Projeto Herzog Hoje
Depoimento de Luiz Weis
Entrevistado por Luiz Egypto e Immaculada Lopez
Local de gravação e data completa: São Paulo, 31 de agosto de 2005
Realização Museu da Pessoa
Código do depoimento: CHH_CB001
Transcrito por Caroline Carrion
Revisado por Luiz Egypto
P/1 - Algumas co...Continuar leitura
Projeto Herzog Hoje
Depoimento de Luiz Weis
Entrevistado por Luiz Egypto e Immaculada Lopez
Local de gravação e data completa: São Paulo, 31 de agosto de 2005
Realização Museu da Pessoa
Código do depoimento: CHH_CB001
Transcrito por Caroline Carrion
Revisado por Luiz Egypto
P/1 - Algumas coisas que você já informou, mas a gente vai pedir uma nova versão para ter em registro. Seu nome completo, por favor.
R- É Luiz Weis.
P/1 -Seu local e data de nascimento.
R- Nasci em São Paulo, em 03 de dezembro de 1939.
P/1 -O nome de seu pai e de sua mãe.
R- Salomão Weis e Vita Weis.
P/1 -E seus avós, você se lembra?
R- Não, eu não conheci meus avós.
P/1 -E qual que é a origem da sua família?
R- Eles são imigrantes judeus poloneses.
P/1 - Chegados?
R- Meu pai em meados dos anos 30, não sei exatamente, não sei exatamente,
me lembro em que ano. Minha mãe chegou aqui no comecinho de 1939.
P/1 - Essa perda de informação com relação aos seus avós, ao que se deve? Você tem pelo menos o nome deles?
R- Tenho, tenho, mas não me lembro deles agora. Tenho.
P2- Apesar de você não ter conhecido, você sabe um pouco da história deles?
R- Sei, os avós maternos, a minha avó materna morreu no parto da minha mãe, ela foi criada por um irmão mais velho. Os meus avós paternos eram carvoeiros. Isso não faz muito sentido no Brasil, e nem nos nosso tempo mais, em qualquer país do mundo. Como é que você aquecia casas? Jogando carvão. Não tinha lareira à lenha, tudo funcionava a carvão, você aquecia água a carvão, você aquecia água a carvão. Era fonte de calor, era a única fonte que tinha, era carvão. Então o meu avô paterno era carvoeiro, isto é, ele ia aos depósitos de carvão, comprava e revendia, andava pela rua com um carrinho, e parava de casa em casa e vendia carvão.
P/1 - Isso onde?
R- Em Varsóvia, na Polônia.
P/1 - E qual foi o motivo da imigração?
R- Miséria.
P/1 - Que histórias você tem sobre isso?
R- Não, que a vida era dura. Meu pai era camelô e nos anos, desde os anos 20, quando teve o efeito da crise de 29, as coisas foram ficando mais difíceis, eles eram extremamente pobres. Minha mãe era operária, trabalhava numa fábrica de bolsas. E ela tinha um salariozinho, morava num quarto, enfim. Depois conheceu meu pai e se casaram, mas o que motivou a vinda deles pra cá foi a pobreza. Eles queriam ir, pelo menos o meu pai queria ir, não tenho certeza, para a Argentina. Mas faltavam 20 dólares, o equivalente à época de 20 dólares, para inteirar a passagem. Então eles tiveram que baixar em Santos mesmo.
P2- Que eles contam dessa travessia, Luiz?
R- Nada. Da travessia em si nada, nada de especial.
P2- E da chegada?
R- Da chegada a minha mãe ficou muito surpresa, no mau sentido, ela ficou muito... Eu me lembro de uma coisa com que ela resumia todo o choque cultural: “Mas, poxa, em Varsóvia os bondes eram forrados de”, como se chama, pelúcia? Não, “veludo, e aqui os bancos são de madeira!”. Isto foi o que me ficou do choque cultural.
P/1 - E o que vieram fazer aqui, a primeira atividade que tiveram?
R- Se empregaram em uma fábrica, também de bolsas. Depois aos poucos meu pai conseguiu fazer a fabriqueta dele, mas aí mudou de ramo, fazia roupa de mulher, roupa íntima, lingerie, esse tipo de coisa. E foi que ele fez a vida inteira.
P – Isso onde?
R- Em São Paulo.
P/1 - Em São Paulo. Onde em São Paulo?
R- No Bom Retiro, bairro judaico.
P – E a sua infância, você se lembra da casa onde vocês moravam, como é que ela era, você podia descrevê-la?
R- Posso. Moramos em vários lugares, quer dizer, moramos num lugar que eu tenho memória, porque os outros eu não tenho nenhuma visão na minha memória. Morava num sobradinho, na Rua Anhanguera, 945, essa rua que hoje praticamente desemboca na marginal, na pista local da marginal do Tietê. É divisa entre Bom Retiro e Barra Funda, de um lado, e fica de frente pra Casa Verde, descontando o rio e as marginais. E era um sobrado pequenininho, tinha dois quartos, uma sala, enfim, um sobrado tradicionalíssimo, pequeno. Se tinha uma saleta de entra, tinha uma, que era, a sala era uma só, depois você tinha a cozinha, você tinha o quintal de 0,5 cm por 0,5 cm, depois você tinha dois quartos e o banheiro. Era tudo.
P/1 - E essa Rua Anhanguera, como é que ela era?
R- Era uma rua de moradias desse tipo, tinha fábricas também. Uma rua de bairro de, chamar de classe média baixa. Não é muito diferente hoje não, só que eu acho que tem menos gente morando e tem mais fábrica, mais oficina de carro, essas coisas todas. Mas tinha o barbeiro, tinha o padeiro, tinha...
P/1 - E a fábrica do seu pai era ali?
R- Não, não, não era não. Era lá na, como que chamava, não era longe dali... É na Rua Newton Prado, é uma rua também que faz fronteira entre Bom Retiro e Barra Funda.
P2- E quem morava na sua casa, Luiz?
R- Minha mãe, meu pai e eu, sou filho único.
P2- E das cenas dentro de casa, assim, o que vem na tua cabeça quando você lembra desse sobrado?
R- Me lembro do sobrado, o que vem à minha cabeça é o que tinha fora do sobrado. Que tinha uma vila, uma pequena vila ao lado, onde jogava futebol com molecada. Me lembro mais tarde que a parede do sobrado era de superfície áspera, o que era ótimo porque servia para lixar meus botões, de jogar botão. Você pegava um botão de roupa, então você lixava toda a saliência dele e ficava como se fosse uma ficha de jogo de baralho. Toda a minha infância e boa parte da adolescência girou em torno de futebol.
P2- Que que é, os jogos na rua?
R- Jogava a pelada na rua e na várzea, porque ainda tinha várzea, isso acabou, mas ainda peguei um pouquinho de várzea. Meu pai tinha um guarda-livros, hoje chama contador, mas a gente chamava guarda-livros, hoje chama-se contador, um sujeito ótimo, filho de família italiana – Fantilicani, o sobrenome –, mas o nome dele era ótimo, era Goethe. Estranhei muito e só muitos anos depois vim saber quem era Goethe. E ele, todo domingo de manhã, jogava num campo com rede direitinho, lá na, esqueço, é quase no começo do que é a [Rodovia Presidente] Dutra. Bom, o nome da rua me escapa. Então tinha, tinha umas espécies de arquibancadas. Então eu ia vê-lo, ele me levava, e foi com ele que eu fiz coisas inesquecíveis da vida, que me levou pro primeiro jogo de futebol, vocês já adivinhem qual foi. Foi semifinal da Copa do Mundo de 1950 no Pacaembu, Suíça e Uruguai. Enquanto no Rio o Brasil ganhava da Espanha de seis a um. A Suíça e o Uruguai terminaram empatados aqui, dois a dois. Então o Brasil foi para o maldito 16 de julho com a vantagem do empate, porque o Uruguai tinha empatado, não tinha ganhado da Suíça. Então comecei vendo jogo de semifinal de Copa do Mundo. Não é para qualquer um.
P2- Onde foi esse jogo?
R- No Pacaembu, conhece?
P/1 - Ali na várzea, como é que era o rio Tietê? O rio Tietê era...
R- Ah sim, as pessoas remavam. Tinha dois clubes um pouco mais adiante, em direção à Zona Leste e Zona Norte, que eram o Tietê e o Floresta. E o Tietê chamava-se Clube de Regata Tietê, as pessoas praticavam regata no rio. Teve uma época depois que eu dei minhas remadas. Um detalhe: o Floresta, antes de eu nascer, nos anos 1930, chamava Esperia, era um clube alemão. Eu nunca soube o que quer dizer Esperia, mas eles mudaram o nome para Floresta, da mesma maneira como o Palestra Itália virou Palmeiras por causa da guerra.
P/1 - E agora virou Esperia de novo.
R- Virou? Então é esse. Eu não sabia.
P/1 - E conta um pouco mais da sua infância ali, essa sua infância de rua sem calçamento...
R- Não, com calçamento, tudo bonitinho, tinha calçamento, tinha a vila lá, e a gente vivia em função disso, quer dizer, tinha escola, escola de manhã, e voltava para casa, tinha... Minha mãe me levava para a escola de bonde, e voltava, isso primeiro, depois fui sozinho. E aí era aquela coisa: almoço, lição de casa, e dá-lhe futebol na rua até a hora que tinha que voltar para casa. Rádio. Rádio. Tinha na rádio Cultura uns programas formidáveis que eram equivalentes à radionovela, mas não eram novelas no sentido de histórias de amor, eram histórias de aventura. Tipo, como se fosse, tinha “A Múmia de Apopi”, desse eu me lembro, era uma dessas histórias, então tinha personagens, era dramatização, uma história de terror. E tinha outra que era e bangue-bangue, isso eu não perdia.
P/1 - E onde ficava o aparelho rádio, Luiz?
R- Na sala.
P/1 - E se reuniam todos?
R- Não, não, só eu. Depois, mais tarde, eu arranjei um rádio que ficava no meu quarto. A diferença de idade já, de tempo, é grande. Mas então, o rádio ficava na sala, daqueles rádios galena, como é que chamava aquilo, de forma, diabos, a palavra me escapa, que forma é essa? Cilíndrica, ou semicilíndrica, enfim, de botões, de válvulas.
R- O convívio familiar na verdade era restrito apenas a três pessoas. Não havia parentes?
R- Sim, eles não tinham, éramos a família nuclear por excelência, isto é, o pai não tinha parentes, a mãe não tinha parentes, o filho não tinha irmãos.
P/1 - E havia alguma rotina nessa convivência, vocês, quer dizer, almoçavam juntos, sempre?
R- Não, não, eu almoçava com minha mãe ou sozinho, com minha mãe já tendo almoçado ela me servia comida.
P/1 - Algum tipo de religiosidade?
R- Muita, muita, o que me criou muitos problemas porque, por alguma razão que desde o começo eu não compartilhei daquilo. Então foi sempre uma questão difícil com meu pai, principalmente, minha mãe tudo bem, nunca deu problema de espécie alguma.
P/1 - Quer dizer, não havia um nível de compreensão quanto, em relação a essa rebeldia aí, infantil?
R- Não é rebeldia, acaba sendo na prática rebeldia, mas era um desinteresse, uma coisa... Alheia é a palavra, que quando eu pensei nisso, muitos anos depois, era uma coisa alheia, alheia ao meu mundo, alheia ao mundo dos meus amigos, que os meus amigos lá no bairro, lá na Rua Anhanguera, eram todos católicos, eram gentios. E eu me sentia, sentia uma coisa, a quinta roda de um carro, uma coisa diferente, aquilo, enfim, não me agradava. Achava tudo uma coisa, inclusive, na época, não com esses conceitos que eu vou dizer agora, mas achava uma religião toda formalizada, proibitiva, especialmente isso, proibitiva: não pode isso, não pode aquilo, não pode aquilo outro, não pode comer carne que não seja assim. Eu nunca vou esquecer: eu não esqueci do primeiro sanduíche, da primeira salsicha que eu comi: salsicha de gente, não salsicha de judeu entendeu?
P2- Que salsicha foi essa, a primeira?
R- Foi num lugar, “Os dois porquinhos”, eu nem sei se existe mais, era famoso em São Paulo. Onde a [avenida] São João começa, ao lado do prédio Martinelli, tem o largo Almeida Prado, e aí do lado esquerdo de quem desce tinha uma salsicharia que era uma das mais [famosas], faziam filas lá, era um buraquinho que servia salsicha, pão, mostarda, chope ou cerveja, guaraná e pau na máquina.
P/1 - Você foi sozinho, foi acompanhado, como é que foi esse dia?
R- Eu estava com um amigo meu, mas isso já foi, eu já estava no ginásio.
P/1 - Queria voltar lá atrás um pouco, a sua primeira escola. Qual foi a sua primeira escola?
R- Era Stafford, Colégio Stafford, devia ser, era um colégio metido. Não, não, perdão, volta: antes disso, eu frequentava um jardim de [infância], chamava pré-primário, jardim de infância público na Casa Verde, atravessava a ponte, lá.
P/1 - Sua mãe levava?
R- Minha mãe levava, a ponte era de madeira. No primeiro dia que eu fui, a ponte era de madeira e não era inteiriça, tinha, era de, como se diz?
P/1 - Tábuas.
R- Tábuas. E justo no primeiro dia, dia de estreia, eu estava segurando o meu lápis e ele caiu no rio. Não queira sentir a angústia que eu tive.
P2- Era uma ponte só para pedestres?
R- Sim, sim. Ou, não, perdão, não, não era não, o bonde passava no meio, o bonde Casa Verde passava no meio. Você tinha, vamos chamar assim, de faixas de pedestres, os pedestres andavam, no meio você tinha os trilhos e os bondes iam e vinham por ali. Hoje, a ponte de concreto da Casa Verde é no mesmo lugar.
P/1 - E depois saindo dali, a sua outra escola, o primário foi feito onde?
