PCSH_HV_766_Morena_Leite _ rev.
ENTREVISTA DE MORENA LEITE
ENTREVISTADA POR LUCAS LARA
SÃO PAULO, 22 DE ABRIL DE 2019
PROJETO PROGRAMA CONTE SUA HISTÓRIA
ENTREVISTA NÚMERO PCSH HV 766 _ rev.
TRANSCRITA POR SELMA PAIVA
REVISÃO – PAULO RODRIGUES FERREIRA
P/1 – Bom, Morena, em primeiro l...Continuar leitura
PCSH_HV_766_Morena_Leite
_ rev.
ENTREVISTA DE MORENA LEITE
ENTREVISTADA POR LUCAS LARA
SÃO PAULO, 22 DE ABRIL DE 2019
PROJETO PROGRAMA CONTE SUA HISTÓRIA
ENTREVISTA NÚMERO PCSH HV 766
_ rev.
TRANSCRITA POR SELMA PAIVA
REVISÃO – PAULO RODRIGUES FERREIRA
P/1 – Bom, Morena, em primeiro lugar eu queria agradecer por estar aqui com a gente, fazer parte agora da ________ da Pessoa e, para começar, eu queria que você dissesse para mim o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Morena Leite, eu nasci em São Paulo, em 1980. 30 de junho.
P/1 – E qual é o nome do seu pai?
R – Meu pai chama-se Fernando e minha mãe chama-se Sandra.
P/1 – Você os descreve, um pouquinho, para mim? Quem eles são, o que eles fazem?
R – Meu pai é um pisciano altruísta. Nunca vi meu pai julgar ninguém. Meu pai está sempre pronto para acolher e ajudar todos que se aproximam dele. Eu acredito em outras vidas, em reencarnação, sou espírita e eu acho que meu pai já completou o número de vidas suficientes para evoluir e, sabe aquelas pessoas que voltam na Terra só para acompanhar a gente? Meu pai é uma pessoa que... Eu fui a uma missa na semana passada e o padre falou da diferença entre as pessoas inteligentes e as pessoas sábias. Que, às vezes, algumas pessoas inteligentes vão por caminhos errados. As pessoas sábias buscam a paz. E a paz traz felicidade. E falou sobre o cordeiro de Deus, as pessoas que não reagem. As pessoas que aceitam e acolhem. Acho que meu pai tem muito disso. Ele é uma pessoa que não é reativa. Ele aceita as situações. E eu fui enxergando ao longo da vida – eu sou mais firme, minha mãe também – que talvez essa coisa acolhedora acaba fazendo com que as coisas se resolvam por elas mesmas e da maneira que tem que ser. Minha mãe é uma mulher forte, é uma mulher que acho que veio também para ajudar outras pessoas, muito firme, muito íntegra, muito curiosa, uma grande inspiração. Eu digo que... Todo mundo me pergunta como eu, tão jovem, fiz tanta coisa e construí tanta coisa... Porque eu acho que já cheguei numa escada, no final, que ela já tinha subido vários degraus, assim, comigo nas costas e eu cheguei lá no meio da escada. (risos) Então, acho que eu sou muito do que eu sou por causa dela.
P/1 – E o que eles fazem?
R – Eles se mudaram aqui de São Paulo para Trancoso, no final da década de 70, em busca de qualidade de vida. Eles não concordavam com essa filosofia paulistana do consumo e meu pai tinha um primo judeu, que tinha vindo de um kibutz em Israel e eles foram montar uma comunidade hippie em Trancoso, com um Gurgel, cheio de saco de arroz integral - eles eram macrobióticos, antroposóficos, vegetarianos. Nessa época, meu pai descobriu que estava com câncer, com 27 anos. Minha mãe começou a estudar a alimentação como forma de cura e ela começou a cozinhar para o meu pai a comida macrobiótica, depois, enfim, lá em Trancoso, como sustento, meu pai tinha feito Administração, minha mãe, Arquitetura, mas lá as casas eram pau a pique.
Minha mãe começou a cozinhar e as pessoas vinham na nossa casa comer. Então, a gente começou com um restaurante em casa, familiar, eu cresci dentro dessa casa-cozinha que acabou virando um restaurante. Depois, alguns quartos foram feitos nesse quintal, virou uma pousada também. Isso já faz trinta e cinco anos. E aí, pequeninha, a gente recebia muita gente em casa. Eu comentava com a minha mãe: “Mãe, por que o mineiro é tão acanhado? Por
que o paulista é tão fechado? Por que o carioca é tão expansivo?” Achava que eu queria ser jornalista, porque eu adorava entrevistar as pessoas, observar, entender. Um hóspede me falou sobre Antropologia, que é o estudo dos seres humanos. E aí eu virei uma menininha que queria ser antropóloga. Com quinze anos eu fui morar em Cambridge, na Inglaterra, numa escola interna, e lá eu morei com uma russa que era judia; com uma turca muçulmana; e com uma cambojana budista. E vi que, através da maneira como elas comiam, eu pude entender muito sobre como elas eram.
P/1 – Antes da gente continuar na sua formação, vamos voltar lá um pouquinho. Eu queria que você me falasse da origem da sua família.
R – Parte da família da minha mãe é libanesa. Ele foram morar aqui no interior de São Paulo, divisa com o Paraná, num lugar que tinha muito chá. E muita banana. Em (Abiasa?). E da parte da família do meu pai tem uma certa descendência portuguesa.
P/1 – Você teve contato com seus avós?
R – Muito. Minhas avós e meus avôs muito presentes. Da minha mãe, a parte mais libanesa, que também trouxe grandes influências na cozinha. A parte do meu pai, fazenda de café, interior de São Paulo, perto do Espírito Santo do Pinhal, também com tachos de doce de abóbora, banana, goiaba, queijo
fresco.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Eu tenho um irmão.
