Meu nome é Sebastião, eu nasci no dia quatro de janeiro de 1963 – tenho 49 anos, tempo este que sou, também, morador daqui da comunidade, do Complexo da Maré.
Meu pai trabalhava em um posto de gasolina, e minha mãe era doméstica, mas eu não fui criado por eles, praticamente. Eu morava c...Continuar leitura
Meu nome é Sebastião, eu nasci no dia quatro de janeiro de 1963 – tenho 49 anos, tempo este que sou, também, morador daqui da comunidade, do Complexo da Maré.
Meu pai trabalhava em um posto de gasolina, e minha mãe era doméstica, mas eu não fui criado por eles, praticamente. Eu morava com a minha tia aqui na comunidade, e ela cuidava, mais ou menos, de umas doze crianças, sendo ela a única de casa que trabalhava. Todos nós estudávamos, e, mesmo com a pouca instrução da minha tia, ela conseguiu nos ensinar a forma correta de se viver.
Para a vida em comunidade, faz-se necessário construir boas relações, porque há dois tipos de amizade: as que te acrescentam, que são construtivas, e as que são destrutivas. Eu mesmo sou um exemplo disso. Por conta de más companhias com as quais me envolvi, acabei entrando para o tráfico de drogas. Vivi esta vida por doze anos, e comecei depois de velho, praticamente já criado, com dezoito anos de idade. Eu já era usuário de drogas, mas a partir daí me tornei ‘soldado’, dono de ‘boca’ e gerente da comunidade.
A primeira droga que eu usei foi a maconha, e eu quis experimentar. Depois, comecei a cheirar loló – uma droga mais pesada –, e então deslanchei no mundo das drogas, infelizmente. Quando se entra para o tráfico, é com o intuito de glamour: mulheres, poder. Há a ilusão de que você vai ganhar dinheiro, porque você começa a usar roupas caras, de marca, mas, na realidade, você acaba acumulando dívidas na ‘boca’ que nem tem como pagar. E a família, o que é que você dá para a sua família comer?
Além disso, ter esse tipo de vida significa viver com medo. Você não pode confiar em ninguém, nem nas pessoas que estão ao seu redor e se dizem amigos. Tinha o medo da polícia também, que ia em casa – e isso gerava um constrangimento em relação aos meus filhos.
Eu tenho doze filhos, e foi por eles que resolvi mudar, porque meus filhos são tudo para mim. Minha filha mais velha certa vez me viu armado, e aquilo pra mim foi o limite, foi quando decidi voltar a trabalhar, e retomei a consciência de que trabalhar valia muito mais a pena, porque, no fim das contas, te dá mais sossego e, na realidade, a dificuldade financeira era a mesma.
Mas antes de retomar ao trabalho, tive que ficar um tempo fora da comunidade, fui morar por um tempo em Minas Gerais – mas não devo nada à justiça e nunca fui preso. Passei um tempo em Teresópolis e então retornei ao Rio de Janeiro. Aqui, terminei o relacionamento com a minha primeira esposa e fui morar com outra mulher – que já tinha três filhos.
Eu trabalhava de chapa – que é ajudante de caminhão – quando, um dia, o filho dela chegou em casa todo machucado. Ele havia apanhado de seis meninas na escola, e quando eu fui ao colégio pedir que a Direção tomasse alguma atitude, disseram que não tinha nada que pudesse ser feito. Como nessa época eu não tinha o conhecimento que tenho hoje, apelei: falei com o pessoal do tráfico. Fomos, então, na casa dessas pessoas, e os caras as colocaram de castigo: não poderiam ir a bailes e coisas do tipo, era da escola pra casa.
Aí fui ao colégio novamente para conversar com o diretor, pedir que ele tomasse alguma atitude, e ele falou: “Cara, eu preciso de uma pessoa igual a você pra trabalhar aqui”. Eu, desempregado, agarrei na mesma hora. Trabalhei como inspetor nesse colégio durante seis anos, até que, um dia, o diretor me chamou e pediu para que eu encontrasse dez pessoas que estivessem em situações ilícitas, mas que estivessem estudando. Era pra um projeto com a Renée Castelo Branco – da Globo News – e o João Jardim, cineasta.
Eles pediram o meu telefone e logo entraram em contato. Queriam que eu ficasse responsável pela distribuição de um dinheiro – na época seiscentos reais –, mas eu não queria, porque sabia que não era isso que eles precisavam. Aqueles meninos necessitavam de uma ocupação, um acompanhamento psicológico, um reforço escolar, uma atividade que os tirasse da rua.
Então me colocaram em contato com o Pedro Werneck, presidente do Instituto da Criança. Ele me pediu para redigir um projeto expondo as minhas ideias. Eu fiz, e ele falou: “Pode procurar o espaço que eu vou pagar, vou bancar esse espaço pra você”. Foi quando fundamos o Instituto Vida Real, que no dia dezesseis de março de 2004 completou oito anos de existência.
