P – Eu queria saber o seu nome completo, local e data de nascimento. R - Luiz Marcos Suplicy Hafers. Santos, 20/12/1935. P – E o nome dos seus pais? R - João de Magalhães Hafers, Helena Cochrane Suplicy Hafers. P – Você conheceu os seus avós? R - Dois. Luiz Suplicy, que fo...Continuar leitura
P – Eu queria saber o seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Luiz Marcos Suplicy Hafers. Santos, 20/12/1935.
P – E o nome dos seus pais?
R - João de Magalhães Hafers, Helena Cochrane Suplicy Hafers.
P – Você conheceu os seus avós?
R - Dois. Luiz Suplicy, que foi fundador do Escriptorio Suplicy, em 1879. Eu era menino e assisti à morte dele em Santo André, onde a família tinha uma casa. E outra minha avó, mãe de meu pai, que morreu com 108 anos de idade, em 1964, e eu era o neto querido entre muitos que ela tinha. Conheci muito bem, já era casado quando ela morreu. Uma mulher extraordinária, entre outras coisas contava que tinha desfiado lençol de linho para fazer atadura para a Guerra do Paraguai.
P – E como era o nome dela?
R - Elisa Nascentes Pinto de Magalhães Hafers.
P – E de onde vem o Hafers? De onde vem o Suplicy? Qual a origem dessa família?
R - O Hafers é história... O meu avô que eu não conheci morreu em 1927. Era um alemão de Bremen e veio para Santos lá pelos 1870 para ser Lehrling. Lehrling é um sistema de aprendizado alemão que eu acho fantástico. Eles estudam, vão ser trainees, mas com especificações muito duras. Ele veio para ser Lehrling em café no Brasil e, graças a Deus, nunca voltou. Luiz Suplicy é neto de francês, filho de franceses que vieram para o Brasil lá por 1850, classe média remediada. O pai morreu quando ele era muito pequeno. A mãe casou-se outra vez. Ficaram muito pobres. Ao meu avô Luiz Suplicy foi pedido para sair de casa com 13 anos por pobreza. A mãe era alcoólatra e ele foi trabalhar em Santos como ajudante do armazém do café, e tornou-se um dos maiores corretores de café na época. Um homem educadíssimo, formidável, e uma das pessoas importantes no tempo em que café era importante. Ai, que saudades
P – Esse avô você conheceu?
R - Eu, praticamente, não. Eu me lembro de flashes. Eu tinha 4 anos, ele morreu em 1939 e eu tenho dois ou três flashes dele atravessando uma porta. Eu perguntava para a minha mãe: “Mas por que as camas eram tão altas?” Não é que a cama era alta. Eu é que era pequenininho. Eu era da altura da cama e via meu avô deitado ali.
P – Onde morava a sua família, onde você morou?
R - Eu fui nascido e criado e vou ser enterrado em Santos. Santos, onde sempre morei. Morei por 18 anos e moro temporariamente em São Paulo por 50.
P – E você estudou aonde em Santos?
R - Eu acho que estudar seria um exagero.
P – Freqüentou a escola.
R - Eu fui à escola, Ateneu Progresso Brasileiro, Dona Ida Delgado, uma senhora formidável. Me lembro pouco, com satisfação. Depois fui para o Colégio Santista, me lembro muito, com irritação. Eram Irmãos Maristas de pouquíssima cultura e se insurgiam, a meu ver inadvertidamente, porque eu pertencia a uma classe melhor. O padre professor de inglês... não era padre, era irmão, tinha uma profunda irritação comigo porque eu falava inglês e ele não. Eu nunca me apercebi, ingenuamente, de que essa diferença social criava tanto ressentimento. Até hoje.
P – Mas a diferença social se dava porque o seu pai já era um homem bem de vida?
R - Não, não era muito, mas minha família, culturalmente, era muito importante. Quem trabalha em café sabe – altos e baixos. Até que a nossa casa era muito boa. Santos era muito importante. Para você ter uma idéia, eram vizinhos nossos Gastão Vidigal, o João Moreira Salles, o João Melão, Olavo Ferraz, gente muito importante do café. Santos era uma vila muito interessante, tinha um padrão de sofisticação. Meu pai foi educado na Europa. Minha avó morou na Europa inteira. Minha mãe nunca foi à escola. Foi educada em casa. Falava, inglês, francês, alemão perfeitamente. Então nós tínhamos, vamos dizer assim, sinais de uma sofisticação cultural, não tanto financeira.
P – A casa era grande?
R - Grande, maravilhosa. A minha mãe foi uma mulher maravilhosa. A casa era ponto de duas ou três gerações.
P – Você é o irmão em que situação?