P/1 – Mais velho?
R – Mais novo, que estudou Design Gráfico na Austrália, foi muito para Bali, aprendeu a construir casas de bambu e hoje ele tem esse trabalho lindo, trabalha na pousada com meus pais e com Design.
P/1 – E conta um pouco para a gente como era a Morena criança. Você nasceu aqui em São Paulo. Com quantos anos você foi para Trancoso?
R – Eu nasci em São Paulo e fui, antes de completar um ano, para Trancoso. Aprendi a andar, a falar, tudo lá. A Morena criança era uma Morena curiosa, talvez um pássaro assim meio fora do ninho, meio desencaixada nessa vida baiana mais de contemplação do pôr do sol e do nascer do sol. Eu sempre fui agitada. A hora em que o sol estava nascendo, eu já estava indo para Porto Seguro estudar. Só voltava depois que ele já tinha se posto. Eu sempre fui muito focada, assim. Sempre muito determinada. Eu achava tudo lindo ali, mas eu sabia que queria sair e conquistar o mundo.
P/1 – E do que você gostava de brincar?
R – Eu gostava de brincar de cozinhar. Gostava de pegar frutas no quintal e fazer piqueniques, almoços e cozinhar.
P/1 – Me conta mais sobre essa casa em que você cresceu. Descreva para mim, do jeito que ela foi, enfim, se adaptando e depois virando outras coisas.
R – É uma casa que os meus pais construíram. A gente fala que é pau a pique porque pegou o barro para fazer o poço, para fazer a fossa e, com aquele barro, fez os tijolos. Meu pai que construiu. Tinha fogão a lenha e a gente aquecia o chuveiro com a água do fogão a lenha. Meus pais eram super sustentáveis, assim, então compostagem de lixo sempre, tinha biogás, minha mãe plantava tudo que a gente comia, no próprio quintal: aipim, milho, abóbora. Era uma roça, assim. No meio do quadrado, uma roça.
P/1 – E você sabe, eles te contam, de onde veio essa ideia de começar a receber as pessoas para comer em casa?
R – Não teve uma coisa definida, foi uma coisa que n aturalmente foi acontecendo, assim. Era um meio de vida: o que fazer em Trancoso; como sobreviver. Minha mãe começou a fazer pão integral, meu pai vendia pão integral, então Trancoso era um vilarejo mesmo, sem água, sem luz, sem telefone. Um bando de gente bem especial, assim, misturado. Tinha os nativos, que eram as pessoas de lá, e o biribandos, que eram as pessoas de fora, como os meus pais, que queriam integrar os filhos com as pessoas de lá. Então, a gente cresceu uma infância bem feliz.
P/1 – Você tem alguma lembrança afetiva dos cheiros dessas comidas na sua casa?
R – Tenho. Minha mãe fazia uma granola de manhã, assim, com aquele cheiro de açúcar mascavo, coco queimado.
P/1 – Você tinha alguma comida preferida dentre as coisas que ela fazia?
R – Várias. Bolo de banana, suflê de cenoura. Eu gosto bastante de uma comida cítrica, muita coisa com limão. Também minha boca até saliva. (risos)
P/1 – E aí você começou a ir para a escola lá em Trancoso mesmo? Como era a Morena na escola?
R – Comecei pequenininha a ir para Trancoso e depois eu fui para Porto Seguro. A gente pegava um ônibus, depois uma balsa, caminhava. Saía de casa às cinco da manhã para ir para a escola às oito.
P/1 – Tem algum professor que lhe marcou ou alguma matéria melhor nessa época, de que você gostava mais?
R – Eu sempre gostei de História, Artes. Na área de Exatas, Matemática, Química, Física para mim era tudo mais difícil, assim. Eu falo: sabe aquela história da tartaruga e do coelho, que o coelho era muito rápido e parava para dormir e a tartaruga que tinha que ser esforçada? Eu sempre tive que ser do time dos esforçados. Eu nunca fui rápida, assim, no raciocínio lógico. A minha mãe brinca, fala que ela achava que eu era meio disléxica, quase burra, às vezes, porque eu não entendia as coisas, mas eu sempre fui muito esforçada, sempre tive muita consciência de que eu precisava prestar muita atenção. Eu nunca fiquei de recuperação na vida, apesar de não entender rápido. Eu sempre prestava atenção, estudava, estudava, estudava, não me distraía.
P/1 – E aí, ficando mais velha, o que você fazia para se divertir lá? Para onde você ia com seus amigos? O que vocês gostavam de fazer?
R – A gente gostava muito de descer o rio, lá de cima, até o mar; andar de bicicleta; e fazer esses cozinhados, esses almoços, esses encontros gastronômicos. Tenho um amigo, que se chama Fábio, que tem um restaurante chamado Cantinho Doce lá, e a gente sempre fazia pesquisas e festas __________, essas coisas.
P/1 – E você e seu irmão trabalhavam já? Ajudavam seus pais?
R – Sim. Eu comecei a trabalhar bem pequena, assim. Acho que doze, quatorze anos a gente já estava ali no meio trabalhando. Era uma coisa de trabalhar de brincadeira, mas natural, assim. Eu acho que uma das coisas superimportantes na vida, para uma pessoa, é quando ela gosta de fazer algo. Ela acorda de manhã feliz com o que ela vai produzir. Você produzir, acho que a felicidade vem do fazer. Quando você descobre o que gosta de fazer, cedo, é bem legal.
P/1 – E você lembra das tarefas que você fazia? ___________, alguma coisa assim?
R – Várias coisas: fazia pudim, fazia alguns doces de sobremesa.
P/1 – Você tem alguma lembrança gostosa do tipo das pessoas que iam lá comer a comida e ficavam encantados?
