Meu nome é Cristina, nasci no Piauí. Meu pai já trabalhou como carregador, gari, já teve uma banquinha de bombom, e a minha mãe viveu mais de roça, morou mais em interior. Ela é analfabeta, o meu pai já assina o próprio nome. Minha lembrança de infância era viver numa casa de barro, de pa...Continuar leitura
Meu nome é Cristina, nasci no Piauí. Meu pai já trabalhou como carregador, gari, já teve uma banquinha de bombom, e a minha mãe viveu mais de roça, morou mais em interior. Ela é analfabeta, o meu pai já assina o próprio nome. Minha lembrança de infância era viver numa casa de barro, de palha, que depois foi construída em tijolo com ajuda de pessoas. Lembro que eu brincava com a minha irmã. A gente saía muito, era muito danada, sabe? A gente ia pedir ajuda pro pessoal, gostava muito de sair, não parava em casa. Mas a gente nunca foi de roubar, fazer outras coisas, coisas ruins. Eu não sinto nenhuma vergonha de falar sobre isso. A gente comprava coisas pra dentro de casa, algumas besteiras também, tipo comida, bombom, chiclete, refrigerante, salgado, essas coisas. Até que eu, ainda na minha adolescência, passei quatro anos na Casa de Zabelê, dois anos frequentando um curso de moda. Tenho até o meu certificado. Aí entrou o Projeto ViraVida na minha vida, onde passei oito anos. Foi uma experiência muito boa, que eu nunca vou esquecer, muito bacana. E o Projeto ViraVida me encaminhou pro CIEE. Do CIEE eu tô trabalhando na Caixa como jovem aprendiz.
Na infância a gente ia pras praças da cidade, não pagávamos entrada para o parque — a gente entrava por um cano que tinha e que levava até o clube. A gente ficava lá esperando o movimento das pessoas pra que o fiscal não visse e não colocasse a gente pra fora. Eu gostei da minha infância, a gente não pagava ônibus, entrava por baixo, entrava lá por trás e se escondia no banco, era assim. Mas eu não desejo a minha infância pro meu filho não, Deus me livre! Do nosso tempo pra cá acho que já mudou muita coisa. Essas pessoas, crianças, adolescentes que a gente vê na rua, estão mais usando droga. Graças a Deus que nunca ninguém ofereceu e a gente nunca usou droga, nem bebida, nem cigarro, nada. E hoje em dia, não. Com os adolescentes é mais é droga, prostituição, é tudo. Vão na rua pedir, mas pra comprar droga, um cigarro. E a gente não fazia isso, graças a Deus. Eu ficava feliz porque daquele dinheiro a gente não roubou. O que fizemos foi pedir e deram por gratidão, por solidariedade.
Eu estudei onde nasci na primeira, segunda, terceira e quinta série. Aí vim para cá no período que o pai separou da mãe, e a gente acompanhou ele. A gente não sabia o que fazia também, se ficava com ela ou se acompanhava ele. Porque a mãe é um pouco brigona, ela briga muito. Mas essa separação não foi muito tempo, não. A mãe brigava muito com o pai, Ave Maria! Mas nenhum dos dois batia na gente, graças a Deus. A mãe brigava pra gente não ir pra rua. Às vezes o pai não queria deixar a gente sair, a gente saía escondida. A gente pedia nesses bairros que têm gente que tem mais dinheiro. Mas era pior porque o pessoal às vezes nem queria abrir a porta, que a casa é mais pra dentro, trancada. Quem ajudava mais a gente eram as pessoas mais humildes, da nossa classe. Os ricos... Alguns ajudavam por medo também. E eu dou razão, porque o mundo também como está...
Eu e a minha irmã começamos a sair da rua porque não podia andar mais por ela. Aí participava de projetos, várias coisas. Lá na Casa de Zabelê a gente tinha colônia de férias, que era no mês de julho, levavam a gente pra vários clubes. Muito bom. Fora isso a gente ia ao shopping e a vários lugar que eles levavam também. Já fiz dança, pintura... Eu só não aprendi serigrafia. Escolhi moda, corte e costura. Aí fiz o curso. Duração de dois anos, mas eu nunca vou esquecer a Casa de Zabelê. Foi muito bom também. Meus primeiros trabalhos foram em atelier, eu aprendi coisas que eu não sabia, coisas que eu não tinha praticado ainda. E do atelier eu fui trabalhar no Mercado Central, de entregar comida, essas coisas.
O que me levou ao ViraVida foi que eu já tinha participado da Casa de Zabelê. Ficou até mais fácil. Foi uma porta de entrada participar da Zabelê. Eu não passei por caso de violência sexual. Não vou mentir que eu já cheguei, sim, a andar na rua e tudo, mas passar por problema de violência sexual, não. Já ouvi muito caso lá. É muito triste vender o corpo, ficar com um e com outro. Ganhar um dinheiro que eu acho que não é legal, que não é abençoado. Fora outros casos que a gente vê lá de estupro, que é o pior. Ser estuprada é pior. Mas não vou mentir também que eu já andei bebendo muito por aí.