R- Não, o primário eu fiz numa escola judaica no Bom Retiro, Escola Israelita Brasileira, na rua... Não me lembro o nome da rua, vou confundir vários nomes agora.
P/1 - Lembra de algum professor ou professora?
R- Lembro, lembro, lembro de uma professora de português. Lembro da diretora, que era uma mulher muito linda: gorda, mulata, uma senhora toda... Marina do Carmo Piratininga, um belíssimo nome. Uma pessoa que eu adorava.
P/1 - O fato de ser uma escola judaica...
R- Não, você tinha que ter, pela lei, imagino eu que era isso, a escola, para ser reconhecida, porque ela valia como uma escola primária, o diploma dela era reconhecido. O diretor ou diretora da escola, não é que não pudesse ser um judeu, não é isso, mas vai ver eles não tinham ninguém, tinha que ser brasileiro, esse é o ponto, brasileiro nato.
P/1 - Quer dizer, não havia nenhum tipo de ensino religioso?
R- Havia, havia, fiz as duas coisas, mas o que me interessava era o primário normal.
P2- Você lembra de algum episódio com essa diretora?
R- Lembro na formatura. Ela, sabe, tinha as maçãs do rosto bem desenvolvidas, era um encanto de gente. Para mim, ela devia ter o que, na época, entre 50 e 60 [anos], mas eu acho que era menos. Quando você é pequeno, você envelhece as pessoas, não é? Mas me lembro da festa de formatura, que depois saímos para tomar guaraná, coisas assim.
P2- Vocês usavam uniforme, Luiz?
R- Não, não. Usava, enfim, aquela coisa, como se fosse um uniforme, uma camisa branca, calça curta azul-marinho, tênis keds, keds e meia.
P2- E a sala de aula?
R- Mapa do Brasil, não globo, mapa do Brasil na parede, lousa, cadeiras individuais.
P2- Meninos e meninas?
R- Não, meninos; e meninas, à parte.
P/1 - Fora a dona Marina, alguma outra professora de que você se lembra?
R- Sim, a de português, que, aliás, eu sempre tive muita sorte com professoras de português. Essa chamava-se Meire Vilela Iório. Depois, já que estou falando de professoras de português, nunca vou me esquecer da minha professora do ginásio, que teve um papel decisivo para aquilo que eu viria a ser. Fez um trabalho, foi um trabalho máximo, me estimulou, mas o nome dela era lindo: é Olga Milhomen Costa. Mas isso é outra história.
P/1 - Mas então vamos ao seu curso ginasial, foi feito onde?
R- Foi no Colégio Estadual de São Paulo, que na época, quando eu entrei, ainda se chamava Ginásio Estadual Presidente Roosevelt. Havia dois com o mesmo nome, que se distinguiam pelo endereço. Ah sim, há o Roosevelt de São Joaquim e o Roosevelt D. Pedro. São Joaquim é uma travessa da Avenida Liberdade, rua São Joaquim. Lá havia também um colégio do estado, um ginásio do estado, que se chamava Roosevelt também, e o meu ficava no Parque D. Pedro II, quando você desce a [avenida] Rangel Pestana, hoje o que está lá é o Instituto de Engenharia Mauá, pelo menos estava, não sei se continua. Então foi lá que eu fui. Depois mudou de nome, era o... falava assim: ginásio do estado, cujo maior rival era outro ginásio do estado, que era o Colégio Caetano de Campos, Praça da República, atual Secretaria da Educação. E tinha exame de admissão, e você se preparava para o exame de admissão. Você não era obrigado a fazer, mas todo mundo fazia, era como se fosse um, como é que se chama, um cursinho pré-vestibular. Eu me lembro que eu tinha aulas, era um sujeito que dava aulas no bairro, juntava, enfim, dez, quinze crianças e dava [aulas] para o exame de admissão. E entrei, modestamente, em nono lugar, o que era [bom]. Era a coisa que eu sempre falo, então, o que era o ensino público. Tirando o problema da qualidade, que era alta,
tirando o problema do reacionarismo da escola, da direção, dos professores, com uma ou duas exceções só, que é uma coisa carrancuda, formal. Como é que ele se chamava, o diretor? Era irmão do Marcelo Damy, o dr. Damy, não estou conseguindo lembrar o primeiro nome dele. À parte essas duas coisas, tem a terceira coisa, que era democrático. Eu tinha como colegas, e isto é uma coisa que desapareceu por fim no ensino público, um dos meus colegas era um japonês, um japonesinho que chamava Mario Watanabe, se não me engano – não era Watanabe, esse é um jornalista, estou confundido. O pai dele, plantava hortaliças, era um chacareiro, moravam em Itaquera. Sabe como ele vinha para a escola? De bicicleta. Ele saía de casa às três horas da manhã, vinha pedalando de Itaquera até o Parque D. Pedro. Este é um extremo. Ao lado dele, na mesma classe, ai diabos que perco o nome dele, mas a família dele, o pai dele tinha o que era praticamente o monopólio da indústria de equipamentos odontológicos no Brasil – Atlante. Tudo que se comprava, sabe, cadeira de dentista, equipamentos todos, eram [Atlante]. Você entende? A democracia era isso. Eu tinha um colega chamado José Luiz Junqueira de Almeida Nogueira Filho, uou uou uou uou. E tinha o judeuzinho, o italianinho, o japonesinho, sabe? Era uma maravilha.
P2- Como é que era essa convivência?
R- Ótima, ótima, ótima. Os meus amigos moravam todos na Água Rasa, no Brás – o Brás era pertíssimo da escola. E um deles, que estudava num outro ginásio também, que tinha certa notoriedade, o Domingo Faustino Sarmiento, era o Dirceu Brisola, ficamos amigos quando tínhamos por volta de 14 anos, o jornalista Dirceu Brisola. E tinha um outro aluno chamado Luiz Carvalhais cujo pai não era chacareiro, era feirante mesmo, aliás presidente do sindicato dos feirantes da época.
P/1 - Eu ia te perguntar como é que era esse trajeto do Bom Retiro.
R- Ônibus Estações. Àquela altura eu já não morava na Rua Anhanguera, morava atrás do Jardim da Luz, na Rua Ribeiro de Lima. O Jardim da Luz tinha um ônibus “seis estações”, porque ele fazia exatamente estações, e ele passava pelo colégio em direção àquilo que na época chamava Estação do Norte, ou Estação Roosevelt, no Brás, e de lá não sei para onde. Enfim, o trajeto era esse, o meio de locomoção era esse, era ônibus.
P/1 - E essa cidade, como é que era essa cidade da sua adolescência?
R- Minha, a cidade era minha, eu me sentia na cidade. Aos nove anos de idade eu ganhei de aniversário uma bicicleta. Eu percorria a cidade de bicicleta, eu nunca tive problema, era uma coisa, era um universo de diferença. Dia, de dia, de noite, a cidade era minha.
P2- Nesses passeios de bicicleta você saía da sua casa e ia...
R- Bom, o regular, sagrado, era sair de bicicleta e ir até onde é hoje o Estádio da Portuguesa, que não era muito longe, no Canindé, porque lá ficava o glorioso tricolor, chamado São Paulo Futebol Clube, o maior time da galáxia, como todos sabemos. E eu ia ver os treinos. Chegava com a bicicletinha, encostava lá, e aí eu via os meus ídolos, aqueles que eu via depois no Pacaembu, eles estavam ao alcance da mão, passavam a mão na minha cabeça, era uma felicidade. Fora isso eu andava para cima e para baixo por toda a cidade. Eu tinha um amigo que morava no Ipiranga, que também jogava bola, isso na escola. E eu, muitas vezes, ia à casa dele, na Rua Bom Pastor, de bicicleta. Claro, tinha umas subidas que eram de lascar: tinha que descer da bicicleta e subir a pé. O que eu estou querendo dizer é que a minha relação com a cidade, coisa que duraria até muitos anos depois, era uma relação de absoluta intimidade, naturalidade e à vontade. Transporte coletivo, não tinha problema. Não é que eu tivesse a noção que eu gostasse ou não gostasse da cidade, me sentindo um paulistano, essa prosopopeia toda, mas é isto: era minha cidade e não tinha nenhuma limitação ao uso dessa cidade.
P/1 - E ao usufruto dela também.
R- A palavra certa é a tua, o usufruto; não uso, usufruto.
P/1 - E as diversões assim, afora esses passeios, essas brincadeiras, essas convivências?
R- Cinema. Cinema, cinema, cinema.
P2- Qual cinema?
R- Ah sim, a gente ia. Tinha os cinemas, o Marabá e o Ipiranga. Aí tinha o Olido, tinha o Marrocos – o Olido na São João, o Marrocos na [rua] Conselheiro Crispiniano –, o Paiçandu, no Largo do Paiçandu. Você vê? Tudo era o meu centro, tudo aquilo. Mas era basicamente cinema, futebol e ir ao estádio. Ir ao estádio todo [fim de semana], era religioso, aí sim, era coisa de religião. Mesmo que o São Paulo, porventura, não jogasse o São Paulo, eu ia ver jogos inferiores também, lá no Pacaembu, todo domingo.
P2- Como é que você virou são paulino, Luiz?
R- Deve ser genético, umas pessoas que são bem dotadas... Um cidadão – eu era muito pequeno, eu estava num ônibus com a minha mãe – ele me deu, um cidadão, me lembro também, era mulato, simpático e tal. Eu estava sentado com minha mãe na cadeira do ônibus, ele pegou e disse: “Toma isso, menino”. Era um distintivo do São Paulo, distintivo desses de você pôr aqui, pequenininho, pequenininho [um pin]. Virei são-paulino. Eu devia ter o quê, uns cinco anos de idade. Para registro: os meus três filhos são são-paulinos e não foi nenhum estranho que lhes deu qualquer distintivo.
P/1 - E os seus jogos de botão? Você tinha um time de botão, montava time de botão?
R- Montava time de botão. Você podia comprar um time de botão, certo? Não tinha graça nenhuma. A graça era você pegar botão de casaco, ficha de jogo de cartas...
P/1 - Coco também?
R- Não, eu nunca tive. Ah, sim, lente de óculos, opa, lente de óculos é ótimo, que era o meu ponta-direita, que funcionava às mil maravilhas, que era o Maurinho. Claro que o time, o de botão, é do São Paulo. Depois descobri que dava para colar o distintivo em cima. Eu realmente fui muito absorvido por futebol. Lia muito, também. Quando eu tinha sete, oito anos, eu aprendi a ler muito cedo, eu aprendi a ler em jornal, antes da escola, não me pergunte como. Eu tenho até hoje, na memória, a manchete do jornal que era comprado em casa, não era assinado, o meu pai comprava, e trazia, “A Gazeta”. A manchete: “Morreu o presidente Roosevelt”. Isto foi o começo de 1945, eu tinha – eu
sou de dezembro de 1939 –, portanto, cinco anos e pouco de idade, se as contas não estão erradas.
P/1 - Certo.
R- Bom, não sei quantos anos eu tinha, eu ganhei do meu pai “As reinações de Narizinho”, era um tarugo desse tamanho, da [Editora] Brasiliense, a editora do Monteiro Lobato, e aí detonou: a partir daí eu queria livro, livro, livro, livro. Claro, qual é o livro que você tem naquela idade, 10 anos? Jorge Amado. Aí é sacanagem, certo? Tinha também “Presença de Anita”, do Mário Donato, não sei se é Mário Donato, Donato com certeza, Mário não tenho certeza, enfim.
P2- Eram bibliotecas, eram livrarias?
R- Ah sim, isso mais tarde, eu me inscrevi na Biblioteca Municipal. Outra, falando em usufruto da cidade: eu ia, moleque, lá na biblioteca, na rua onde está hoje, na Xavier de Toledo, biblioteca circulante. Só que, naquela época, a entrada da circulante era pela [avenida] São Luís, a entrada principal era para você chega lá e estudar, coisa que eu fiz anos, anos a fio estudava lá. Saía da escola, do colégio, e ia fazer minhas lições na biblioteca. Esperava, tinha fila, você tirava uma senha e tal. Sentava lá e às vezes nem precisava de livro, era simplesmente um lugar que eu adorava, sempre tinha esperança de achar uma menina e namorar e tal. Então os livros que eu lia eu retirava da biblioteca circulante, você tinha 15 dias se eu não me engano, eu era muito pontual, acho que nunca paguei multa. Tinha uma ficha, atrás carimbava, enfim, era uma biblioteca circulante.
P2- E comprava alguns também?
R- Não, não tinha dinheiro; só mais tarde. Eu não me lembro que a essa época, aos 14 anos, eu comprasse livros. Comprava só os livros escolares.
P/1 - E alguma coisa te apetecia, além das obrigações escolares? Além do Jorge Amado, tinha algum tipo de literatura que já te chamava atenção?
R- Veja, aí era tudo. Era uma coisa que, num bufê, você comia de tudo. Livros, aventura, lógico, Tarzan, esse tipo de coisa, não haveria de ser o [Franz] Kafka, não é, mas esse tipo de coisa. Mais tarde eu descambaria: li toneladas de ficção científica, mas eu já dominava inglês e tal.
P/1 - E essa sua professora de português que te estimulou num determinado momento ali, de um trabalho que você teria feito ou fez, como é que foi essa história?
R-
Essa história é o seguinte: ela era excelente [professora], uma senhora, também pelo nome, Olga Milhomen Costa, era uma senhora assim muito posta, esta sim, já devia estar a caminho da aposentadoria; ela tinha uma cabeleira branca, uma senhora. Atenção, importante o que eram os professores daquela época como posição social – [hoje não se compara, não tem] nada que ver, certo? As pessoas tinham carro, o que não era comum, se vestiam muito bem, eram de outra classe social. Porque o que viria a acontecer depois seria a brutal decadência salarial e o desprestígio da profissão de professor de escola pública. É disso que eu estou falando. Essa senhora, dona Olga, um dia mandou a gente fazer uma redação, uma entre tantas outras. Era uma redação cujo tema era: olhando para o forro do meu quarto. Forro era uma palavra, aliás, que não – sim, eu sabia que queria dizer teto, mas para mim era uma palavra estranha. Eu não tenho forro, eu tenho teto; mas, enfim. E eu tive, o que me pareceu uma temeridade, de fazer uma redação sobre a ideia de fazer uma redação. E os outros fizeram o convencional: olhando para o forro do meu teto fico pensando nisso e naquilo. Eu falei que ideia é essa de fazer uma redação, e fui por aí. Fiz uma meta-redação. A professora ficou absolutamente encantada, me cobriu de louvores e disse: “Olha, o teu caminho é esse, escrever”. Então isso ficou como episódio.