R - Numa situação interessante. Papai casou-se velho, com trinta e poucos anos. Teve três filhos. Dez anos depois, mais três filhos. Um homem, duas mulheres. Um homem e duas mulheres. Eu sou o primeiro da segunda fornada.
P – E desses irmãos, o que a gente poderia mencionar? Quem é conhecido?
R - O meu irmão mais velho é muito conhecido, João Roberto Suplicy Hafers, cujo apelido é Jua, é um homem extraordinário. Hoje tem 81 anos, com pouca saúde. É um prazer enorme falar dele. O Jua foi uma das primeiras pessoas que fez história em quadrinhos, com 15 anos, para um jornal em São Paulo. Ele, na década de 30, foi introdutor, e é reconhecido como tal, do surf no Brasil. Fez aquelas tábuas havaianas, como se chamava. Depois foi trabalhar em café e durante a guerra foi ser piloto na Força Aérea. Fez a Campanha do Atlântico Sul, protegendo comboios de navios contra submarinos. Foi aos Estados Unidos, foi Top Gun. Era piloto de P-47. Com o fim da guerra, voltou ao Brasil, foi trabalhar no Escriptorio Suplicy, no qual ele trabalhava antes de ter ido embora. Em 1958 foi ser representante de café do Brasil na Organização Pan-Americana do Café, em Nova York. Morou em Nova York desde 1958 e, parcialmente, até hoje. E para quem o conhece foi uma figura importantíssima em Nova Iorque, se dando com as pessoas mais interessantes e importantes. A casa dele sempre foi um ponto político, onde iam todos os presidentes, todos os ministros, todos os interessantes, todas as pessoas agradáveis. Os chatos eram rapidamente descartados. É um homem interessante e um irmão maravilhoso.
P – Suas irmãs?
R - Minhas irmãs mais velhas, a Helena casou-se com Alfredo Penteado, e a outra, Vera, casou-se com Paulo Prado, neto do Paulo Prado.
P – Tem as duas novas.
R - As duas novas, uma se casou-se com o Roy Higgins e a outra casou-se com Francisco Simon. Separou-se. Casou com um americano, boa pessoa, mas foi muito interessante porque ele era a quintessência do red neck. Basta dizer que ele era diretor da National Rifle Association.
P – O nome dela?
R - Lia Isabel Hafers.
P – A outra?
R - A outra chama-se Maria Luiza. Essa Lia é uma irmã muito querida. Morreu de câncer na garganta há alguns anos. Esperta, divertida, engraçada, e o marido... interessante conhecer gente que possa pensar daquele jeito.
P – Como assim? Expliquemos um pouco ao público.
R - Direita burra. Eu sou acusado de ser de direita, o que não é uma total inverdade, mas longe de ser da burra. Ele era simplista, simplório. Olha, votaria no Bush todas as vezes.
P – E a sua vida de criança, o que você lembra, o que é bom contar desses momentos?
R - Ah, uma família maravilhosa. Um pai e uma mãe extremados. Os irmãos mais velhos muito ativos, eu conhecia muita gente. A minha casa foi muito alegre. Havia momentos de dificuldades financeiras, mas essa aflição, certamente, era do meu pai e da minha mãe, mas nunca chegou a nós. Santos, na praia. Nós, santistas, não morávamos na praia porque tinha um negócio chamado maresia, que melava vidro. Então nós morávamos num quarteirão atrás da praia, do lado do Parque Balneário, que era o centro de Santos. Praia todo dia, pescar, soltar papagaio, jogava rodinha que virava com o vento. À tarde, quando nós éramos crianças, meu pai e um amigo, eu e o filho desse amigo, íamos passear na praia. É uma vida diferente, muito mais calorosa. Ainda hoje eu sinto muita falta do cheiro da maresia e desses sonhos... gostaria de ter um apartamento na ponta da praia para sentir o cheiro de maresia misturado com diesel dos barcos de pesca.
P – Vamos falar um pouco da viagem ao Alasca. O que foi isso?