R – Tem. Teve uma vez que meus pais estavam viajando. Não sei se eles tinham ido para Bali, para algum lugar, e eu fiquei lá. E aí, eu inventei de fazer um sorvete de frutas vermelhas. Bom, uma moça que é dona do Bourbon Street, um lugar que tem aqui em São Paulo, pediu um, pediu dois, pediu três; no quarto, quinto, eu fui na mesa descobrir quem era aquela mulher. Chama-se Célia e aí ela falava: “Não acredito. Mas você é uma criança. Não acredito que você que fez esse sorvete, não sei o quê”. Eu devia ter uns quatorze anos. E aí ela ficou encantada e começou a pesquisar todas as escolas de gastronomia que tinha no mundo: Cordon Bleu, na Itália, não sei onde, e ela me mandava; me mandava e falava: “Você precisa ir, você tem um dom”. Ela é minha amiga até hoje. Isso tem mais de trinta anos.
P/1 – E aí como é que foi essa decisão de seguir uma carreira? Você escolheu um curso que ia fazer? Onde você foi estudar?
R – Então... Quando eu estava morando na Inglaterra, eu tinha essa amiga que eu falo que é minha alma gêmea, meio cambojana, meio budista...
P/1 – De onde veio essa vontade de ir para a Inglaterra, específico?
R – Eu estava lá em Trancoso e um dos hóspedes da pousada, que é o Carlos
Eduardo Moreira Ferreira - era presidente da Fiesp - estava lá e ele, me conhecendo, falou para a minha mãe: “Você precisa tirar essa menina daqui. Essa menina é muito especial, ela precisa voar, conhecer o mundo, abrir horizontes. Meus filhos foram para Cambridge, estudaram nessa escola, que foi o máximo, manda ela para lá”. Deu todo o caminho para minha mãe, minha mãe foi lá e me mandou também para a mesma escola. E aí, lá nessa escola, eu conheci essa cambojana, que é meio francesa e que me levou para passar um final de semana em Paris. Eu me encantei com a França, eu vi que a França respira gastronomia, culturalmente, e que eu podia pesquisar as pessoas através da maneira que elas comem. Então, meu encantamento com a gastronomia veio primeiro por essa questão da identidade de um povo. E depois, pelo sabor da comida.
P/1 – Você lembra do dia em que chegou em Paris?
R – A primeira vez, eu fui encontrar com ela, a gente foi passar um final de semana, eu fui fazer um roteiro gastronômico com a minha mãe, a gente foi no _________, foi para Lion. Foi incrível, até tenho uma foto aqui desse dia. Aí, depois, eu voltei para fazer o Cordon Bleu. Eu tinha dezessete anos, era super novinha. Foi amedrontador, eu acho, o dia em que eu cheguei. Porque eu estava acostumada com uma cozinha, na casa da minha mãe, super afetiva, brincalhona, acolhedora, e entrar no Cordon Bleu, no primeiro dia, todo aquele uniforme, parecia que eu estava entrando em um exército, que tinha que amarrar a gravata aqui, assim, no lenço, porque a calça... Porque a doma... Porque tal. Aí, tinha uma mala de facas: “Essa é a faca de salmão, essa é a faca de cordeiro”. Falo: “Caraca, e se eu não lembrar qual a faca de qual?”. Meu coração acelerado, assim. Os primeiros dias foram...
P/1 – E quanto tempo foi? Como é que funciona, assim?
R – Eu fiz o grand diplôme, que é o curso superior de gastronomia e confeitaria do Cordon Bleu, me formei lá em 1999. Então eu passei para a cozinha básica, depois eu passei para as cozinhas regionais da França, depois por uma alta gastronomia superior e nos doces também a gente passou por açúcar, chocolate. Eu, que adorava fazer doce quando criança, descobri que eu não queria seguir confeitaria, achei muito chato fazer de medida, sou muito intuitiva. Precisa descer o Chico Xavier e eu saio fazendo. Não sou uma pessoa que gosta de ler manual de controle remoto, sabe? Eu preciso ir descobrindo. Então foi isso. Me formei e aí, em 1999, eu voltei para o Brasil.
P/1 – E você, durante a sua formação, já sabia mais ou menos o que você queria fazer? Você disse que descobriu que não queria muito aquela confeitaria. Você já tinha alguma ideia, algum sonho do que você queria fazer, até com aquela formação?
R – Eu tinha meio que uma missão. Quando eu morei na Inglaterra e eu falava que era brasileira, as pessoas falavam: “__________ brazilian”. E aquilo me incomodava a alma, assim, profundamente, tipo ‘que imagem era’? E o Brasil estava em um momento exportando muitos filmes: Cidade de Deus, de violência, e as pessoas tinham uma visão de um Brasil violento, que também existe, mas não era só aquilo. Eu queria mostrar um Brasil alegre, colorido, carinhoso. Então, minha vontade era de voltar para o Brasil e entender a gastronomia brasileira para poder divulgá-la lá fora. Viajei muito, fui para o Pará, fui para Minas, fui para o Sul, entendendo os diferentes biomas do Brasil nessa diversidade e com vontade de trabalhar com as embaixadas, assim. De sair e representar o Brasil, gastronomicamente, lá fora.
P/1 – E aí, quando você voltou, você voltou a trabalhar com seus pais? Como foi?