P/1 - Sim, mas isso, você assumiu essa recomendação ou passou para você apenas como uma forma de elogio?
Rk- Não, não: batia comigo. Tem mais: a primeira coisa que eu me lembro de ter escrito, devia ser o ano de 1946 – é importante o ano porque o governador era Adhemar de Barros. Ele foi interventor, durante a ditadura, depois eu não sei se ele se elegeu na primeira eleição de 1946, mas enfim, era por aí. E eu tinha então algo como, entre seis e sete anos, eu tinha um caderno, e eu escrevi uma reportagem imaginária, a visita do Adhemar de Barros ao bairro. Começava assim: “Visitou ontem este bairro o governador Adhemar de Barros, foi recebido...”. Vem de longe.
P2- Esse foi o primeiro de muitos escritos, você continuou escrevendo?
R- Não muito. Mais tarde, como adolescente, me meti a fazer poesia; esquece, pano rápido! Nunca, nunca, nunca tentei ficção.
P/1 - E o, enfim, quando você foi fazer o chamado curso científico...
R- Não, aí é que está, eu fui para o clássico. Por quê? Porque desde criança tinham me enfiado na cabeça e eu também não tinha nada contra a ideia de ser advogado. Não pensava em ser jornalista, ia ser advogado. Me lembro que – essas coisas são incríveis – uma vizinha lá de casa, ainda da Rua Anhanguera, eu me lembro dela, dizendo para a minha mãe: “Seu filho precisa ser advogado quando ele crescer, ele fala tão bem”. Acho que até hoje as pessoas ainda fazem essa associação entre falar bem e ser advogado. Então era para ser; até porque, olhando para trás, aquelas coisas: as diferenças que os professores fazem na vida. Eu tenho vários: a diferença que a Olga fez, eu não vou falar disso, mas me fez... Mas eu comi o pão que o diabo amassou com matemática, nos três primeiros anos do ginasial. Aliás, um ano eu repeti, porque passei o ano jogando sinuca. Tinha uma turminha que ia jogar sinuca e cabulava, pulava o muro da escola, faltava à escola. Mas só no quarto ano do ginasial é que eu entendi matemática, isso graça ao professor Maurinho, o Luiz Mauro Rocha – uma família de professores –, que me ensinou que as figuras geométricas eram um conceito que não existe. Quer dizer, não existe círculo na natureza, não existe triângulo, não existe retângulo, isso são ideias. Não sei por que, isso mexeu tanto comigo! A geometria, de tudo que derivava, quer dizer, [você] não ia encontrar um retângulo verdadeiro, é óbvio. Para mim foi um impacto. Mas aí já era tarde, na minha cabeça. Quando eu fazia Ciências Sociais, o terror do pessoal do primeiro ano era Estatística. O pessoal quebrava a cara. Eu, nos dois anos de Estatística (Estatística I e Estatística II), eu fui muito bem: fui o melhor das duas turmas. E aí, à época, eu me lembro que eu gostava da bomba da Estatística, e aí foi quando me lembrei que se eu tivesse tido desde o começo do ginásio um professor como o Maurinho, Luiz Mauro Rocha, talvez minha relação com matemática fosse inteiramente diferente. E faz sentido, porque Direito, que eu achava que ia fazer, e matemática, o que têm em comum [é que] são duas ciências dedutivas. Direito não é propriamente uma ciência, embora se use, mas não é, mas ele funciona não indutivamente, como a Física, Química e Biologia, mas que se deduz de princípios gerais: você vai deduzindo, deduzindo, deduzindo. Em Direito, também. Mas... eu divago.
P/1 - De todo modo, essa sua trajetória no clássico estava te apontando para onde? Para o Largo de São Francisco?
R- Sim, sim. Bom, nós vamos falar do Vlado depois.
P/1 - Estamos chegando lá.
R- Estamos chegando lá. Que ele tinha feito ginásio no outro [colégio] Roosevelt, no São Joaquim, e veio fazer o colegial, isto é, científico, e eu no clássico, no ginásio do estado à noite. Estudávamos à noite, eu trabalhava num banco de dia, no Banco de São Paulo, que não existe mais, mas era também um prédio lindo que virou Secretaria de Turismo, justamente no largo Almeida Prado, Antônio Prado ou Almeida Prado. Então era todo art nouveau, era uma coisa maravilhosa, e acho que foi conservado. Mas o que virou? Virou que eu tive um professor de Filosofia – ah, sim, você tinha Filosofia no terceiro ano do colegial, no terceiro ano do clássico, imagino que tinha também no terceiro ano do científico. Ele chamava Mário – ele chamava porque morreu, morreu jovem; chamava Mário Leônidas Casanova, trabalhava, era filósofo, era professor de Filosofia formado pela USP, a paixão dele era samba e ele escrevia sobre isso, ele trabalhava no [jornal] “Estado de S. Paulo”. Este cidadão foi responsável por duas coisas em minha vida e na vida do Vlado. Fomos os dois fazer Filosofia – havia uma diferença de um ou dois anos, ele estava um ano na minha frente. [Fiz] vestibular, minha primeira vez que entrei na faculdade não foi em Ciências Sociais, foi em Filosofia, e graças ao Mário Casanova eu pisei pela primeira vez no “Estado de S. Paulo”, na redação, ele tinha indicado: “Vocês vão lá, me procurem que eu apresento vocês ao chefe de reportagem”, que era o Perseu Abramo. A segunda coisa ficou para o resto da vida; a Filosofia dançou logo, eu larguei, não era minha praia, definitivamente não era. Eu logo de cara tive aquele choque cultural, eu não sei como é hoje, mas era brutal o choque entre o colégio e a faculdade. Eu nunca tinha ouvido falar em trabalho de aproveitamento na minha vida, aí chega o [José Arthur] Giannotti, no primeiro dia, e diz: “Bom, trabalho de aproveitamento!”. Ele ensinava Lógica, era um terror, um terror, ele achava que a gente ia passar 24 horas estudando não Filosofia, [mas] Lógica. E aí veio um professor de Filosofia Grega, todos pré-socráticos, a gente tinha [não etendia] direito, e enquanto isso eu estava começando no jornal, o contraste, a paixão. Eu desisti, eu abandonei o curso de Filosofia e voltei, aconselhado pela irmã do Dirceu Brisola, que era uma moça pela qual muitos tiveram grandes paixões, Vera Brisola, que não sei o que é feito dela, e ela insistia muito comigo: “Sai dessa coisa de Filosofia, vem para as Ciências Sociais”. E o Perseu Abramo: “Olha, faz faculdade, vai lá, Ciências Sociais é uma boa, faça isso, faz, mas não fica só em jornal”. Aí eu voltei, mas eu acho que a cronologia está escorrendo pelos dedos.
P2- Quando você recebeu esse convite do professor para ir à redação, você tinha esse sonho de trabalhar num jornal ou não?
R- Não tinha sonho, não era isso. Veja bem, eu estava orientado para fazer Direito, na minha cabeça. Eis que surge um professor, no último ano do colegial, do curso clássico, e acena com duas coisas na época muito interessantes: filosofia e jornalismo. Veja, era o tal do cara que falava bem, escrevia bem, que aquela professora Olga Milhomen Costa... Então, jornalismo, por que não? Podia ser uma boa, não é? Não porque eu tivesse um “Ah, quero ser jornalista”, não. Eu ia fazer Direito assim, burocraticamente, porque seria, digamos, o curso natural das coisas. Como diriam os jovens de hoje, eu não questionava muito isso, questionava todo resto.
P/1 - E seus pais, como é que receberam essa mudança?
R- Mal, mal. O fato de eu desistir de tentar ser advogado foi barra.
P/1 - Você ainda morava com eles?
R- Ainda morava com eles. E foi um porre. “Filosofia, o que é isso, filosofia? O que você vai fazer, vai filosofar?”. Sabe? Era como se eu tivesse dito: “Olha, vou ser poeta”. Não faria a menor diferença.
P/1 - E nessa época você já trabalhava?
R- Sim.
P/1 - Seu primeiro emprego?
R- Banco de São Paulo, onde meu pai era cliente e me arranjou um emprego lá que eu não queria ter, mas ele que me fez trabalhar.
P/1 - E fazia o quê?
R- Ah, sim, eu era escriturário, datilógrafo. Eu não tinha contato com o público, ficava lá dentro. Era uma coisa mortal, mortal, você ficava o dia inteiro fazendo rigorosamente a mesma coisa, da hora que você entrava à hora que saía. Você tinha que – ia dizer digitar... – você tinha que datilografar, numa espécie de planilha, um resumo de faturas, documentos bancários, números e nomes de cedentes, sacados, sacadores, sabe essa coisa? Tinha gente como eu que estavam ali porque estavam, e tinha os velhos bancários, que eram figuras muito tristes, alguns alcoólatras, pessoas já com mais de 40 anos de idade. Veja, você está falando com um cara que tinha 14 anos, quando comecei a trabalhar lá. Minha primeira carteira [de trabalho assinada]. Uma vez eu gastei todo o salário num sábado, num bookmaker: jogava cavalos, adorava cavalos. Eu não podia jogar porque era menor, mas eu podia ir à Cidade Jardim, ao hipódromom. Eu tinha um amigo de escola que era mais velho, quer dizer, não: eu tinha um amigo cujo irmão era adulto e era bookmaker, fazia apostas e coisas ligadas, o pai também fazia. Uma vez eu visitei a casa deles, era um palacete, lá na Rua Bom Pastor, na Mooca, numa parte da Mooca ali. Antes eu falei que Rua Bom Pastor, Ipiranga, eu me enganei de rua. Bom Pastor é na Mooca, não me lembro da rua no Ipiranga. Bom, e aí, então fomos um sábado, eu me lembro, trabalhava-se aos sábados, e houve um sábado que o pagamento foi feito no sábado, o pagamento saiu, o envelope saiu, sai dinheiro. Eu fui com aquele dinheiro ao Jóquei Clube com esse meu amigo e com o irmão mais velho dele, que podia jogar, que era book. Quando terminou o dia, eu não tinha dinheiro para o ônibus. Eu voltei a pé de Cidade Jardim para o Bom Retiro.
P/1 - O que você disse em casa?
R- O salário era meu! O salário não era para casa. Eu não disse nada. O salário era meu. Era um jeito que meu pai tinha de não me dar mesada, então “vai trabalhar, vagabundo”. Era isso.
P2- Trabalhar na fabriqueta do seu pai, nunca?
R- Não, eu trabalhei também com ele, trabalhei também com ele. Mas, enfim, aí também esse mesmo tipo de trabalho: escrevia cartas comerciais para ele. Então foi um mês divertido, até o pagamento seguinte.
P/1 - Bom, mas essa sua derivação, digamos, para a Filosofia, embora depois tenha sido frustrada, mas como é que era o ambiente universitário? Onde era essa escola?
R- [Na Rua] Maria Antônia. Na velha “Filó”, na Rua Maria Antônia. Lá, na Filosofia, eu fiquei amigo de – além do Vlado, naturalmente – de um cara que já estava se formando, estava já no penúltimo ano, ia se formar, um tal de Walter Lourenção, depois virou maestro e está aí trabalhando na TV Cultura. Ele não teve um bom papel – ele era muito amigo do Vlado, o Vlado era muito amigo dele –, ele não teve um bom papel quando o Vlado foi morto. Para registro.
P/1 - Essa sua amizade com o Vlado, nascida no colégio e depois na universidade, ela tinha, quer dizer, outro tipo de apelo? Vocês faziam coisas juntos?
R- Sim, sim, sim, sim. Bom, seria mais cômodo se eu pegasse um texto que eu escrevi para o jornalista Paulo Markun, [que] fez um livro de depoimentos sobre o Vlado, e a mim me tocou o Vlado a pessoa, a história. E lá está tudo isso, está tudo contado: como é que eu conheci o Vlado, o que nós fazíamos, como é que era a casa dele...
P/1 - Bom, então aí temos duas vertentes. Uma que é a vertente da universidade, outra que é o comichão do jornal. Queria que você falasse duas coisas primeiro sobre o jornal: um, o Perseu Abramo, esse Perseu Abramo que você conheceu.
R- Adorei.
P/1 – E, segundo, o que era o jornal, como era a redação, onde se localizava, como funcionava, aquele barulho, como é que isso te impregnou?
R- Bom, e põe impregnou nisso. Eu não via a hora de entrar no jornal e não queria sair do jornal. Eu esperava, descia na gráfica às três da manhã para ver, para tirar o jornal da boca da gráfica, da boca da oficina. Era uma absorção, o que sobrava era muito pouco. Sobrava sexo, sobrava cinema, teatro, mas era o jornal, não é? Comia jornal, bebia jornal, dormia jornal. O Perseu Abramo foi uma figura, talvez, a mais fabulosa. Eu adorava o Perseu, todos gostavam do Perseu, quem não gostava do Perseu? Então Vlado, eu, o Fernando Pacheco Jordão, todos depois ficamos amicíssimos, ao longo da vida e a morte dele. Gosto e sou até hoje amigo da Zilah, a viúva dele, das filhas.
P/1 - Ele era o chefe de reportagem?