R - Foi uma sorte incomensurável. Eu tentei fazer vestibular de engenharia, levei pau, justificadamente, porque eu não estudava e teria sido um péssimo engenheiro. Não tenho esse jeito. E aí eu precisava arranjar alguma coisa, eu diria, dramática, para camuflar,
na época era muito importante o sujeito ser formado. E o meu irmão me arranjou um emprego numa companhia que enlatava salmão no Alasca e eu fui, mas no meio do caminho tive a sorte de arranjar um emprego num pequeno barco. Eu fui para os Estados Unidos de navio cargueiro. Fui para Nova York, viajei a costa do Pacífico na Highway 101, de ônibus. Eu fui ao Muir Woods, que é logo depois da Golden Gate, em São Francisco, e tive a minha primeira grande sensação de ecologia. Só se foi falar em ecologia em 1965. Eu não sou eco-maníaco, mas sou eco-responsável. Fui até Seattle, que é uma cidade muito agradável. Aí arrumei esse emprego com um americano muito simpático, Johnnie Castleman, que havia sido trainee de café em Santos. Me recebeu lá, me arranjou essa viagem. Eu peguei um avião, fui para Seward, no Alasca, e subi num barco de cinco pessoas, Motor Vessel Coral Sea, e fizemos uma viagem de quase 15 dias pelas ilhas do Alasca. Nós paramos em todos os lugares. Na volta eu tinha dinheiro para mais um dia só, quando arranjei um emprego numa fazenda com casa e comida. Foi um grande alívio. Guiava caminhão, trator, fazia cerca. Isso no verão, primavera e outono no Alasca, que leva três meses, que o resto é inverno. Fiquei lá um tempo e aí eu ia para Fort Yukon, no norte, para ir caçar lobo, porque havia um bond. O governo pagava 100 dólares por lobo que você matasse, porque os lobos matavam os caribus e os caribus eram comida dos esquimós. Mas eu fui chamado para vir para o Exército, que era muito importante na época. Não me arrependo, por dois motivos; primeiro porque eu fiz o Exército. Foi uma experiência extraordinária. E segundo porque eu voltei desse sonho. Amigos meus na época foram à África, não voltaram a tempo e nunca mais se adaptaram a esta vida nossa de trabalho, gravata e mulher, criança, papagaio, cachorro. Então, essa vida... é muito difícil explicar para um urbanóide o que é a vida da dificuldade física de frio, calor, urso, leão, ou o que seja. Talvez seja uma fuga da civilização, mas é extremamente agradável. Seus problemas são todos imediatos e fáceis de serem resolvidos. Não tem chance de ter psiquiatra num lugar desses.
P – Você ficou na fazenda?
R - Era de uns emigrados alemães. Tinha uma fazenda de leite e nessa época você tem que trabalhar muito porque os dias são compridos, as temporadas de crescimento para se fazer feno para fazer o silage [silagem], para agüentar o inverno. Terminou o serviço nessa fazenda, fui trabalhar numa outra, tinha um sujeito, Bill Sisco, que tinha vindo do Arkansas e certamente devia ter aprontado alguma lá... Ele me disse que matou um líder preto lá, mas ele era batista, “It was God’s will” [foi a vontade de Deus], como eles falam. Quem estava no Alasca naquela época estava fugindo de alguma coisa. Ou de si mesmo ou de alguma coisa que tinha feito. Era um ambiente psicológico interessante. E nessa casa eu fiquei dez ou quinze dias dormindo no mesmo quarto, de roupa, porque já era frio. E um cansaço... Trabalhava 20 horas por dia com o irmão dele. Saí de lá, peguei um trem e fui para Fairbanks
para ir para Fort Yukon e na viagem eu passei péssimo, uma dor, um mal-estar, uma gripe pavorosa. E essa imagem é muito clara. Eu desci em Fairbanks em 1955. Tinha um prédio de madeira grande, escrito em vermelho “Hotel”, mas eu já estava, talvez, um pouco delirante. Pedi um quarto com banho. Note-se que banho não é uma coisa muito comum nesses lugares e o homem me disse: “Olha, por sorte o único quarto está vago.” Tinha uma banheira de ferro, eu me lembro vagamente, com chão de linóleo. Pouca gente ainda lembra o que era linóleo. Todas as cozinhas antigas tinham esses tapetes de linóleo. Eu encho a banheira com água quente, deito na banheira, durmo e acordo, porque a água estava fria, no meio da noite. Deito, peço aspirina, passo dois ou três dias mal, vou para o Norte, viajo. Volto para essa cidade, Palmer, para receber um dinheiro,
e pergunto para o meu patrão: “E o meu amigo?” Ele mostra surpresa: “Mas você não soube? Dois dias depois que você saiu ele foi embora para os Estados Unidos completamente paralisado de paralisia infantil”. Dizem os médicos que eu certamente tive paralisia nesse lugar, dessa maneira, sem ser paralisado. Deus me protegeu.
P – E aí você volta do Alasca e cai na realidade do Exército brasileiro?
R - Mais do que a realidade. Eu vim numa bruta forma física. Havia uma certa aura de que eu tinha vindo de ser caçador no Alasca. Até o meu apelido de Caribu vem desse tempo. Meu apelido no Exército é Caribu. Eu comecei a jogar pólo, meu apelido no pólo é Caribu. E foi uma época muito feliz. Comecei a trabalhar e fui fazer estágio no 17º Regimento de Cavalaria, em Pirassununga. Fiz bons amigos no Exército, entendi a maneira de pensar dos militares. Tenho o maior respeito pelos militares. É o lugar menos corrupto do Brasil.
P – Há uma viagem que se chama “Seca de 1958”.