R – Eu voltei e minha mãe estava inaugurando um restaurante aqui na Vila Madalena, fiquei com ela um tempo; na sequência, eu fiz um livro de cozinha com a (Greco Cactos?), chama Brasil, Ritmos e Receitas, que fala da comida e de músicas que falam de comida. Foi um site bem legal. Em 2004, a gente lançou esse livro no ano do Brasil, na França, em um grande show do Gilberto Gil, e foi lindo. E os convidados receberam o livro de presente, junto com a comida e tal. E aí virou um vício, assim, entender um assunto, digerir esse assunto, estudar esse assunto, compartilhar esse assunto no formato de livro. Eu já lancei oito livros de cozinha, sempre linkando alguma coisa de cultura e tem mais oito prontos aqui, para sair em breve. São dezesseis livros.
P/1 – E você sabe por que sua família decidiu vir para a cidade de São Paulo específico?
R – Uma volta, não é? Porque eles eram daqui e Trancoso tem uma conexão muito forte com São Paulo. Eles falam que Trancoso é __________, tem sempre gente de lá. Então, isso fazia sentido. Também para minha mãe, a questão dos filhos poderem estar mais perto de uma metrópole por um tempo, isso foi...
P/1 – E aí você continua ___________ com seus pais, ou você...
R – Aí, em 2004, a gente resolveu sair aqui da Vila Madalena, meus pais falaram: “Então, você já entendeu o assunto, já está pronta para o restaurante ser seu, tocar”. Aí eu mudei com a Adriana Drigo, uma sócia, da Vila Madalena, lá para os Jardins, o Capim. Então, esse ano a gente faz... A gente está em 2019... faz vinte e um anos de Capim Santo em São Paulo e quinze anos de Capim Santo nos Jardins.
P/1 – E se você tivesse que dar uma essência do seu restaurante, como você descreveria?
R – Eu acho que é uma comida que alimenta com energia a gente. Mais do que os valores nutricionais de um prato, a gente pensa na energia que a gente vai passar para quem vai receber aquele alimento. A gente acha que um simples ovo pode nutrir a alma de alguém, se ele é feito com muito carinho e muito amor. Então, eu falo que o principal ingrediente do meu restaurante são as pessoas. Elas são selecionadas de forma muito cuidadosa e mantidas também, assim. Nós somos um time que trabalha, somos hoje trezentas pessoas nas operações, noventa de cozinha e mais de 70% que entra lá trabalha doze, quatorze, dezesseis, vinte, vinte e um anos comigo. Tem muita gente que trabalha há vinte anos, que é uma herança, já, da minha mãe.
P/1 – E como é, para você, gerenciar tanta gente assim?
R – Eu amo pessoas. Então, acho que eu falo mais como gosto de gente. Então, para mim, é uma honra, um privilégio, algo que eu faço com muito cuidado. E sei o quanto cada palavra minha interfere na vida de cada uma das pessoas que estão ao meu lado, e que eu tenho essa missão de inspirar muita gente.
P/1 – E você já falou que você é bastante inquieta e tem essa coisa intuitiva. Fale um pouquinho sobre o seu processo de criação. Como é criar um prato ou criar um __________?
R – Eu acho que isso acontece através das referências de mundo. Eu me movimento muito, eu viajo muito, eu ando muito, eu estou sempre em livraria, comprando livro. Eu não leio, porque acho que tenho mais de três mil livros na minha casa. Mas eu não mantenho a atenção muito tempo em nada, assim. Eu começo e paro e vou mudando de assunto, vou mudando de assunto. Então tem que ter um monte de gente meio que costurando as coisas que eu abri, do meu lado. Para eu ler, precisa ser livro pequeno, bem pequeno, porque eu não vou começar hoje e amanhã eu leio mais duas páginas, depois mais duas páginas. Ou eu começo e vou e acabo em um dia ou não volto nele, mas eu gosto muito da capa, do título e das imagens. Eu acho que eu tenho essa leitura rápida também, assim. Então, eu bati o olho, tive insight a partir disso.
P/1 – E tem algum desses pratos que tem uma memória afetiva gostosa para você?
R – Vários. É o prato do momento, assim. Eu adoro ir ao supermercado, adoro ir em feira. Meu avô me levava. O pai da minha mãe me levava muito em feira, então, estar ali em contato com o ingrediente sujo, assim. A última coisa que eu fiz que eu fiquei bem orgulhosa agora, que foi muito legal: eu fiz um menu de camarão. Então, eu fiz seis tempos do camarão: era um crudo de camarão, um camarão cru com um caldo de tucupi doce, de uma viagem que eu fiz várias imersões nas rotas gastronômicas do Pará. Eu estive a convite da Secretaria do Turismo de lá. Em Santarém, eu descobri o tucupi doce, eu não conhecia. É uma coisa ácida com doce, bem boa e com um (granicá de biribiri?), que é tipo uma carambolinha, um pepininho bem ácido. Então, é tipo um ceviche, mas eu gosto de apelidar, então é um crudo de camarão com tucupi doce e (granicá de biribiri?). Aí, depois, tem um camarão no vapor, com uma salada de papaia. Eu estive morando agora um ano na Indonésia e lá se cozinha muito no vapor e também muita salada de papaia, então veio daí. Aí, o terceiro prato é um camarão defumado com caramelo de rapadura e especiarias. Isso eu fui fazer uma pós ano passado, em Nutrição, no Cordon Bleu de Londres, e aí meu chef, numa das aulas de gastronomia, a gente estava fazendo um frango, ele falou: “Deixa eu te mostrar um negócio”. E aí ele fez esse defumado com caramelo, botou fogo no açúcar e tal, nossa! Mas veio aquele smoking, assim, aquela massa cheirosa. Já era o terceiro prato. Aí, depois, a gente tinha um camarão ensopado com palmito pupunha e tapioca e arroz com coco. Então, era um ensopado. Algo que a gente aprendeu no Pará, com caranguejo. Tinha um tempura de camarão, com sementes de girassol, linhaça, gergelim. Eu estive no Japão também, então o tempura veio do Japão. E, para acabar, a gente tinha um camarão dentro de um ouriço. Então, eram seis tempos de camarão. A história era de usar o mesmo ingrediente, com várias técnicas: vapor, frito, cozido, cru. Foi bem legal. Então, isso foi um reflexo. E contar histórias, assim. Vem com o prato. Eu fui em um restaurante, na Inglaterra, que, depois de dezoito anos de formada no Cordon Bleu e trabalhando que nem uma louca, assim, compulsiva, minha mãe foi na minha terapeuta e a minha terapeuta falou: “Ou vocês fazem alguma coisa ou eu vou internar essa pessoa”. Porque quando eu falava que ia acabar, eu fazia mais quatro livros ao mesmo tempo, super compulsiva com tudo que eu gosto. Eu falo que não dá para ser oito ou 80, já tem que ir para 800, assim. Eu não consigo. Então eu resolvi que ia parar um ano, ia tirar um ano sabático. Eu tenho uma filha que hoje tem nove, tinha sete anos...