R- É. Eu adorava a ironia dele, o sarcasmo do Perseu era uma coisa, sai de baixo! Tinha sempre uma verve, parece que isso está na família Abramo. E ele era extremamente acessível, ao contrário do Cláudio, que não era acessível. O Cláudio era um semideus que estava lá na redação, e tinha todo aquele teatro. O Perseu não tinha teatro nenhum, o Perseu falava baixo,
escrevia admiravelmente bem também. O que eu aprendi no jornal, 70% foi com o Perseu.
P/1 - Era a redação da Rua Major Quedinho.
R- Major Quedinho, quinto andar.
P/1 - Você entrou para fazer o que no jornal?
R- Reportagem. Chegamos lá em outubro de 1958. Aí fomos apresentados, o Mário Luiz Casanova nos apresentou ao Perseu. Éramos eu, o Vlado e um sujeito José Chasin, que também era colega nosso do colégio. Aí disse assim: “Olha, tudo bem, vocês vão fazer um estágio de 15 dias, de repórter” – noticiarista, se chamava. “E aí, vamos ver.” Fizemos os 15 dias e ele [Perseu] disse: “Tudo bem, aguarde notícias”.
P/1 - Você se lembra da primeira pauta?
R- Cobri uma reunião da Comissão da Bacia do Paraná-Uruguai, que era uma coisa importante, supragovernamental, que juntava São Paulo, juntava Paraná, Mato Grosso. Então era uma coisa importante.
P/1 - Onde isso?
R- Tinha um escritório na Avenida São João, para lá da [avenida] Ipiranga, no sentido oeste. Eles tinham me dado uma espécie de credencial, a primeira vez. O Perseu disse: “Vai lá, assiste à reunião, fala com as pessoas, dá mais ou menos a ideia e escreve”. Eu cheguei lá, olhando para trás, enfim: “Sou repórter do ‘Estado de S. Paulo’”. E comecei. Voltei para a redação, tomei as notas, lauda na máquina e comecei o lide clássico: “Realizou-se ontem...”. Como diria um colega lá da redação, o Mascarenhas: “Um dia este ‘Estado’ ainda vai publicar assim: ‘Realizou-se ontem um atropelamento na rua da Consolação’”. Era muito ruim. Então, essa foi a primeira matéria que eu fiz.
P/1 - Mas ela foi baixada quando chegou, passou na mão de algum copy?
R- Não, era o próprio Perseu, porque não tinha copy, que eu bem me lembre, na [editoria] Local. De dia era o Perseu, era o próprio Perseu, o chefe de reportagem, que editava as matérias, canetava, e à noite era um sujeito que, aliás, faleceu outro dia, e eu estou com um nome, é como se fosse Delcídio, mas não é, mas é parecido. Ele chegava à noite para o fechamento e as matérias entregues à noite. Mas o Perseu geralmente ficava à tarde e à noite, então era o próprio Perseu. Eu aprendi, o que eu aprendi; o que eu não aprendi não valeria a pena eu ter aprendido com o Perseu. Pegava um texto e dizia: “Não, escreva ‘uma vez’, não precisa disso”. Coisas assim.
P2- Ele mandou vocês para casa para aguardar notícias?
R- Mandou para casa aguardar notícias. Em abril de 1959, tchan tchan tchan tchan, tocou o telefone. Era para a gente se apresentar.
P2- Os três?
R- Eu sei que um fez o estágio na primeira quinzena de outubro, outros dois [na] segunda quinzena de outubro. Mas quando fomos chamados, fomos chamados os três. Eu acho que o Chasin não se interessou depois, e tinha também o Alexandre Gambirasio, que também fazia parte, que também era colega da gente do Roosevelt e também foi para no “Estadão”. E aí, abril de 1959, comecei a trabalhar como repórter.
P2- Como é que era um dia típico de uma redação dessa época?
R- Vai ter que falar 1.200 coisas sobre isso, puxa vida, tem tanta coisa.
P/1 - Fala uma apenas.
R- Desce! “Rash”, o ruído do Cláudio Abramo arrancando a lauda da máquina, que ele batia com dois dedos, ele arrancava assim. No fechamento de noite eu estava lá espionando, e ele dizia: “Que é?!”. Como é que é: “Quer cadeia ou quer serviço?”, que é um ditado dos soldados do quartel, “quer cadeia ou quer serviço”. Aí aquele ruído “rash”, “desce!”.
P/1 - E vinha correndo o contínuo?
R- E vinha correndo o seu Joaquim. Seu Joaquim, cabelos brancos, os contínuos todos senhores uniformizados, uniforme azul, camisa branca e gravata preta. À esmo, vamos lá. De noite...
P2- Que que esse contínuo fazia, só para completar?
R- Qualquer coisa.
P2- Ele pegava esse texto “desce” e fazia o que com ele?
R- Levava para a gráfica, que ficava no segundo andar. Não, não, perdão, não levava, tinha o, como é que se diz? Desculpa, não quero ser pedante, mas nas redações americanas é o “shutle”, como se fosse um paraquedas: é o que você joga e, depois, vai e volta, e sobem as provas. Para quem não conhece, será que ficou claro? Subiam as provas, aí você canetava as provas, acrescentava, tirava. Em último caso, você descia e fazia. Uma vez eu fiz isso no linotipo, foi uma madrugada de glória. Tinha acontecido não sei o que lá e eu fui emendar uma matéria no linotipo. O cheiro é inesquecível, o cheiro da redação, o cheiro de papel, cigarro. Outro dia o Ethevaldo Siqueira escreveu no “Estadão” sobre isso. Quando ele começou era 1967: o cheiro de cigarro, o cheiro do papel, o cheiro de óleo de máquina de escrever, e o cheiro lá embaixo é uma maravilha, o cheiro de gráfica.
P/1 - E os gráficos?
R- Não tinham muito contato e não gostavam muito, eles eram muito ciosos. A autoestima profissional deles era uma coisa! Eles respeitavam muito o Cláudio Abramo, e em geral não respeitavam muita gente, pelo menos é a memória que eu tenho – ainda mais o moleque chegava lá e ficava enfiando o nariz, ficava como papagaio de pirata em cima do gráfico que ganhava honestamente o seu pão, às duas da manhã, não é? Mas, enfim, coisas da redação... E tinha o Carlão. Carlão era Luiz Carlos Mesquita, o filho mais moço do velho Dr. Júlio; morreu de cirrose, alcoólatra. Bebia, bebia. No hospital, tinha amigos que levavam álcool para ele, uísque, ele tomava embaixo da cama. Ele era um, enfim, não vou dizer que era um playboy, seria fazer uma injustiça, mas era um cara que não estava nem aí. Depois, para se livrar dele, o pai deu a Rádio Eldorado para ele cuidar. Ele cuidava da rádio Eldorado junto com o primo lá, da família do lado Vieira de Carvalho, eu não lembro agora. E o Carlão só queria zoar. Ele chegava na redação às oito da noite, quando chegava abria a porta – e já vinha tocado – e dizia: “Viva o marechal Dutra!”. Por que o marechal Dutra? Não tinha nada que ver. O que a redação em peso fazia? “Viva!”. E ia por aí. Uma noite acontece isso: abre-se uma porta, quem entra na redação? Aí, gela – se o teto pudesse virar uma estalactite teria virado. Dr. Julinho. Dr. Julio Mesquita era que nem meu diretor da escola, o dr. [Marcelo] Damy: absolutamente formal, chamava todo mundo de “senhor”, até o contínuo, ninguém era “você”. Cláudio Abramo era “senhor”, eu lembro assim que ele falava, “senhor”. E aquela zona que tinha virado, com o filho dele... Eu olhei para o Carlão, o Carlão estava lívido. O Carlão era um homem de, sei lá, trinta, trinta e poucos anos, já naquela época. Então são coisas. É uma infinidade de anedotas, de situações. É importante registrar uma coisa: a degradação acelerada do ambiente na redação do “Estado de S. Paulo” com a radicalização política. Aí foi uma coisa de dar engulhos, e foi por isso que eu saí do “Estado”, em 1963, porque aí já reinavam os Lenildo Tabosa Pessoa, os Flávio Galvão, era uma coisa, de uma hidrofobia... Uma vez eu fui cobrir uma palestra do Luís Carlos Prestes no [centro acadêmico] 11 de Agosto, na Faculdade de Direito. Voltei, escrevi a matéria, bem objetivo: “O secretário geral do Partido Comunista brasileiro, proscrito, ilegal”, disse ontem que..., acrescentou, aduziu...”, estava lá a matéria. O Cláudio estava ocupado e disse: “Dá lá para o Flávio Galvão ler e editar”. Tá bom. No dia seguinte sai: “O chefe vermelho”. Cláudio Abramo virou para mim: “Seu filho da puta, você escreveu isso?!”. Eu falei: “Cláudio, que é isso, você acha que eu ia escrever ‘chefe vermelho’? Foi o Galvão.”. Foi isso. E, depois, havia um clima hidrófobo lá.
P/1 - Quer dizer, e a família também estava envolvida...
R- Sim, diretamente. O Ruy, o Ruy Mesquita. O Ruy Mesquita era um conspirador ativíssimo, ele reunia pessoal da FAB na casa dele, enfim, estavam conspirando para a derrubada do governo. E o Ruy era, nunca deixou de ser, um guerreiro frio, quer dizer, guerreiro frio “sou homem da Guerra Fria”, quer dizer, se fosse necessário defender, jogar a bomba atômica, ele escreveria sobre isso. Ele era o chefe da [editoria] Internacional, e o braço direito dele era o pai do Mino Carta, o Giannino Carta, que era mais irônico, mais cínico, mas também... “la destra”. Tinha um cidadão que era o padre Bouer, aquele padre não tinha nada, era um húngaro, ferozmente anticomunista, como poderia ser um húngaro não comunista. E havia, então, um clima. E então a gente, gente como eu, o Vlado, o Pachequinho, Fernando Pacheco Jordão, o Nemércio Nogueira Santos, era uma coisa opressiva, era opressiva. E a nossa vida era uma maravilha, nós saíamos de madrugada, íamos ao hotel Claridge, depois mudou para o nome de Cambridge, na [avenida] 9 de Julho, ver a Claudete Soares cantar bossa nova. Íamos para a Rua Augusta jantar num restaurante que ficava aberto a noite toda chamado Patachou. Quando não íamos pra zona, que era coisa fina, lá na [rua] Major Sertório.
P/1 - Era perto do João Sebastião Bar?
R- O João Sebastião Bar é um pouco posterior, ele veio mais tarde.
P/1 - Mas...
R- Não, não, não veio, não! Estou enganado. Outro dia até escrevi isso: precisei escrever uma coisinha e citei o João Sebastião Bar.
P/1 – Iam ao Paribar?
R- Sim, Paribar. São três: Arpège, na Rua São Luís; Barba Azul na esquina da São Luís com a praça D. José Gaspar; e o Paribar logo adiante.
P/1 - Saíam do jornal a que horas?
R- Eu não tinha hora. O jornal fechava por volta de uma da manhã, uma e pouco, os últimos fechamentos. Era mais tarde do que hoje, o que é um paradoxo: porque hoje, que você tem a tecnologia toda, o que te permitiria fechar mais tarde, você fecha mais cedo.
P/1 - Esse período de jornal vis-à-vis universidade, na verdade você viveu um momento de alta efervescência na academia tanto quanto no jornalismo.
R- Sim, sim, claro.
P/1 - E emocionalmente era meio complicado, ou não?
R- Não, não, eu apenas... Eu quase bati numa moça, um dia, chamada Iara Iara Iavelberg, porque ela me chamou um dia de “mesquitinha”. Eu disse: “Mesquitinha é puta que te pariu!”. Eu era do Partido Comunista na época, mas pelo fato de trabalhar no “Estadão” ela me chamava de “mesquitinha”. Eu não tenho nenhuma lembrança boa dela e lastimo muito o fim que ela teve. Se fosse um rapaz, um colega, um homem, dava-lhe uma porrada na cara aquele dia. Quer dizer, eu não tinha o conflito de trabalhar lá. Eu gostava do trabalho, gostava de ser jornalista, mas não tinha nenhuma identificação com o jornal, como o Perseu não tinha, como o Cláudio não imagino ter, como todas as pessoas decentes tinham deixado de ter qualquer identificação com o jornal que se tornara um jornal golpista, que rivalizava em sanha com a “Tribuna da Imprensa” do Carlos Lacerda, que, aliás, não saía daquela redação [do “Estadão”].
P/1 - Amigo da família?
R- Amicíssimo da família.
P/1 - Como é que foi o começo da militância partidária?
R- Foi através dessa moça, da Vera Brisola. Vera Brisola tinha lá uma coisa na UJC, União da Juventude Comunista. Nisso devia ter uns 16, 15, 16 anos, por aí.
P2- Isso significava o que, frequentar reuniões?
R- Panfletar, entregar panfletos em pontos de ônibus, dar um dinheirinho. Depois, na faculdade, era bem diferente: na faculdade você tinha que conquistar o poder, isto é, o grêmio, essas coisas. Diretório acadêmico era grêmio.
P2- Já nas Ciências Sociais?
R- Já nas Ciências Sociais. No tempo da Filosofia, eu praticamente fiquei fora, eu larguei, não ia à faculdade, a não ser para de vez em quando jogar xadrez no subsolo. Tinha uns bons amigos da Filosofia, o Maurice Capovilla, que é cineasta, o Victor Noll, que até hoje leciona lá, que era meu colega.
P/1 - E você foi companheiro do Vlado também na militância?