R - Eu trabalhava em algodão, tinha vinte e poucos anos, muito protegido. Essa proteção... eu me dei conta, quando eu fui ao Alasca, que eu não tinha sobrenome no Alasca. Então as portas não se abriam inadvertida, imperceptivelmente, como era comigo em Santos. Eu fui ao Nordeste na seca de 1958 e chego em Caicó em setembro, outubro. Um céu muito azul, muito limpo, uma luminosidade difícil de explicar para quem é do Sul, e a praça sempre cheia de gente, e a fome silenciosa. A fome é calma. Aquele monte de matuto na praça, esperando não se sabe o quê. Eu vi um cego tocando uma violinha com uma lata de goiabada Peixe redonda, eu nunca me esqueço disso. E alguém tão pobre como ele despejou um pouco de arroz. Eu nunca tinha visto isso. Eu nunca tinha imaginado isso, eu nunca tinha sentido isso. Isso me deu uma agulhada social de que eu nunca mais, graças a Deus, me livrei. Foi um ponto de mudança. É difícil você explicar para sulista que uma seca no Sul é uma encrenca econômica e no Nordeste é um desastre social, porque é agricultura de subsistência. Aqui é um problema de dinheiro. Lá é um problema de existência. Viajei muito o Nordeste nessa época de 1957, 1958 a 1961, 1962. Andei por todo o Nordeste. Eu ia a Campina Grande, depois ao Seridó. Depois ia até Cajazeiras, fundo da Paraíba, Milagres, Aurora, Crato, Juazeiro do Padim Padre Ciço. E foi o início de uma perambulação por esse Brasil que faço ainda muito hoje, e recomendo. Eu mochilei a minha vida inteira.
P – Essas viagens, quer dizer, a gente podia falar, eu vou usar uma expressão do Machado de Assis, “instinto de nacionalidade”. Nasce, talvez, aí, ou se cristaliza, um instinto.
R - Ninguém é de origem luso católica impunemente. Nós, brasileiros, não resistimos a quem tem olho azul e cabelo loiro. Temos uma subserviência cultural altamente indesejável. Então você viaja muito pelo Brasil, você vê
as possibilidades, você vê as esperanças. Há dois meses atrás eu estive em El Salvador. Dois dias em El Salvador não me autorizam a dar respostas, mas, sem dúvida, a fazer muitas perguntas. E eu não conheço saída para uma situação dessas. Eu conheço a África. Estive no Mali, em Zimbábue, na Nigéria, no Alto Volta, hoje Burkina Faso, na Costa do Marfim, na África do Sul, e vejo dificuldades infinitamente superiores. Eu acho que nós brasileiros temos uma sensação errada de nacionalidade. Mas vejo melhorar isso agora. Meu pai foi educado na Europa. A elite do café tinha paradigmas europeus. O Brasil tinha que ser Londres, Paris ou Berlim. Na medida em que não foi, e depois da Crise de 1929, entraram numa fase de pessimismo achando que o Brasil não ia dar certo. Foi Juscelino que resgatou isso.
P – A gente podia falar um pouco sobre 1929, 1930.
R - A história dos Estados Unidos começa com a Guerra da Secessão. E a guerra não foi em torno da escravatura. Foi o embate do moderno versus anacrônico, e quase que o anacrônico ganha. Aqui em São Paulo, de maneiras diferentes, houve isso. Toda vez que uma classe ou um grupo se apodera da decisão, ela blinda a sua ação, transferindo os riscos para o social, para os outros. O café era decisivo. Até 1929 era 80% da balança de pagamentos e, mais do que isso, era o negócio que havia no Brasil. Fez estrada de ferro, fez indústria. Aí houve grandes intervenções governamentais, o que distorceu o mercado. Fez com que produções monumentais começassem a ser feitas. Quando houve a Crise de 1929, quebrou a elite cafeeira. Nós todos quebramos, e minha suspeita fundada é que permitiu que os imigrantes crescessem. Porque o poder constituído, estabelecido, não gosta que alguém mude. É sempre o embate modernos versus antigos, a permanência versus a mudança. Quando muda, muda o poder, e não interessa a quem tem. E geralmente ele já é obsoleto porque ele chegou ao poder porque ele era competente. Ele está no poder e ele começa ser incompetente. Os imigrantes fizeram São Paulo. Houve uma grande desvalorização. Não tinha mais moeda forte. Veio a Guerra. Seu Chiquinho Matarazzo, que era um grande amigo meu, conversas fantásticas, me diz que quem fala de Crise de 1929 era da elite, não era dos imigrantes que começaram a fazer a indústria. Eu faço um outro paralelo com o Nordeste, a elite que foi ao poder com o açúcar. O açúcar deixou de ser importante, foram para a política e se mantiveram no poder. Na Argentina também. O poder rural se manteve. Não deixou que a indústria crescesse e eles, a exemplo da Guerra de Secessão, são o Leslie Howard da fita ...E O Vento Levou. Ganhou o anacrônico, ganhou a permanência, evitou a mudança. O grande sucesso de São Paulo é que pouca gente nasceu em São Paulo. Quem veio a São Paulo veio porque queria trabalhar. Trouxe o seu dinamismo, trouxe a sua, vamos dizer, vontade de ir para frente e fez este monstro maravilhoso, ao meu ver, que é São Paulo.