Pelo projeto, já passaram cerca de 1200, 1300 alunos, e tivemos uma perda de oito falecimentos. Alguns dos jovens ainda estão envolvidos com situações ilícitas e uns oito foram presos. Mas acredito que temos feito um bom trabalho – ao menos nos esforçamos para isso. E os números são bons, uma mudança significante na vida desses garotos, que encontram a possibilidade de mudar de vida. E eu vivi isso, então acredito ter experiência para ajudá-los.
Hoje, o Vida Real se tornou uma referência no Complexo da Maré, e fora também. Por exemplo, sabemos que dentro do Rio de Janeiro existem facções, e o Vida Real veio realmente para quebrar essas barreiras. E lá dentro temos diversas atividades: grafite, informática, artesanato, serigrafia, desenho, música, roda de terapia comunitária, atendimento psicológico, aerografia e inglês, além do Pense Alto – que é do Instituto da Criança –, e do Espaço Cidadão, que é voltado à conscientização em relação à cidadania. E toda essa infraestrutura é aberta para a comunidade.
A ideia é que esses jovens façam, também, algo que gere algum recurso para eles, foi por isso que criamos esse projeto. Além disso, o que nós fizemos foi trazer os pais para dentro da instituição, aproximá-los e fazê-los entender que a responsabilidade pelo filho deles não é da instituição, então fazemos toda uma conscientização do problema, uma espécie de linha de prevenção, que envolve todo o entorno do aluno.
Em relação ao Vira Vida, meu contato se deu por meio de um projeto deles que me envolvi, em que eram necessárias meninas em situação de prostituição. Eu fiquei responsável por recrutar essas meninas, e em 48 horas levei para eles setenta fichas escritas. Eu mesmo, ao ver aquelas meninas, julguei mal, não achei que mereciam essa chance. Mas depois me arrependi, afinal, um dia alguém acreditou em mim também. E hoje essas meninas não estão mais nas ruas, se prostituindo, utilizando drogas; hoje elas querem se tornar multiplicadoras, querem estudar serviço social. Claro que nada disso seria possível sem a vontade dessas pessoas de mudar. O dinheiro, os quatrocentos reais, também auxiliam nesse processo, porque: “Se eu continuar, esses quatrocentos reais vão se multiplicar, porque eu vou estudar...”.
A parceria com o Vira Vida, nesse sentido, foi fundamental, porque nós já queríamos fazer esse trabalho, mas não tínhamos perna pra isso, não havia recursos. Foi, então, através da parceria com o Vira Vida que pudemos acompanhar essa transformação.
E hoje, como fundador e presidente coordenador da instituição, meu trabalho aqui é administrativo. Faço visitas às residências, converso com os pais e com os alunos que estão com mais problemas. Portanto, tento conseguir emprego para a família, caso haja algum membro desempregado, ou estudo para quem está sem estudar, por exemplo. Se conseguirmos 20% da família desses alunos ficar estruturada, já me dou por satisfeito, aí no ano que vem a gente dobra a meta.
Para o futuro, almejo um mundo melhor, com dignidade e respeito. As pessoas não entendem que quem mora na comunidade, não mora porque quer, mas por ser essa a única opção. E os moradores da comunidade perdem, muitas vezes, a oportunidade de trabalhar em determinado local quando fornecem seus endereços. “Ah, você mora na Nova Holanda? Está bem, entraremos em contato com você”, e não entram nunca em contato. Pouco depois, um vizinho que fornecia um endereço falso era empregado.
Por que eu não posso dizer onde é que eu moro? Apenas por eu morar na favela, eu não sou gente? Não sou digno, não tenho capacidade? O cara nem me conhece! Então acho que é um pouco disso, um mundo melhor envolve mais respeito: eu sou gente igual a você.
Agora, como expectativa pessoal, em relação aos meus planos, sonho em ter uma sede própria. Eu vivo do social, então meu sonho é ter uma sede própria que possa ajudar um número muito maior de pessoas. Hoje, temos uma demanda de mais de duzentos alunos querendo entrar para o Vira Real, mas não temos espaço. Por isso quero ter um espaço maior, que possa abranger também um supletivo, um pré-vestibular.
E acredito que, ao relatar minha experiência, pode ser que as pessoas passem a acreditar que é possível, que elas são capazes. Salvamos, com o projeto, jovens que estavam para morrer! E também não adianta eu ter a certeza de que eu sou capaz se eu não tiver ninguém que me dê a mão, não é mesmo? “Vem, o caminho é esse aqui”, é isso que o Vira Vida vem fazendo.
Nesta entrevista foram utilizados nomes fantasia para preservar a integridade da imagem dos entrevistados. A entrevista na íntegra bem como a identidade dos entrevistados tem veiculação restrita e qualquer uso deve respeitar a confidencialidade destas informações.Recolher