R- Não, não, o Vlado não era. O Vlado era anticomunista. O Vlado teve uma metamorfose: o Vlado era um, antes da visita do [Jean-Paul] Sartre ao Brasil, vindo de Cuba, que o Vlado estava encantado, foi cobrir a passagem de Sartre pelo Brasil. O Vlado não desgrudou do Sartre. Não só cobria as conferências dele, e quando não tinha o que fazer, ele [também] ia. O Sartre, que era um intelectual engajado, abriu, fez um transplante cerebral no Vlado, entende? Antes disso, o Vlado era muito irônico demais, muito perfeccionista demais, muito, não vou dizer cínico, mas muito indiferente demais a este paiseco aqui, este Brasil. Achava o nacionalismo uma coisa horrorosa, e por força do pai dele, da mãe, achava o comunismo uma coisa hedionda – eles eram iugoslavos, enfim. E o Vlado gostava mesmo era de teatro, ópera, cinema, enfim, tudo isso é sabido. Ele era uma pessoa refinada. Ele dizia: “Essa coisa de nacionalismo é uma imbecilidade. Como nacionalismo? O país é atrasado porque o Brasil atura corrupto, as pessoas não prestam, os políticos”. Existia uma visão udenista, embora ele não fosse, mas era uma coisa impressionante. E não estava nem aí [com a] coisa de política. A política de varejo, do dia a dia, lhe dava um profundo enfado. E le gostava de filosofia, gostava de estética, gostava de literatura, era um jovem com uma bagagem deste tamanho. E essa bagagem, depois do raio que caiu na cabeça dele por causa do Sartre, essa bagagem mudou de sentido e o olhar dele mudou de sentido profundamente. Mas o Vlado nunca foi, não tinha nada que ver com comunismo.
P/1 - Esse momento de 1963 aí que você relatou, que resolveu abandonar o jornal por conta do...
R- Sim, porque estava um negócio que me dava [engulhos]. O ar que eu respirava... Metaforicamente, eu tinha ânsia de vômito de ver aqueles tipos. Era uma coisa! Se a gente voltar à coleção do jornal, ver o que saiu, o que eram os editoriais. O Cláudio Abramo uma vez definiu os editoriais como “medievais”, no livro “A Regra do Jogo”. É a coisa mais próxima que eu já vi descrever, em uma palavra, o que era aquilo: era medieval, medieval caçando bruxa, medieval querendo pôr gente na fogueira, medieval fazendo o que vieram a fazer depois, que nos tolheu. O golpe para mim, para tantos como nós, nos amputou, nos cortou pela metade; é como se tivesse passado um trem, ficamos sem as pernas, sem os braços. É uma coisa que me toca muito, porque você era jovem, tudo parecia possível, não é uma generalidade. Eu chego à idade adulta na época do Juscelino, e tudo está estuante, tudo está vicejando nesse país, a transformação, a modernização, o cinema novo, você ganha a Copa do Mundo, você ganha a Copa de Basquete. Brasília! Brasília, o “Estadão” tinha horror, o “Estadão” tinha horror à Brasília!
P/1 - Mas o Perseu fez uma grande cobertura da inauguração.
R- Fez, eu estava nela. Nunca vou esquecer o lead que o Perseu fez para a inauguração. O “Estado” fez uma proeza naquele dia: tirou um jornal, na tarde do dia 21 de abril de 1960. Tinha esse jornal à tarde, em São Paulo, com uma raridade: com radiofoto da inauguração de Brasília. E ele começou dizendo assim: “Brasília, vírgula (aí vem uma série de aspas, era um verso do Guilherme de Almeida) ‘porto dos portos, meta das metas’ (eu sei que tinha isso ‘porto dos portos, meta das metas’, era tudo assim), fecha aspas, vírgula, foi inaugurada esta manhã”. Ah, como eu amava o Perseu. Eu amava como pessoa, eu amava como integridade, eu amava como jornalista, eu amava como... Faz uma puta falta esse cidadão, viu? Até hoje.
P/1 - Faz mesmo.
R- E nós ficamos lá. Então Brasília, veja o contraste: é importante registrar isso. Brasília éramos nós, era a nossa geração indo para uma coisa nova. Eu me lembro da primeira vez que fui a Brasília – eu trabalhei em Brasília, eu morei em Brasília, eu estava ao lado do Juscelino quando ele assinou, no dia da inauguração, o primeiro decreto, que foi a criação da Universidade de Brasília. Fiquei em Brasília, na sucursal do “Estadão”, tudo aquilo... Então, o contraste entre o Brasil de uma pessoa que chegava à idade adulta, era jornalista, era de esquerda, e aquilo era uma coisa; e você trabalhar na coisa mais rançosa, mais ultramontana, era pior do que “O Globo”. E [jornal] “Estado” era contra Brasília. Uma vez o Juscelino fez uma coisa: ele convidou um bando de jornalistas do “Estado de S. Paulo” – mas, aí, a cúpula – para visitar as obras. Mandou um avião, o Viscount presidencial, buscar. No domingo seguinte, cada um escreveu livremente o que quis. E o Cláudio Abramo fez uma coisa linda, ele escreveu “Brasília flor e bomba”. Eu não me lembro o que que era a bomba no texto, mas ele dizia: “Não se pode ser contra Brasília; é como ser contra uma flor”.
P/1 - Esse texto está no livro “A Regra do Jogo”.
R- Deve estar, não lembro.
P/1 – Mas, enfim, essa saída do “Estadão”, mais a traulitada do golpe, e temos um jornalista apaixonado, jovem, para fazer o que da vida? O que você decidiu fazer da vida?
R- Eu saí a convite do Thomaz Souto Corrêa, que hoje é o “capo di tutti capi” da Editora Abril, e que tinha sido chamado pelo Luís Carta, irmão do Mino Carta, para dirigir, ou para ser redator-chefe – não, o diretor era o Luís Carta – para dirigir a revista “Claudia”. Quando ele me chamou, eu fui muito envergonhadamente para lá, mas fui. E eu me senti muito mal, não era meu mundo, estava há anos-luz, o Brasil tinha... já estamos em 1964, já [tinha havido] o golpe, e eu trabalhando numa revista feminina que era tradicionalmente... revista feminina de hoje é outra coisa, lá era uma coisa convencional. Como dizia o [Victor] Civita: “É pra dona Maria de Botucatu que tem que escrever”. E eu lecionava na faculdade a essa época.
P/1 - Fez concurso, tudo?
R- Não, não tinha concurso ainda. É o seguinte. Eu me formei em Ciências Sociais enquanto trabalhava. Formei em 1965. E o Florestan Fernandes, que era o diretor do departamento de Sociologia, me convidou para trabalhar no departamento. Comecei como assistente de ensino, quer dizer, tinha o professor e eu dava os seminários; depois fui dando aula também. E o meu amigo Gabriel Cohn – era moda – pegou e tascou uma Sociologia da Comunicação ali. E eu dava os seminários no curso dele, às vezes o substituía, mas ganhava uma miséria. Trabalhava na Editora Abril já, então. Quando eu fui contratado para ser professor, eu tinha saído já da “Claudia” e estava trabalhando na Abril Cultural, nos fascículos, era editor de texto [da coleção] “Gênios da Pintura”, do “Conhecer”, e tinha uma peculiaridade: eu era o único funcionário da Editora Abril que trabalhava em meio-período, só de manhã. Era o que dava:
somando as duas coisas, dava mal e mal. Em 1965 nasceu meu primeiro filho, então a vida era apertadinha. Eu dizia para o Florestan: “Mas não há um... dá para trocar?”. Porque eu era contratado em tempo parcial, essa coisa não existe mais. “Quando é, professor? Nunca vai sair esse tempo integral?”. “Nem pensar, do jeito que estão as coisas aí...”. Pouco depois ele seria cassado. Sobre isso tem uma anedota muito tragicômica. Ao mesmo tempo, um burocrata qualquer do RH, recursos humanos, da Abril descobre uma anomalia grotesca. “Pô, tem um cidadão aqui registrado e trabalhando meio-período”. Não sei quantos funcionários, tirando a gráfica, quantos funcionários a Editora Abril já tinha àquela época, não eram poucos; quantos jornalistas já tinham lá, não eram poucos; e um tal de Luiz Weis trabalha meio-período. Hei, isso está errado! Eu sou chamado e fazem uma proposta fantástica: “Meio-período você não fica. Ou você vai embora ou você passa a trabalhar o dia inteiro e nós dobramos o seu salário”. Não era mau o salário de meio-período. Eu vou para o Florestan e digo: “Professor, olha, aqui não tenho chance de ter tempo integral. Professor, eu vou largar a academia, sinto muito.” E aí acabou a grande carreira do sociólogo Luiz Weis. Meses depois – deixa eu contar essa –, quando do AI-5, uma noite toca o telefone em casa, a minha amiga Nilce [Tranjan] – não sei se ainda estava casada com o Geraldo Vandré ou não, se já tinha se separado dele – ela para casa e diz: “Ô Weis, você foi cassado, foi aposentado”. “Como?” “Você saiu na ‘Hora do Brasil’.” “Você ouviu isso?” “Eu ouvi: Luiz Weis, professor Luiz Weis.” “Mas eu não sou professor!” “Mas está lá: ‘pelo Ato Institucional número 5 ficam cassados os seguintes, e aposentados os seguintes, suspensão dos direitos políticos e aposentadoria’.” Bom, eu estranhei aquilo, mas ela ouviu, ouviu. Aí eu bati o telefone para o Oliveiros Ferreira, que estava na cúpula do “Estadão”, de quem eu era muito [amigo], fomos muito amigos, depois nos afastamos, mas naquela época ainda éramos muito próximos, eu ia à casa dele. Falei: “Oliveiros, que história é essa? Você tem a lista? É verdade que eu fui cassado?”. Ele disse: “Não, foi cassado um professor de Medicina em Ribeirão Preto chamado Luiz Reis”. Eu até hoje não sei o que eu senti depois que eu desliguei o telefone: se foi alívio, se foi... Eu queria ser cassado. Sabe, até hoje esse nó não desatei, passados, sei lá, 40 anos desse negócio. Então, assim, tinha terminado, definitivamente, uma carreira acadêmica. Eu voltei a lecionar Jornalismo na FAAP, quando o Perseu Abramo foi convidado – isso o Vlado, eu e outros. O Perseu foi convidado para assumir a direção do departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da FAAP, Fundação Armando Álvares Penteado, para o registro. Aí ele juntou um grupo bom de jornalistas, entre eles eu, para dar aula. Começamos a dar aula e eu achava um porre, porque, enfim, não era a [minha] vocação. Uma vez eu estava dando aula – eu dava aula de edição de jornal, como é que você edita um jornal. Então, ao invés de ficar falando, a ideia era criar situações concretas e trabalhar com a classe. Então eu digo: “A situação é a seguinte: são nove horas da noite e chega pelo teletipo a notícia que morreu Mao Tse Tung. Nós vamos fazer essa edição com a morte do Mao Tse Tung. Como é que vai ser, como é que vamos dividir, como será a edição disso, quais serão as matérias, como lidaremos com isso?”. Aí um garoto, lá do fundo da classe, levanta a mão e diz: “Professor, quem é esse tal de Mao Tse Tung?”.
P/1 - Desmotiva qualquer professor.
R- Bom, eu já estava de saco cheio, mas aconteceu uma coisa que é importante registrar. Um dos professores, um dos jornalistas que o Perseu havia convidado para dar aula, foi vetado – era o José Hamilton Ribeiro. O Perseu não teve dúvida: se demitiu na hora. Houve um veto ideológico, calhorda, canalha: esse é o que era aquele Brasil do começo dos anos 1970 –
69, 70. O Perseu imediatamente se demitiu, eu me demiti, Vlado se demitiu, não sei mais quem se demitiu. Houve um que não se demitiu: o Rodolfo Konder. Achou que não tinha nada com isso e seguiu a vida. Essa foi uma última volta que eu tive para a, digamos assim, universidade.
P/1 - No jornalismo?
R- No jornalismo eu tinha saído do “Estadão”, já tinha virado redator-chefe da “Claudia”, e aí entrou a faculdade para dar aula, aí eu saí da “Claudia”, fui para os fascículos, trabalhava meio-período, aí quando o cidadão descobriu que era uma aberração ter um funcionário registrado trabalhando meio-período, dei tchau para os fascículos e fui para a [revista] “Realidade”.
P/1 - No início da revista?
R- Não, não, do meio para o fim: estamos falando em 1969, 70. Eu me lembro que quando eu entrei, a “Realidade” saiu com uma capa sobre o [Luís Carlos] Prestes, que coincidiu com o Ato 5. Ainda me lembro até da capa, era um desenho, uma matéria do Paulo Patarra, este, outro extraordinário jornalista. Chamava Paulo Patarra. Aí eu fiquei na “Realidade”, onde eu conheci o José Carlos Marão, do Observatório da Imprensa, que era um brilhante repórter. Como não existia revista semanal, a “Veja” não existia ainda, a “Realidade”, embora mensal, tinha, no “front of the book”, antes de entrar [nas matérias principais], antes você tinha o índice, o expediente, e aí você tinha uma seção de seis a oito páginas de variedades, que tinha a ver um pouco com consumo cultural; ali você contava os filmes que iam entrar, enfim, era uma coisa muito puxada para a cultura. Seria típico de uma semanal, mas não existia semanal,
tanto é que quando entrou a “Veja” isso perdeu o sentido. Daí eu fazia aquilo, era o editor daquilo, daquela seção inicial. Foi ótimo, foi muito bom, eu achava ótimo trabalhar nisso, tinha gente boa, eu podia distribuir freelances, um bando de gente, inclusive no exterior, coisa boa. Depois, quando isso dançou, acabou, eu virei, vamos chamar de editor de assuntos especiais, isto é, fazia matérias especiais e editava matérias.
P/1 - Viajava muito ou não?
R- Não. Fiz uma viagem só para o exterior. Eu fiz, talvez, a primeira matéria – depois virou uma banalidade – sobre brasileiros bem sucedidos nos Estados Unidos.
P/1 - E com o fim da “Realidade”, continuou na Abril?
R- Não, eu saí antes da “Realidade”. Porque àquela época um colega meu, que era meu amigo, trabalhávamos junto no “Estado”, tinha assumido a direção de redação da revista “Visão”. O nome dele é Antônio Marcos Pimenta Neves, que matou a namorada. E aí ele me chamou. E eu estava lá na “Realidade”, já de saco cheio, tinha mudado diretor, o diretor era um borra-botas, um tal de Paulo Mendonça, a equipe já tinha ido embora. Aí o Pimenta disse: “Você não quer me ajudar, aqui na ‘Visão’, a fazer a revista, quinzenal e tal?”. E eu fiquei assim, mas: “Vamos”. E aí fomos, o Vlado também foi, foi o Marco Antônio Rocha, que era também amigo do Pimenta, então, aí e fiquei de 1970 até 75, quando o Vlado, já então tendo saído da “Visão”, que também mudou de dono, também degringolou, porque a “Visão” no tempo do Said Farhat, embora...