P/1 – Qual o nome dela?
R – Manuela. E que eu precisava ser mãe. Porque a Manuela passava os finais de semana comigo no restaurante, assim como eu passei com a minha mãe e, quando eu era adolescente, só voltando um pouquinho, teve uma época em que eu tive um princípio de anorexia. Assim... Parei de comer. Como a minha mãe cozinhava para todo mundo e eu sou super canceriana, carente, eu queria uma mãe cozinhando o meu bolo de banana, não o bolo de aipim daquele café da manhã cheio de hóspedes, eu queria exclusividade; meu jeito de chamar atenção da minha mãe foi parar de comer. E aí foi também nesse processo de quando eu fui morar na Inglaterra e aí, quando eu também percebi isso, que a comida estava virando algo perigoso para mim, eu falei: “Ela podia ser meu veneno ou meu remédio”. Foi aí que eu resolvi, também, fazer Cordon Bleu, que eu resolvi estudar gastronomia. Tinha a coisa das pessoas, mas tinha um resgate meu com a minha mãe. E quando eu vi, eu fui me trans
formando numa pessoa igual à minha mãe, assim, tipo de só trabalhar, apaixonada pela cozinha, não sei o quê, e falei: “Caraca, deixa eu fazer alguma coisa com a minha filha, antes que aconteça alguma coisa. Deixa eu ser mãe, jantar com ela toda noite”. Eu reclamava que a minha mãe não sentava à mesa para comer, porque tinha sempre um monte de gente, a gente estava sempre servindo outras pessoas e tal, aí eu mudei com ela para Paris, ela foi estudar lá e eu brinco também que a raposa troca de pelo, mas não muda de vício, não é? Um mês eu já estava em Paris envolvida em um monte de coisa, dando aula no Cordon Bleu, assinando um cardápio no Café de l’Homme, que é no Museu do Homem lá, também ligado à Antropologia, estudo dos seres humanos, e viajando com as embaixadas e tal. E minha filha quer ser perfumista. Ela adora aromas! A gente foi passar o aniversário dela em Grasse, no sul da França, com a minha mãe, eu estava indo pegar aquele trem do Orient Express e a Manu, minha filha, ia sozinha com a minha mãe para Bali encontrar meu irmão, que estava em um condomínio de bambu, lá. Minha mãe, à noite, teve um sonho, acordou pedindo para eu não ir pegar esse trem. Eu ia de Moscou para Pequim, dar uma aula no Cordon Bleu, não fui, fui com ela e com minha filha para Bali. Chegando lá, a gente conheceu uma escola chamada Green School, que é uma escola de bambu, no meio de uma floresta, com um tripé de empatia e valorização do ser, sustentabilidade e comunidade, que a gente tem que trabalhar em conjunto. Eu me senti em um resgate, voltando às origens da minha mãe, dos meus pais, há quarenta anos, lá em Trancoso, tudo que eles falavam. Eu resolvi mudar de Paris para Bali, morei um ano na Indonésia, com a minha filha e, quando acabou esse ano, a gente foi fazer mais seis meses; então já estava há um ano e meio fora, fui concluir essa jornada em Londres. Eu fui fazer uma pós numa escola que chama Schumacher College, do (Sakish?), que é um indiano, e eu fui falar sobre lideranças, novas maneiras de liderar. E quando eu acabei essa pós em ________, eu me mudei para Londres e fui fazer uma outra pós, em Nutrição, e foi aí que eu aprendi o defumado. (risos) E foi super especial passar esse tempo em Londres. A gente voltou para o Brasil, eu voltei com a minha filha agora em janeiro...
P/1 – Antes dessa volta para o Brasil, só fala um pouquinho sobre essa experiência de morar em Bali, como foi.
R – Foi lindo, porque é uma coisa muito da energia, assim. Eu sempre acreditei muito... As pessoas perguntam qual é a minha religião e eu falo que é fé em Deus e pé na tábua. (risos) Essa coisa do ho’oponopono: eu aceito, eu confio, eu acredito, eu agradeço. E a coisa que eu mais acredito é que a gente recebe de volta do universo tudo que a gente faz, em dobro. Tudo que a gente faz, tudo que a gente pensa, tudo que a gente emana e, às vezes, tem alguns aprendizados que a gente tem que passar na vida. É importante ter atenção. Eu falo que a consciência é uma dádiva, mas também ela é um fardo, porque quanto mais você tem clareza da sua existência, mais cuidado você tem que ter com ela. Então, Bali é muito isso, _______, que é: ‘o que eu posso fazer por você?’. O balinês é hinduísta. A Indonésia é muçulmana, mas Bali, em si, é hindu, mas um hindu meio espírita, tem uma coisa muito forte, meio candomblé, assim. Tem oferenda o dia inteiro lá. Então, foi um encaixe meu com a Manu, com a minha filha, muito forte. A gente ficou bem abraçadinha lá. Foi bem legal.