P – Como é que você veio parar em São Paulo?
R - A firma da família tinha uma seção aqui e eu vim para trabalhar em algodão, que era o lugar onde eu tinha possibilidade. Eu comecei a trabalhar em algodão e vendia algodão aos maquinistas. Maquinista era quem comprava algodão, beneficiava, fazia o fardo. E botei amostra debaixo do braço e fui viajar o mundo, vendendo algodão brasileiro. Na época tinha um vantagem, que tinha um imposto de vendas em consignações, que era 7,5% a cada operação. Então eu tinha um subsídio de 7,5 % para disfarçar a minha incompetência. Em quatro anos, meu grupo era o segundo ou terceiro maior exportador de algodão do Brasil. Fui ao Japão com 25 anos e viajei o mundo inteiro vendendo algodão. Foi um grande sucesso. Aí, no fim da década de 60 começou a história do industrializado e eu, imediatamente, percebi que se carimbasse “industrializado” no fardo recebia 50% a mais. E nos juntamos com um grupo de exportadores de tecidos, um subsídio, uma vantagem fantástica, e nos tornamos os maiores vendedores de pano lá fora. Então eu acho que o maior sucesso não foi eu ter entrado, foi quando eu saí do algodão. É mais importante a hora de sair do que a hora de entrar.
P – Esse é o momento em que você se casa?
R - Eu me caso em 1960 com uma moça de Santos, amiga da família, amiga das minhas irmãs mais moças. Tem cinco anos menos do que eu. Hoje em dia parece 20 mais moça do que eu.
P – Qual é o nome dela?
R - Maria Helena. O casamento é um terremoto. É uma decisão brutalmente irracional, totalmente emocional, e muito boa. E até preciso dizer a quem já foi casado, é casado, vai ser casado, uma advertência: eu nuca tive vontade de me separar, mas de esganar, muitas vezes.
P – E desse casamento nasceu uma filha.
R - Uma filha absolutamente maravilhosa, Adriana. Tem hoje 40 anos, casada com Aníbal Mendes Gonçalves. Tem um filho. Eu não sou coruja, mas é bonito, inteligente, educado. Chama-se Anibinho e é só prazer.
P – Vamos voltar ao algodão? Quem introduziu esse algodão?
R - A agricultura brasileira tem uma fase heróica de extração, tem uma fase de consolidação e tem uma fase de mudança. O algodão era plantado na fase consolidada, no estado de São Paulo, muito, e no Nordeste, que era um algodão perene e era o cash crop, que dava o dinheiro. Isso foi terminado por causa do bicudo há dez anos atrás. Tinha umas roças, depois soltava-se o gado em cima. Ou era um algodão de baixíssima produtividade e quase nenhum custo e de ótima qualidade por causa da insolação. E ainda dava o caroço de algodão, dava a torta, de onde se extraía o óleo, e a torta era ração para gado. Então, era uma equação de subsistência à pobreza no Nordeste muito boa. No Sul era plantado. Com a crise do café em 1930 houve um grande desastre, começou-se a plantar algodão com grandes produções no fim da década de 30, mas havia o rearmamento japonês e alemão. Theodor Wille, Casa Tozan compravam algodão para mandar. Comprava e estabilizou-se o mercado. Com o bloqueio a partir de 1940 e 1941 foi feita uma grande sacanagem com o Brasil, que pouca gente sabe. O Brasil vitoriano organizado em termos europeus não tinha para quem vender algodão, os ingleses mandaram um sujeito aqui, compravam todo o algodão, o Brasil emitia reais, mil réis, cruzeiros, na época, que seja, contra drafts, contra saques na Inglaterra. O algodão ficou todo aqui, todo mundo ficou satisfeitíssimo. Os ingleses salvaram a pátria. Termina a guerra, o preço do algodão explode na mão dos ingleses. Os nossos créditos nas mãos dos ingleses derretem. Stafford Crips desvaloriza em 1947, nós queríamos comprar contra esses créditos, não podíamos porque a Inglaterra não tinha o que vender. Torna a moeda inconversível. Faz-se uma acordo e entrega-se todo o ferro velho. São Paulo Railway, essas coisas. Paraná Plantation, Cambuí Plantation, essas fazendas todas entregues aos ingleses, que os grupos mais informados compram a preço de banana e a Viúva paga a conta. Quando se fala em FMI, por favor, é bom lembrar dessa sacanagem. Como a elite era inglesa, à época ainda não tínhamos deteriorado para ser americana, houve, eu diria, um constrangimento de denunciar isso. E até hoje quando eu lembro as pessoas se espantam e não sabem. Fica aqui a minha advertência.