P/1 - Era uma revista importante.
R- Era uma revista importante. Foi a revista onde o Vlado fez, com o Zuenir Ventura, aquela matéria célebre sobre vazio cultural; ele era editor de política, editor de Brasil – Nação, se chamava –, o Marco Antônio Rocha editor de Economia, Miguel Urbano Rodrigues era de Internacional.
P/1 – Foi a revista que fez aquela matéria com o Glauber Rocha, na qual este dizia que o [general] Golbery [do Couto e Silva] era um “gênio da raça”.
R- Exatamente. Depois, tinha reforçado o time. Tínhamos resgatado para o jornalismo um sujeito maravilhoso que tinha caído em desgraça no “Jornal do Brasil”, que era colunista do “Jornal do Brasil”, chamado D’Alembert Jaccoud. Ele largou jornalismo, ele era advogado, ele tinha diploma, e virou advogado. Mas aí o Zuenir e eu, nós fizemos... Eu não o conhecia pessoalmente, sabia [dele pelo que] tinha lido no “Jornal do Brasil”. Ele veio. Depois o Pimenta foi embora para trabalhar para o
Banco Mundial nos Estados Unidos, e veio dirigir a revista o Luiz Garcia, que foi o editor de Opinião do “Globo”, hoje uma espécie de ombudsman do “Globo” e tem uma coluna semanal.
P/1 - E a censura, Weis? Como é que era trabalhar sob o tacão da censura?
R- Não tinha, tinha...
P/1 - Não tinha censura?
R- Não havia censura lá dentro. Telefonava dona Solange e dizia: “Fica terminantemente proibido...” ou mandava, não sei, pelo telex, “fica proibido noticiar a meningite, a prisão de não sei quem e tal”. Gozado, nós não éramos importantes. O que nós escrevemos era um assombro para um país com a imprensa [censurada]. Nós não tínhamos apelo popular, mas éramos uma coisa muito lida pela “intelligentsia”. E eu me lembro que nós publicamos coisas do arco da velha. Montamos uma vez um seminário, uma mesa-redonda, estamos falando em 1974, antes ainda da eleição, com o Fernando Henrique, o Carlos Castello Branco, o professor não sei quem, e falaram horrores do governo, nós falávamos horrores do governo. Mas [sobre] a censura, nós estávamos abaixo do radar deles, porque talvez estivéssemos acima da mídia de massa que tinha e tal, mas éramos muito importantes: as pessoas liam a “Visão”, era o que você tinha para ler, tirando a imprensa alternativa, “O Pasquim” e tal. Aí também o dono da Visão, que era um liberal, o Said Farhat: então, era apoio integral, irrestrito e total à política econômica do regime [comandada por Delfim Netto]. Ou qualquer antes disso, como [Otávio Gouvêa de] Bulhões, [Roberto] Campos, enfim, todo o “milagre [brasileiro”]. A revista patrocinava o “milagre”. Me lembro que eu fui para Nova York fazer uma edição em inglês para vender no mundo sobre “Why invest in Brazil?”. Mas, então, a economia não tinha jogo, aí não tinha jeito;
mas política, cultura e mesmo exterior, internacional, tinha uma latitude enorme, e deixava realmente a coisa progressista. Aí o Farhat vendeu a revista para esse troglodita do Henry Maksoud e aí acabou, trocou a redação, houve realmente uma intervenção federal, tanto que desembarcou uma equipe: o Ewaldo Dantas Ferreira, Carlos Brickmann, o sujeito que já morreu, como é que chamava?, o João Victor Strauss: era tropa de ocupação. Eu tinha uma situação peculiar, eu era dirigente sindical, coisa que me causou depois mais problemas. E eu não podia ser demitido da “Visão”. Criou-se uma situação toda, e eu acabei saindo por conta própria, mas porque eu tinha sido marginalizado. Depois eu ganhei na justiça do trabalho e tal. Mas eu fui embora, porque eu tinha estabilidade. O Vlado também já tinha saído, e tinha sido chamado para ser o diretor de jornalismo da TV Cultura. E ele me chamou para ser o redator-chefe dos telejornais da TV Cultura.
P/1 - Era lá onde você estava em outubro de 1975?
R- Eu estava até o começo de outubro de 1975, quando um dia o Vlado me disse, “Olha...”, bom, a caça já tinha começado.
P/1 - Sobre isso: o teu primeiro amigo, companheiro que caiu. A primeira notícia que você teve de que a caça começou...
R- Espera um pouco, estamos falando de caças diferentes. Uma era a caça [havida] depois da eleição de 1974 e do esmagamento da luta armada, da resistência armada: a ditadura voltou-se contra o Partido Comunista, porque isso fazia parte daquele conflito que opunha o [general] Sylvio Frota ao Golbery e ao Geisel. A ideia da ultradireita era mostrar que havia um conluio entre MDB, Igreja e o Partido Comunista, o que tinha dado na vitória eleitoral [da oposição] de 1974. Então, há duas caças. Aí começa uma caça aos comunistas, e aos jornalistas comunistas. E o primeiro nome que me vem, e que sofreu horrores, horrores: Marco Antonio Coelho, pai do Marco Antônio Coelho Filho, que está hoje, em 2005, na TV Cultura. E a outra caça que começou contra o jornalismo da TV Cultura, com aquele pústula do Cláudio Marques escrevendo no “Shopping News”, e aquele outro pústula, aquele deputado Wadih Helu, na Assembleia Legislativa, da Arena. Enfim, denunciavam que aquele era um ninho de comunistas, porque tinham passado um documentário sobre o Vietnã. Essa história toda, não acho que eu preciso entrar em detalhes, porque ela é mais do que conhecida e tal. No plano pessoal, nesse momento, eu tomei duas iniciativas de comum acordo com o Vlado. Numa, eu fui ao “Estadão” e levei o problema para o diretor de redação, na época era o Fernando Pedreira. “Olha, sabe, vocês precisam atentar para o que está acontecendo, nós estamos sendo vítimas de uma caça às bruxas, não tem nada, estamos fazendo jornalismo dentro [das regras do jogo], estamos tentando fazer um trabalho decente, mas não é um ninho de subversão, não é nada.” E eu fiz uma segunda coisa, que eu preciso contar antes um pequeno episódio. O Vlado, numa tentativa com a qual eu compartilhei: “Vamos fazer uma série, vamos fazer um pouco de média com o governo federal”. Então, pela primeira vez, foi uma equipe da TV Cultura, aliás, não foi uma equipe, fui só eu, porque não tinha dinheiro, nós íamos usar imagens da TV Educativa de Pernambuco para cobrir um evento qualquer do Geisel. Era a inauguração de uma coisa ligada a petróleo, me lembro que estava o Shigeaki Ueki, que era nosso ministro de Minas e Energia, e foi lá que eu conheci o Humberto Esmeraldo [Barreto], que era o secretário de Imprensa da Presidência, o filho adotivo do Geisel. Quando a coisa começou a ficar preta aqui em São Paulo, eu tive uma ideia e disse: “Vlado, eu vou para lá, vou para o palácio [do Planalto]. Vou falar com o Humberto Esmeraldo para ele levar para o governo”. E fui, fui recebido, contei a história a ele. Ah, sim, apareceu um general também: a primeira coisa que esse cara fez foi pegar meu nome, RG, filiação, data de nascimento, porque queria checar a ficha. Mas, enquanto isso, até expliquei, apontei lá para o Humberto: “Olha, está acontecendo isso e isso e isso, todo domingo esse Cláudio Marques está escrevendo, e coisa, mas nada é verdade, nós não somos... tal tal tal, tal tal tal”. “Não se preocupe, isso é” – como é que é a expressão? – “isso é coisa paroquial, não tem nada. Volta lá, vai para o seu trabalho, não tem problema nenhum.” Quer dizer, a TV Cultura e seu jornalismo não estavam sob ameaça, era uma coisa paroquial. Assim ele desqualificou o problema, não dava importância. “Vai trabalhar”. Paroquial, né, amigo? Pouco depois, era secretário da Cultura o José Mindlin, quando nós fomos chamados, o Vlado e eu, pelo Mindlin, mais contrafeito, mais constrangido do que se possa imaginar, ele diz: “Nós estamos com um problema. O SNI verificou” – eu não sei se ele falou, mas, enfim, verificou, não sei se era o SNI – “que você é dirigente sindical, você é indemissível, tem estabilidade, e chegou-se à conclusão que a TV Cultura não pode, dadas as circunstâncias, não pode ter, ainda mais numa função de seu segundo homem do jornalismo, o redator-chefe dos telejornais, um dirigente sindical.” Então era para eu me demitir. Eu me demiti, uma coisa traumática para mim. Era a ideia de eu ser o boi de piranha; eu seria, mais nada. Aí eu fui para a “Veja”, pedi emprego na “Veja” e me deram emprego. O chefe de reportagem era o Luiz Cláudio Cunha, um sujeito formidável, falou com o Mino Carta, que era o diretor [de redação], e fui trabalhar na editoria de Política, [cujos] editores eram o Marcos Sá Corrêa e o Almyr Gajardoni. Eu estava na noite lá quando vieram pegar o Vlado, na TV Cultura. Na mesma noite, eu estava morando sozinho na época, com uma empregada, por sorte eu estava no fechamento, aqueles fechamentos horrorosos da “Veja”, que terminavam quatro, cinco da manhã. Aí toca o meu telefone, e eu já sabia que o Vlado tinha sido procurado na TV Cultura e que tinham feito um acerto para que ele se apresentasse na manhã seguinte, 25 de outubro, no sábado. E àquela época já tinham sido presos todos os meus amigos, quer dizer, o [Paulo] Markun, o George Duque-Estrada, o Anthony de Cristo, o Rodolfo Konder, enfim, todos jornalistas que efetivamente formavam uma basesinha do Partido , cuja importância era zero à esquerda. Nós nos limitávamos a receber o [jornal] “Voz Operária”, conversar um pouco e tocar a vida. Era uma coisa pouco mais que nominal. E na sexta-feira de madrugada, estou lá trabalhando, a empregada me liga e diz: “Olha, vieram umas pessoas aqui, disseram que acharam seus documentos, perguntaram pelo senhor, vieram entregar os seus documentos que o senhor perdeu”. Falei: “Tudo bem, faz uma coisa, você é de Minas, não é? Então vai embora, vai ver sua família, tira uma semana, vai embora assim que amanhecer”. E aí, bom, eu voltei para casa acompanhado de pessoas para ver se tinha algum problema, mas só para trocar de roupa.
P/1 - Onde você morava?
R- Rua Ministro Rocha Azevedo, morava numa vila, entre a Oscar Freire e a Lorena, do lado esquerdo de quem sobe. Essa vila existe até hoje, ao lado do que é hoje o supermercado Pão de Açúcar. Eu não fiquei lá, peguei minhas coisas e fui para a casa de um amigo, onde fiquei. Lembro-me que no meio da noite, de sábado para domingo, eu estava com tranquilizantes, estava meio grogue, mas eu vi, sabia que era de madrugada, eu vi tocando a campainha, gente chegando, falei: “Pô me acharam aqui, dane-se”. Eu sei que apaguei na hora. De manhã, quando eu acordo, meu amigo está lá, é um publicitário, ele olha para mim: “Ô Weis, você vai ter que ser muito forte agora. Mataram o Vlado”. E aquele barulho todo de madrugada era gente que tinha vindo contar. Bom, a história, a partir daí, [era] mais um motivo para eu continuar fora de circulação. Eu acho desnecessário falar das emoções, é um tanto quanto óbvio, como é que você fica: você fica aterrorizado pelo que possa acontecer contigo. Você fica querendo comer o fígado de todo mundo, lógico, uns filhos da puta, e evidentemente você pensa no teu melhor amigo, porra, nos filhos, no Ivo, no André, na Clarice que foi tua colega de classe e a quem você apresentou para o Vlado. É um impacto, é o dia mais trágico da minha vida. Nada que se compara, lógico. Continuo?
P2- Você foi ao enterro?
R- Não, não fui ao enterro, não fui à missa. Nem um nem outro porque eu estava preso, porque aí entra a sequência desse negócio. No domingo, o pessoal do DOI-Codi divulgou aquele bilhete que o Vlado tinha escrito e rasgado, que era uma confissão: “Eu, não sei o que lá, recrutado por fulano de tal, membro da base do Partido Comunista da revista ‘Visão’, juntamente com blablablá”, e estava o meu nome lá. Aí eu fui parar numa outra casa, e aí fiquei. Mas, ainda assim, na segunda-feira de manhã eu fui para a “Veja”, meu emprego, onde eu ia ficar? Eu não podia viver na clandestinidade, eu também não ia me expor no fim de semana. Você entende? Para todos nós que vivemos a ditadura, fim de semana era muito diferente de segunda a sexta. Todos os cuidados que uma pessoa devia ter, devia ter especialmente, acima de tudo, no fim de semana, quando você não tem advogado, os jornais estão fechados, você não tem arrimos, você não tem proteção. A pouca proteção que você teria num dos dias úteis, no fim de semana as pessoas somem, as notícias são mais devagar. Mas, na segunda-feira, eu disse: “Bom, eu vou para o meu abrigo”. O meu abrigo era o meu emprego. Claro, que eu não ia lá para trabalhar, quer dizer, essa ideia não se colocava, mas era viável. Aí o Mino primeiro me ofereceu, não sei como, foi uma coisa muito generosa da parte dele, mas inteiramente inviável, do ponto de vista prático e do ponto de vista da minha distância de filho, minha ex-mulher estava internada, enfim, coisas da vida. Ele perguntou se eu não queria morar em Madri pela revista. Agradeci muito, mas eu não via como é que eu ia sair, e muito menos como é que eu ia viver fora do meu quadro pessoal. Agradeci muito e tal. Aí ele e o Audálio Dantas, presidente do sindicato dos jornalistas, articularam a minha apresentação – ninguém me procurou mais desde aquela sexta à noite, mas como eu tinha sido citado... – minha apresentação no QG do Segundo Exército. E foi que aconteceu, na tarde do dia seguinte, terça-feira. Então fomos lá o Mino Carta, o José Roberto Guzzo, que dividia a chefia da redação com o Sérgio Pompeu, depois ficou só ele; Mino Carta, ele, o Audálio Dantas e eu. Vamos fazer uma pausa? É o seguinte: eu já falei isso tantas vezes. É para falar. Não, não, o que você quer? Você quer que eu reconstitua tudo isso? Qual é o sentido agora?