P/1 – Aí você voltou para o Brasil?
R – Primeiro eu voltei para Londres, fui para Londres, de Bali, fazer esses dois cursos, e a Manu sempre estudando. Ela estudou seis meses em Paris, um ano em Bali e seis meses em Londres. E eu viajei o mundo com ela. A gente foi para o Butão, foi para a Tailândia, foi para Myanmar, foi para o Camboja, foi para o Japão, foi para Praga, foi para Israel, foi para a Grécia. A gente rodou bastante. A cada três meses ela tinha férias de duas semanas e a gente ia viajar, viajar, viajar. Então, isso me deu uma bagagem muito grande e muita referência. Acho que a maior das bagagens, tanto para mim quanto para ela, foi o quanto a gente pode andar com uma malinha mais leve, menor. O quanto a gente não precisa de tanta coisa. O quanto que tudo que a gente precisa está dentro da gente. E o quanto a gente pode se reinventar onde a gente quiser. E o quanto a língua mais forte que existe é a do coração. Você pode estar lá no Butão ou na Tailândia, sem falar a língua da pessoa, a pessoa também não entende a sua língua. Se você sorri e faz um gesto de amor, você é compreendido em qualquer lugar. Isso dá uma sensação de segurança, sabe? Que eu posso ir para qualquer lugar, posso me reinventar, eu posso ser sustentável, me sustentar em qualquer lugar.
P/1 – E nessas viagens todas, você sempre incorpora ingredientes?
R – Sim. Vem em grandes insights.
P/1 – E aí você voltou aqui para São Paulo. Eu queria lhe perguntar: você falou dos seus trezentos funcionários. Existe uma preocupação com a formação dessas pessoas?
R – Sim. Há dez anos, eu fui fazer um evento em Trancoso e cheguei lá numa casa que só tinha pessoas de Santa Catarina. Até perguntei: “Por que não tem nenhum baiano?” “A gente não acha mão de obra qualificada”. Eu saí dali com uma dor no estômago, e aí, lá em Trancoso, tinha uma casa no meio do quadrado, que a gente chama de Casa das Festas, onde se cozinha duas vezes por ano: São Brás e São Sebastião, que são os padroeiros da cidade. Para todo mundo. Então, cada ano tem um festeiro. E aí, o resto do ano essa cozinha ficava, assim, sem uso. Eu liguei para a Electrolux, que era a minha parceira aqui em São Paulo, contei a história para eles, eles vieram, mobiliaram, transformaram a cozinha, fizeram uma obra e a gente montou uma escola de cozinha lá em Trancoso. Então, há nove anos - ano que vem a gente faz dez anos - a gente tem um curso de capacitação gastronômica lá. Aí, uma hóspede aqui de São Paulo visitou, estava lá em Trancoso, conheceu e falou: “Nossa, que lindo! Eu trabalho em um projeto de contra fluxo escolar aqui em São Paulo, que chama André __________ e a gente tem o curso do Menor Aprendiz. Mas a gente sente que tem muito jovem que não tem o viés para a parte administrativa. Vamos montar um curso de gastronomia?” “Putz, vamos”. Fomos atrás, ela selecionou várias, contamos história e montamos a cozinha lá na Raposo Tavares. Aí, a Maria Antônia Civita tinha um projeto na Barra do Sahy, litoral de São Paulo, também de contra fluxo, com oitocentos jovens. Ela conheceu a nossa cozinha aqui na Raposo, ficou encantada e nos convidou para montar a cozinha também na Barra do Sahy. Depois que a gente montou a cozinha aqui na Ministro, no restaurante, no segundo andar, então era a quarta. E há três anos a gente montou em Itacaré, a quinta cozinha. Então, a gente trabalha com capacitação gastronômica, gerando emprego como forma de transformação.
P/1 – E é um Instituto?
R – É um Instituto. Chama Instituto Capim Santo. A gente entendeu várias coisas ao longo desse processo. Assim... Primeiro que o papel mais importante era do conector e não do professor. A gente não tem mais professores em salas de aula. Então, conectores. A gente montou uma grade que a gente quer transmitir para as pessoas que nos procuram, de Gastronomia, mas a coisa mais importante para a gente é trabalhar o comportamento humano, porque a gente sente que, na cozinha, mais do que saber fazer um suflé, uma farofa, um petit gâteau, saber trabalhar em conjunto é algo muito importante. Porque a gente pode treinar e ensinar qualquer pessoa a fazer qualquer coisa, qualquer pessoa entra no You Tube e aprende a fazer o (navigoren?), que é um prato balinês, por exemplo. Mas saber jogar ali dentro da cozinha, é algo especial. Eu comecei a trabalhar com projeto social na favela Paraisópolis, ___________ posto de orientação familiar, com um grupo de psicólogas. Então, a psicologia alimentar é algo que me fascina.
P/1 – E como você se sente vendo esses jovens cozinhando? Ou você sente que você está devolvendo um pouquinho?
R – Olha, eu me sinto grata por poder participar disso. Hoje em dia, eu não sou nem a pessoa que toca mais tão ativamente o Instituto. É louco, porque, às vezes, a gente planta uma sementinha, ela vira uma árvore, essa árvore começa a dar frutos, esses frutos começam a cair e aí, sozinhos, caem na terra, que chove, que molha, que saem outros frutos. Hoje eu tenho várias pessoas. Tem o Lúcio, que é presidente do Instituto, que toca o dia a dia. Tem o Meia Noite, que é um dos nossos professores. Tem um grupo de Conselho: Adriana, Cláudia, as pessoas que tocam... A Mila... O dia a dia do Instituto. Então, eu fico emocionada de ver um sonho que saiu de mim virar o sonho de tantas outras pessoas e essa troca de bastão. A gente já formou acho que mais de mil jovens. Agora mesmo, antes de entrar aqui, eu acabei de escutar o recado de uma psicóloga: “Morena, eu estou com uma cozinheira na minha casa, eu estava conhecendo a história dela, ela se formou com você. Que lindo! Poxa, parabéns!” É muito gostoso.