P – Seria interessante falar dos poderosos de ontem e de hoje. Quem plantava algodão?
R - Tinha dois tipos; os mais competentes na região de São Paulo, alternativa para o café. E aí, na década de 50 e 60, quando eu comecei a trabalhar, derrubava-se mato no Paraná para depois formar pastagem, plantando algodão ou milho como pioneiro porque tinha densidade econômica para ser transportado em condições extremamente adversas. E a não-custo, porque o custo era muito mais um custo de capital do que de caixa. Se comprava a terra e se dava um jeito e arrumava a coisa. Evidente que isso foi indo. O Brasil teve grandes produções de algodão. Tinha problemas de câmbio, câmbio é extremamente importante para a agricultura e tem havido pragas no câmbio. A última praga que aconteceu na agricultura chama-se Gustavo Franco, mas se a gente começar falar sobre isso fica muito complicado. E aí o algodão foi, foi. A última praga que aconteceu no algodão, na década de 90, foi que se importava algodão sem imposto. Mas não era algodão que se importava. Importou-se um bilhão de dólares de algodão a juro de 8%. Nós podíamos competir na produção, mas não podíamos competir no financiamento. O Brasil baixou a sua produção, os números me escapam agora. Nesse meio tempo surge o cerrado com um grande líder, que foi o da [Fazenda] Itamaraty, Olacyr de Moraes. Hoje, o Brasil ameaça o mundo com sua competência, há o algodão extremamente sofisticado no cerrado de Mato Grosso e no cerrado baiano.
P – Quando você saiu do algodão, passou para quê?
R - Em 1977, eu tive uns insuperáveis impasses familiares, mas, como somos muito educados, não brigamos, eu saí da companhia. Eu já tinha outra companhia, fundada em 1966, que era a Plantar. Em 1963, na casa de um amigo, pai de um amigo, Marcos Vieira da Cunha, eu vi uma tábua e perguntei o que era. Ele me disse: “É Pinus eliotis. É um pinheiro americano que no Brasil cresce três vezes mais depressa do que nos Estados Unidos.” Eu imediatamente me encantei, porque qualquer coisa que eu faça três vezes melhor do que o americano há de ser um bom negócio. Em 1966, comprei fazenda, comecei a plantar. A minha idéia é que havia financiamento no banco do estado e a juros fixos. Levava dez, quinze anos para produzir, mas a inflação pagava, e aí veio o incentivo fiscal. Juntei com outros amigos. Fizemos grandes plantações. Em 1968, me juntei com o grupo do Estado de S. Paulo, os Mesquitas, para fazer uma fábrica de papel de imprensa. E o negócio foi muito bem craneado. Eu não sofro dessa moléstia da hipocrisia católica que se chama modéstia. Eu inventei o negócio, onde nós fazíamos uma grande plantação de pinheiro com incentivos fiscais. Daríamos essa plantação para quem fizesse a fábrica. E com percalços foi indo. Todos os outros reflorestadores, com mentalidade de agricultor, achavam que a fábrica tinha que pagar para eles. Eu sabia que eu tinha que mudar de lado. O meu pinheiro não valia nada sem a fábrica. Valia muito com a fábrica. Eu dei nossos pinheiros em garantia com o valor que a fábrica pagava, que era cinco vezes maior. Quando nós montamos o negócio, o pinheiro valia cinco, a fábrica 100 e o papel 600. Isso em dólares. Então, com uma certa quantidade de pinheiro, eu pagaria a fábrica, porque a fábrica não compraria matéria-prima. Quando nós fizemos a fábrica, o papel valia 600, a fábrica custou 200 e o pinheiro valia um. É a famosa perda de relatividade. Nós precisamos de cinco vezes mais pinheiro. Nos tornamos sócios dos estrangeiros. Fizemos a fábrica. A fábrica é uma maravilha. Começou a funcionar em 1984, investimento de 200 milhões de dólares, e, por outros motivos, acabou sendo vendida. Mas eu diria que é um dos maiores sucessos de que eu participei.
P – Onde fica?
R - Jaguariaíva, Paraná. É uma beleza.
P – As plantações, as florestas plantadas ficam lá?