P/1 - Eu acho que esse testemunho é riquíssimo, se você puder contá-lo.
R- Então vou continuar. Muito bem, então fomos lá, fomos recebidos pelo coronel Paes, não me lembro do primeiro nome dele. Ele era um sujeito que, no QG do Segundo Exército, pressionava o DOI-Codi. Disse, sobre o Vlado: “É, que coisa, como é que ele foi se matar, que coisa terrível”. Lógico, fazia parte de toda a encenação. Isso sobreveio ao longo da conversa, não comigo. E eu, para ser fiel aos fatos, devo dizer que nessa hora o jornalista José Roberto Guzzo disse: “É, essas coisas acontecem”. O Mino e o Audálio não disseram isso. Isso ficou. Bom, aqui está tudo bem, então o senhor vai, um pouco assim no raciocínio “não deve, não teme”: “O senhor será levado lá no DOI-Codi onde o senhor prestará depoimento.”. E aí de fato logo chegou uma viatura do Exército, que me levou, atravessou a rua, praticamente, e lá entrei e o sujeito já foi dizendo: “Bom, aqui é assim”: – o sujeito que abriu a porta para mim –
“quem colabora a gente trata como gente, quem não colabora a gente trata como cachorro. Tira a roupa, veste o macacão”. Aí estamos: tirei a roupa, vesti o raio do macacão, tinha um, uma espécie de sala, um corredor, entulhado de gente, ah sim, com capuz, já com capuz. E fiquei horas ali, nada acontecia. E tinha uma menina, uma voz de criança, que estava armando o maior auê ali, reclamava, não sei o que lá, não sei o que ela reclamava, mas eu fiquei muito pasmo: o que que é isso, essa pessoa que eu não conseguia ver quem era, que coragem que ela tem. Essa pessoa chama-se Marinilda Marchi, ela foi barbaramente torturada e eu nunca vi lá uma pessoa tão corajosa quanto ela, ou não vi ninguém mais corajoso do que ela. É uma coisa impressionante. Mas ela tinha uma coisa que vinha com uma naturalidade, brotava, era uma coisa assim, dando esporro lá dentro, o que não impediu que ela tenha sido torturada, e antes de ser torturada, um monte de coisa: comeu o pão que o diabo amassou. Aí eu também reclamei: “Pô, eu quero ir para a cela, eu quero dormir!”. E aí me levaram de madrugada para uma cela, onde eu ficaria uma semana. Eu não fui torturado. Houve ameaças, tal, mas não fizeram nada. Era uma cela muito divertida, como nos dias seguintes vim saber, porque não era de jornalistas. Tinha de tudo ali, tudo do PC. Tinha um feirante, tinha um capitão da Marinha Mercante, que era um fotógrafo, ele tinha viajado o mundo e passava o dia contando anedotas. E tinha um menino, eu pela primeira vez eu vi o que é tortura, ele não podia pôr os pés no chão. Ele foi apanhado com uma mala de dinheiro, em Santos, dinheiro que vinha do exterior para o Partido. A planta dos pés dele era carne viva. Ele não podia pôr [os pés no chão], as pessoas tinham que ajudá-lo. Os gritos de madrugada, tudo que se segue, começam os interrogatórios. O primeiro que me interroga é o mau, porque tem o bom e o mau, tem o mocinho, o “good cop”, o “bad cop”. O mau diz assim: “Muito bem. Conta aí”. “Eu me apresentei...” “Apresentou nada, você está é preso, seu filho da puta!” E aí, ele muito preocupado, não com o Vlado, estava mais preocupado com a base judaica do Partido Comunista e o Alberto Goldman, em especial. Eu não sei, realmente não tinha mesmo a mais remota ideia, não tinha contato com o mundo judaico. O segundo interrogador, o bonzinho, eu entrei de capuz, ele disse: “Tira o capuz, aqui comigo não tem essa coisa de usar capuz nada! Não sou como os outros!”. Sabe, essa coisa é uma farsa. Daí começou a falar no suicídio: “Como é que é você entende o suicídio do Vlado, vocês eram amigos”. Eu falei: “Não sei. Suicídio?”. “Sim, suicídio.” “Mas o que era?” “Ele era da KGB.” “Não, ele não era.” “Ele era, mas ele não era equilibrado.” Enfim, tudo fazia parte. Em certa hora ele me apresentou um depoimento de alguém, cuja assinatura ele tampou, e disse: “Veja só”. Era um depoimento dizendo o que nós éramos. Falei: “É isso mesmo”.
Não ia negar o óbvio, estava lá, então era uma espécie de equivalente àquele bilhete do Vlado, mas só detalhadamente: nos reuníamos na casa de fulano, na casa de cicrano, pa pa pi, pa pa pó. Eu acho que foi mais um interrogatório só. Depois teve a coisa que todo mundo passava: fazia uma espécie de prestação de contas, que era para os analistas: se escrevia de próprio punho uma análise dos objetivos do Partido Comunista, quais são as metas, era mais para o cérebro usar. Enquanto isso tinha havido o enterro, tinha havido a missa, cuja verdadeira dimensão – que lá dentro a gente não tinha – eu fui saber até depois. Aí minha prisão foi legalizada, como a de todo mundo:
você vai para o DOPS, passei mais três dias no DOPS. E aí já é a civilização, é Suécia: você entra, o primeiro que te recebe lá, no meu caso, te oferece o leite, que vai tirar as tuas digitais, que vai te fotografar, e diz: “Não esqueça que te tratei bem”. Era o juiz [de futebol] Dulcídio Wanderley Boschilia, que trabalhava no DOPS. Hoje eu soube que vários outros falaram isso, o Romeu Tuma disse isso para alguém também, que outro dia me contou. “Nunca esqueça que te tratei bem.” O Romeu Tuma era delegado lá. Aí você é levado para o Fleury te ver, Sérgio Fernando Paranhos Fleury; só para te olhar: você vai, abre-se uma porta, ele te olha, faz assim, fecha-se a porta, você volta para a cela. Só para te olhar. E aí um belo dia, você sem mais aquela, você é tirado do DOPS, para onde? De volta para o Segundo Exército. Você não sabe se está voltando para o DOI-Codi: a situação é de terror, aí é muito aterrorizante. Não: “você depor como testemunha no IPM do suicídio do jornalista Vladimir Herzog” – onde você passa por uma coação. O presidente do IPM é o [coronel] Cerqueira Lima, boa gente, falava que eu fumava muito, “não faz bem”. Perguntou se eu já tinha estado na Rússia; falei: “Não, nunca estive”. “Lá faz muito frio, tive lá uma vez, lá.” E ao mesmo tempo você tem o procurador, que era um civil, que realmente fica te enfiando palavras na boca. “O Vlado se suicidou.” “Não!”. E o cara já vai botando nos autos. Eu falei: “Não! A morte, eu não falei em suicídio”. Mas isso vai, e você não sabe o que vai acontecer depois contigo, o que vai acontecer quando terminar aquele depoimento, e a sala cheia de milicos, de oficiais, coronéis, todos com as caras adequadas ao que eles eram e à ocasião. E você não sabe se você volta para o DOPS, se daí você volta para o DOI-Codi, enfim... é uma situação. Depois, quando houve o processo que a Clarice moveu, tudo isso, todos os depoimentos são [dados] ao juiz que se aposentou antes de poder dar a sentença, que depois o sucessor dele deu, responsabilizando a União pela prisão ilegal e tortura e morte de Vladimir Herzog; então todos nós depusemos naquele processo, e todos contávamos a mesma história sobre o que foi aquele IPM, que de fato conclui pelo suicídio, lógico. Terminado o depoimento no Segundo Exército, no IPM, o que acontece? Aí você volta para o DOPS simplesmente para pegar as suas coisas e ir embora. Está livre. Você está citado no inquérito sobre o Partido Comunista, noventa e tantas pessoas, das quais apenas um punhado foi indiciado, e eu não, e dos indiciados apenas um ou dois pegaram cadeia, por alguns meses. Não era nada. Quer dizer, a tragédia, não é que eu quisesse que fosse, mas o desbalanceamento entre a morte do Vlado e o resto que não tinha nada! Você entende? Citados no inquérito do DOPS, que era o que legalizava as coisas, você tinha oitenta e tantos nomes, advogados, jornalistas, todo mundo que está aí, futuros secretários de Estado, não sei se futuros ministros, mas também jornalistas, o pobre do feirante, o pobre do garoto cuja planta dos pés foi arrancada. Nada. E é isto.
P/1 - Uma morte.
R- E aí o Vlado morre e eu volto para a “Veja”, e a primeira matéria que eu faço e fecho, o Mino quis fazer, era sobre imprensa alternativa. Bela matéria. Eu tenho até hoje em casa o original carimbado, censurado, porque tinha censura: a cada três linhas cortava dez. Bom, volto à minha vida, como é?
P/1 - Na verdade, eu queria duas coisas, pra gente já encaminhar o fecho. Uma, é você descrever um pouco esse processo de trabalho, depois do Vlado. São duas coisas, o terror continua mas, ao mesmo tempo, há [um início de abertura].
R- Exatamente. A essa altura, embora depois tivesse havido a morte do Manoel Fiel Filho, depois tivesse havido o assassinato do pessoal do PC do B na Lapa, embora você trabalhasse numa revista sob censura, você sabe que o jogo tinha virado. Eu escrevi sobre isso junto com a minha mulher, num capítulo de um livro chamado “História da Vida Privada no Brasil”, volume 4; o capítulo chama: “Carro zero e pau de arara: o cotidiano da classe média sob o regime militar”. E é isso, como está dito lá, você já agia como se [tivesse acabado] acabou. Você sabe que a anistia virá, quer dizer, há uma quase inexorabilidade. Sim houve atentados terroristas, a explosão das bancas de jornais, você teve o Riocentro, que não houve, o Golbery, mas
eu acho que para a maioria das pessoas era claro que estávamos caminhando, lentamente, mas estávamos caminhando para os finalmentes.
P2- Houve alguma coisa que você vivenciou que sinalizou essa virada, Luiz?
R- Não pessoalmente, mas no curso das coisas. Houve a crise na “Veja”, no fundo o governo pediu a cabeça do Mino Carta, e na época eu me lembro que no fundo Mino era um incômodo, era um estorvo mesmo, mas ao mesmo tempo ele queria, e digo isso com muita tranquilidade, porque devo a ele um emprego num momento muito difícil da minha vida, quando saí da TV Cultura, mas ele queria derrubar as colunas do templo junto com ele. Então ele queria que a “Veja” fechasse, ele queria que todo mundo se demitisse. Eu não o julgo por isso, mas ele realmente torcia para que a redação toda fosse embora com ele. Eu achava que, de qualquer maneira, embora devesse ao Mino o emprego, eu achava que não, que a revista tinha que continuar, não por razões sindicais, emprego, mercado de trabalho, [mas] porque ela poderia ser – eu acho que ao final das contas eu me enganei – que ela poderia ser ainda um canal de jornalismo não vou dizer de oposição, mas era uma revista que já era importante, então um canal de jornalismo que tivesse força e que ajudasse a arejar o debate público, no ocaso da ditadura. Mas não foi isso. O Guzzo, que assumiu, foi o patrono dessa grande virada que deu no que é a “Veja” hoje. É aí que começa uma trajetória, que talvez tenha tido um recuo no tempo do Mario Sergio Conti, que é uma pessoa que, salvo melhor juízo, eu considero decente, mas, enfim, a grande linha que desemboca nesse jornalismo de sarjeta que a “Veja” faz hoje começou com o Guzzo. E começou por convicção, não precisou ninguém do governo dizer para ele.
Eu tenho até hoje uma matéria. Eu tenho até hoje uma matéria... Na sucessão do Geisel, havia uma discussão enorme se o MDB ia lançar um candidato alternativo, ou ia participar da eleição indireta com o general Euler Bentes Monteiro, ou não. E era uma coisa toda especulativa. E o chefe da sucursal da “Veja” em Brasília era o D’Alembert [Jaccoud], que depois do ocaso da “Visão” tinha passado para a “Veja”, da qual, depois desse episódio que vou contar, saiu e nunca mais [dedicou-se ao] jornalismo. Foi ser um advogado muitíssimo bem sucedido, ganho rios de dinheiro, merecidamente, sendo o advogado do PC Farias. O D’Alembert mandou, fez uma apurática irrepreensível prevendo a decisão do PMDB na época, do MDB, você escolhe.
P/1 - MDB.
R- MDB. E concluiu, quase com uma enquete, falando com todo mundo, que o MDB ia participar da eleição indireta com o general Euler, coisa que de fato aconteceu. Eu fechei essa matéria. E as matérias todas eram canetadas pela mão peluda do Guzzo. E a matéria começava assim: “Virtualmente certo”, não me lembro das palavras, mas eu tenho o texto em casa, canetado. E cortou tudo, e diz: “Muitos se falará, muitos se discutirá, mas uma coisa é certa: o MDB não terá candidato”. Eu guardei isso. E o D’Alembert se demitiu.
P/1 - Era assinada a matéria?