P/1 – E você comentou das pessoas aprenderem, através do vídeo do You Tube. Você também tem? É introduzido vídeo no You Tube?
R – Sim. Eu tenho um canal chamado Mistura Morena e agora a gente está criando uma plataforma digital para o Instituto. A gente está convidando vários amigos meus, chefs, com conteúdos que a gente está elaborando, para que isso vire uma forma de manter o Instituto. A gente não quer fazer, juntar, pedir apoio. Então, a gente pensou em três maneiras de manter de uma maneira sustentável o Instituto. Uma é essa plataforma digital, que a gente está fazendo link com algumas faculdades, que tem que ter X horas/aula on line; a gente está fazendo um buffet social, que é um projeto onde o cliente quer fazer um jantar para dez, vinte pessoas em casa, vão lá dois alunos e um professor do Instituto, mas aí a gente não vai com tudo. O cliente compra os ingredientes, a gente passa uma lista de compras, ele loca ou tem os pratos e talheres e eu tenho o buffet Capim Santo. Mas eu vou com toda estrutura e essa estrutura é cara. Então, a gente está criando uma coisa menor, mais artesanal, para o Instituto. E a terceira forma são os livros. A gente resolveu reverter tudo que tem a ver com a plataforma de educação, com o compartilhar conhecimento do Capim Santo, em formas de renda para o Instituto.
P/1 – E nesse turbilhão de coisas todas que você faz, me fala um pouquinho da sua rotina. Como é que é? Você tem uma rotina de quando você acorda até quando você vai para o restaurante?
R – Sim. Eu acordo todos os dias de manhã cedinho - umas seis da manhã - e levo a minha filha, Manuela, para a escola. Depois, duas vezes por semana, eu vou correr. Comecei a correr a impulso do André Boccato, o editor dos meus livros, que fica me cutucando, sempre. E aí vou para uma sequência de reunião. Normalmente, às segundas-feiras, eu fico no Teatro Municipal; às terças, eu vou para o Tomie Ohtake; às quartas, eu fico no restaurante, no Capim Santo da Ministro; às quintas, eu fico no Museu da Casa Brasileira; às sextas, eu costumo ir para o Rio de Janeiro. A gente tem um restaurante lá também. E aí, final de semana, eu fico um em São Paulo, um em Trancoso e todo mês eu costumo ter uma viagem meio para fora do Brasil ainda. Eu cheguei aqui no Brasil em janeiro deste ano. Eu fui em janeiro para a Califórnia; depois eu fui em fevereiro para os EUA; agora em março eu fui para a China, para a Indonésia e para a Dinamarca. Mas viagens curtas, assim, de uma semana. Assim... Para não ficar longe. O mês que vem eu vou para Chicago, para uma feira de gastronomia também, mais cinco dias.
P/1 – E como é que surgiu essa ideia de ter _____________?
R – Olha só, acho que foi essa coisa quântica, de lançar para o universo. Eu fui com a minha comadre, que é a Mariana Ximenes, para Nova Iorque, passar um final de semana, fazer uma lista de restaurantes. E aí foi em um restaurante ________ e falei: “Nossa!” Quando cheguei, achei aquela coisa super _____ -chamava _________ - super moderno, falei: “Queria tanto ter um restaurante em um lugar assim!” No dia seguinte veio um e-mail para mim, me convidando para ir para o Tomie Ohtake, para o Instituto. Aí foi super legal, fiquei super feliz. Dois anos depois que eu estava no Tomie Ohtake, num domingo, eu fui almoçar no Museu da Casa Brasileira e falei: “Nossa! Esse lugar é incrível! Poxa vida, queria tanto cuidar desse lugar, trabalhá-lo com mais carinho”. Duas semanas depois chegou uma carta-convite de uma licitação. Quando eu abri, eu já tremia, falava: “Sei que eu vou ganhar”. Fui participar, mas eu já sabia que ia para lá para dentro. E aí, depois, veio a terceira carta-convite, para ir para o Teatro Municipal. Então, é uma emoção. Eu me sinto privilegiada, assim, em estar nesses lugares.
P/1 – Como é que é a escolha dos pratos para cada local?
R – Eu trabalho um cardápio único. Então, eu tenho uma bancada de saladas, que tem muito a ver com esse meu DNA gastronômico antroposófico, vegetariano, da minha mãe. Muitos grãos, a comida libanesa da minha avó. Então tem as pastinhas, o babaganoush, o homus. Às vezes, as pessoas chegam lá e falam: “Mas esse não é um restaurante brasileiro? Por que tem homus e babaganoush?” E eu falo: “Porque eu sou neta de libaneses, então eu adoro”. Tem isso. Aí, depois, eu tenho um fogão só de grãos: arroz branco, arroz integral, arroz vermelho, trigo. Aí tem um só de leguminosas: feijão, lentilha, grão-de-bico. Aí um só de acompanhamentos, que são vários: purês, folhas, refogados, legumes. Tenho sempre três farofas diferentes. Aí, depois, proteínas, tem só carne e frango. E aí um fogão de massas _______.
P/1 – Indo mais para um momento final, quando você não está nesse processo ______?