R - Continuam. E o caso da madeira é que ela vale 5 para papel, 20 para tábua e 40 para compensado. E hoje o estado de São Paulo iniciou um grande processo de florestamento, que é uma alternativa para as terras mais cansadas ou quebradas, não passíveis de mecanização. Porque isso é outra coisa. Nós precisamos pensar que daqui a 20 anos, se o Brasil for país, e eu espero que seja, não vai ter empregado de 10 contos por dia. Então, aonde não tiver terra mecanizada não pode ser agricultada. A cana vai perder milhares de hectares porque não são passíveis de mecanização. Então são conceitos, são constrangimentos, são coisas que precisa botar na cabeça da gente. Se o Brasil tiver gente a 10 contos por dia para trabalhar, esqueça outro investimento, que o Brasil vai mal.
P – A fábrica de papel do Paraná foi até quando? Sua atividade lá foi até quando?
R - Foi até 1997.
P – E aí você passa para que atividade?
R - Ao mesmo tempo, eu tinha uma opção de outros negócios. Tentei fazer mineração. Tenho paixão por mineração. Gastei muito dinheiro, mas faltou dinheiro porque todos os outros negócios meus, o negócio grande, café, você ganha de pouquinho em pouquinho. Mineração você perde de pouco e ganha de muito.
P – Por que a gente não fala um pouco do cerrado?
R - Nós, primeiro, tínhamos complexo de agricultores. Não, você foi competente, pode ser competente em qualquer coisa. Segundo, a imigração que veio ao Brasil veio de países temperados, com agriculturas e culturas temperadas. Essa agricultura temperada funcionou no Canadá, nos Estados Unidos, na Argentina, na Austrália, mas no trópico não funcionava. Ainda ontem eu vi que o Brasil produziu 122 milhões de toneladas de grãos. Não entra mandioca, não entra açúcar, não entra café, por quê? Porque o parâmetro é europeu, e esse parâmetro europeu, que começa no Natal e, graças a Deus, terminou na agricultura, num determinado momento nós começamos a aprender a mexer com cerrado. Os cerrados são terras paupérrimas, planas, mas têm sol, água, terra, e temos tecnologia. Nós saíamos de uma agricultura de extração, aonde meu avô foi para o Paraná, derrubou mato, extraiu a fertilidade através do café, do pasto, do algodão, do milho, e achava que estava fazendo agricultura, quando na realidade estava fazendo mineração. Agricultura do cerrado não é extração de fertilidade. É conversão de energia solar. O Brasil tem 42 milhões de hectares arados e plantados. Tem 200 milhões de hectares de cerrados à nossa disposição. A campanha contra a Amazônia... Eu tive fazenda no Acre em 1970, pelo erro de achar que valia mais a extração do que a conversão, e hoje tenho fazenda no cerrado. O cerrado foi a coisa mais importante que aconteceu na agricultura mundial no século passado. Isso foi feito no Brasil. Essas brigas de Cancún, de OMC, Franz Fischer, um suado austríaco, do [Pascal] Lamy, um pretensioso francês, do [Robert] Zoellick, um arrogante americano, em cima da agricultura brasileira. Nós vamos mudar o poder agrícola no mundo. Nós estamos lutando contra a permanência em favor da mudança e esse avanço da agricultura brasileira é, hoje, temido. Eu tenho o testemunho de uma pessoa muito agradável, mister J. D. Penn, que é o subsecretário da Agricultura americano. Disse que recebeu um grupo de americanos que tinham chegado ao cerrado brasileiro, dizendo: “Senhor ministro, nós acabamos de chegar do nosso enterro.” Proféticas palavras. O ano passado eu recebi uma comissão de americanos, estudando agricultura brasileira. Quando voltaram, escreveram outro paper profético,
“Agricultura brasileira foi altamente sub-avaliada.” O Brasil é a grande potência agrícola. E tem subsídios, tem cartórios para serem desmontados. Cancún, Doha e a Rodada do Uruguai, na ordem inversa, são os primeiros tiros dessa batalha.
P – Hoje a sua relação com agricultura, como produtor, consiste em quê?
R - Centra-se em café, que passa por uma fase muito ruim, e inclui grãos, pasto e reflorestamento. Eu também estou muito velho para aprender alguma coisa nova. Gosto e espero ganhar os cobres.
P – Onde é isso?
R - No Paraná eu comprei uma fazenda em 1962 com dinheiro que não tinha. Arrumei um sócio. O meu avô foi para lá em 1908, A minha fazenda não foi herdada, foi comprada. Uma coisa muito interessante, em 1906 fez-se um acordo em Taubaté para regularizar o preço de café e quem financiou essa operação colocou na cláusula que não se podia plantar mais café no estado de São Paulo, que era o grande produtor de café. Meu avô foi para o Paraná. Isso ilustra o ridículo desses acordos internacionais, dos quais o café brasileiro tem sido vítima constante. A última, uma burrice chamada retenção, feita por pessoas de ótima intenção e baixo QI.
