. Nós trabalhava junto, nós ia para cela junto. Quando era para lavar uma roupa ela queria me ajudar.
P/1 – Ela é mais velha que você?
R – Mais velha; Ela tem 40 anos, mas é uma morena muito simpática e o melhor, Karen, que como a gente estava falando ali de preconceito. Tem muita gente preconceituosa. Mas eu vou te falar, eu não sou preconceituosa. Sabe por quê? A minha mulher, ela é HIV soropositivo e eu não sou. E o que ela passou para mim eu dobrei para ela. Ela já tinha desanimado da vida, ela não tinha mais prazer à vida, sabe? Hoje ela fala: “Se hoje eu tenho força de vontade de acordar e levantar e trabalhar é por você”. Que ela vivia em depressão na cama. Falei: “Não, não é assim. O mundo não acabou.”
P/1 – Mas ela vivia em depressão antes de te conquistar?
R – Vivia.
P/1 – Com que força que ela te conquistou então?
R – Eu não sei, acho que o jeito dela de ter desanimado da vida me deu coragem de eu ficar a ela, eu não sei. Não sei explicar isso para você.
P/1 – Vocês se conheceram como? Ela estava na sua cela?
R – Não, ela morava no quarto e eu morava no dois.
P/1 – E aí, como é que foi?
R – Eu fui trabalhar no mesmo serviço que ela. Aí ela achava que eu era preconceituosa. Aí ela me mandava as cartas.
P/1 – Ela já te mandava as cartas nessa época?
R – Já, uma das primeiras.
P/1 – Me mostra essa primeira.
R – Uma das bem primeiras.
P/1 – Essas ela nem usava os Correios nem nada. Ela te mandava daqui.
R – Não, ela me mandava pessoalmente, quer ver? Deixa eu ver se é essas daqui. É essa daqui. Karen, das primeiras, ó. Ela ficava me mandando.
P/1 – E aí você foi lendo e aquilo foi te cativando.
R – E foi. A gente vai pegando um carinho. Vai aprendendo a conviver no dia a dia.
P/1 – E aí como é que foi? Aí ela foi deprimindo e vocês foram virando um casal?
R – É. Aí eu fui morar com ela.
P/1 – Então todas essas que estão nessa pasta aqui são as que ela te mandava ainda daqui.
R – Daqui. Ela é tudo o que eu tenho. Ele vem me visitar. A única.
P/1 – E ela saiu para o semiaberto e agora ela te manda carta assim? E chega para você? Quantas vezes por semana?
R – Duas, três vezes.
P/1 – Por semana? E você manda para ela também?
R – Mando. Não mando uma carta, mando um jornal.
P/1 – Você escreve tudo o que te acontece?
R – Tudo. O dia, o serviço como foi, o correr do tempo.
P/1 – Isso é o que te motiva a viver?
R – É, o meu, a minha continuação do dia a dia. Quando ela não escreve eu fico doida. Eu já emburro, fico atacada, trabalho com aquela cara, aquele desânimo, já fico querendo chorar. Aí quando chega uma carta parece que preencheu. É como dar vida a um jardim. Ela é para mim mais que especial. Às vezes eu fico parada aqui, eu fico pensado. Aí eu paro e olho e falo: “Ai Senhor, me dá muita vida para ela, muita saúde porque eu acho que eu não suportaria presa, separada dela e perder ela. Não, eu quero casar, está Karen?
P/1 – Então o seu plano para sair daqui é casar com ela?
R – Casar, vou virar uma dona de casa.
P/1 – Ah, e ela que vai te sustentar?
R – É.
P/1 – Por quê? Ela tem uma profissão?
R – É, porque que nem agora, ela está fazendo um curso de cabeleireira. Tem cursos de crochê. Ela assim, ela tem bastante inteligência de abrir uma loja. Ela teve estudo. Então esse é o nosso objetivo. Sair daqui e abrir um negocinho. Não é nada de errado, mas...
P/1 – E a sua filha?
R – Trazer para nós.
P/1 – Ela vem te visitar, sua filha?
R – Não, não vem.
P/1 – Mas ela sabe que você está aqui?
R – Não.
P/1 – Ah, ela não sabe que você está aqui?
R – Não. Para ela eu estou trabalhando. Hoje ela tem sete anos, vai fazer sete anos agora.
P/1 – Quem está educando ela é a sua...
R – A minha irmã.
P/1 – A sua irmã? Sua irmã também não vem?
R – Não, não vem. Nem escreve as minhas irmãs, Karen.
P/1 – Então o que você recebe do mundo é da S.?
R – É, a família que no momento eu tenho. É o que me resta, só ela. Ela é minha força no dia a dia. Primeiramente meu Deus, segundo vem ela. E eu apoio a K.. As feições do meu bebê, então eu vou dia a dia porque eu quero sair daqui e poder ver ela, mas bem.
P/1 – E você nem sabe se ela está bem, se ela não está bem?
R – Eu sei que ela está. Eu confio no meu Deus.
P/1 – Quem te conta?
R – Eu sinto. É como se nós tivesse uma ligação.
P/1 – Mas você não sabe da vida dela? Você não tem notícia nenhuma?
R – Não. A última vez que eu soube dela foi o ano passado, que ela estava de pior a pior, danada. Não obedecia mais ninguém.
P/1 – Mas quem te conta essas noticias?
R – A minha irmã escreveu ano passado.
P/1 – Então você recebe de vez em quando uma carta?
R – Não, só foi ano passado. Eu não sei o que é que deu nela, mas a S. quando sair agora vai lá para saber dela para mim.
P/1 – E a S. foi a primeira mulher que você teve na vida ou antes você já tinha relação com mulher?
R – Eu acho que a primeira que eu tive mesmo assim, assim que a gente se envolveu mesmo, e é a única Karen. Para mim é a única. E vai ser. Acho que essa é eterna. Falei para ela: “Nós vai agora até onde Deus quiser. Quando você parar eu me aposento, sossego, vou terminar de criar os filhos e acabou”. Entendeu? Eu já sofri muito já, Karen. Acho que agora é hora de eu viver.
P/1 – Então no fundo a cadeia te fez descobrir o amor.
R – Está aí o resultado. Eu já era paciente e fez eu ter mais paciência porque na cadeia você não... Aquelas que querem se apegar ao ódio, fica no ódio. Aquelas que não querem, termina ganhando um... Como é que se diz? O amor, ela aprende a dar valor nas pequenas coisas que ela não dava lá fora, entendeu? E assim.
P/1 – Obrigada.
R – De nada Karen.
P/1 – Nossa, que história mais linda!!
FINAL DA ENTREVISTA
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