R – ________. E eu misturo muito o pessoal com o profissional. A física e a jurídica estão sempre entrelaçadas, assim. Estou viajando, comendo, experimentando, comprando livros. Eu acho que... Sabe quando você vai dormir com vontade de acordar? Eu durmo bem, gosto de dormir. Quer dizer: normalmente eu durmo três, quatro horas por noite, num dia normal. Aí, quando não tem nada que fazer, eu durmo quatorze, dezesseis. Eu sou dorminhoca, mas eu vou deitar, desmaio. Mas louca para acordar no dia seguinte com um monte de coisa legal que eu tenho para fazer.
P/1 – E de todas essas viagens, em que você conheceu a gastronomia do mundo inteiro, praticamente, se você tivesse que colocar um diferencial para São Paulo, o que tem em São Paulo que não tem em outro lugar? Que te anima e te envolve?
R – Tem essa coisa cosmopolita. Você pode dar uma volta ao mundo sem sair daqui. Eu, agora, um dos países na Ásia que eu conheci e me encantou muito foi a Coréia. Algo que não estava no meu radar. Essa coisa dos fermentados, tal, tem me instigado bastante. Eu sei que aí você vai no Konan, que é um puta restaurante coreano aqui; aí você quer ir em um indiano, tem um super restaurante indiano; você quer ir em um japonês, tem o melhor restaurante japonês; você quer ir no italiano... Então, São Paulo é muito democrático. Você pode ser quem você quiser. Eu amo. Eu amo estar aqui.
P/1 – E se você tivesse que dizer alguma coisa para alguém que está começando a cozinhar agora em um restaurante?
R – Bem-vindo! (risos)
P/1 – Morena, tem alguma coisa que eu não tenha perguntado, que você gostaria de falar?
R – Não. Acho que falamos tudo. Foi bem legal.
P/1 – Em nome do Museu da Pessoa agradeço muito sua participação. Agora a gente vai fechar esse bloco _______.
R – Então... Você me perguntou... Acho que só finalizar dizendo que cozinha, para mim, é uma mistura de amor de canceriana. Desde pequenininha, a minha maneira de acarinhar as pessoas sempre foi através da comida. Técnica, Cordon Bleu, sou formada há vinte anos como chef de cozinha e confeitaria no Cordon Bleu, em Paris. Planejamento, algo que eu tive que aprender na prática hoje, comandando uma equipe de mais de trezentas pessoas. Intuição de baiana. A minha cozinha é baseada num tripé da cozinha saudável, a qual foi criada pelos meus pais, com a técnica francesa e ingredientes brasileiros.
P/1 – Quais você acha que são os aspectos que caracterizam a identidade de uma gastronomia em São Paulo, para diferenciá-la de outros lugares?
R – Eu acho que é a variedade. Eu acho que você ter a possibilidade de comer uma comida libanesa, italiana, japonesa, isso não tem em outro lugar. Não tem no Rio, não tem em Minas. Acho que São Paulo acolhe, é a capital nacional da gastronomia mundial.
P/1 – E quais você acha que são os desafios para ativar, de certa forma, esse desenvolvimento sustentável _____________, você que tem feito um trabalho com o Instituto? Quais você acha que são os desafios para desenvolver a gastronomia de uma forma sustentável?
R – Eu acho que é conhecimento. Eu acho que é a comunicação. Quando a gente vai trabalhar a sustentabilidade, ser sustentável, eu acho que ainda existem muitos pontos de interrogação para muita gente do que é sustentável. E são pequenas atitudes. Eu acho que a primeira é o bem-estar e o ambiente onde você está. Você trabalhar com uma cozinha com pessoas felizes, com pessoas que têm clareza do que estão fazendo. E aí você começa toda a cadeia de mapear ingrediente de onde ____________ sazonalidade. Entender: “Eu estou trazendo tucupi lá do Pará. Isso é sustentável? Quanto eu estou viajando para isso? Mas o que eu também estou contando de história através desse prato? Tem o porquê disso?” Acho que quando tem o porquê, faz sentido. Quando não, não. Trabalhar a sazonalidade, óbvio; trabalhar todas as partes do ingrediente; não entender a sobra como lixo e sim como resíduo e como a gente pode separar, como eu posso transformar o meu resíduo até em fonte de renda, não é? E fazer sempre escolhas conscientes. Acho que a consciência com uma comunicação clara.
P/1 – Você tem alguma sugestão de como mais ativar aqui em São Paulo, com essa ideia de São Paulo como uma cidade criativa de gastronomia, se tivesse que dar uma dica para a cidade? De como ativar ainda mais esse potencial?
R – Eu acho que, de novo, tem a ver com a comunicação. Eu acho que a gente tem uma referência, que é o Peru, que fez isso brilhantemente. A gente tem a Espanha, a gente tem a França, agora a Dinamarca também, não é? Eu acabei de voltar. Eu estava na China, fui para Copenhague passar duas noites para ir jantar no ________. Não era um lugar que estivesse no meu radar, eu fui por causa daquele restaurante. Eu fui para Shangai também, passar uma noite para jantar no Ultraviolet. Então, a hora que a prefeitura, o governo, o estado entendem que a gastronomia pode trazer um mercado de turismo gigantesco... São Paulo já tem uma coisa muito forte... Você sabe que no meu restaurante tem mais gente de terça, quarta e quinta, do que sexta e sábado. Porque tem um público de executivos que está em São Paulo a trabalho, e muito grande. Então, eu acho que é trabalhar os guias, a coisa na entrada dos aeroportos, as revistas. Acho que valorizar, realmente, a gastronomia. Como a gente não tem praia em São Paulo, a nossa praia é a comida, assim como nosso carnaval. Nossa, olha só, cinco anos atrás a gente não ouvia falar de carnaval em São Paulo e a gente veio e está virando uma referência. Estou muito feliz.
P/1 – Muito obrigado!
R – Obrigada!
P/1 – Prazer!
R – Prazer!Recolher