P – Sim, Paraná, onde fica essa fazenda?
R - Ribeirão Claro, na zona velha. Cidade muito bonita, bem na fronteira de São Paulo. Essa área de Avaré para a frente, até Cambará, foi plantada na década de 20, Ocauçu, Chavantes, Ourinhos, Ribeirão Claro, Andirá... De Avaré para cá. E o café produziu essas grandes safras em 1930, quando foi plantado em 1920 nos preços altos e colhido em 1930 nos preços baixos. Exportou sua fertilidade, não se capitalizou. Se você olhar no mapa do desenvolvimento de Paraná e São Paulo é nítida a estagnação de Avaré a Cambará e nítido o avanço de Cornélio Procópio para Foz do Iguaçu, porque aí o governo fez políticas anticíclicas. Comprou café, estocou café e o café não foi queimado como foi queimado na década de 30 a preços vis. Estou usando uma palavra antiga.
P – E no sudoeste da Bahia?
R - Eu fui ao sudoeste da Bahia para ter gado. Eu tinha vendido algumas propriedades, alguns negócios, tinha um dinheirinho sobrando. Procurei pelo Brasil inteiro e me encantei com o sudoeste da Bahia. Preciso fazer uma confissão aqui, que uma das razões por que eu comprei lá era sol, terra, terra barata, muito barata. O gado vai muito bem lá e eu achei que ia fazer uma grande fazenda de pecuária. Mas também teve uma emoção: quando o Riobaldo, no Grande Sertão: Veredas fala que “aqui é Minas, lá já é Bahia”, ele atravessa na minha fazenda e encontra o capeta dentro da minha fazenda. Irresistível comprar um lugar desses. Comecei com gado e aí há uns anos atrás eu fui ao Zimbábue e vi café irrigado no Zimbábue. Bom, isso é igual à minha fazenda na Bahia, e comecei com pequenas experiências. Ao mesmo tempo tinha um português, colosso, seu Barata, que estava plantando na zona de Barreiras, Luiz Eduardo, fica 300 quilômetros ao norte, e já com grande sucesso. E hoje o futuro do café no mundo chama-se cerrado baiano irrigado. É uma zona lindíssima, difícil, e eu fico a 120 quilômetros a leste ou a oeste de duas cidades, Cocos, na Bahia, e Mambaí, no Goiás. As terras eram muito pobres, não podiam ter culturas de subsistência. Então é um vazio que começa no norte de Minas e vai até o sul do Piauí, do Maranhão, porque as terras não suportavam agricultura de subsistência, mas são extraordinárias para uma cultura de grande competência. Produz tudo em duas safras. Tem terra, água, sol, tecnologia e coragem que nós temos de ir para lá.
P – Você foi presidente da Sociedade Rural Brasileira num período crítico.
R - Talvez tenha sido a maior satisfação da minha vida. A Rural foi fundada em 1919, muito importante. Congrega uma elite de agricultores e sempre teve convicções e não conveniências. Ela é muito mais importante do que o tamanho formal dela. Teve presidentes importantes, eu acho que fiz um bom serviço, principalmente na discussão da Reforma Agrária. Quando houve Corumbiara, Eldorado dos Carajás, aquela coisa toda, houve um ambiente de pânico e eu consegui ir à imprensa e mostrar algumas coisas. Primeiro, que eu concordava com o problema. Pobreza no interior é inaceitável, inegável, precisa ser resolvido. O MST havia dado a eles uma coisa que nós não havíamos dado: esperança. E a minha classe, a classe conservadora, tinha medo de reconhecer o problema porque, por uma falsa idéia de causa e efeito, teria que reconhecer a solução proposta. Eu separei. Eu concordo com o problema e discordo da solução. O problema persiste, que é a pobreza. Melhora. O MST se desgarra de uma causa justa para uma má intenção, que é o poder totalitário. A minha idéia é que nós temos que lutar contra a pobreza, para acabar a pobreza, que o MST e o radicalismo desaparece porque ele vive da causa e é um efeito. A Rural tem um prestígio muito grande, tem acesso ao governo, é respeitada. O atual ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, foi presidente da Rural. A principal pessoa que entende dessas discussões é o Pedro Camargo, que foi presidente da Rural. O atual presidente da Rural, João Sampaio, tem metade da minha idade, o dobro da minha competência. É um oásis de sanidade, de dedicação, de convicção e de brasilidade. E ser nacionalista, que eu sou, impõe ser a favor do Brasil, a favor do Brasil e não contra estrangeiro. Isso é nacionalismo verdadeiro. A Rural é nacionalista.
Museu da Pessoa - São Paulo, 20 de setembro de 2003.
Entrevistado por Mauro Malin e Márcia Trezza.
Transcrito por Marcília Ursini.Recolher