Quando eu terminei o ensino fundamental, eu estava grávida do meu menino. Tive ele no final do ano. Consegui ainda concluir o fundamental. Aí, no ano que ia vir, eu ia fazer o primeiro ano do colegial mas não consegui concluir. Fui acho que só dois meses pro colégio. Comecei a trabalhar durante o dia e estudar à noite, antes de entrar no ViraVida. Conheci o pai do meu filho aqui mesmo. Ele já tem um pouco de idade, é “coroa”, na faixa de quarenta e poucos anos. Eu comecei a namorar com ele só que não queria nada sério. Fui e tive esse meu menino. Ele me ajudava também, mas hoje, não. Ele ajuda, sim. Dá uma coisa pro menino, tudo, mas não por mim, eu não faço nem questão.
Mas minha primeira vez não foi com ele. Foi por livre e espontânea vontade minha, tudo. Mas eu não tava muito preparada. Não pensei que ia ser com ele. Eu não queria. Foi uma coisa inesperada, daquele momento. Eu fui mais pela beleza, pela boniteza. Eu tinha uns treze ou catorze anos. Depois dele eu tive uns mil namorados. Meu namoro não era um namoro sério. Os meus namorados queriam, sabe, mas eu não queria muito sério. Era mais sair, curtição, essas coisas, mas namoro sério, não. Já, me ajudaram sim, bastante. Me davam dinheiro, presente. Queriam me dar alimento, essas coisas. Ser mãe foi um pouco difícil, eu não queria, não vou mentir. Depois que me apeguei eu caí na real: “eu já tenho um filho e pronto.” Por mim eu não me arrependo de ser mãe. Mas hoje eu não queria ainda ser, porque é uma responsabilidade que você tem pra vida inteira.
O que me motivou a vir para o ViraVida foi ter um emprego fixo. Eu fico feliz de trabalhar na Caixa, mas eu queria um emprego do qual eu soubesse que nunca ia sair. Eu fiquei feliz e me sinto privilegiada porque nós somos a primeira turma do primeiro projeto. Eu não sei como se fala, mas é o Projeto Jovem Aprendiz. Também participei da primeira turma do ViraVida. Eu não lembro muito bem do que fiz com meu primeiro salário, lembro só um pouco. Não vou mentir, me diverti, comprei muita coisa boa de comer que eu ainda não tinha comido lá pra casa, frango, carne. Paguei algumas continhas que eu tinha, comprei uma calça nova que eu queria e uma sapatilha pra eu vir trabalhar. Foi isso que eu fiz com meu primeiro dinheiro. Foi bom, me senti feliz. Comprei muita comida com meu primeiro ticket.
Eu trabalho no atendimento, atendo as pessoas, dou informação, encaminho pro lugar correto, tiro xerox. Então é assim, a gente trabalha no banco e cada funcionário tem a sua função. A gente, não. Se trabalha no atendimento, tem que fazer de tudo um pouco. Tirar xerox, digitalizar um documento, levar as contas lá pra dentro, trazer conta, dar uma informação pra um cliente antes da abertura. O meu relacionamento é aberto com todos do trabalho. Quem quiser conversar comigo eu escuto. Agora a gente tá morando aqui eu, meu filho e meu marido. Só que a gente passou um tempo separado, mas agora estamos juntos de novo. Ele gosta muito do meu filho, respeita. Eu falo pra ele respeitar e ele respeita. Nosso relacionamento é bom.
Encaminhei minha irmã para também ser ajudada pelo ViraVida. Para ter um bom emprego, que nem eu e, assim, dar o melhor para o filho dela. Ela passou os dois anos, completos. Eu saí com oito meses. Ela saía com os homens na rua, aí de um tempo pra cá ela mudou muito. Tudo ela contava pra gente e ela não tem vergonha de dizer isso pra ninguém. Ela passou uns quatro, cinco meses fazendo isso, essas coisas na rua. Nesse ano foi que ela já mudou totalmente.
O ViraVida trouxe pra mim paciência, muita paciência, só trouxe coisa boa pra mim. Esse emprego que eu tô que é uma grande experiência. O ViraVida ensinou a gente a se dedicar mais à vida, a correr atrás e mostrar que a gente não é incapaz de viver, a gente não é incapaz de lutar, de procurar, de correr atrás do impossível. O ViraVida mostra pra gente que nada é impossível. Tudo é possível quando você quer. E o que eu mais quero, no momento, é ter a minha própria casa. Ter a minha própria casa e comprar minhas coisas, construir minha vida. É o que eu mais quero.
Vai ter conforto, um quarto só pro meu filho. Conforto e um bom emprego. É o que eu sonho. O ViraVida é uma mãe que acolhe, que abraça você com toda a força, com todo carinho, que te protege de tudo. Não tanto de tudo, mas que te protege 90%.
Nesta entrevista foram utilizados nomes fantasia para preservar a integridade da imagem dos entrevistados. A entrevista íntegra, bem como a identidade dos entrevistados, tem veiculação restrita e qualquer uso deve respeitar a confidencialidade destas informações.Recolher