R- Não. Não, não era, na ocasião não era assinada. Havia um problema: me lembro que o diretor da sucursal era o Pompeu de Souza, que depois viria a ser senador da República, e que trabalhava intimamente com o D’Alembert, e que podia se invocar como circunstância atenuante para aquilo que o Guzzo fez, eu acho que não é, o fato de o Pompeu estar engajado numa candidatura Euler pelo MDB. Mas isso não altera, isso não alterou em nada; ponho as duas mãos no fogo, as mãos dos meus filhos, pela correção profissional do D’Alembert. Mas foi um momento de virada também na “Veja”, um fato honestamente apurado, a verdade até o ponto em que você pode conhecer é relatada pelo repórter, e vem o redator-chefe, o diretor de redação já naquela época, e diz: onde você escreveu preto, ele põe branco.
P/1 - É aquilo que se diz, não é: “Fulano de tal disse isso?”. “Não, não disse.” “Poderia ter dito?” “Poderia.”. “Então ele disse.”
R- É isso.
P/1 - Certo. Luiz, tem aí um painel jornalístico para ser explorado, inesgotável, mas eu gostaria que a gente retomasse um pouco a tragédia, e o drama e tudo que representou o Vlado, dentro da seguinte perspectiva: são 30 anos. Em 30 anos, basta olhar para as faculdades de jornalismo, quer dizer, as pessoas não têm 30 anos; não estavam sequer nascidas e muita gente sequer conhece que nome é esse, sabe que eventualmente foi um jornalista que foi torturado e morto. Mas com a tua convivência com ele, com a tua experiência profissional e com o que você conhece da realidade hoje, que lições isso suscita? O que ficou de Vladimir Herzog para os pósteros e, sobretudo, para aqueles que não vivenciaram nada disso, que estão começando a conhecer todo esse quadro agora. No que conhecere tudo isso pode ser importante para o futuro?
R- No ano passado [2004], o “Correio Braziliense” e o “Estado de Minas” publicaram – afinal se viu, equivocadamente – fotos de um padre canadense mas que foram identificadas pela Clarice Herzog, por mim e por outras pessoas (outras não identificaram, não viram), mas nós as identificamos como [sendo o] Vlado, erradamente. E o jornal bancou aquilo tudo. O ponto não é esse, o ponto é apenas a oportunidade para que este pseudo-Vlado, que não era o Vlado, o renascimento do caso – do caso e mais do que isso, do regime – teve a serventia de mostrar pelo menos a uma parcela dessa geração, pelo menos uma parcela da parcela da geração que se encaminha para o jornalismo, um pouco daquela história – por isso e pela nota do Exército. Eu escrevi um prefácio, a pedido do Fernando [Pacheco] Jordão, para a nova edição do livro dele, sobre o caso, o “Dossiê Herzog”. Eu digo nesse prefácio, entre outras coisas, que a nota, aquele documento militar, era como se fossem os mortos falando. Havia dois mortos, os que estão mortos e aqueles que morreram e não sabem ainda que morreram, e que falavam da revolução – aquilo voltou muito. Mas eu não sou muito otimista, não. O João Batista Andrade está concluindo, a essa altura, um documentário sobre o Vlado. Ele me contou que ele montou a câmera dele na porta da Fundação Casper Líbero, na porta da Gazeta [na avenida Paulista], onde tem as faculdades. E ele perguntava à garotada que estava saindo da faculdade, ou entrando, quem era: “Quem é Vladimir Herzog?”. E a esmagadora maioria das pessoas, dos meninos, não sabia. Ainda que o Centro Acadêmico da Faculdade de Jornalismo da Casper Líbero se chame “Vladimir Herzog”. Eu não estou dizendo que os alunos de jornalismo não soubessem, isso é improvável, certamente sabiam, porque, afinal, o raio do Centro... Mas tinham uma noção muito, muito vaga. Eu não sei, eu não sei meu caro. Eu sei que a falta que ele faz é o que é. Eu sei que, por acasos da vida, ele... Eu uma vez escrevi que ele morreu duas vezes. A primeira vez que ele morreu não foi quando o mataram. A primeira vez que ele morreu quando ele tomou a decisão – trágica, para ele – de voltar ao Brasil já com o Ato [Institucional nº] 5. Aí foi uma circunstância: a Clarice já estava no Brasil, eles moravam em Londres, veio o Ato 5, o Vlado balançou, não sabia se continuava na BBC e trazia de volta a Clarice. Mas ele me escreveu muito, a gente se escrevia muito, cartas, e que ele dizia: “O que é que eu vou ficar fazendo aqui? Tenho que ficar no Brasil”. Ele voltou afinal, e a muito custo. Eu não sei, honestamente, o que o Vlado representa hoje. Eu não quero falar daqueles conceitos óbvios, a liberdade versus a tirania, a luz, a decência, a integridade versus a treva. E eu também não sei como é que o Vlado veria o Brasil hoje – foi uma coisa que me ocorreu e que, no fundo, termino meu pequeno prefácio dizendo: “Ô Vlado, que você acha do que está acontecendo agora?”. Eu não sei, acho que não respondi essa pergunta que me parece crucial dentro desse trabalho. O que representa o Vlado, hoje? Eu acho que nós, no geral, nos movemos bem, tirando este soluço, este ladrar da nota do Exército em cima das fotos que afinal não eram do Vlado. Mas no geral nós caminhamos, nós somos uma sociedade livre. Veja bem: nós estamos mergulhados numa crise política infernal, e as instituições estão aqui, há liberdade de imprensa. Nós temos um zilhão de coisas a nos queixar com toda razão deste país, e são óbvias: a miséria; a desigualdade; a violência; a truculência; a brutalidade; a degradação urbana, a degradação ambiental, não urbana. Mas nós temos uma estabilidade hoje, política, que talvez tampouco pareça importante para quem não viveu o oposto disso. Isto tira um pouco de cena... eu estou tentando dizer o seguinte: que isso remove para o fundo do palco, traz grandes tragédias da ditadura, como a morte do Vlado, por exemplo. Não sei se faz sentido, porque, tudo bem, respiramos. Não tem, parafraseando não sei quem, quando batem de manhã na sua porta é o leiteiro, não é a polícia secreta. A agenda também é outra. Olha, um pouco de cabotinismo em me citar de novo, mas eu comecei meu texto para o Fernando dizendo assim: “Faz 30 anos que mataram o Vlado, e não parece que foi ontem”. Quer dizer, depois da morte do Vlado, há tanta coisa de bom e de mau acontecendo no país, que essas coisas ficam meio sem... Dado que tentaram botar a farsa do suicídio do Vlado, nada mais inapropriado do que uma citação de Fernando Pessoa que eu vou fazer agora, do poeta:
“Se te queres matar, por que não te queres matar?”. E aí tem várias coisas: “Serás lembrado aniversariamente, no dia em que nasceste e no dia em que morreste”. É um pouco isto que eu vejo. Nós também, a cada geração, destruímos as cidades, criamos novas cidades cada vez [mais] perversas, cada vez piores, e a cada geração nós esquecemos a história da geração anterior. Não há um nexo de continuidade entre aquele ontem e este hoje. Porque tem tantos problemas... Você não tem cabeça para olhar para trás, nem para fazer pontes entre o passado e o presente. Então o Vlado é lembrado aniversariamente: agora são 30 [anos de sua morte].
P/1 - A nossa pretensão é exatamente construir estas pontes, o trabalho do Museu é bem esse. É garantir que essa memória, de algum modo, tenha essa vitalidade mais próxima do cotidiano atual. Não é uma memória apenas de registro, é uma memória para ser usada, para ser trabalhada de forma produtiva. E é nesse sentido que por mais que você esteja, assim, enfadado de repetir coisas que você já repetiu muito, esse tipo de registro...
R- Não, não é um problema de enfado, é um problema de ter gasto a própria emoção de tantas repetições. E essa perplexidade. É claro que eu gostaria que saísse na rua e perguntasse: “O Vlado? Ah, sim, era aquele jornalista que foi preso e morto e é o símbolo”. Mas não é verdade, não é verdade. O motorista de táxi, o vendedor de queijos, isso é real, que me reconhece por ter me visto na televisão, ele não me perguntará jamais sobre isso, ele perguntará: “Vai acabar em pizza?”. Hoje, cada momento discreto que você tira da temática desse país, ele é tão forte, de bom, de mau, que dizer, você teve o cruzado, você teve o real, você teve Tancredo, a corrupção do Collor, e isto e aquilo, a eleição do Lula e a deseleição do Lula. Sabe, cadê o Vlado, na ordem das coisas, quando você está num país cujo partido e cujo presidente representaram tanto há tão pouco tempo e hoje são sinônimos de corrupção. Não estou afirmando nem negando, mas é, eles são [assim] identificados. Você entende? Diante dessa enormidade, em todo sentido que você queira dar, no sentido substantivo ou no sentido adjetivo dessa palavra, enormidade, quer dizer, as violências, os crimes de uma ditadura que acabou há 20 anos, em 1985, há 10 anos ainda, há 30 anos... Não foi ontem, é essa a ideia, não parece que foi ontem. Então é óbvia a necessidade pedagógica, no melhor sentido que você puder dar a essa palavra, de você juntar as pontas, juntar os pontos, mostrar que a redemocratização nos permitiu ter hoje, realmente, pelo menos no plano das instituições políticas, alguma coisa, com todos seus defeitos, uma coisa pela qual você não teme quando vai dormir, se haverá uma quartelada, se haverá um “pronunciamiento” no dia seguinte. Que isso tem a ver com 400
e tantas – são 400
e tantas pessoas se não me engano, 500 pessoas, minha memória é muito ruim – que morreram, foram mortas, foram desaparecidas, e outras milhares que foram torturadas e não mortas durante o golpe que só serviu para quê? Para atrasar este país. Aquilo que seria o seu desenvolvimento normal e que estava dado para fechar esse círculo pessoal naquela virada dos anos 1950 para 60, em que gente como Vlado e eu tínhamos tudo pela frente, não só pela nossa idade, mas pelo que acontecia nesse Brasil.
P/1 – Estava dado. Era só fazer.
R- Então a ditadura matou Vlado, amputou as nossas vidas, porque tudo que deixamos de fazer também, tudo que não pudemos fazer, nós, os que estamos vivos, o que não nos foi permitido nos desenvolver, como cidadãos, como profissionais, como jornalistas nesses anos... Alguns o fizeram. Mas aí tem gente que faz pacto com o diabo, tem gente que não faz, alguns fizeram pacto com o diabo para uma causa muito boa e documentaram a ditadura melhor do que ninguém. Em suma: nostalgia? Sim. Não nostalgia, eu tenho falta – nostalgia é uma palavra que obviamente não se aplica. Mas, sabe, você tinha um momento em que as condições todas estavam se armando no Brasil, tinha um surto de industrialização, você tinha uma demanda popular, aquilo que o Fernando Henrique quis dizer, finalmente as classes populares deixaram de ser interlocutoras afônicas do processo político. Você tinha o crescimento eleitoral do PTB absolutamente consistente desde 1946, toda eleição o PTB tinha mais votos, elegia mais deputados federais, e era certo que se nada tivesse acontecido, em 1965 o Juscelino [Kubitschek] se elegeria presidente e o PTB seria a bancada majoritária, no Congresso você teria uma coisa de centro-esquerda. Com vícios, evidentemente, não somos uma Noruega; o populismo, as amarrações entre o Estado e o sindicato, eu não vou fazer toda uma teoria sobre o Brasil, mas é evidente que na soma algébrica das coisas ruins e das coisas boas, você estaria melhor do que está, não há a mais remota dúvida disso. E não teria, enfim, amputado uma, duas gerações dos que, como é que é a música, que “foram no rabo de foguete”.
P/1 - “O bêbado e o equilibrista”.
R- É.
P/1 – “E tanta gente que partiu no rabo de foguete.”
R- É.
P/1 - É isso aí, muito bom.
R- E o Vlado não era a favor, nem eu; não éramos a favor de partir no rabo de foguete. Sabíamos que isso era um equívoco político. Estávamos no Partido Comunista, não porque fôssemos comunistas, quiséssemos implantar, transplantar a União Soviética, não tinha nada. [Estávamos] porque era a única organização política que tinha uma visão realista das possibilidades da luta pela redemocratização, e costurou o PMDB, costurou a OAB, costurou a Santa Madre, era realmente uma política de articulação. Um dia alguém há de escrever um livro sobre isso. Porque eu acho que o papel do Partido Comunista, naquele período, na luta pela redemocratização, foi também ofuscado pelos acontecimentos posteriores. Claro que houve as greves de São Bernardo, o Partido Comunista não teve nada com isso, isso é coisa do Lula, dos novos, do novo sindicalismo. Mas você vê bem as cronologias, as condições, quer dizer, a campanha pela anistia, todo o movimento dos advogados, do Gofredo [da Silva Telles], tudo isso teve articulação e gente para fazer. Para nós era muito claro que esse era o caminho. E, como jornalistas, qual era a nossa parte nisso? Era informar até o limite do possível, informar. A concepção que o Vlado tinha de jornalismo, e de uma TV, [era] um meio de você ajudar as pessoas a pensar, a identificar aquilo que nas outras televisões... Os jornais são fatos atômicos, que não se ligam a nada. O jornalismo que o Vlado queria continua sendo e será sempre o jornalismo necessário, não é só por causa da ditadura. Mas eu acho que já estamos divagando agora, não é?
P/1 - Alguma coisa que você queria ter dito e não disse?
R- Talvez vá lembrar disso daqui há três dias. Agora não, agora eu não sei. Provavelmente muitas coisas, mas eu não sei quais são.
P/1 - Bom, mas de todo modo eu tenho que te dizer que foi um riquíssimo depoimento, eu acho que você...
R- Como é que eu vocês vão lidar? Por exemplo, como é que vocês editam isso, sem ter cortes? Porque, numa situação normal, você usa a contraplano. Como é que funciona isso?
P/1 - Podemos desligar então?Recolher